Acessibilidade / Reportar erro

Difusão e adaptação do modelo de agência reguladora no Brasil

Resumo

Este artigo examina a difusão de agências reguladoras independentes no Brasil, demonstrando de que forma a interação entre variáveis relacionadas ao contexto local e mecanismos tradicionais de difusão levaram a um expressivo processo de agencificação. Embora mecanismos top-down, bottom-up e horizontais tenham desempenhado um papel importante na difusão das agências reguladoras brasileiras, eles são insuficientes para explicar a criação de agências em setores inusitados ou as frequentes modificações ocorridas nos níveis subnacionais. Para entender a adaptação do modelo de agência ao contexto local, foi realizada uma pesquisa de campo, baseada em bibliografia, documentação oficial e entrevistas com atores-chave. As especificidades do federalismo brasileiro e o papel estratégico desempenhado por atores da indústria cinematográfica, burocratas e políticos na reinterpretação do modelo de agência contribuíram para alavancar a difusão de agências reguladoras independentes no Brasil.

Palavras-chave:
agencificação; agências reguladoras independentes; reforma regulatória; Brasil

Abstract

This article examines the diffusion of independent regulatory agencies (IRAs) in Brazil, demonstrating how important domestic factors interplayed with traditional mechanisms of diffusion lead to an expressive process of agencification. Although top-down, bottom-up and horizontal mechanisms played an important role in the Brazilian agencification process, they fail to explain the creation of IRAs in unexpected sectors or the frequent modifications that occurred at subnational levels in a short period of time. To understand how local political actors adapted the regulatory agency model to the Brazilian institutional legacies, field research was conducted, based on bibliographical, documental, and interviews with key political actors. The specificities of Brazilian federalism and the strategic role of the film industry, bureaucrats and politicians in (re)interpreting the agency model helped to boost the diffusion of IRAs in Brazil.

Keywords:
agencification; independent regulatory agencies; regulatory reform; Brazil

Resumo

Este artículo examina la difusión de agencias reguladoras independientes en Brasil, demostrando de qué forma la interacción entre variables contextuales y mecanismos de difusión llevaron a un significativo proceso de agencialización. Aunque los mecanismos top-down, bottom-up y horizontales han desempeñado un papel importante en la difusión de las agencias reguladoras brasileñas, son insuficientes para explicar la creación de agencias en sectores inusitados o las frecuentes modificaciones ocurridas en los niveles subnacionales. Para entender la adaptación del modelo de agencia al contexto local, se realizó una investigación de campo, basada en bibliografía, documentación oficial y entrevistas con actores clave. Las especificidades del federalismo brasileño y el papel estratégico desempeñado por actores de la industria cinematográfica, burócratas y políticos en la reinterpretación del modelo de agencia contribuyeron a apalancar la difusión de agencias reguladoras independientes en Brasil.

Palabras-clave:
agencialización; agencias reguladoras independientes; reforma regulatoria; Brasil

1. INTRODUÇÃO

A difusão de agências reguladoras independentes (ARIs) observada nas últimas décadas foi acompanhada por uma extensa literatura que busca identificar potenciais mecanismos atuantes nesse processo. Apesar das diferentes motivações envolvidas no estabelecimento de ARIs em todo o mundo, essas entidades representam, ao menos discursivamente (Pollitt, Bathgate, Caulfield, Smullen & Talbot, 2001Pollitt, C., Bathgate, K., Caulfield, J., Smullen, A., & Talbot, C. (2001). Agency Fever? Analysis of an International Fashion. Journal of Comparative Policy Analysis, 3(3), 271-290.), uma tentativa de separar política e administração. A criação e proliferação de agências independentes de influência política - ou processo de agencificação - representa uma significativa mudança na estrutura do Estado e na divisão de poder entre políticos eleitos e burocratas não eleitos (Levi-Faur & Jordana, 2005Levi-Faur, D. (2005). The global diffusion of regulatory capitalism. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 12-32.).

Embora grande parte da literatura esteja concentrada nos contextos europeu e norte-americano, contribuições recentes buscam avançar o tema em países em desenvolvimento, particularmente aqueles localizados no hemisfério sul (Dubash & Morgan, 2012Dubash, N. & Morgan, B. (2012). Understanding the Rise of the Regulatory State in the South. Regulation & Governance, 6, 261-281.). De fato, a difusão de ARIs seguiu um eixo centro-periferia, de países desenvolvidos para países em desenvolvimento, e encontrou condições propícias em vários países da América Latina envolvidos em processos orientados para o mercado desde o final dos anos 80, sob influência de organizações internacionais como o Banco Mundial e a OCDE (Dubash & Morgan, 2012; Levi-Faur & Jordana, 2005Levi-Faur, D. (2005). The global diffusion of regulatory capitalism. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 12-32.).

Este artigo examina o processo brasileiro de agencificação com foco na influência do contexto local na difusão e adaptação do modelo de agência. Parte-se da premissa que a versão latino-americana do Estado Regulador (Levi-Faur, 2003Levi-Faur, D. (2003). The politics of liberalisation: Privatisation and regulation-for-competition in Europe’s and Latin America’s telecoms and electricity industries. European Journal of Political Research, 42, 705-740.) influenciou a adoção, interpretação e implementação de agências reguladoras independentes pelos atores locais.

Nesse sentido, o Brasil é um excelente exemplo de difusão de ARIs na América Latina. O processo brasileiro de agencificação resultou na criação de mais de 60 ARIs desde 1996, e este processo tem sido extensamente debatido pela literatura local. Embora os argumentos de necessidade de credibilidade dos compromissos, incerteza política e blame-shifting (Melo, 2002Melo, M. (2002). As agências regulatórias: gênese, desenho institucional e governança. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC. São Paulo, SP: Annablume.; Melo & Pereira, 2013Mueller, B., & Pereira, C. (2002). Credibility and the design of regulatory agencies in Brazil. Brazilian Journal of Political Economy, 22(3), 65-88.; Mueller & Pereira, 2002Mueller, B., & Pereira, C. (2002). Credibility and the design of regulatory agencies in Brazil. Brazilian Journal of Political Economy, 22(3), 65-88.) expliquem a criação e desenho de muitas agências, os casos que não se enquadram na explicação formal são deixadas de lado, como uma “extensão indevida” do modelo de ARI (Salgado, 2003Salgado, L. H. (2003). Agências reguladoras na experiência brasileira: um panorama do atual desenho institucional (Texto para discussão, n. 241). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, RJ.).

Assim, a pergunta que este artigo pretende responder é: quais mecanismos atuaram no processo de difusão de agências reguladoras independentes no Brasil? Para compreender tanto as características comuns como as variações deste processo, este artigo examina dois resultados “inesperados” da difusão de agências no Brasil: a criação da Ancine, a Agência Nacional de Cinema e a extinção da Asep, a Agência Reguladora dos Serviços Públicos Concedidos do Estado do Rio de Janeiro) e a subsequente criação de duas novas agências reguladoras setoriais dentro de um curto período de existência.

Dois aspectos chamam à atenção na análise do processo brasileiro de agencificação. O primeiro é a chamada extensão indevida do modelo de agência a setores econômicos sem monopólios naturais para regular ou contratos de concessão para celebrar e monitorar (Salgado, 2003Salgado, L. H. (2003). Agências reguladoras na experiência brasileira: um panorama do atual desenho institucional (Texto para discussão, n. 241). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, RJ.). O segundo está relacionado ao próprio processo. No nível estadual, particularmente, o processo de criação de agências foi marcado por atrasos e reformulações (Pó & Abrucio, 2007Pó, M., & Abrucio, F. (2007). Mimetismo e reforma incompleta do Estado: o caso das agências reguladoras sob a égide do ultrapresidencialismo estadual. In anais do 31º encontra Anpad, Rio de Janeiro, RJ.). A excepcionalidade dos casos da Ancine - em nível federal - e da Asep - em nível estadual - influenciou uma estratégia de pesquisa do tipo bottom-up com base em dados bibliográficos e documentais, bem como entrevistas em profundidade com os principais atores políticos envolvidos na criação dessas ARIs e suas modificações subseqüentes. A abordagem bottom-up permitiu integrar explicações tradicionais e fatores específicos do contexto e revelou que - embora os mecanismos tradicionais de difusão possam explicar a adoção de ARIs em diferentes setores - eles contam apenas parte da história. O processo brasileiro de agencificação pode ser entendido como resultado da interação entre mecanismos tradicionais de difusão e o contexto local, via reinterpretações do modelo de agência adotadas por diferentes grupos de atores.

Na prática, a compreensão dos principais fatores que influenciam a difusão de agências no Brasil é relevante para subsidiar políticas públicas destinadas a refinar o seu desenho institucional. Além disso, entender como o conceito de agência reguladora foi adaptado e reinterpretado nas três esferas governamentais pode ajudar a subsidiar futuros “transplantes institucionais”, adequando prescrições de organizações internacionais ao contexto local. Por fim, este artigo contribui para pesquisas mais recentes que examinam como o Estado está expandindo - e não recuando - por meio da ação reguladora do Estado e de agências reguladoras (ver Haber, 2011Haber, H. (2011). Regulating-for-Welfare: A Comparative Study of the “Regulatory Welfare Regimes” in the Israeli, British and Swedish electricity sectors. Law & Policy, 33(1), 116-148.; Levi-Faur, 2014Levi-Faur, D. (2014). The Welfare State: A regulatory Perspective. Public Administration, 92(3), 599-614.; Holperin, 2017).

2. REGULANDO O “ESPERADO”: MECANISMOS DE DIFUSÃO E A CRIAÇÃO DE AGÊNCIAS REGULADORAS INDEPENDENTES

A literatura que aborda a adoção das ARIs como um processo de difusão (Gilardi, 2005Gilardi, F. (2005). The Institutional Foundations of Regulatory Capitalism: The Diffusion of Independent Regulatory Agencies in Western Europe. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 84-101.; Levi-Faur, 2005Levi-Faur, D. (2005). The global diffusion of regulatory capitalism. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 12-32.) sugere três mecanismos, ou classes de explicações, para esse processo: pressões do tipo bottom-up e/ou top-down e mecanismos horizontais. Essas classes de explicações, chamadas aqui de mecanismos de difusão, agrupam racionalidades distintas que explicam a decisão de criar uma ARI, integrando as contribuições desenvolvidas pela teoria da escolha racional e do institucionalismo sociológico.

Mecanismos do tipo bottom-up exploram porque, e sob quais circunstâncias, o Legislativo decide delegar parte de seu poder à burocratas autônomos. As razões podem ser resumidas à (i) redução dos custos de tomada de decisão e (ii) necessidade de garantir a credibilidade dos compromissos assumidos (Majone, 2001Majone, G. (2001). Two Logics of Delegation: Agency and Fiduciary Relations in EU Governance. European Union Politics, 2, 103-122.). A decisão por delegar, de modo geral, pode ser justificada quando há grande demanda por informação técnica (custo elevado) e os benefícios políticos são baixos (Epstein & O’Halloran, 1999Epstein, D., & O’Halloran, S. (1999). Delegating powers: a transaction cost politics approach to policy-making under separate powers. Cambridge, MA: Cambridge University Press.), ou ainda como uma estratégia para evitar a responsabilização no caso de consequências negativas (Fiorina, 1982Fiorina, M. P. (1982). Legislative Choice of Regulatory Forms: Legal Process or Administrative Process? Public Choice, 39(1), 33-66.). O insulamento político da burocracia permite maior agilidade de ação, transferência de responsabilidade e aquisição de conhecimento técnico, sendo assim uma forma bastante efetiva de reduzir os custos de tomada de decisão.

A necessidade de assegurar a credibilidade dos compromissos parte do reconhecimento do problema da inconsistência temporal das decisões políticas, e do seu impacto em termos de bem-estar, como desenvolvido por Kydland e Prescott (1977Kydland, F., & Prescott, E. (1977). Rules rather than discretion: The inconsistency of optimal plans. Journal of Political Economy, 85, 473-490.). A ideia central é que a expectativa dos agentes racionais - como, por exemplo, o receio de expropriações futuras - afeta as decisões de investimentos correntes, de modo que é preferível a redução da discricionariedade dos policymakers em favor da obediência a regras estabelecidas.

É a partir dos trabalhos de Levy e Spiller, em meados dos anos 1990, que a questão da credibilidade dos compromissos passa a ocupar lugar central no debate envolvendo a capacidade de fomentar investimentos em mercados regulados. Levy e Spiller (1994Levy, B., & Spiller, P. (1994). The Institutional Foundations of Regulatory Commitment: a Comparative Analysis of Telecommunications Regulation. Journal of Law Economics and Organisation 10(2), 201-246., 1996Levy, B., & Spiller, P. (1996). Regulations, Institutions, and Commitment. Comparative Studies of Telecommunications. Cambridge, MA: Cambridge University Press .) redirecionam o foco que era dado ao desenho de incentivos regulatórios para a importância de uma estrutura adequada de governança regulatória. Assim, a presença de instituições capazes de suavizar ou exacerbar as possibilidades de expropriação ou manipulação administrativa passa a ser determinante para explicar o desempenho do setor regulado, mudando o foco de análise da causa para o efeito decorrente da existência de instituições regulatórias adequadas. Dessa forma, a adequação entre a dotação institucional vigente, governança regulatória e estrutura de incentivos tornou-se determinante na explicação do desempenho do setor regulado. Esse mecanismo explicativo predominou na literatura brasileira (Melo, 2002Melo, M. (2002). As agências regulatórias: gênese, desenho institucional e governança. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC. São Paulo, SP: Annablume.; Mueller & Pereira, 2002Mueller, B., & Pereira, C. (2002). Credibility and the design of regulatory agencies in Brazil. Brazilian Journal of Political Economy, 22(3), 65-88.; Salgado, 2003Salgado, L. H. (2003). Agências reguladoras na experiência brasileira: um panorama do atual desenho institucional (Texto para discussão, n. 241). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, RJ.).

A segunda classe de explicação - as pressões do tipo top-down - interpreta o processo de difusão de ARIs como uma resposta dos formuladores de políticas públicas a pressões externas de organizações internacionais e comunidades de políticas (Gilardi, 2005Gilardi, F. (2005). The Institutional Foundations of Regulatory Capitalism: The Diffusion of Independent Regulatory Agencies in Western Europe. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 84-101.). Dubash e Morgan (2012Dubash, N. & Morgan, B. (2012). Understanding the Rise of the Regulatory State in the South. Regulation & Governance, 6, 261-281.) chamam este processo de “transplante institucional” e reconhecem a relevância deste mecanismo em países em desenvolvimento, que contaram com apoio financeiro de organizações como Banco Mundial em diferentes projetos de financiamento. Mecanismos top-down são equivalentes à ideia de isomorfismo coercitivo (DiMaggio & Powell, 1983DiMaggio, P., & Powell, W. (1983). The Iron Cage Revisited: Institutional Isomorphism and Collective Rationality in Organizational Fields. American Sociological Review, 48(2), 147-160.), que ocorre quando similaridades entre organizações são explicadas por pressões formais e/ou informais de outras organizações das quais elas dependem, ou ainda da sociedade local.

Por fim, mecanismos horizontais são a essência de um processo de difusão. Falar em difusão é falar em processos não-coordenados e interdependentes, onde a escolha de uma unidade é influenciada pela escolha feita em uma unidade diferente (Shipan & Volden, 2012Shipan, C.R., & Volden, C. (2012). Policy diffusion: Seven lessons for scholars and practitioners. Public Administration Review, 72(6), 788-796.; Simmons & Elkins, 2005Simmons, B., & Elkins, Z. (2005). On Waves, Clusters and Diffusion: A Conceptual Framework. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 33-51.). Isso significa que a criação de uma agência reguladora independente aumenta as chances de criação de uma nova agência. Este tipo de explicação é similar ao conceito de isomorfismo mimético desenvolvido por DiMaggio e Powell (1983DiMaggio, P., & Powell, W. (1983). The Iron Cage Revisited: Institutional Isomorphism and Collective Rationality in Organizational Fields. American Sociological Review, 48(2), 147-160.), que postula que organizações se espelham em seus pares considerados bem-sucedidos e/ou legítimos. Assim, semelhanças no desenho institucional e no funcionamento de agências reguladoras são atribuídas não à sua adequação e/ou efetividade, mas ao fato de serem vistas como mais legítimas, desencadeando um processo de difusão por mimetismo. O Quadro 1 resume as principais contribuições de cada mecanismo.

Quadro 1
Mecanismos de Difusão

Considerando a expressiva quantidade de agências criadas no Brasil desde 1996, mecanismos horizontais representam uma importante classe de explicação a ser explorada. Embora pesquisas empíricas anteriores tenham demonstrado a sua importância (Gilardi, 2005Gilardi, F. (2005). The Institutional Foundations of Regulatory Capitalism: The Diffusion of Independent Regulatory Agencies in Western Europe. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 84-101.; Yesilkagit & Christensen, 2009Yesilkagit, K., & Christensen, J. (2009). Institutional design and formal autonomy: Political versus historical and cultural explanations. Journal of Public Administration Research and Theory, 20(1), 53-74.), a sua presença, por si só, não é capaz de explicar quais aspectos das ARIs foram considerados “bem-sucedidos” ou “legítimos” pelos atores locais e por que eles foram interpretados dessa maneira.

Na prática, é possível observar um número significativo de soluções locais, como a adoção de três ARIs diferentes para o setor de transporte no nível federal (terrestre, aquaviário e aviação civil) e as diferentes dinâmicas observadas no nível subnacional. É a adaptação local do modelo ARI que este artigo procura elucidar.

3. REGULANDO O “INESPERADO”: UMA ABORDAGEM CONTEXTUAL

Processos de agencificação têm sido reconhecidos como um modismo internacional no campo da administração pública (Pollitt et al., 2001Pollitt, C., Bathgate, K., Caulfield, J., Smullen, A., & Talbot, C. (2001). Agency Fever? Analysis of an International Fashion. Journal of Comparative Policy Analysis, 3(3), 271-290.). Ao mesmo tempo que pode ser considerado um fenômeno convergente, dada a popularidade do modelo de agência e a sua disseminação global, o que cada localidade entende por agência e as diferenças observadas no grau de autonomia e controle indicam que trata-se de um processo divergente, de modo que esses entes assumem trajetórias únicas em diferentes países e setores (Levi-Faur, 2006; Nakano, 2004Nakano, K. (2004). Cross-national transfer of policy ideas: Agencification in Britain and Japan. Governance, 17(2), 169-188.; Pollitt et al., 2001; Verhoest & Laegreid, 2010Verhoest, K., & Laegreid, P. (2010). Organizing Public Sector Agencies: Challenges and Reflections. In: P. Laegreid, & K. Verhoest (Eds.), Governance of public sector organizations: proliferation, autonomy and performance. Hampshire: Palgrave Macmillan.; Verschuere & Barbieri, 2009Verschuere, B., & Barbieri, D. (2009). Investigating the NPM- ness of agencies in Italy and Flanders, Public Management Review, 11(3), 345-373.; Yesilkagit & Christensen, 2009Yesilkagit, K., & Christensen, J. (2009). Institutional design and formal autonomy: Political versus historical and cultural explanations. Journal of Public Administration Research and Theory, 20(1), 53-74.). Como resultado, as agências não diferem apenas nos formatos que assumem e nas trajetórias que seguem, mas também na retórica que as sustenta (Smullen, 2010Smullen, A. (2010). Translating agency reform through durable rhetorical styles: comparing official agency talk across consensus and adversarial contexts. Public Administration, 88(4), 943-959.), indicando a “convergência divergente” (Tenbucken & Schneider, 2004Tenbucken, M., & Schneider, V. (2004). Divergent convergence: structures and functions of national regulatory agencies in the telecommunications sector. In J. Jordana, & D. Levi-Faur(Eds.), The Politics of Regulation. Cheltenham: Edward Elgar.) de processos de agencificação.

A partir do reconhecimento de que “o contexto importa”, o passo seguinte é entender como o contexto importa. Levi-Faur (2003Levi-Faur, D. (2003). The politics of liberalisation: Privatisation and regulation-for-competition in Europe’s and Latin America’s telecoms and electricity industries. European Journal of Political Research, 42, 705-740.) discute a relevância de um institucionalismo histórico centrado em atores para analisar como estes se comportam em diferentes ambientes institucionais, acomodando o processo de aprendizado em proveito próprio e gerenciando os legados históricos que restringem as suas ações. Moynihan (2006Moynihan, D. (2006) Ambiguity in Policy Lessons: the Agencification Experience. Public Administration, 84(4), 1029-1050.) defende que é a ambiguidade de ideias que abre espaço para a discricionariedade das interpretações. Nesse caso, o contexto afeta a seleção de políticas indiretamente, influenciando a maneira como os formuladores de políticas interpretam lições e doutrinas de outras jurisdições. Essa abordagem, portanto, enfatiza o papel dos intérpretes e sua discricionariedade na correspondência entre doutrinas e contexto local.

Esta perspectiva ressalta o aspecto de “lata de lixo” (garbage can) do processo decisório, em oposição a explicações que retratam as escolhas como resultantes de processos estruturados e sistemáticos. Atores locais interpretam lições à sua maneira, trazendo novas definições de problemas que, por sua vez, são limitadas por trajetórias institucionais específicas. Assim, ajustam soluções internacionais às suas necessidades particulares. Como March e Olsen notaram há trinta anos, processos de reorganização administrativa são uma combinação “altamente contextual de pessoas, oportunidades de escolha, problemas e soluções” (1983, p. 286), cuja principal motivação não reside na busca por maior desempenho.

Nakano (2004Nakano, K. (2004). Cross-national transfer of policy ideas: Agencification in Britain and Japan. Governance, 17(2), 169-188.), por exemplo, demonstrou como os formuladores de políticas japoneses reinterpretaram e redefiniram o conceito britânico de agencificação. No caso japonês, a preocupação central não estava diretamente relacionada à possibilidade de prestar o serviço público de forma mais eficiente, mas sim em reduzir o papel e o tamanho dos departamentos centrais. A diferença entre os processos britânico e japonês de agencificação não se deve a um mal-entendido. Segundo o autor, ela representa a maneira que os formuladores de políticas japoneses encontraram para resolver questões locais: adaptando conceitos políticos subjetivos, como o conceito de agencificação.

Este artigo adota essa perspectiva teórica. Ou seja, assume que o processo brasileiro de agencificação é melhor explicado pela interação entre os diferentes mecanismos de difusão e as especificidades do contexto local. O conceito de agencificação é suficientemente ambíguo para ser entendido e adaptado às necessidades locais (Moynihan, 2006Moynihan, D. (2006) Ambiguity in Policy Lessons: the Agencification Experience. Public Administration, 84(4), 1029-1050.) e legados históricos.

4. ESTRATÉGIA EMPÍRICA

O presente estudo foi conduzido em duas fases. A primeira fase consistiu em uma análise transversal das ARIs criadas, com base em pesquisa documental e bibliográfica. Na segunda fase, dois casos foram analisados, escolhidos por sua excepcionalidade: a criação da Ancine, no nível federal, e o processo de desmembramento da Asep, no nível estadual. Ambos os casos ilustram como mecanismos de difusão, sozinhos, não conseguem explicar a decisão de criar uma agência reguladora independente. São, assim, casos típicos de processos do tipo “lata de lixo” (garbage can), ou resultado de combinações contextuais de problemas, soluções, oportunidades e atores (March & Olsen 1983March, J., & Olsen, J. (1983). Organizing Political Life: What Administrative Reorganization Tell us about Government? The American Political Science Review, 77(2), 281-296.).

De todas as agências federais criadas desde 1996, a Ancine é a mais peculiar. Alvarenga (2010Alvarenga, M.V.T. (2010). Cineastas e a Formação da ANCINE (1999-2003) (Master Thesis). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.) menciona três aspectos que fazem da Ancine uma agência diferente das demais: (i) o fato de ser resultado de demandas da indústria, e não do Estado; (ii) a falta de definição sobre a qual Ministério a agência deveria estar associada e (iii) seu status como agência reguladora independente. Seu status como ARI difere de outras organizações de suporte à indústria cinematográfica (Fornazari, 2006Fornazari, F. K. (2006). Instituições do Estado e Políticas de Regulação e Incentivo ao Cinema no Brasil: o caso Ancine e Ancinav. Revista de Administração Pública, 40(4), 647-677.), bem como de agências que regulam o setor audiovisual, mas sem a função de fomento à indústria cinematográfica, como a Comissão Federal de Comunicações dos EUA.

Em âmbito estadual, uma das características mais marcantes do processo de agencificação foram os atrasos recorrentes na implementação e reformulação das ARIs (Pó & Abrucio, 2007Pó, M., & Abrucio, F. (2007). Mimetismo e reforma incompleta do Estado: o caso das agências reguladoras sob a égide do ultrapresidencialismo estadual. In anais do 31º encontra Anpad, Rio de Janeiro, RJ.). O caso do Rio é emblemático não apenas porque ilustra essa dinâmica, mas porque - diferente de outros estados - o processo de reformulação envolveu a transição de um modelo multissetorial - o mais popular no nível estadual - para o modelo setorial - o mais raro. Como o Quadro 2 indica, cerca de 27% de todas as ARIs criadas no nível estadual foram extintas e/ou reformuladas. Por exemplo, a Ases, no estado de Sergipe, foi substituída pela Agrese, em 2009, mas alguns de seus procedimentos fundamentais - como revisão e reajuste tarifário, consulta pública e estabelecimento de ouvidoria - foram incluídos apenas no ano passado, pela lei estadual 8.442/2018.

A dinâmica do Sudeste - a região mais rica do Brasil, em termos de PIB - é bastante interessante. O Sudeste é a única região com agências setoriais no nível estadual, e o intercâmbio entre os dois modelos é uma característica notável desta região. Minas Gerais passou de uma agência multissetorial inexistente, a Arsemg, para uma agência setorial, a Arsae, criada 11 anos após a primeira tentativa de estabelecer uma ARI naquele estado. O Espírito Santo seguiu um caminho sinuoso. Passou de um modelo multissetorial, com a Agesp em 1998, para um modelo setorial, criando a Aspe e a Arsi, em 2004 e 2008, respectivamente, e de volta para um modelo multissetorial, com a fusão dessas duas agências no atual modelo multissetorial da ARSP. São Paulo, por outro lado, seguiu uma trajetória coerente em termos de criação de agências: suas duas primeiras ARIs eram setoriais. Após dez anos, sua agência reguladora de energia, a CSPE foi transformada na multissetorial Arsesp, ao incluir o setor de saneamento. O caso do Rio de Janeiro, que será analisado neste artigo, se assemelha ao caso do Espírito Santo: sua primeira agência multissetorial foi desmembrada em duas agências setoriais, Agetransp e Agenersa. No entanto, diferentemente do caso do Espírito Santo, as agências foram criadas ao mesmo tempo e, apesar de uma tentativa de unificá-las novamente - pelo projeto de lei estadual n. 2.750/2009 - as duas agências ainda estão operando.

Os dados foram coletados a partir de três fontes distintas: (i) documentos oficiais (e.g., Diário Oficial, atas de assembléias do Congresso, documentos de acesso aberto de órgãos públicos, legislação referente aos órgãos reguladores); (ii) artigos já publicados sobre o fenômeno de interesse (i.e., criação de agências) e (iii) pesquisa de campo (i.e., entrevistas semiestruturadas em profundidade). Além disso, a pesquisa de campo foi complementada por informações coletadas ao longo do VII Congresso Brasileiro de Regulação, realizado pela ABAR, no final de 2011, em que foram entrevistados dirigentes e/ou funcionários de alto escalão de sete agências reguladoras brasileiras. A pesquisa documental abrangeu um total de quarenta e seis ARIs, dez no nível federal e trinta e seis no nível estadual. Em seguida, foi realizada nova pesquisa bibliográfica e documental para entender a presença ou não de mecanismos top-down, abrangendo os seguintes tópicos: i) processos de privatização nos níveis federal e estadual; ii) renegociação da dívida dos estados; e iii) leis no âmbito federal que poderiam resultar na criação de uma agência reguladora.

Para explorar o processo de criação da Ancine, Asep, Agetransp e Agenersa, nove entrevistas semi-abertas em profundidade foram conduzidas, com durações variando entre uma e três horas. Cinco destas entrevistas contribuíram para a compreensão do ambiente regulatório do Rio de Janeiro e as quatro restantes foram fundamentais para entender o processo que levou à criação da Ancine. Os entrevistados devem permanecer anônimos, e um resumo de sua experiência profissional pode ser encontrado no Quadro 3. Além disso, dois estudos anteriores (Alvarenga, 2010Alvarenga, M.V.T. (2010). Cineastas e a Formação da ANCINE (1999-2003) (Master Thesis). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.; Fornazari, 2006Fornazari, F. K. (2006). Instituições do Estado e Políticas de Regulação e Incentivo ao Cinema no Brasil: o caso Ancine e Ancinav. Revista de Administração Pública, 40(4), 647-677.) e jornais de mídia que remontam ao tempo de criação das agências foram utilizados na orientação do trabalho de campo.

Quadro 2
ARIs Analisadas

Quadro 3
Entrevistados

Considerando a escassez de dados, a seleção dos entrevistados foi crucial para entender os dois casos selecionados. É importante mencionar que a maioria dos entrevistados teve ampla participação em diversas fases do processo de agencificação, desempenhando e/ou acumulando papéis ao longo do processo. A extensa e relevante trajetória dos entrevistados contribuiu, muitas vezes, em mais de um aspecto da pesquisa, permitindo uma melhor compreensão das peculiaridades do contexto brasileiro e dos mecanismos de difusão, notadamente os horizontais e top-down.

O roteiro da entrevista baseou-se nos conceitos identificados na revisão da literatura, e questões abertas foram introduzidas para capturar os fatores contextuais. Todas as entrevistas - exceto uma - foram gravadas e transcritas. Como as transcrições foram feitas pela autora, todos os documentos foram lidos por completo e, em seguida, na segunda e terceira leituras, os documentos foram codificados de acordo com os conceitos identificados na literatura, seguindo uma abordagem dedutiva à análise de conteúdo. O Quadro 4 apresenta um exemplo de como as entrevistas foram codificadas.

Quadro 4
Processo de Codificação e Categorias

5. AGENCIFICAÇÃO NO BRASIL: MECANISMOS DE DIFUSÃO

A literatura sobre criação de agências no Brasil tem focado, predominantemente, em mecanismos do tipo bottom-up e top-down. Este foco parece natural, posto que as agências foram criadas em um período também marcado por processos de desestatização e pela abertura do setor de infraestrutura ao capital privado. Nesse sentido, importantes pesquisas sobre o assunto atribuíram o estabelecimento e o nível de independência das ARIs brasileiras à necessidade de assegurar a credibilidade dos compromissos (Mueller & Pereira, 2002Mueller, B., & Pereira, C. (2002). Credibility and the design of regulatory agencies in Brazil. Brazilian Journal of Political Economy, 22(3), 65-88.), incerteza política (Melo et al., 2010Melo, M., Pereira, C., & Werneck, H. (2010). Delegation Dilemmas: Coalition Size, Electoral Risk, and Regulatory Design in New Democracies. Legislative Studies Quarterly, 35(1), 31-56.) e blame-shifting, ou possibilidade de transferência de responsabilização (Melo, 2002Moynihan, D. (2006) Ambiguity in Policy Lessons: the Agencification Experience. Public Administration, 84(4), 1029-1050.).

Mecanismos top-down relacionados às pressões internacionais também desempenharam um papel importante no processo de agencificação brasileiro, particularmente no caso das ARIs de infraestrutura (Melo, 2002Melo, M. (2002). As agências regulatórias: gênese, desenho institucional e governança. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC. São Paulo, SP: Annablume.). Além de influências externas, a difusão de agências no Brasil também foi influenciada por pressões top-down internas. Especificamente, duas leis federais foram de grande importância na difusão do modelo de agência nos níveis estadual e municipal. A primeira é a Lei Federal n. 9.496/1997, que estabeleceu, aos entes federados, a obrigatoriedade de elaboração de metas e compromissos quanto à “privatização, permissão ou concessão de serviços públicos, reforma administrativa e patrimonial”, como contrapartida para a renegociação de suas dívidas. Todos os estados brasileiros, com exceção de Tocantins e Amapá, aderiram ao Programa de Ajuste Fiscal nos anos de 1997 e 1998, e, com isso, às metas e compromissos estabelecidos na lei 9.496/97, ao menos em alguma medida. O papel da União foi enfatizado durante entrevistas em várias ocasiões. Um dos entrevistados, I9, também revelou que, mais do que um simples incentivo, a União exercia forte pressão sobre os governadores estaduais, que não tinham outra alternativa a não ser aceitar o pacote oferecido pelo governo federal.

A segunda lei federal é o marco regulatório do saneamento, estabelecido pela Lei Federal n. 11.445/2007. O seu artigo 11º, por exemplo, vincula a validade dos contratos que tenham como objetivo a prestação dos serviços públicos de saneamento básico à existência de normas de regulação para o cumprimento das diretrizes da lei, bem como a designação de entidade de regulação e de fiscalização. Desde de a promulgação da lei, já foram criadas ao menos 26 agências reguladoras. Essa “nova” onda de difusão de ARIs alavancada pela lei de saneamento já revelou importantes inovações institucionais, como a criação de agências organizadas sob a forma de consórcios entre diferentes municípios (Souza, 2013).

O federalismo brasileiro também pode ser visto como um mecanismo top-down. Isso pode ser ilustrado pelo papel distinto que a agência reguladora federal de energia, a Aneel, exerceu junto às agências estaduais na descentralização das atividades e recursos financeiros (Olivieri, 2006Olivieri, C. (2006). Agências Reguladoras e Federalismo: a gestão Descentralizada da Regulação no Setor de Energia. Revista de Administração Pública, 40(4), 67-614.). A lei que criou a Aneel estabeleceu as condições sob as quais a descentralização é possível. Na prática, a descentralização requer a existência de uma agência reguladora, nos termos estabelecidos pela Aneel. Portanto, se algum estado brasileiro desejar ter algum poder sobre os distribuidores de energia elétrica, deve possuir um ARI com estrutura e função organizacional semelhantes às da Aneel.

A descentralização das atividades, além de aproximar o governo do estado e a sociedade local - e potencialmente beneficiar consumidores/eleitores - restaura o poder dos governadores locais. Embora a privatização da distribuição fosse responsabilidade do governo federal, a aprovação dependia, em grande parte, do consentimento dos governadores, que estavam perdendo sua influência nas empresas estatais (Melo, 2002Melo, M. (2002). As agências regulatórias: gênese, desenho institucional e governança. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC. São Paulo, SP: Annablume.; Olivieri, 2006Olivieri, C. (2006). Agências Reguladoras e Federalismo: a gestão Descentralizada da Regulação no Setor de Energia. Revista de Administração Pública, 40(4), 67-614.). Com a descentralização, os governadores estaduais conseguiram manter um poder relativo sobre as concessionárias sem onerar o tesouro estadual - uma vez que a Aneel transfere os recursos financeiros necessários para implementar as atividades. Em troca, eles tiveram que estabelecer agências reguladoras estaduais com níveis aceitáveis ​​de governança regulatória. Atualmente, dez agências estaduais são afiliadas à Aneel, três mantêm um acordo de interesse e catorze não são afiliadas (ver Quadro 5).

Quadro 5
Descentralização das Atividades: a Aneel e as Agências Subnacionais

Alguns dos 14 estados não afiliados são relevantes em termos econômicos, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Uma possível razão para a ausência de descentralização para estes estados, além da explicação oficial - ou seja, que as agências reguladoras estaduais não possuem níveis aceitáveis de governança - é a falta de interesse de alguns governadores estaduais, conforme mencionado pelos entrevistados I6 e I9. Para as agências estaduais que não precisam dos recursos financeiros da Aneel, pode ser atraente adotar uma estratégia de blame-avoidance, ou evitar a responsabilização, principalmente em setores com altos custos políticos. O caso de explosões de bueiros no Rio de Janeiro ilustra o sucesso dessa estratégia, conforme destacado pelo entrevistado I9. O fato da Agenersa, a agência que poderia ter poder sobre as concessionárias de eletricidade, não precisar da “ajuda” financeira da Aneel permitiu que o governador pudesse responsabilizar a Aneel pelo ocorrido. O papel da descentralização de recursos é um fator contextual de agencificação.

6. AGENCIFICAÇÃO EM CONTEXTO: A INTERPRETAÇÃO DO MODELO DE AGÊNCIA PELOS ATORES LOCAIS

Como já mencionado, o processo brasileiro de agencificação teve alguns resultados não esperados, como a extensão “indevida” do modelo de agência (Salgado, 2003Salgado, L. H. (2003). Agências reguladoras na experiência brasileira: um panorama do atual desenho institucional (Texto para discussão, n. 241). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, RJ.) e os atrasos e reformulações das agências adotadas no nível subnacional (Pó & Abrucio, 2007Pó, M., & Abrucio, F. (2007). Mimetismo e reforma incompleta do Estado: o caso das agências reguladoras sob a égide do ultrapresidencialismo estadual. In anais do 31º encontra Anpad, Rio de Janeiro, RJ.). Esta seção analisa as diferentes reinterpretações do conceito de agência feitas por atores locais - burocratas, atores industriais e políticos - e o seu papel na difusão e adaptação do modelo de agência no Brasil.

6.1 Reinterpretação dos Burocratas: Flexibilidade Administrativa vs Regulação

Mecanismos horizontais de difusão podem oferecer um entendimento mais rico da agencificação brasileira quando relacionados à interpretação do modelo de agência pela burocracia existente. Essa interpretação está associada a uma possível “confusão” entre a necessidade de maior flexibilidade administrativa e o modelo de agência reguladora. Um argumento já levantado na literatura é que atores locais (burocratas, neste caso) interpretaram as agências como a única oportunidade disponível para aumentar a flexibilidade de gestão em um contexto em que as organizações públicas eram historicamente limitadas por extrema rigidez e controles (Peci, 2007Pó, M., & Abrucio, F. (2007). Mimetismo e reforma incompleta do Estado: o caso das agências reguladoras sob a égide do ultrapresidencialismo estadual. In anais do 31º encontra Anpad, Rio de Janeiro, RJ.). A importância de uma maior flexibilidade administrativa será retomada na análise da criação da Ancine, na próxima subseção.

As ARIs brasileiras, por serem dotadas de autonomia financeira e administrativa, tornaram-se um atraente modelo organizacional. A aparente confusão entre flexibilidade administrativa e regulação deve-se, em parte, à força das ideias do Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado (PDRAE). A principal característica do PDRAE foi a necessidade de ‘driblar’ a rigidez imposta pela Constituição de 1988, aperfeiçoando o processo de implementação de políticas públicas, a partir de uma estrutura administrativa mais flexível e descentralizada (Bresser-Pereira, 2010Bresser-Pereira, L.C. (2010). Os primeiro passos da reforma gerencial do Estado de 1995. In M. A. D’Incao, & H. Martins (Orgs.), Democracia, crise e reforma: estudos sobre a Era Fernando Henrique Cardoso. São Paulo, SP: Paz e Terra.; Costa, 2002Costa, V. M. (2002). A dinâmica institucional da reforma do Estado: um balanço do período FHC. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC. Brasília, DF: Seges-MP.).

Embora o plano tenha previsto três tipos de organizações - as secretarias formuladoras de políticas públicas, as agências executivas e as agências reguladoras, cada uma com um nível e tipo de autonomia diferentes (Pacheco, 2006Pacheco, R. (2006). Regulação no Brasil: desenho das agências e formas de controle. Revista de Administração Pública, 40(4), 523-43.) - na prática, as agências executivas foram mal implementadas, enquanto as agências reguladoras proliferaram (Costa, 2002Costa, V. M. (2002). A dinâmica institucional da reforma do Estado: um balanço do período FHC. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC. Brasília, DF: Seges-MP.).

As agências de infraestrutura foram estendidas a outros setores principalmente pela atratividade do seu modelo organizacional, mais flexível em função de sua maior autonomia financeira e gerencial. As agências têm fontes independentes de receita e não estão hierarquicamente subordinadas aos ministérios, podendo licitar e contratar de maneira diferente do restante do governo (Farias & Ribeiro, 2002Farias, P., & Ribeiro, S. (2002). Regulação e os Novos Modelos de Gestão no Brasil. Revista do Serviço Público, 53(3), 79-94.). A atratividade do modelo de agência pode ajudar a entender tentativas de transformação de órgãos já existentes em ARI, como ocorreu recentemente com a Superintendência de Seguros Privados (Susep) via Projeto de Lei n. 5277/2016 e com a Receita Federal, conforme vinculações na imprensa1 1 Ver Estadão: Fernandes, A., Tomazelli, I. (2019, 13 agosto). Contra pressões, Receita pode virar autarquia. O Estado de S. Paulo, São Paulo, SP. Recuperado de https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,contra-pressoes-receita-pode-virar-autarquia,70002965269 .

6.2 Reinterpretação de Atores da Indústria: O “Povo do Cinema”e a Criação da Ancine

Uma segunda reinterpretação do modelo de agência reguladora independente foi feita pela indústria. Essa reintrepretação, em conjunto com mecanismos horizontais, resultou na criação da Ancine. Um dos entrevistados fez questão de iniciar a entrevista com um “aviso”:

Primeiro de tudo, deixa eu te dizer. Toda política cinematográfica durante os vários anos, ela foi conduzida pelo setor. Ela não era uma coisa conduzida do governo para o setor. E sim era o setor que sempre propôs para o governo, tá? (I4).

As primeiras (re)articulações2 2 Embora o setor tenha sido, historicamente, bastante politizado, ele foi desestruturado com a extinção da Embrafilme, do Concine e da Fundação do Cinema Brasileiro, e com as leis de incentivo fiscal, que não foram acompanhadas de uma política setorial clara e integrada. Como ressaltado por um dos entrevistados, “nesse período, até por conta das leis de incentivo, houve uma despolitização total do setor. Então, as pessoas ficavam batalhando recursos para dar conta dos seus projetos nas empresas, etc”. dos atores setoriais, ou “povo do cinema”3 3 Essa denominação foi dada pelo relator da Subcomissão de Cinema do Senado, Senador Francelino Pereira - “esse segmento, que chamo de “o povo do cinema”, […] os exibidores, os investidores, os cineastas, os roteiristas […]” - e será utilizada neste trabalho como referência aos atores da indústria. , ocorreram no final da década de 1990, e foram capitaneadas por Gustavo Dahl, possivelmente o ator mais importante no processo de criação da Ancine. Gustavo Dahl representou os interesses do setor durante sua trajetória profissional e foi diretor da Embrafilme, empresa estatal dedicada à produção e distribuição de filmes brasileiros. Desde o final dos anos 90, as demandas da indústria contemplavam a necessidade de “criação de um órgão governamental de caráter supra-ministerial”, como um “Conselho Nacional de Política Audiovisual” e a “criação de uma Organização Social, por meio da transformação de unidades já existentes” (CBC, 2011Congresso Brasileiro de Cinema(2011). Reflexões e Anotações para a História. Brasília, DF: CBC Edições., p. 170). O problema que se pretendia resolver era a ausência de uma “política sistêmica e permanente de desenvolvimento da atividade cinematográfica” (CBC, 2011Congresso Brasileiro de Cinema(2011). Reflexões e Anotações para a História. Brasília, DF: CBC Edições., p. 169).

A Carta de Brasília, de 1998, mencionava a necessidade do Estado assumir “sua função de agente regulador da atividade econômica” e que, para exercer essa função, impunha-se ao governo “uma atuação integrada de variadas instâncias ministeriais, bem como sua coordenação” (CBC, 2011Congresso Brasileiro de Cinema(2011). Reflexões e Anotações para a História. Brasília, DF: CBC Edições., p. 177). Essa ação integrada, como destaca um dos entrevistados, seria contemplada com a criação de um Conselho - no caso o Conselho Superior de Cinema:

No início, o que se pensava não era na criação de nenhum órgão. Na verdade, o que se pensava num primeiro momento era a criação de um Conselho, que é o Conselho Superior de Cinema, e [...] a partir desse Conselho, se encontraria a melhor forma de lidar com a política pública (I4).

Como indicado por todos os entrevistados e os documentos disponíveis - em especial o livro do Congresso Brasileiro de Cinema (CBC) - a Ancine nasceu da pressão de atores industriais para a retomada do papel do Estado no suporte à indústria cinematográfica nacional. Diferentemente das agências de infraestrutura, a demanda era por uma maior - e não menor - presença do Estado naquele segmento econômico. Coincidentemente, o momento em que os atores industriais finalmente conseguiram articular suas demandas e levá-las ao Executivo foi o “momento das agências” (I3), isto é, o momento em que “o governo fazia agências reguladoras” (I3). O modelo de agência era visto como a forma mais legítima de intervenção do Estado naquele momento. De fato, as agências já eram “moda” - em setembro de 2001, 26 ARIs já haviam sido criadas, entre os níveis federal, estadual e municipal.

Além da presença de mecanismos horizontais e da pressão dos atores da indústria, o desejo por uma maior flexibilidade de gestão também pode ter influenciado a criação da Ancine. É no depoimento de Carlos Diegues na Subcomissão do Cinema Brasileiro (Brasil, 2000) que a ideia de agência foi encontrada pela primeira vez:

A própria estrutura do Ministério não permite que exista a agilidade, a velocidade que a agenda cinematográfica obrigaria a ter. A médio prazo, em um horizonte relativamente curto, vamos precisar ter um agência ou uma secretaria de audiovisual ligada à Presidência da República de administração horizontal. Não falo daquela velha forma de administração vertical, daquela grande empresa, de uma autarquia. Falo de administração horizontal - como a da Agência Nacional de Energia, a da Agência Nacional de Petróleo -, capaz de articular as necessidades do cinema em diversos setores do Executivo [...] (Grifo nosso).

A criação de uma agência reguladora independente para o cinema esteve intimamente ligada ao momento pelo qual passava o Estado brasileiro, de revisão de seu modo de atuação e do seu tamanho. As críticas ao tamanho do Estado e o sucesso na implementação de agências reguladoras como órgãos com “a cara” desse novo Estado, tornaram imediata a associação entre as duas coisas. A afirmação de um dos entrevistados de que “criar um órgão público a essa altura do campeonato, quando a postura pública do governo era diminuir o Estado, pegava mal”, ratifica, de certa forma, a ideia de que o modelo de agência era apresentado como a formato organizacional mais adequado para gerir a coisa pública.

Dessa forma, a criação de uma ARI para o cinema é resultado de uma mistura entre (i) um processo mimético que conferiu legitimidade ao modelo de agência e (ii) a reinterpretação e reapropriação deste modelo por parte dos atores da indústria. Esses atores desejavam um apoio abrangente e coordenado por parte do Estado, e encontraram no modelo de agência a forma mais viável de atender às suas demandas naquele momento.

6.3 Reinterpretação dos Políticos: O caso do Rio de Janeiro

A mudança no ambiente regulatório do Rio de Janeiro ilustra a importância de outro grupo de atores na reinterpretação e expansão do modelo de agência no Brasil: os políticos. A primeira ARI do Rio de Janeiro, a Asep, foi criada em 1997, em um momento de privatização dos serviços públicos e renegociação da dívida do estado. O Programa Estadual de Desestatização, estabelecido pela lei estadual n. 2.470/1995, teve como principal objetivo reduzir a dívida pública e ajustar as finanças do estado. Assim, a criação da Asep pode ser explicada como uma conseqüência natural do processo de privatização do estado, que, por sua vez, refletia o que estava acontecendo na esfera federal e na maioria dos outros estados da federação (I5, I6, I7, I8 e I9).

No entanto, a Asep não sobreviveu muito tempo. Em 2005, a agência foi extinta e duas novas foram criadas em seu lugar: a Agetransp e a Agenersa. À primeira vista, os mecanismos que explicam a criação da Asep não parecem se aplicar à criação das duas novas agências. O processo de reformulação ocorreu em 2005, durante o governo de Rosinha Garotinho, em um momento em que a Asep estava finalmente operando como esperado, após ter sido “fechada” durante o governo de Anthony Garotinho, marido de Rosinha e ex-governador. Segundo um dos entrevistados (I7):

“Ele ganhou em 1998, assumiu em 1999 e fechou a agência. Fechou, exonerou todo mundo que tava lá, fechou, e, do início de 1999 até setembro, outubro de 2000...Basta te dizer que os contratos de concessão sumiram. Eu estava nessa agência até o início de 1999. Depois a agência acabou, os conselheiros eram indicados pelo governador e sabatinados pela assembleia. Eles tinham mandato, eles continuaram sem nada para fazer, porque não podia tirá-los de lá” (I7).

Embora este processo tenha representado uma significativa mudança no ambiente regulatório do estado do Rio, a extinção da Asep e a subsequente criação da Agetransp e Agenersa foram pouco exploradas. Uma primeira explicação para a mudança está relacionada à mudança do modelo: de multissetorial para setorial. É importante lembrar que as agências multissetoriais predominam no nível estadual: 80% de todas as ARIs estaduais incluídas neste estudo são multissetoriais, como indica o Quadro 2. Possíveis razões para essa predominância são: (i) possibilidade de economias de escala, (ii) a escassez de recursos humanos e (iii) a necessidade de redução de custos (Melo, 2002Melo, M. (2002). As agências regulatórias: gênese, desenho institucional e governança. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC. São Paulo, SP: Annablume.). Ademais, estados que precisam lidar com mais concessionárias - ou concessionárias mais bem estruturadas - precisam de reguladores mais especializados. São Paulo - o estado mais rico do Brasil em termos de PIB - por exemplo, optou pelo modelo setorial e, após alguns anos, ampliou o escopo de uma de suas agências setoriais, tendo atualmente uma agência setorial e uma multissetorial. A crença de que o modelo de setor único, mais especializado, seria mais eficaz no trato com as concessionárias é uma possível explicação para a mudança em 2005. As entrevistas indicaram que essa é a “explicação oficial” (I5 e I6) para a mudança ocorrida no Rio de Janeiro.

No entanto, a aparente preocupação com os níveis de governança regulatória das agências não se traduziu em melhores práticas. Os entrevistados foram questionados sobre possíveis melhorias nos níveis de governança regulatória e todos compartilham a opinião de que isso não aconteceu. Curiosamente, a Agetransp foi destacada por dois entrevistados - sem que tivessem sido questionados diretamente - por ter níveis ainda mais baixos de governança regulatória do que a Agenersa. Não é de surpreender que, enquanto a estrutura de posições políticas da Agenersa esteja disponível em seu site, a Agetransp se recusou a fornecer essas informações mesmo após um pedido formal. Além disso, a Agetransp tem sido alvo de muitas críticas na sociedade civil e na legislatura estadual4 4 Ver depoimento dos Deputados Estaduais Luiz Paulo e Comte Bittencourt. Recuperado de http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/9b638ee89825e5db832579600068e770?OpenDocument e http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/3620b663fe7fd44f832565370043e8be/3af0c67946d22ed283257960006aa34b?OpenDocument . Outro indicador de melhoria da governança seria o fortalecimento da qualidade do corpo técnico, por meio de novos concursos públicos, o que não ocorreu. Após mais de vinte anos desde o estabelecimento da primeira agência reguladora no estado, apenas um concurso foi realizado, ainda na época da Asep.

Enquanto dois dos entrevistados mencionaram a “explicação oficial” - isto é, que a mudança ocorrida fora motivada por uma preocupação com a qualidade regulatória - todos os entrevistados, com exceção de um5 5 Este entrevistado afirmou não saber o porquê da mudança. E, embora não tenha mencionado diretamente, em um momento da entrevista ele destaca que “E você recebe uma notícia que ela seria dividida, entre transporte, Agetransp, que é a sucessora da Asep e Agenersa, com gás e saneamento. E o dinheiro. Para resolver esse problema se cria um fundo [...] E cria, ao invés de cinco, dez conselheiros, dois prédios”. O entrevistado também menciona que alguns dos conselheiros não poderiam ser reconduzidos, o que, poderia ter ajudado na decisão pela divisão. É importante notar que esta é uma informação sensível. Dois dos entrevistados pediram que o gravador fosse desligado e um terceiro ficou à vontade após confirmação de que o anonimato seria preservado. , destacaram a criação de cargos de direção como a explicação de facto para o desmembramento da Asep. Assim, a reorganização regulatória no estado do Rio de Janeiro teria sido motivada pela “descoberta”, por parte dos governadores, de que os cargos de diretoria poderiam ser utilizados como um instrumento eficaz de negociação com o legislador estadual.

A falta de melhoria nos níveis de governança regulatória com o desmembramento da Asep reforça a explicação alternativa mencionada pelos entrevistados. Ou seja, que criação de duas agências no lugar da multissetorial Asep foi motivada por fatores políticos, como a possibilidade de aumentar as moedas de troca do governo com a assembleia legislativa. Considerando que o processo de privatização e a subsequente criação de agências reguladoras foram impulsionados por incentivos da União, é natural que, a longo prazo, os governadores, historicamente os atores mais importantes em nível estadual (Pó & Abrucio, 2007Pó, M., & Abrucio, F. (2007). Mimetismo e reforma incompleta do Estado: o caso das agências reguladoras sob a égide do ultrapresidencialismo estadual. In anais do 31º encontra Anpad, Rio de Janeiro, RJ.), alterassem o modelo inicial de acordo com seus interesses políticos.

O exemplo do Rio de Janeiro é curioso, já que ilustra a presença de mecanismos bottom-up e top-down, assim como variáveis contextuais. A sua primeira ARI, a Asep, foi criada como consequência do processo de privatização e a necessidade de assegurar a credibilidade dos compromissos assumidos pelo governo estadual. Este processo foi incentivado pela União e pelo Banco Mundial6 6 No caso do RJ, um dos entrevistados afirmou que o Banco Mundial forneceu apoio técnico-institucional, além do pagamento de mais de 200 milhões de dólares a fundo perdido e financiamento de outros projetos. , como destacado pelos entrevistados (I5, I6, I7, I8, I9) e verificado nos documentos disponíveis.

Ao mesmo tempo, a mudança observada em 2005, ou seja, a criação de duas agências e a extinção da Asep, parece ter sido influenciada exclusivamente por fatores contextuais relacionados à necessidade de negociação entre Executivo e Legislativo. Cabe notar que o uso de moedas de troca - como cargos nos primeiro e segundo escalões do governo - tem sido efetivo para preservar a governabilidade em sistemas presidencialistas multipartidários, como o Brasil (Pereira, Singh, & Mueller, 2011Melo, M., Pereira, C., & Werneck, H. (2010). Delegation Dilemmas: Coalition Size, Electoral Risk, and Regulatory Design in New Democracies. Legislative Studies Quarterly, 35(1), 31-56.). De acordo com Pereira e Melo (2012)Moynihan, D. (2006) Ambiguity in Policy Lessons: the Agencification Experience. Public Administration, 84(4), 1029-1050., o sucesso do presidencialismo multipartidário brasileiro pode ser explicado, basicamente, por três fatores: (i) o poder conferido ao Presidente da República, (ii) a existência de moedas de troca entre Executivo e Legislativo e (iii) limitações ao poder discricionário do Executivo, com o fortalecimento de instituições capazes de ‘frear’ esse poder. Este artigo mostra que essas moedas de troca também tiveram um papel importante no processo brasileiro de agencificação, explicando a reorganização regulatória operada no Rio de Janeiro.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo examinou a difusão de agências reguladoras no Brasil, mostrando que, embora o país tenha experimentado um “boom” de criação de ARIs, este processo foi moldado por valores institucionais e culturais do aparato político-administrativo local. As “anomalias” deste processo, portanto, são explicadas tanto pelas diferentes lógicas que justificam a adoção de uma agência, como pela interpretação e apropriação do modelo de agência reguladora independente pelos atores locais.

Os três mecanismos de difusão presentes na literatura - i.e., top-down, bottom-up e horizontal - estão presentes no caso brasileiro. Os dois primeiros estão relacionados, uma vez que o Programa de Ajuste Fiscal, os processos de privatização e a necessidade de credibilidade caminharam juntos. Estados que tiveram suas dívidas renegociadas também iniciaram seus processos de privatização e, por conseguinte, estabeleceram suas primeiras agências reguladoras.

Reforçando o argumento de Moynihan (2006Moynihan, D. (2006) Ambiguity in Policy Lessons: the Agencification Experience. Public Administration, 84(4), 1029-1050.), este artigo identificou a reinterpretação do modelo de agência por atores locais - como burocratas, políticos e atores da indústria - como o fator contextual essencial que impulsionou o processo de agencificação no Brasil. A possibilidade de superar a rigidez administrativa, a presença de atores industriais fortemente articulados, como o “povo do cinema”, e a importância de moedas de troca no presidencialismo multipartidário brasileiro foram os principais fatores contextuais identificados.

O caso da Ancine é um interessante exemplo de reinterpretação por burocratas e atores industriais. Enquanto a sua existência pode ser explicada por mecanismos horizontais e uma confusão estratégica entre flexibilidade administrativa e regulação, a agência não teria sido criada sem a pressão do “povo do cinema”. Esses atores, e não o governo, têm sido responsáveis pela condução da política pública setorial historicamente, como destacado nas entrevistas. Esse papel pode explicar as propostas do setor para a separação entre as funções de regulação e fomento. A Lei federal n. 12,485/2011 fortaleceu enormemente o fundo setorial, que passou a contar com “uma verba nunca antes disponibilizada ao setor” (I1). Assim, com o objetivo de “eliminar os gargalos burocráticos dos órgãos governamentais”, os atores setoriais já se mobilizaram no sentido de retirar da Ancine a função de fomento - a agência passaria a atuar de forma unificada com a ANATEL, se deslocando para o Ministério das Comunicações - propondo a transformação do fundo setorial em um órgão autônomo de fomento7 7 Esses pontos foram destacados do Plano Diretor para o Cinema Brasileiro, apresentado por Luiz Carlos Barreto e Nelson Pereira dos Santos no XXIV Fórum Nacional, em maio de 2012. Recuperado de https://www.inae.org.br/estudo/plano-diretor-para-o-cinema-brasileiro/ . Isso corrobora a afirmação feita por um dos entrevistados, de que “uma das fontes das crises permanentes dos órgãos de cinema ao longo da história” é que “os cineastas sempre quiseram órgãos de Estado dedicados ao cinema, desde que fossem dirigidos pelos próprios cineastas” (I3).

A reinterpretação do modelo de agência por políticos ainda não havia sido associada à criação de ARIs no Brasil. Como visto neste trabalho, uma das características marcantes do processo de agencificação brasileiro são as dinâmicas em âmbito estadual, seja pela extinção, pela não implementação, pela ampliação das funções ou pelo desmembramento de entes reguladores nos estados brasileiros. Cada reformulação pode ter uma motivação diferente e pode destacar uma variável contextual diferente. Esta pesquisa optou por analisar o ambiente regulatório do Rio de Janeiro, mais especificamente a extinção da Asep e a subsequente criação da Agetransp e da Agenersa. O trabalho de campo indicou que essa decisão foi motivada pela possibilidade de criar mais cargos políticos e, consequentemente, aumentar o poder de barganha do Executivo com a Assembléia Legislativa do estado. Foi explorada uma hipótese alternativa, que é uma possível atenção à aspectos técnicos, uma vez que uma agência multissetorial teria maior dificuldade em supervisionar as distintas concessionárias. No entanto, a ausência de melhoria na governança destas agências, especialmente da Agetransp, reforça a hipótese de que a mudança no ambiente regulatório do Rio foi motivada por aspectos de varejo político, conforme enfatizado nas entrevistas.

Este trabalho analisou o processo brasileiro de agencificação sob uma perspectiva temporal e sob dois pontos de vista teóricos distintos. Pesquisas futuras podem explorar como a variedade de forças atuantes nesse processo afeta os resultados da atividade regulatória. Isso é importante porque parte da literatura que trata de difusão de políticas e organizações argumenta que esses processos podem levar a resultados subótimos, uma vez que (i) a política em questão foi projetada para atender outras necessidades e/ou (ii) a política selecionada tem demandas superiores a capacidades locais (Elkins & Simmons, 2005Simmons, B., & Elkins, Z. (2005). On Waves, Clusters and Diffusion: A Conceptual Framework. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 33-51.). Isso é especialmente relevante para países em desenvolvimento, que, na tentativa de alcançar o mundo desenvolvido, precisam com frequência adaptar receitas externas à sua dotação institucional. Em uma visão otimista, o processo brasileiro de agencificação pode ser entendido como um “sucesso”, ao equilibrar a necessidade de compromissos críveis, a pressão da União e do Banco Mundial e características contextuais, aumentando assim a legitimidade da intervenção do Estado e abraçando as necessidades locais. Em uma interpretação mais pessimista, pode-se considerar que a difusão e adaptação dos ARIs às necessidades locais inibiram o surgimento de práticas inovadoras mais adequadas ao contexto nacional, criando distorções e instabilidade e adiando a desejada mudança de status para país desenvolvido.

REFERENCES

  • Alvarenga, M.V.T. (2010). Cineastas e a Formação da ANCINE (1999-2003) (Master Thesis). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.
  • Bresser-Pereira, L.C. (2010). Os primeiro passos da reforma gerencial do Estado de 1995. In M. A. D’Incao, & H. Martins (Orgs.), Democracia, crise e reforma: estudos sobre a Era Fernando Henrique Cardoso São Paulo, SP: Paz e Terra.
  • Congresso Brasileiro de Cinema(2011). Reflexões e Anotações para a História Brasília, DF: CBC Edições.
  • Costa, V. M. (2002). A dinâmica institucional da reforma do Estado: um balanço do período FHC. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC Brasília, DF: Seges-MP.
  • DiMaggio, P., & Powell, W. (1983). The Iron Cage Revisited: Institutional Isomorphism and Collective Rationality in Organizational Fields. American Sociological Review, 48(2), 147-160.
  • Dubash, N. & Morgan, B. (2012). Understanding the Rise of the Regulatory State in the South. Regulation & Governance, 6, 261-281.
  • Epstein, D., & O’Halloran, S. (1999). Delegating powers: a transaction cost politics approach to policy-making under separate powers Cambridge, MA: Cambridge University Press.
  • Farias, P., & Ribeiro, S. (2002). Regulação e os Novos Modelos de Gestão no Brasil. Revista do Serviço Público, 53(3), 79-94.
  • Fiorina, M. P. (1982). Legislative Choice of Regulatory Forms: Legal Process or Administrative Process? Public Choice, 39(1), 33-66.
  • Fornazari, F. K. (2006). Instituições do Estado e Políticas de Regulação e Incentivo ao Cinema no Brasil: o caso Ancine e Ancinav. Revista de Administração Pública, 40(4), 647-677.
  • Gilardi, F. (2005). The Institutional Foundations of Regulatory Capitalism: The Diffusion of Independent Regulatory Agencies in Western Europe. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 84-101.
  • Haber, H. (2011). Regulating-for-Welfare: A Comparative Study of the “Regulatory Welfare Regimes” in the Israeli, British and Swedish electricity sectors. Law & Policy, 33(1), 116-148.
  • Kydland, F., & Prescott, E. (1977). Rules rather than discretion: The inconsistency of optimal plans. Journal of Political Economy, 85, 473-490.
  • Jordana, J., & Levi-Faur, D. (2005). The diffusion of regulatory capitalism in Latin America: Sectoral and national channels in the making of new order. Annals of the American Academy of Political and Social Sciences, 598, 102-124.
  • Levy, B., & Spiller, P. (1994). The Institutional Foundations of Regulatory Commitment: a Comparative Analysis of Telecommunications Regulation. Journal of Law Economics and Organisation 10(2), 201-246.
  • Levy, B., & Spiller, P. (1996). Regulations, Institutions, and Commitment. Comparative Studies of Telecommunications Cambridge, MA: Cambridge University Press .
  • Levi-Faur, D. (2003). The politics of liberalisation: Privatisation and regulation-for-competition in Europe’s and Latin America’s telecoms and electricity industries. European Journal of Political Research, 42, 705-740.
  • Levi-Faur, D. (2005). The global diffusion of regulatory capitalism. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 12-32.
  • Levi-Faur, D. (2014). The Welfare State: A regulatory Perspective. Public Administration, 92(3), 599-614.
  • Majone, G. (2001). Two Logics of Delegation: Agency and Fiduciary Relations in EU Governance. European Union Politics, 2, 103-122.
  • March, J., & Olsen, J. (1983). Organizing Political Life: What Administrative Reorganization Tell us about Government? The American Political Science Review, 77(2), 281-296.
  • Melo, M. (2002). As agências regulatórias: gênese, desenho institucional e governança. In F. Abrucio, & M. R. Loureiro (Orgs.), O Estado numa era de reformas: os anos FHC São Paulo, SP: Annablume.
  • Melo, M., Pereira, C., & Werneck, H. (2010). Delegation Dilemmas: Coalition Size, Electoral Risk, and Regulatory Design in New Democracies. Legislative Studies Quarterly, 35(1), 31-56.
  • Moynihan, D. (2006) Ambiguity in Policy Lessons: the Agencification Experience. Public Administration, 84(4), 1029-1050.
  • Mueller, B., & Pereira, C. (2002). Credibility and the design of regulatory agencies in Brazil. Brazilian Journal of Political Economy, 22(3), 65-88.
  • Nakano, K. (2004). Cross-national transfer of policy ideas: Agencification in Britain and Japan. Governance, 17(2), 169-188.
  • Olivieri, C. (2006). Agências Reguladoras e Federalismo: a gestão Descentralizada da Regulação no Setor de Energia. Revista de Administração Pública, 40(4), 67-614.
  • Pacheco, R. (2006). Regulação no Brasil: desenho das agências e formas de controle. Revista de Administração Pública, 40(4), 523-43.
  • Peci, A. (2007). Reforma regulatória brasileira dos anos 90 à luz do modelo de Kleber Nascimento. Revista de administração contemporânea, 11(1), 11-30.
  • Pereira, C., & Melo, M. (2012). The Surprising Success of Multiparty Presidentialism. Journal of Democracy, 23, 156-170.
  • Pó, M., & Abrucio, F. (2007). Mimetismo e reforma incompleta do Estado: o caso das agências reguladoras sob a égide do ultrapresidencialismo estadual. In anais do 31º encontra Anpad, Rio de Janeiro, RJ.
  • Pollitt, C., Bathgate, K., Caulfield, J., Smullen, A., & Talbot, C. (2001). Agency Fever? Analysis of an International Fashion. Journal of Comparative Policy Analysis, 3(3), 271-290.
  • Salgado, L. H. (2003). Agências reguladoras na experiência brasileira: um panorama do atual desenho institucional (Texto para discussão, n. 241). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Rio de Janeiro, RJ.
  • Simmons, B., & Elkins, Z. (2005). On Waves, Clusters and Diffusion: A Conceptual Framework. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 598, 33-51.
  • Shipan, C.R., & Volden, C. (2012). Policy diffusion: Seven lessons for scholars and practitioners. Public Administration Review, 72(6), 788-796.
  • Smullen, A. (2010). Translating agency reform through durable rhetorical styles: comparing official agency talk across consensus and adversarial contexts. Public Administration, 88(4), 943-959.
  • Tenbucken, M., & Schneider, V. (2004). Divergent convergence: structures and functions of national regulatory agencies in the telecommunications sector. In J. Jordana, & D. Levi-Faur(Eds.), The Politics of Regulation Cheltenham: Edward Elgar.
  • Verschuere, B., & Barbieri, D. (2009). Investigating the NPM- ness of agencies in Italy and Flanders, Public Management Review, 11(3), 345-373.
  • Verhoest, K., & Laegreid, P. (2010). Organizing Public Sector Agencies: Challenges and Reflections. In: P. Laegreid, & K. Verhoest (Eds.), Governance of public sector organizations: proliferation, autonomy and performance Hampshire: Palgrave Macmillan.
  • Yesilkagit, K., & Christensen, J. (2009). Institutional design and formal autonomy: Political versus historical and cultural explanations. Journal of Public Administration Research and Theory, 20(1), 53-74.
  • 1
    Ver Estadão: Fernandes, A., Tomazelli, I. (2019, 13 agosto). Contra pressões, Receita pode virar autarquia. O Estado de S. Paulo, São Paulo, SP. Recuperado de https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,contra-pressoes-receita-pode-virar-autarquia,70002965269
  • 2
    Embora o setor tenha sido, historicamente, bastante politizado, ele foi desestruturado com a extinção da Embrafilme, do Concine e da Fundação do Cinema Brasileiro, e com as leis de incentivo fiscal, que não foram acompanhadas de uma política setorial clara e integrada. Como ressaltado por um dos entrevistados, “nesse período, até por conta das leis de incentivo, houve uma despolitização total do setor. Então, as pessoas ficavam batalhando recursos para dar conta dos seus projetos nas empresas, etc”.
  • 3
    Essa denominação foi dada pelo relator da Subcomissão de Cinema do Senado, Senador Francelino Pereira - “esse segmento, que chamo de “o povo do cinema”, […] os exibidores, os investidores, os cineastas, os roteiristas […]” - e será utilizada neste trabalho como referência aos atores da indústria.
  • 4
    Ver depoimento dos Deputados Estaduais Luiz Paulo e Comte Bittencourt. Recuperado de http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/9b638ee89825e5db832579600068e770?OpenDocument e http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/3620b663fe7fd44f832565370043e8be/3af0c67946d22ed283257960006aa34b?OpenDocument
  • 5
    Este entrevistado afirmou não saber o porquê da mudança. E, embora não tenha mencionado diretamente, em um momento da entrevista ele destaca que “E você recebe uma notícia que ela seria dividida, entre transporte, Agetransp, que é a sucessora da Asep e Agenersa, com gás e saneamento. E o dinheiro. Para resolver esse problema se cria um fundo [...] E cria, ao invés de cinco, dez conselheiros, dois prédios”. O entrevistado também menciona que alguns dos conselheiros não poderiam ser reconduzidos, o que, poderia ter ajudado na decisão pela divisão. É importante notar que esta é uma informação sensível. Dois dos entrevistados pediram que o gravador fosse desligado e um terceiro ficou à vontade após confirmação de que o anonimato seria preservado.
  • 6
    No caso do RJ, um dos entrevistados afirmou que o Banco Mundial forneceu apoio técnico-institucional, além do pagamento de mais de 200 milhões de dólares a fundo perdido e financiamento de outros projetos.
  • 7
    Esses pontos foram destacados do Plano Diretor para o Cinema Brasileiro, apresentado por Luiz Carlos Barreto e Nelson Pereira dos Santos no XXIV Fórum Nacional, em maio de 2012. Recuperado de https://www.inae.org.br/estudo/plano-diretor-para-o-cinema-brasileiro/
  • [Versão traduzida]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2017
  • Aceito
    07 Set 2019
Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rap@fgv.br