SEÇÕES ESPECIAIS
A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS
Percepções analíticas da crise econômica e racionalidade política
Jorge Vianna Monteiro
Professor de políticas públicas da Escola Brasileira de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV) e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio - Departamento de Economia - Rua Marquês de São Vicente, 225 - Gávea - CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br
Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da public choice - uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo.
Coordenação: Jorge Vianna Monteiro
1. Introdução
Em meados de 2009, a crise econômica que irrompeu há um ano na economia dos EUA e rapidamente se espalhou pelo mundo, dá sinais mistos de atenuação e de perpetuação de efeitos negativos.
Uma das previsões que podem ser feitas para o futuro próximo é a de que as economias nacionais estarão sob a pressão de reconfigurar muitas das regras que dão conteúdo ao processo político, muito especialmente na dimensão constitucional, para que a estrutura das escolhas públicas em operação reflita o consenso da sociedade e não uma improvisada via rápida que prestou serviços à solução de problemas de política pública específicos, como observado em 2008 e nos meses iniciais de 2009.
Os resultados até aqui obtidos com a política de reação à crise mostram tanto as vantagens quanto as desvantagens de se utilizar de instituições e mecanismos decisórios já existentes para lidar com as situações de incerteza e risco que se apresentam correntemente (Congleton, 2009:41):
por um lado, os problemas de política econômica são decorrentes em grande parte dos próprios vícios de procedimentos que há longo tempo integram a formulação de estratégias dos agentes públicos e privados;
por outro lado, a associação da autoridade monetária com a principal unidade decisória política (Ministério da Fazenda ou equivalente) tem se mostrado crucial na articulação dos esforços anticrise, chegando por vezes a estender inovadoramente suas missões convencionais na formulação e operacionalização das escolhas públicas.
A seção 2 trata da inexorável dinâmica dos grupos de interesses preferenciais que se desdobra nessa trajetória macroeconômica.
Em outra dimensão, a nova onda de escândalos1 no Congresso Nacional ou, mais especificamente, no Senado Federal, leva a que sejam sugeridas novas regras ad hoc para disciplinar o comportamento dos legisladores, direcionando-os ao atendimento do interesse coletivo. Digamos ser essa uma abordagem correcional.
Essa é uma tentativa de delimitar localmente disfunções que, em verdade, se originam em um contexto mais amplo: o da própria representação política por via constitucional e eleitoral. Ou seja, o que se evidencia nesses fatos é um desvirtuamento de toda a noção de democracia representativa, muito mais do que uma falha gerencial ou administrativa da organização legislativa. Ao mesmo tempo, não se trata de enquadrar comportamentos que reflitam o despreparo deste ou daquele legislador, mas a ausência de induções que façam com que o cálculo de estratégias dos políticos se reconfigure em novas bases, independentemente de quem seja o político ou a que partido se filie, e que possibilite que o interesse geral ou coletivo seja servido.2
A seção 3 explora essa perspectiva de análise.
2. Dinâmica da crise
Várias são as sinalizações quanto ao tipo de consenso que será demandado no atual estágio do ajuste econômico que se promove nas diversas economias mundiais (e o Brasil não é exceção):
o tamanho da economia pública - o governo como unidade orçamentária, tanto quanto unidade de controle, são faces da politização dos arranjos econômicos que têm se expandido significativa e aceleradamente;3
a garantia de titularidades - direitos assegurados em áreas como a trabalhista e previdenciária muito provavelmente deverão ser redefinidos, no rastro da adoção de mecanismos institucionais que previnam a ocorrência de novas crises de características similares à atual;4
o sistema da separação de poderes - haverá uma contraposição à tendência que já vinha sendo observada anteriormente à crise (e que se acentuou ao longo da crise) quanto à hipertrofia do poder da alta gerência econômica do Executivo.5
A crise vem causando fortes impactos sobre as instituições políticas e a formulação de políticas. Por consequência, certas dimensões da crise acabam exacerbadas ou mais complexas. A figura 1 capta essa relação de causa e efeito.
Um exemplo observável em várias economias nacionais é o recondicionamento da política de ajuste fiscal: com a forte expansão dos gastos públicos na jurisdição federal, e diante da queda da arrecadação tributária, as demais jurisdições de governo passam a pressionar o governo central para aumentar o seu quinhão nesses novos gastos federais, tanto quanto para que se redefinam as regras do federalismo fiscal.6
Na figura 1, essa é uma ocorrência perversa que ilustra a sequência [4] → [5].7
O sentido mais desejável das regras do jogo é que elas gerem incentivos positivos e, por seu turno, comportamentos virtuosos dos participantes do jogo, ou seja, produzam escolhas que promovam o bem-estar coletivo ou geral. Em contraposição, o processo político é inerentemente a fonte de potenciais atendimentos preferenciais tais como desonerações tributárias, subsídios, fundos orçamentários, barreiras alfandegárias e regulações de mercado de todo tipo e, desse modo, levando a ganhos e perdas de incidência muito localizada (Monteiro, 2007, cap. 6).8
Para minimizar os efeitos perversos desse mecanismo, uma nova rodada de mudança institucional se faz necessária - o que dá lugar a legislações que enquadram, por exemplo, atividades de lobbying, a influência de recursos privados no processo eleitoral e o uso de espaço na mídia com o propósito de aumentar as chances de que um determinado grupo de interesses privados seja atendido em sua demanda para obter benefícios ou evitar custos.9
A mobilização de grupos privados em torno da obtenção de vantagens preferenciais também pode ter significado expressivo entre as próprias atividades dos mercados de bens e serviços. Assim, a complexidade das regras do jogo fica evidenciada no fato de que nem sempre elas regulam diretamente a interação de escolhas públicas com escolhas privadas em um dado mercado.
A figura 2 capta esse tipo de regulação pela seta [1] que, diferentemente das regulações setoriais, [2] e [3], atua sobre a interação [9]. O objetivo desse conjunto de regras [1] é minimizar os efeitos perniciosos da associação de interesses privados, e seu potencial impacto negativo no bem-estar coletivo - o que se apresenta na sequência ([1] →[9]) →([7],[8]) → [6]. Um exemplo empírico recente é a legislação surgida no estado americano de Vermont e que tem por alvo o relacionamento entre a classe médica e a indústria farmacêutica que potencialmente gera benefícios preferenciais e, portanto, compromete o interesse coletivo (no caso, o atendimento de saúde à população).10
O comprometimento do interesse coletivo ([7],[8]) → [6] é identificado em duas vertentes: preferência pela prescrição de uma determinada marca de produto, em detrimento de marcas dos competidores, ainda que essa alternativa possa ser mais benéfica ao paciente; os médicos podem ser induzidos a receitar drogas novas, mais caras e possivelmente mais perigosas para a vida humana.
A mencionada legislação, [1], estabelece detalhada regulação da interação [9], com o propósito geral de submeter esse relacionamento a algum tipo de formalização e maior transparência.
A reflexão que fica é o vazio institucional em que as diversas interações mostradas na figura 2 se processam na economia brasileira. Pense o leitor na virtual inexistência de regulação do lobbying. Assim, pode-se inferir que são substancialmente elevados os desvios com que as políticas públicas são providas, relativamente ao atendimento do interesse coletivo, com o comprometimento de recursos que direcionados ao rent seeking deixam de ser utilizados com maior produtividade, por exemplo, na expansão da produção de bens e serviços.
3. Racionalidade das regras eleitorais
Os mecanismos democráticos podem se relacionar uns aos outros, seja como complementos, seja como substitutos, isto é, um dado mecanismo pode aumentar ou diminuir os benefícios líquidos de outro (Vermeule, 2009).
Tomem-se no processo político as regras de financiamento de campanhas eleitorais.
Por complementaridade, essas regras reforçam as decisões majoritárias no Congresso, na medida em que elas dão a tais decisões maior grau de responsabilização (accountability): a disfunção no financiamento das eleições leva a que os processos legislativos majoritários acabem por favorecer grupos de interesses preferenciais que podem influenciar o comportamento de deputados e senadores a um baixo custo e, portanto, induzindo a um déficit de responsabilização.
Por outro lado, como exemplo de relação de substituição entre mecanismos democráticos, seja a adoção de regras de financiamento eleitoral e outro conjunto de regras que deem transparência à deliberação legislativa. A legislação eleitoral pode anular total ou parcialmente os benefícios de um processo de escolhas mais equânime e transparente, na extensão em que as regras de financiamento de campanhas favoreçam a interesses organizados, tanto quanto ao aumento puro e simples da quantidade de legislação.
A figura 3 é um expediente didático que singulariza alguns desses aspectos que, de uma forma ou de outra, têm sido apenas superficialmente tratados nas discussões correntes no Congresso sobre o financiamento público de campanhas.
As regras para o financiamento de campanha atendem a duas racionalidades simultaneamente, embora possam atuar muito desigualmente numa e noutra frente.
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Vinculam-se a um esforço antissuborno dos agentes públicos.
Nessa perspectiva, o propósito geral é o de restringir a provisão e o uso de fundos de campanha: pelo lado da oferta, impondo-se limites às contribuições individuais ou de grupos; pelo lado da demanda, limitando-se os gastos dos candidatos e dos partidos políticos.
Pela sequência (1) → (3) →(4), por exemplo, o financiamento de campanha pouco regulado ou regulado de modo equivocado pode não ter a virtude de canalizar informação sobre as escolhas relevantes para o processo decisório dos políticos. Ao invés, ele pode dar aos mais economicamente fortes uma vantagem política arbitrária e injusta (Noveck, 2009:8) - o que acabará por se refletir no padrão de políticas econômicas (4) → (5).
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Operam como um mecanismo de provisão igualitária de bem-estar.
Abundância de recursos de campanha (financeiros e não financeiros) e desigualdade de acesso a tais recursos acaba por desequilibrar a influência de diferentes segmentos da sociedade sobre o resultado eleitoral, tanto quanto sobre as escolhas públicas. Afinal, a sequência (6) → (7) pode atuar autonomamente na promoção de um padrão de políticas de benefícios líquidos substancialmente concentrados. Mesmo porque, "na medida em que se valoriza a diversidade na concentração de poder, os mecanismos da democracia devem ser tão independentes quanto possível do poder concentrado na esfera econômica" (Overton, 2004:100).
Ao mesmo tempo, diante da pouca efetividade de muitas das restrições que têm sido impostas às finanças de campanha, pode-se definir uma estratégia de disclosure (1), seja pelo total acesso à informação dos financiadores - o que se propõe a neutralizar a corrupção política, seja, ao contrário, criando uma "urna secreta de doações" e, assim, deixando o candidato na ignorância quanto à identidade de seus doadores (Ackerman e Ayres, 2002).
Todavia, esses são temas que envolvem problemas nada triviais (Noveck, 2009), uma vez que a opção por uma dada estratégia de disclosure permite estabelecer um controle sobre precisamente que tipo de informação estará disponível para instrumentar a regulação eleitoral, e também que informação poderá ser ocultada de modo a impedir que decisões impróprias ou corruptas sejam tomadas. Uma dificuldade concreta nesse sentido é que a disponibilização de informação relativa a quem doa quanto a qual candidato ou partido pode, afinal, ser perversa: tal informação pode não ter maior impacto nas escolhas legislativas, (4) → (5) e, no entanto, facilitar a que grupos de interesses preferenciais operem o mecanismo de rent seeking em proveito próprio (Noveck, 2009:42).
Assim, falta na habitual discussão sobre novas regulações do financiamento eleitoral reconhecer que a escolha a ser feita não é propriamente entre não ter disclosure e ter disclosure total: torna-se crucial estabelecer qual informação deve se tornar disponível e em que formato (Garrett, 2003:1012; Monteiro, 2007:158-160).11
4. Conclusão
Diversas considerações estratégicas sublinham a complexidade da crise atual, assim como são indicativas de dimensões que, mais cedo ou mais tarde, deverão ser reconhecidas para lidar com as decorrências da própria crise, tanto quanto para assegurar de que um abalo dessa magnitude não volte a ocorrer ou deixe de ser detectado a tempo. Entre outras:
a economia pública sempre criticada por seu tamanho exagerado e por sua ineficiência, sobretudo em países emergentes, deverá ser percebida pela qualidade de seu planejamento;12
por força de expectativas negativas e da queda de demanda, os mercados de bens e serviços têm sido enxugados em número de firmas, de tal sorte que generalizadamente se observa estruturas de mercado de "competição entre poucos", com significativo risco de práticas monopolísticas e de cartel;13
o delicado equilíbrio de forças entre os departamentos de governo fica duradouramente alterado, com a transferência de poder decisório da legislatura para a alta gerência do Executivo;14
o avanço da fronteira pública tanto quanto sua maior diversidade leva a que o mecanismo de obtenção de transferências de renda e riqueza junto ao processo político (rent seeking) mostre-se mais ativo e sofisticado, o que se reflete na necessidade imperiosa de criar ou alterar as regras que disciplinem mais efetivamente o lobbying, o uso de recursos privados em campanhas eleitorais, bem como a concentração de poder no mercado da mídia;15
muito embora haja evidências de maior regulação transnacional (sobre paraísos fiscais, por exemplo), pode-se especular que as economias nacionais operarão sob regras menos limitativas, ditadas por organismos como a OMC, o FMI e o Banco Mundial;16
a formulação de nonmarket strategies ("estratégias de ação coletiva" Monteiro, 2004, figura 3) por parte das firmas torna-se ainda mais fundamental e complexa no cenário pós-crise, como garantidora de sucesso de mercado;17
a crise oferece uma ocasião para que se redefinam padrões de reforma institucional para temas como a alocação de poderes emergenciais aos governos e a operacionalização de formas de articulação das várias instâncias governamentais.18
Referências bibliográficas
- ACKERMAN, B.; AYRES, I. Voting with dollars: a new paradigm for campaign finance. New Haven: Yale University Press, 2002.
- CONGLETON, R. On the political economy of the financial crisis and bailout of 2008 George Mason University, 2009. (Center for Study of Public Choice Working Paper Series).
- GARRETT, E. Voting with cues. University of Richmond Law Review, v. 37, n. 2, p. 1011-1148, maio 2003.
- MONTEIRO, J. V. Lições de economia constitucional brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
- ______. Como funciona o governo: escolhas públicas na democracia representativa. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
- NOVECK, S. Campaign finance disclosure and the legislative process. Harvard Journal of Legislation, v. 47, n. 1, 2009.
- OLSON, M. The rise and decline of nations: economic growth staginflation and social rigidities. New Haven: Yale University Press, 1982.
- ORDESHOOK, P. Constitutional stability. Constitutional Political Economy, v. 3, n. 2, p. 137-175, Spring/Summer 1992.
- OVERTON, S. The donor class: campaign finance, democracy, and participation. University of Pennsylvania Law Review, v. 153, n. 1, p. 73-118, Nov. 2004.
- VERMEULE, A. Mechanisms of democracy: insitutional design writ small. New York: Oxford University Press, 2007.
- ______. The interaction of democratic mechanisms Harvard Law School, 2009. (Public Law & Legal Theory Working Paper Series, 9-22).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Out 2009 -
Data do Fascículo
Ago 2009
por um lado, os problemas de política econômica são decorrentes em grande parte dos próprios vícios de procedimentos que há longo tempo integram a formulação de estratégias dos agentes públicos e privados; 


