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Análise de limites dos sistemas de contabilidade e controle para o enfretamento do problema da corrupção sistêmica no Brasil: lições dos casos da Suécia e da Itália

Resumo

O artigo busca entender as razões para a persistência da corrupção no governo federal brasileiro, apesar de este nível de governo já contar com robustos sistemas de contabilidade pública e de controle financeiro. Mais de dois terços dos estados do mundo, incluindo o Brasil, enfrentam elevado nível de desvio de dinheiros públicos por parte de elites políticas, econômicas e burocráticas. Neste tipo de contexto, o uso exclusivo da abordagem dominante das teorias econômicas para a estruturação dos sistemas de controle público é muito limitado. O artigo defende que é mais adequado buscar soluções derivadas de abordagem das teorias de ação coletiva. Para isso utiliza a teoria da prática de Bourdieu e as teorias de ação coletiva, de Tocqueville e Ostrom, conforme acolhidas respectivamente por Mungiu-Pippidi e Rothstein. A estratégia metodológica é de análise exploratória do Brasil atual, à luz das lições da Suécia do século XIX e da Itália da década de 90. Os resultados indicam que a superação da corrupção sistêmica requer mais do que a constituição de sistemas de contabilidade e de controle fortes. Exige, no mínimo, um fator desencadeante que desestabilize o equilíbrio social perverso vigente, capacidade institucional para conferir eficácia normativa, além de uma sociedade civil coesa e ativa.

Palavras-chave:
corrupção; contabilidade pública; controle financeiro; ação coletiva; eficácia normativa

Abstract

This article seeks to understand the reasons for the persistence of corruption in the Brazilian federal government, despite strong public accounting and financial control systems in the country. More than two-thirds of the states in the world, including Brazil, face the challenge of plundering public finances by political, economic, and bureaucratic elites. In this context, the exclusive use of the dominant approach of economic theories for the structuring of public control systems is limited. It is more appropriate to consider corruption as a problem of collective action. Hence, the theoretical reference chosen includes Bourdieu’s theory of practice and Tocqueville’s and Ostrom’s collective action theories, as they have been understood respectively by Mungiu-Pippidi and Rothstein. The methodological strategy adopted is an exploratory analysis of the cases of contemporary day Brazil, based on the lessons learned from nineteenth-century Sweden, and Italy in the 1990s. The results indicated that overcoming systemic corruption requires more than control systems. It demands, at least, a trigger to disrupt the perverse social imbalance, institutional capacity to offer normative effectiveness and a cohesive and active civil society.

Keywords:
corruption; public accounting; financial control; collective action; enforcement capacity

Resumen

El artículo se propone a comprender las razones de la persistencia de la corrupción en el gobierno federal brasileño, aunque este ya cuente con comprensivos sistemas de contabilidad pública y control financiero. Más de dos tercios de los estados del mundo, incluso Brasil, enfrentan un alto nivel de desvío de dinero público por parte de las élites políticas, económicas y burocráticas. En este tipo de contexto, es muy limitado el uso exclusivo del abordaje dominante de las teorías económicas para la estructuración de los sistemas de control público. El artículo argumenta ser más apropiado buscar soluciones derivadas del enfoque de las teorías de acción colectiva. Él utiliza la teoría de la práctica de Bourdieu y las teorías de la acción colectiva de Tocqueville y Ostrom, conforme adoptadas por Mungiu-Pippidi y Rothstein, respectivamente. La estrategia metodológica es un análisis exploratorio del caso brasileño, a la luz de las lecciones de Suecia en el siglo XIX, e Italia en la década de 1990. Los resultados indican que superar la corrupción sistémica puede requerir más que establecer sistemas de contabilidad y de control fuerte. Es necesario, por lo mínimo, un gatillo que desestabilice el equilibrio social perverso existente, cierta capacidad institucional para conferir efectividad normativa y una sociedad civil activa y cohesiva.

Palabras clave:
corrupción; contabilidad pública; control financiero; acción colectiva; efectividad normativa

1. INTRODUÇÃO

O problema da corrupção ocupa um papel de destaque nos debates globais. A despeito de estar presente em todos os países, tem efeitos mais pronunciados nas chamadas democracias emergentes que, ao invés de evoluírem para estruturas de boa governança, permanecem presas a leis e práticas que favorecem à monopolização do poder. Submetido à lógica particularista, o Estado é tratado como fonte de vantagens privadas e a corrupção se mostra como problema sistêmico (Mungiu-Pippidi, 2013aMungiu-Pippidi, A. (2013a). Controlling Corruption Through Collective Action. Journal of Democracy, 24(1), 102-113. Retrieved fromhttps://www.journalofdemocracy.org/articles/page/73
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, 2015Mungiu-Pippidi, A. (2013b). Becoming Denmark: Historical Designs to Corruption Control. Social Research: An International Quarterly, 80, 1259-1286. Retrieved from https://www.researchgate.net/publication/265812682.
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).

Usando dados do Banco Mundial (CoC 2012), Mungiu-Pippidi (2013aMungiu-Pippidi, A. (2013a). Controlling Corruption Through Collective Action. Journal of Democracy, 24(1), 102-113. Retrieved fromhttps://www.journalofdemocracy.org/articles/page/73
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, 2015Mungiu-Pippidi, A. (2013b). Becoming Denmark: Historical Designs to Corruption Control. Social Research: An International Quarterly, 80, 1259-1286. Retrieved from https://www.researchgate.net/publication/265812682.
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) construiu um ranking de governança com 191 países, mostrando que a condição de democracia voltada ao bem comum e com controle adequado da corrupção, prevalece somente em 35 deles. No restante, os vencedores do jogo político consideram o Estado como fonte de recurso pessoal, adotando estratégias típicas de paternalismo, nepotismo e troca de favores para benefício próprio e de seus aliados.

O Brasil é um desses países marcados pelos altos níveis de corrupção, o que afeta as relações econômicas, sociais e judiciais, comprometendo a confiança e o bem-estar social da população. Apesar dos esforços do Estado, desde meados dos anos 1980, para promover reformas institucionais e alinhar-se aos modelos internacionais (que visam regular, criar estruturas de controle, e fortalecer o poder judicial), não se observa grande progresso. Mesmo as reformas na estrutura dos sistemas federais brasileiros de contabilidade e controle público nas décadas de 1980 e 1990 não foram suficientes para evitar que a corrupção continue sendo prática cotidiana.

Atualmente os órgãos públicos de controle governamental vêm revelando, de forma sem precedentes, relações espúrias que ocorrem entre as elites privadas e políticas brasileiras. Essas revelações vêm piorando a percepção geral sobre a corrupção no Brasil. Os índices mostram aumento dramático na percepção da corrupção desde o início da Operação Lava Jato em 2014. Segundo o Índice da Transparência Internacional, o Brasil caiu 35 posições entre 2014 e 2018, saindo da 69ª para a 105ª.

Para entender por que a instituição de robustos sistemas de controle não foi suficiente para que o Brasil superasse a corrupção sistêmica, este artigo estuda o caso brasileiro, à luz das experiências da Suécia e da Itália. Duas razões principais justificam a escolha de abordar o caso sueco. Primeiro, o país conseguiu superar a corrupção como um problema sistêmico no século XIX. Segundo, o caso sueco foi estudado por Rothstein por mais de dez anos, resultando em uma abordagem consistente sobre a corrupção sistêmica. Já a escolha de estudar o caso italiano se baseia no relativo fracasso no enfrentamento da corrupção, naquele país durante os anos 1990, com a Operação Mãos Limpas, que guarda semelhanças com a Operação Lava Jato.

Este estudo recorre às teorias de Bourdieu (1983Bourdieu, P. (1983). Esboço de uma teoria prática. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu: Sociologia (cap. 2, pp. 46 - 81). São Paulo, SP: Ática., 1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a Teoria da Ação. São Paulo, SP: Papirus., 2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), Tocqueville (2005Tocqueville, A. (2005). A Democracia na América. São Paulo, SP: Martins Fontes.) e Ostrom (1990Ostrom, E. (1990). The Evolution of Institutions for Collective Action: Political Economoy of Institutions and Decisions. London: Cambridge University Press.), e adota as perspectivas de Rothstein e Mungiu-Pippidi para abordar o problema da corrupção. Acolhe a abordagem qualitativa com análise exploratória baseada em dados secundários, utilizando o método de rastreamento de processos (process tracing) como instrumento de pesquisa. Esse instrumento permite o escrutínio de processos pelos quais condições iniciais são transformadas (Cunha & Araújo, 2018Cunha, E. S. M. & Araújo, C. E. L. (2018). Process Tracing nas Ciências Sociais: fundamentos e aplicabilidade. Brasília, DF: Enap.).

O artigo está organizado em 5 seções incluindo esta introdução. A seção 2 faz uma breve apresentação teórica sobre corrupção, oferecendo uma visão geral do desafio de superar a corrupção sistêmica como um dilema de ação coletiva. A seção 3 apresenta os casos da Suécia e da Itália, com base em informações disponíveis em artigos científicos, dados estatísticos internacionais e pesquisas em vários sites. Posteriormente, na seção 4, o esquema analítico elaborado com base nos casos da Suécia e da Itália é usado para analisar o caso brasileiro. A quinta e última seção traz as considerações finais.

2. COMO ENFRENTAR A CORRUPÇÃO SISTÊMICA?

O tema da corrupção alcançou papel central nos atuais debates científicos, políticos e econômicos em todo o mundo. Do ponto de vista conceitual, entretanto, ainda permanece um desafio teórico (Filgueiras, 2007Filgueiras, F. B. (2007). Teoria Política da Corrupção. Defense in congress. Juiz de Fora, MG: UFJF. Retrieved from http://www.ecsbdefesa.com.br/fts/TPC.pdf
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, 2009Filgueiras, F. B. (2009). A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social. Opinião Pública, 15(2), 386-421.; Ferro, 2015Ferro, R. J. (2015). Vamos lá falar: um estudo psicopolítico da consciência política, a partir das percepções do fenômeno da corrupção em Moçambique. (Master Thesis). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brazil.; Rothstein & Varraich, 2017Rothstein,B & Varraich, A. (2017). Making Sense of Corruption. London: Cambridge University Press .). Para Rothstein e Varraich (2017)Rothstein,B & Varraich, A. (2017). Making Sense of Corruption. London: Cambridge University Press ., o fenômeno da corrupção pode ser observado através da história e em todas as sociedades, e sua conceituação se sustenta no senso de oposição ao bem comum, na decadência da finalidade do Estado e nas limitações encontradas na busca por justiça. No entanto, ainda não existe uma definição consensual para o termo “corrupção”.

Os campos do direito, sociologia, ciência política e economia têm suas interpretações para a corrupção, oferecendo teorias próprias para explicar o problema. Na área do direito, três noções fundamentais relacionadas ao tema da corrupção foram desenvolvidas ao longo da evolução do estado moderno até o modelo de estado de direito: a) separação entre o patrimônio do governante e os do estado; b) impessoalidade das relações entre o domínio público e o cidadão; e c) bem comum como finalidade do Estado.

A sociologia oferece várias teorias para a compreensão da corrupção enquanto prática social. Bourdieu, fundamentado na sua teoria da prática, argumenta que as ações dos agentes podem ser compreendidas pela reflexividade entre estrutura e agência. Em sua análise da administração pública, o autor parte da visão de Weber sobre o Estado como uma comunidade que reivindicou com sucesso o monopólio do uso legítimo da violência física em um determinado território. Acrescenta que a noção de Estado legítimo só foi possível de ser desenvolvida porque os juristas assumem o monopólio estatal de dizer “o que é certo”, utilizando noções universais como a de “interesse público”. O conceito de interesse público emerge como um capital simbólico, também monopolizado pelo Estado. O autor mostra que as ideias fundamentais trazidas historicamente pelos juristas têm um profundo senso de simbolismo, o que leva as pessoas a se submeterem à autoridade do Estado (Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado. São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

A submissão das pessoas ao Estado, no entanto, depende do reconhecimento da população de que este merece o capital simbólico que afirma representar. A manutenção desse capital e o acesso aos recursos que ele implica exigem que os agentes que representam o Estado se submetam à autoridade da lei fundamentada no mesmo simbolismo (ou pelo menos pareçam se submeter). Isso significa que os agentes do Estado, na prática, devem renunciar a seus interesses privados, especialmente os econômicos. Para Bourdieu (1996Bourdieu, P. (1996). Razões práticas: sobre a Teoria da Ação. São Paulo, SP: Papirus.), o habitus da burocracia estatal é trabalhar sem parar para fazer com que a perspectiva individual do agente público coincida com os pontos que legitimam a existência do Estado (Garcia, 2011Garcia, L. M. (2011). Análise do Controle Interno no Poder Executivo Federal Brasileiro sob a Perspectiva de Pierre Bourdieu: A história social como possibilidade de compreensão da produção e reprodução de práticas dos agentes (Doctoral Dissertation). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brazil.).

O desafio para o Estado está na lacuna entre a norma e as práticas administrativas, distância essa que pode ser observada na ineficiência administrativa, nos atrasos das entregas estatais, no tráfico de influência e no uso privado da esfera pública. Mais de dois terços dos países do mundo ainda não conseguem pôr em prática a promessa estatal de promover o bem comum. São países onde o republicanismo ainda é instável e o estabelecimento de normas e sua implementação podem ser tendenciosos, dando espaço à “corrupção sistêmica”.

A economia institucional, por seu lado, ofereceu a abordagem teórica dominante para a questão do alinhamento entre a norma simbólica e as práticas oficiais, com destaque para as teorias do rent-seeking e da agência (Krueger, 1974Krueger, A. O. (1974). The political economy of rent-seeking society. The American Economic Review, 64(3), 291-303. Retrieved from http://www.jstor.org/stable/1808883
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; Jensen & Meckling, 1976Jensen M. C. & Meckling, W. H. (1976). Theory of the firm: Managerial behavior, agency cost, and ownership structure. Journal of Financial Economics, 3(4), 305-360. Retrieved from https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0304405X7690026X
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). Com base nelas, Rose-Ackerman (1978Rose-Ackerman, S. (1978). Corruption: a study in political economy. New York, NY: Academic Press., 2002Rose-Ackerman, S. (2002). A economia política da corrupção. In K. A Elliott (Org.), A Corrupção e a Economia Global(pp. 59-105). Brasília, DF: UNB.) desenvolveu o conceito de corrupção que tem sido considerado o mais influente, ligando o fenômeno ao abuso de deveres públicos, ao uso indevido de recursos públicos e ao uso ilegítimo de influência política por agentes públicos e privados. Essa compreensão aponta para o significado dos abusos praticados por agentes públicos e privados contra a esfera pública, ao agir racionalmente em benefício próprio em detrimento do interesse público. Desde os anos 1990, essas ideias vêm fundamentando propostas de reformas de Estados.

No entanto, estudos recentes indicam que a perspectiva econômica não foi capaz de auxiliar na promoção de reformas com resultados positivos em diversos países (Stefes, 2007Stefes, C. H. (2007). Measuring, Conceptualizing, and Fighting Systemic Corruption: Evidence from Post-Soviet Countries. Perspectives on Global Issues, 2(1), 1-16. Retrieved fromhttp://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.499.8875&rep=rep1&type=pdf
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; Rothstein, 2007Rothstein, B. (2007, May). Anti-Corruption - A Big Bang Theory. The Quality of Government QoG (Working Paper Series 2007:3). QoG the Quality of Government Institute, Gothenburg, Sweden. Retrieved from http://www.pol.gu.se/digitalAssets/1350/1350652_2007_3_rothstein.pdf
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; Mungiu-Pippidi, 2013aMungiu-Pippidi, A. (2013a). Controlling Corruption Through Collective Action. Journal of Democracy, 24(1), 102-113. Retrieved fromhttps://www.journalofdemocracy.org/articles/page/73
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, 2013bMungiu-Pippidi, A. (2013b). Becoming Denmark: Historical Designs to Corruption Control. Social Research: An International Quarterly, 80, 1259-1286. Retrieved from https://www.researchgate.net/publication/265812682.
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; Persson, Rothstein, & Teorell, 2013Persson, A., Rothstein, B. & Teorell, J. (2013). Why Anticorruption Reforms Fail-Systemic Corruption as a Collective Action Problem. An International Journal of Policy, Administration, and Institutions, 26(3). Retrieved from https://doi.org/10.1111/j.1468-0491.2012.01604.x
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; Rothstein & Varraich, 2017Rothstein,B & Varraich, A. (2017). Making Sense of Corruption. London: Cambridge University Press .). Persson, Rothstein e Teorell (2013)Persson, A., Rothstein, B. & Teorell, J. (2013). Why Anticorruption Reforms Fail-Systemic Corruption as a Collective Action Problem. An International Journal of Policy, Administration, and Institutions, 26(3). Retrieved from https://doi.org/10.1111/j.1468-0491.2012.01604.x
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pesquisaram as razões pelas quais as reformas implementadas em Uganda e no Quênia não resultaram nas mudanças pretendidas. Os autores mostraram que o insucesso se deu parcialmente em virtude de pressupostos inadequados, baseados no problema principal-agente.

A teoria da agência (principal-agente) é o principal suporte para a criação de mecanismos de controle institucional. Pressupõe a existência de um “principal” interessado em controlar o “agente”, tendo em vista o bem comum. O ‘principal’ pode ser, por exemplo, a burocracia que produz os regulamentos (instituições), os membros do parlamento que votam e aprovam essas diretrizes, ou servidores públicos que autorizam contratos entre a administração pública e o setor privado. Poderia ser também cidadãos dispostos a entender o funcionamento da burocracia governamental, para atuarem como ‘fiscais’ da sociedade sobre o Estado.

O problema central identificado pelos pesquisadores foi que as ações dos ‘principais’ nos países pesquisados são afetadas por interesses pessoais. Na ausência do principal ‘incorruptível’, voltado ao interesse público, as reformas propostas sob os pressupostos da teoria da agência falharam. Em um dos últimos trabalhos de Pierre Bourdieu, nos anos 90, o autor enfatizou o papel crítico do principal, observando que a ausência desse tipo de agente, focado no bem comum, representava uma importante limitação para a eficiência dos sistemas de controle público (Bourdieu, 2014Bourdieu, P. (2014). Sobre o Estado. São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

Mais recentemente, Teorell e Rothstein (2012Teorell, J. & Rothstein, B. (2012, December). Getting to Sweden: Malfeasance and Bureaucratic Reforms, 1720-1850. (Working Paper Series 2012:18). QoG the Quality of Government Institute, Gothenburg, Sweden Retrieved from https://qog.pol.gu.se/digitalAssets/1418/1418045_2012_18_teorell_rothstein.pdf
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) defenderam que, em contexto de corrupção sistêmica - onde a presença de um principal é incerta - a teoria da agência precisa ser complementada com a abordagem de teorias de ação coletiva. Os autores adotaram a abordagem de Ostrom para problemas de ação coletiva, cujo contexto clássico é a dificuldade de cooperação de um grupo formado por pescadores que trabalha em um mesmo lago. Como o lucro de cada pescador é diretamente proporcional ao número de peixes capturados, cada pescador tem incentivo para lançar o maior número possível de redes. O resultado dessa escolha, a longo prazo, é o declínio na produção de peixes no lago. A autora defendeu que o problema de ação coletiva seja separado em três problemas distintos: o problema de quem pode oferecer a solução, o problema da credibilidade dos compromissos ​​e o problema do monitoramento. Ela comprovou que o próprio grupo de pescadores é quem estava em posição de apresentar soluções para cada um dos três problemas.

Fundamentados nas ideias de Ostrom, Teorell e Rothstein estudaram o caso de enfrentamento da corrupção na Suécia do século XIX e defenderam que grupos de agentes com propósitos comuns agiram em conjunto para “substituir a ordem antiga por uma nova, pela força de suas próprias ações” (Teorell & Rothstein, 2012Teorell, J. & Rothstein, B. (2012, December). Getting to Sweden: Malfeasance and Bureaucratic Reforms, 1720-1850. (Working Paper Series 2012:18). QoG the Quality of Government Institute, Gothenburg, Sweden Retrieved from https://qog.pol.gu.se/digitalAssets/1418/1418045_2012_18_teorell_rothstein.pdf
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, p. 4, tradução nossa). Ao admitir a corrupção sistêmica como um problema de ação coletiva, defenderam a necessidade de uma teoria que explique como os problemas da ação coletiva podem ser superados e como novas regras do jogo podem se tornar práticas dominantes. Para os pesquisadores, mesmo que as pessoas percebam que todos perdem com escolhas baseadas na corrupção, elas agirão de maneira corrompida se acreditarem que outras pessoas farão o mesmo.

Outro ponto de vista relevante para esse tipo de problema foi sugerido por Mungiu-Pippidi com base na visão de ação coletiva de Alexis de Tocqueville. Observando a democracia americana do século XIX, Tocqueville ficou convencido de que a “força coletiva” era fundamental para a promoção do bem comum em um Estado (Tocqueville, 2005Tocqueville, A. (2005). A Democracia na América. São Paulo, SP: Martins Fontes., pp. 160, 278, 279). A qualidade da ação coletiva identificada na sociedade americana aparece em Tocqueville como consequência de quatro fatores: soberania popular, igualdade e aplicação da lei para todos em igualdade de condições, espírito associativo e imprensa independente.

Para testar as ideias de Tocqueville, Mungiu-Pippidi realizou uma pesquisa quantitativa com dados da World Values Survey, entre 1995 e 2008. A autora encontrou uma correlação positiva entre o número de associações civis e engajamento político e o número de associações civis, existência de mídia independente e controle da corrupção. Argumentou que a cooperação e o hábito de associação geram capital social, o que favorece a ação coletiva (Mungiu-Pippidi, 2013aMungiu-Pippidi, A. (2013a). Controlling Corruption Through Collective Action. Journal of Democracy, 24(1), 102-113. Retrieved fromhttps://www.journalofdemocracy.org/articles/page/73
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, 2015). Como a força coletiva é eficiente para ampliar as relações baseadas na confiança, a autora defendeu a ideia de que o nível de associação é fundamental para o desenvolvimento de novas regras do jogo em sociedades caracterizadas por corrupção sistêmica.

Concluindo, três noções importantes surgem como fundamentais no enfrentamento da corrupção sistêmica. Primeiro, agentes públicos comprometidos com o bem comum são resultado de um processo de construção social, em uma relação de reflexividade entre estrutura e agente, conforme explicado por Bourdieu. Esses agentes não nascem prontos, eles podem ou não serem formados na realidade social e histórica em que vivem. Segundo, em países dominados pela corrupção sistêmica, as propostas de reforma não podem pressupor a existência do principal incorruptível para constituir a relação principal-agente. Por fim, as abordagens de ação coletiva usadas respectivamente por Rothstein e Mungiu-Pippidi conduzem a soluções distintas. Para Rothstein, a solução é a cooperação entre agentes institucionais para definir novas regras do jogo social. Para Mungiu-Pippidi, a solução está na capacidade da sociedade para se associar, encontrar soluções coletivas e constranger o comportamento perverso de autoridades.

Com base nessas ideias, a próxima seção analisa os casos da Suécia e da Itália para verificar a relevância dessas ideias para resultados obtidos por esses países. Esses elementos serão usados na seção 4 para analisar limitações dos sistemas públicos de contabilidade e controle para auxiliarem na superação do problema da corrupção no Brasil.

3. OS CASOS DA SUÉCIA E ITÁLIA

3.1 O caso da Suécia

De acordo com Rothstein, o Estado sueco do século XIX exibia características encontradas em sociedades que apresentam corrupção sistêmica. Contatos pessoais na corte real ‘abriam portas’, as elites tinham mais acesso a cargos públicos, obediência e respeito às leis e normas não eram a regra, e os empregos públicos eram considerados propriedades dos ocupantes dos cargos. Rothstein também mostra que a transição da Suécia para a condição de país com controle adequado de corrupção não ocorreu de forma incremental ou por setores, como demonstrado no Quadro 1.

Quadro 1
Mudanças institucionais

A transição foi realizada em menos de 30 anos, iniciando em meados do século XIX, mas as razões para a tomada de decisão de transformação social se encontram no trauma e nas perdas que o país teve com a guerra com a Rússia nos anos de 1808-1809 (Teorell & Rothstein, 2012Teorell, J. & Rothstein, B. (2012, December). Getting to Sweden: Malfeasance and Bureaucratic Reforms, 1720-1850. (Working Paper Series 2012:18). QoG the Quality of Government Institute, Gothenburg, Sweden Retrieved from https://qog.pol.gu.se/digitalAssets/1418/1418045_2012_18_teorell_rothstein.pdf
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). Rothstein cita em seu estudo o romance The Red Room, escrito por August Strindberg e publicado em 1879. O autor mostra que uma das personagens do livro é um servidor público, e a descrição dela revela estereótipos de preguiça e ineficiência, mas já não menciona a corrupção como característica associada ao Estado.

Essa mudança permaneceu ao longo da história. Atualmente, a Suécia sempre se classifica bem nos índices de governança e controle de corrupção. Está em terceiro lugar no índice de 2018 da Transparency International, e também na terceira posição no Índice de Governança de 2012, proposto por Mungiu-Pippidi (2015Mungiu-Pippidi, A. (2015). The Quest for Good Governance How Societies Develop Control of Corruption. London, UK: Cambridge University.), logo atrás da Nova Zelândia e da Dinamarca.

Teorell e Rothstein (2012Teorell, J. & Rothstein, B. (2012, December). Getting to Sweden: Malfeasance and Bureaucratic Reforms, 1720-1850. (Working Paper Series 2012:18). QoG the Quality of Government Institute, Gothenburg, Sweden Retrieved from https://qog.pol.gu.se/digitalAssets/1418/1418045_2012_18_teorell_rothstein.pdf
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) estudaram a transição sueca e apresentaram uma nova teoria para explicar como as novas regras do jogo social puderam se tornar práticas dominantes. Com base em Ostrom (1990Ostrom, E. (1990). The Evolution of Institutions for Collective Action: Political Economoy of Institutions and Decisions. London: Cambridge University Press.), eles criaram a teoria endógena da mudança institucional. O argumento é que os agentes do Estado podem “tornar-se alerta do problema de ação de coletiva que estão enfrentando, e dos custos coletivos que eles carregam para manter o comportamento de equilíbrio corrupto e disfuncional, e, assim, eles próprios podem trabalhar juntos para encontrar soluções que permitam a saída desse equilíbrio “ Teorell e Rothstein (2012, p. 8, tradução nossa). Os autores argumentam que a superação da corrupção não ocorre automaticamente apenas pela eficiência dos mecanismos de controle institucional, afirmando que se dispositivos institucionais eficientes “fizessem um país começar a seguir um novo caminho que o tirasse da corrupção sistêmica”, mais países teriam conseguido conter esse tipo de corrupção (Rothstein, 2007Rothstein, B. (2007, May). Anti-Corruption - A Big Bang Theory. The Quality of Government QoG (Working Paper Series 2007:3). QoG the Quality of Government Institute, Gothenburg, Sweden. Retrieved from http://www.pol.gu.se/digitalAssets/1350/1350652_2007_3_rothstein.pdf
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, p. 4, tradução nossa).

Quadro 2
A trajetória de mudança na Suécia

Além de cooperação entre agentes institucionais citada por Teorell e Rothstein (2012Teorell, J. & Rothstein, B. (2012, December). Getting to Sweden: Malfeasance and Bureaucratic Reforms, 1720-1850. (Working Paper Series 2012:18). QoG the Quality of Government Institute, Gothenburg, Sweden Retrieved from https://qog.pol.gu.se/digitalAssets/1418/1418045_2012_18_teorell_rothstein.pdf
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), a história também mostra a presença de grande força coletiva na Suécia ao longo dos anos. O país sempre experimentou fortes níveis de cooperação entre grupos sociais. Nunca houve períodos de escravidão ou servidão no país, nem períodos em que a classe camponesa foi marginalizada do processo de tomada de decisões institucionais (Guimarães, 2016Guimarães, R. R. C. (2016). Déjà vu: diálogos possíveis entre a Operação “Mãos Limpas” italiana e a realidade Brasileira. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Paraná, 3, 189-233. Retrieved from http://www.mpf.mp.br/regiao3/sala-deimprensa/docs/2016/artigo-rodrigochemim-maoslimpaserealidadebrasileira.pdf
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). Mungiu-Pippidi (2013aMungiu-Pippidi, A. (2013a). Controlling Corruption Through Collective Action. Journal of Democracy, 24(1), 102-113. Retrieved fromhttps://www.journalofdemocracy.org/articles/page/73
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, 2015Mungiu-Pippidi, A. (2013b). Becoming Denmark: Historical Designs to Corruption Control. Social Research: An International Quarterly, 80, 1259-1286. Retrieved from https://www.researchgate.net/publication/265812682.
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) argumenta que esse hábito de viver em comunidade gera capital social, o que garante a força necessária para fazer com que as elites econômicas, políticas e burocráticas mudem suas práticas.

Pelo Quadro 2, três elementos observados no caso sueco parecem fundamentais para auxiliar um país a superar a corrupção sistêmica: um gatilho que provoque a possibilidade de cooperação verticalizada e sustentável entre os tomadores de decisão institucionais para essa finalidade; um nível adequado de capacidade institucional; e uma grande força coletiva.

3.2 O caso Italiano

A tentativa mais reconhecida de combate à corrupção na Itália ocorreu nos anos 90 com a chamada Operação Mãos Limpas. A Operação foi desenvolvida quatro anos após a significativa reforma processual penal que passou a propiciar, entre outros, a possibilidade do uso de instrumento de acordo de delação (Vasconcellos, 2015Vasconcellos, V. G. (2015). Barganha no Processo Penal Italiano: Análise Crítica do Patteggiamento e das Alternativas Procedimentais na Justiça Criminal. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, 15(1), 435-453. Retrieved from http://www.redp.com.br
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).

A Operação começou em fevereiro de 1992, com a prisão do político Mario Chiesa, membro do Partido Socialista Italiano, sob acusação de recebimento de propinas. Cerca de um mês depois, isolado e sem o apoio de seus antigos parceiros políticos, Chiesa propôs um acordo de delação (Vannucci, 2009Vannucci, A. (2009). The Controversial Legacy of ‘“Mani Pulite”’: A Critical Analysis of Italian Corruption and Anti-Corruption Policies. Bulletin of Italian Politics. University of Pisa, 1(2), 233-264. Retrieved from http://www.gla.ac.uk/media/media_140182_en.pdf
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; Sberna & Vannucci, 2013Sberna, S & Vannucci, A. (2013). “It’s the politics, stupid!”. The politicization of anti-corruption in Italy. Crime Law Soc. Change, 60, 565-593. Retreived from http://weblaw.haifa.ac.il/en/JudgesAcademy/workshop3/Documents/A/D/Its%20the%20Politics.pdf
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; Guimarães, 2016Guimarães, R. R. C. (2016). Déjà vu: diálogos possíveis entre a Operação “Mãos Limpas” italiana e a realidade Brasileira. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Paraná, 3, 189-233. Retrieved from http://www.mpf.mp.br/regiao3/sala-deimprensa/docs/2016/artigo-rodrigochemim-maoslimpaserealidadebrasileira.pdf
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; Vannucci, 2016).

As informações oferecidas pelo político revelaram importantes esquemas de corrupção entre a elite política e econômica, em escala jamais vista no país. Quando as prisões começaram, os acusados também fizeram acordo de delação e todo o sistema político e econômico italiano até então instalado se enfraqueceu. A perda de legitimidade dos sistemas aumentou o poder da ação judicial, que se retroalimentou dos resultados das investigações (Moro, 2004Moro, S. F. (2004). Considerações sobre a operação “Mani Pulite”. Revista do CEJ, 26, 56-62. Retrieved from https://www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf
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; Sberna & Vannucci, 2013Sberna, S & Vannucci, A. (2013). “It’s the politics, stupid!”. The politicization of anti-corruption in Italy. Crime Law Soc. Change, 60, 565-593. Retreived from http://weblaw.haifa.ac.il/en/JudgesAcademy/workshop3/Documents/A/D/Its%20the%20Politics.pdf
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; Vannucci, 2016).

Em pouco tempo a investigação avançou em diferentes frentes: a) começou pelas lideranças de todos os partidos políticos; b) atingiu, em seguida, empresários de todos os níveis no setor privado, bem assim gerentes de empresas públicas. Esquemas de compra e venda de votos foram descobertos, formando uma rede criminosa composta por políticos, empresários e membros da máfia italiana. Do início da operação até o ano de 1994, trinta e uma pessoas envolvidas nas investigações cometeram suicídio (Guimarães, 2016Guimarães, R. R. C. (2016). Déjà vu: diálogos possíveis entre a Operação “Mãos Limpas” italiana e a realidade Brasileira. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Paraná, 3, 189-233. Retrieved from http://www.mpf.mp.br/regiao3/sala-deimprensa/docs/2016/artigo-rodrigochemim-maoslimpaserealidadebrasileira.pdf
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; Vannucci, 2016Vannucci, A. (2016). The “Clean Hands” (Mani Pulite) Inquiry on Corruption and its Effects on the Italian Political System.Em Debate: Periódico de Opinião Pública e Conjuntura Política, 8(2), 62-68. Retrieved from http://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/3287
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).

Mudanças na estrutura legal italiana começaram a ocorrer em março de 1993 (Quadro 3), ganhando força após a eleição do Primeiro Ministro Silvio Berlusconi em 1994. Embora Berlusconi estivesse envolvido nas investigações, o bilionário empresário italiano (dono de empresas de comunicação e da equipe de futebol AC Milan) venceu as eleições, aproveitando o vácuo deixado pelo descrédito dos atores políticos. Ele permaneceu no cargo por seis anos e, em 2008, foi reeleito por mais quatro.

Em 2002, quando a operação foi considerada concluída (ou pelo menos desfigurada), o resultado mostrava 1.254 pessoas condenadas, 430 absolvidas, 422 beneficiadas por prescrição do crime e o restante dos citados acabaram não sendo processados. A despeito desses números, é interessante observar que os índices de monitoramento da percepção da corrupção não registraram melhorias. Eles mostram que a Operação Mãos Limpas não conseguiu levar a Itália a um patamar de controle adequado da corrupção. Em 2018, o ranking da Transparência Internacional (TI 2018) mostrou a Itália na posição 58 entre 180 países, ou seja, entre os países da Europa Ocidental com piores níveis de controle de corrupção. No índice proposto por Mungiu-Pippidi (2015Mungiu-Pippidi, A. (2015). The Quest for Good Governance How Societies Develop Control of Corruption. London, UK: Cambridge University.), a Itália obteve 4,54 em 2012, sendo considerado um dos 109 países do mundo onde a lógica particularista prevalece nas relações envolvendo o Estado.

Quadro 3
Algumas das mudanças relevantes na estrutura legal italiana (1993-2014)

Em relação ao desempenho dos órgãos de controle, a avaliação da situação na Itália não é favorável, conforme Sberna e Vannucci (2013Sberna, S & Vannucci, A. (2013). “It’s the politics, stupid!”. The politicization of anti-corruption in Italy. Crime Law Soc. Change, 60, 565-593. Retreived from http://weblaw.haifa.ac.il/en/JudgesAcademy/workshop3/Documents/A/D/Its%20the%20Politics.pdf
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, p. 589). O estudo revela a ineficácia dos controles administrativos e judiciários em funcionamento no país, tanto internos quanto externos. Para os autores, “as constantes brechas no sistema judicial tornaram inócuas, na maioria das vezes, as ações penais por crimes de corrupção”. É importante ressaltar que, em 1999, um Decreto Legislativo reformou os controles internos do governo, reestruturando os mecanismos de controle e avaliação da administração pública local (Paglietti, 2010Paglietti, P. (2010). Internal Controls and Auditing in Italian Local Governments. In Annals of the 10th Global Conference on Business & Economics, Roma, Italy. Retrieved from http://www.gcbe.us/10th_GCBE/data/confcd.htm
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). Isso reforça a tese de Rothstein (2007Rothstein, B. (2007, May). Anti-Corruption - A Big Bang Theory. The Quality of Government QoG (Working Paper Series 2007:3). QoG the Quality of Government Institute, Gothenburg, Sweden. Retrieved from http://www.pol.gu.se/digitalAssets/1350/1350652_2007_3_rothstein.pdf
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) de que a superação da corrupção sistêmica exige ações abrangentes que envolvam a maioria instituições, simultaneamente, e não em apenas uma área.

Em relação à força coletiva como um mecanismo de limitação da corrupção sistêmica, como argumenta Mungiu-Pippidi, Garcia, e Teodósio (2017Garcia, L. M. & Teodósio, A. S. S (2017). Approaching systemic corruption as an issue of collective action: a comparative analysis of the cases of Brazil, Sweden and Italy. In Defense in 2017EGPA Annual Conference, Milan, Italy.) mostram que, na década de 1990, a Itália apresentava altos índices em relação a práticas associativas e de ativismo cívico. Mostram também que a sociedade italiana já possuía na época uma das mais altas taxas de bem-estar social do mundo, em aspectos como expectativa de vida, nível educacional e bem-estar humano. Os excelentes índices talvez expliquem porque não houve forte pressão social por mudanças na governança pública em paralelo à Operação Mãos Limpas.

Sberna e Vannucci (2013Sberna, S & Vannucci, A. (2013). “It’s the politics, stupid!”. The politicization of anti-corruption in Italy. Crime Law Soc. Change, 60, 565-593. Retreived from http://weblaw.haifa.ac.il/en/JudgesAcademy/workshop3/Documents/A/D/Its%20the%20Politics.pdf
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, p. 598) conferem ênfase a três aspectos para a compreensão dos resultados da Operação: a) politização do combate a corrupção, com conflito institucional entre o poder político e o ativismo dos juízes e promotores; b) o colapso do sistema partidário; c) corrupção atingindo a sociedade como um todo, incluindo a administração pública, a sociedade civil e o setor privado. O Quadro 4 oferece um resumo do caso italiano.

Quadro 4
O caso italiano de combate a corrupção nos anos 1990

Como conclusão, três ideias relevantes emergem do caso italiano: a) a insuficiência dos sistemas de controle administrativo ou judicial para funcionar como gatilho para provocar um acordo institucional que permita superar a corrupção sistêmica; b) o risco de politização do combate a corrupção; e c) o apoio popular dado aos juízes não significa que a sociedade civil esteja realmente agindo contra a corrupção.

4. O CASO DO BRASIL

Um desafio no estudo de caso sobre o Brasil é o fato da Operação Lava Jato ainda não ter sido concluída. No entanto, a Operação, que parece estar perdendo forças, tem sido objeto de amplo debate público e no âmbito do judiciário. Há alegações de excessos cometidos por parte dos investigadores, especialmente depois que a agência de notícias ‘The Intercept’ publicou, entre os meses de junho e agosto de 2019, o vazamento de mensagens privadas trocadas entre promotores e juízes envolvidos na Operação. A Lei de Abuso de Autoridade foi aprovada em setembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) impôs limites ao uso de relatórios da Unidade de Inteligência Financeira da Receita Federal e de outros órgãos administrativos em investigações criminais (julho de 2019). Ainda, o STF mudou o entendimento sobre o momento da prisão de réus condenados, exigindo agora o esgotamento de todas as possibilidades de recurso (novembro de 2019). Portanto, há acontecimentos que favorecem à análise prospectiva do presente caso.

Os casos sueco e italiano apresentados anteriormente permitiram desenhar a estrutura, constituída de três elementos centrais, para analisar a atual tentativa de superar a corrupção sistêmica no Brasil: os antecedentes institucionais, o gatilho ou fator desencadeante e a força coletiva. Esses elementos ajudam a compreender os limites da eficácia dos sistemas de contabilidade e controle públicos no contexto da corrupção sistêmica. As subseções a seguir analisam os efeitos de cada um desses três elementos para o caso brasileiro.

4.1 Antecedentes Institucionais

A história do Brasil mostra inúmeras crises institucionais causadas por escândalos de corrupção no âmbito federal. No passado, a fragilidade dos sistemas de contabilidade e controle foi apresentada muitas vezes como causa desse problema. O presente artigo defende que essa conclusão não corresponde mais à realidade, já que nas décadas de 1980 e 1990 o Brasil fez um tremendo progresso nesses sistemas (Castro & Garcia, 2004Castro, D. P. & Garcia, L. M. (2004). Contabilidade Pública no Governo Federal. São Paulo, SP: Ed. Atlas.).

Uma crise econômica no início dos anos 80 deu visibilidade a um “[...] processo ‘congênito’ de assalto corporativista e patrimonial ao Estado” (Gouvêa, 1994Gouvêa, G. P. (1994). Burocracia e Elites Burocráticas no Brasil. São Paulo, SP: Ed. Paulicéia., p. 174). Tal crise também evidenciou as inconsistências dos relatórios financeiros, o caráter não confiável dos balanços e a precária capacidade de controle dos gastos públicos. José Sarney, presidente da república à época e o primeiro após a redemocratização, mencionou que à época “não era possível calcular o déficit público” (Castro & Garcia, 2004Castro, D. P. & Garcia, L. M. (2004). Contabilidade Pública no Governo Federal. São Paulo, SP: Ed. Atlas., p. 94). Nesse contexto, muitos burocratas importantes estavam convencidos de que as mudanças eram imperativas.

Essa convicção levou a uma cooperação institucional endógena no governo e a uma decisão de criar sistemas contábeis e de controle financeiro adequados. Logo após o fim da ditadura militar, em 1985, o governo federal começou a estabelecer sistemas confiáveis ​​de gestão contábil e financeira (Gouvêa, 1994Gouvêa, G. P. (1994). Burocracia e Elites Burocráticas no Brasil. São Paulo, SP: Ed. Paulicéia.). Em 1986, foi criada a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), centralizando os sistemas de contabilidade, administração financeira e controle interno. Um ano depois, o governo colocou em operação o Sistema Integrado de Administração Financeira (SIAFI). Juntamente com o SIAFI, a administração pública federal adotou a Conta Única do Tesouro Nacional, que transformou a contabilidade em uma estrutura que, semelhante a um banco, mantinha todos os dados analíticos e originais, e passou a ser, ela própria, uma fonte de informação confiável (Castro & Garcia, 2004Castro, D. P. & Garcia, L. M. (2004). Contabilidade Pública no Governo Federal. São Paulo, SP: Ed. Atlas.).

A Constituição de 1988 consolidou as mudanças ocorridas nos sistemas contábil e de controle interno. Além disso, também fortaleceu o controle externo da administração pública, especialmente os papéis do Tribunal de Contas da União, do Departamento de Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da sociedade civil (Avritzer & Filgueiras, 2011Avritser, L & Filgueiras, F. B. (2011). Corrupção e controles democráticos no Brasil. (Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 32). Brasília, DF: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA.). Apesar dessa forte estrutura, cinco anos depois, dois outros escândalos surgiram. Em 1992, o Presidente Collor foi submetido ao processo de impeachment, sob a alegação de corrupção. Em 1993, houve um grande escândalo no Congresso Nacional com a revelação de esquemas de desvio nos orçamentos federais. Em 1994, a explicação oficial para as crises institucionais causadas por esses escândalos foi a fragilidade do controle interno do poder executivo federal.

A solução implementada foi a criação da Secretaria Federal de Controle Interno (SFC), subordinada ao Ministério da Fazenda (MP 480/1994). A SFC e a STN passaram a formar o Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal. Os órgãos criados tinham autonomia e centralizavam as funções de administração financeira, contabilidade e controle no nível federal. Sete anos depois, a Lei 10.180/2001 institucionalizou essas três funções em sistemas separados (contabilidade, administração financeira e controle interno). Os dois primeiros operando sob a responsabilidade da STN e o último sob a responsabilidade da SFC. Em 2003, foi criada a Controladoria-Geral da União (CGU), incorporando a Secretaria Federal de Controle Interno e ampliando suas funções para incluir a ouvidoria, o combate à corrupção e a correição. A Figura 1 mostra como esses sistemas funcionam, todos sob a supervisão do controle externo a cargo do Tribunal de Contas da União.

Figura 1
Sistemas de Controle da Administração Federal Brasileira

Nos anos 1990, quando essa estrutura era formada, foram criadas também novas leis, que favoreceram a capacidade de controle do Estado brasileiro conforme indicado no Quadro 5.

Quadro 5
Legislação brasileira relevantes para a capacidade de controle do Estado

É possível admitir que o Brasil desenvolveu fortes sistemas de controle burocrático e judicial no âmbito federal nos últimos 30 anos. A expectativa era que a existência de agências especializadas para supervisionar e punir possíveis atos de corrupção cometidos por agentes públicos poderia ajudar o Brasil a superar o problema da corrupção. Infelizmente, isso ainda não aconteceu, como apresentado a seguir.

4.2 Gatilho: A Operação Lava Jato

A Operação começou em 17 de março de 2014, quando a Justiça Federal autorizou a Polícia Federal a prender o doleiro Youssef e intimar Paulo Roberto, ex-gerente da Petrobrás1 1 A Petrobras é uma empresa brasileira de petróleo e gás criada em 1953 como uma empresa estatal. Desde 1977, suas ações estão listadas na Bolsa de Valores do Brasil, embora ainda seja uma subsidiária do Governo Federal. Por mais de três décadas, a Petrobras foi a maior empresa negociada no mercado de capitais brasileiro. , a depor. Como no caso da Operação Mãos Limpas na Itália, os acusados fizeram acordos de colaboração que contribuíram no processo. Essas colaborações, combinadas a técnicas de investigação contra lavagem de dinheiro e formação de organizações criminosas, foram fundamentais para que fossem reveladas práticas de corrupção nas relações entre partidos políticos e o setor privado. Foi possível provar a formação de cartéis em vários setores econômicos, principalmente envolvendo as maiores construtoras do país, com graves prejuízos financeiros para as empresas estatais que contrataram seus serviços.

Devido à complexidade da operação, uma força-tarefa de investigação foi constituída pelos promotores encarregados do caso na primeira instância do Tribunal Federal do Paraná. Essa força-tarefa atuava conjuntamente com a Polícia Federal e com a Secretaria da Receita Federal do Brasil. Ocasionalmente, a Operação podia contar com a participação de membros da Controladoria Geral da União, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e da própria Petrobrás.

Durante a investigação, acordos de colaboração, principalmente por parte de funcionários das empresas Odebrecht2 2 A Odebrecht S.A. é um conglomerado empresarial privado de origem brasileira (1944) que atua em várias partes do mundo nas áreas de construção e engenharia, química e petroquímica, energia, entre outras. Em 2001, a Odebrecht se tornou o maior grupo petroquímico da América do Sul. Em junho de 2019, entrou com um pedido de recuperação judicial. e JBS3 3 A JBS S.A. é uma empresa brasileira fundada em 1953, sendo considerada uma das maiores indústrias de alimentos do mundo. Desde 2007, suas ações estão listadas no Bolsa de Valores (Mercado Bovespa). , trouxeram evidências de que o comportamento dos atores investigados não era uma exceção, mas sim a regra nas relações entre os setores público e privado. Depois de pouco mais de cinco anos, a Operação Lava Jato teve impacto na elite econômica, inclusive levando à prisão importantes empresários.

A legitimidade dos políticos e do Estado foram contestadas. No caso específico do Poder Executivo, um dos resultados foi o impeachment da então Presidente Dilma Rousseff, processo esse que foi desencadeado, em grande parte, em virtude da perda de legitimidade do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual pertencia a presidente. Outros resultados da Operação foram a prisão do ex-Presidente Lula e do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. O ex-Presidente Temer está atualmente sob investigação, após ter sido libertado de detenção preventiva.

De acordo com o Ministério Público Federal4 4 Recuperado de http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-instancia/parana/resultado. , em 5 de julho de 2019, os números da Operação Lava Jato eram de 2.476 inquéritos, 754 solicitações de colaboração internacional, 155 prisões preventivas, 183 acordos de colaboração, 11 acordos de leniência e 1 termo de ajuste de conduta. Existem acusações criminais contra 421 pessoas, sendo que 159 delas já foram condenadas. Esses números revelam a enorme força desse enfrentamento de um tipo específico de corrupção na interface entre o público e o privado (suborno), mas eles ainda estão aquém dos números da Operação Mãos Limpas.

4.3 A força coletiva no Brasil

Sobre a democracia no Brasil, Avritzer (2016Avritzer, L. (2016). Os impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira., p. 6) afirma que “[...] por qualquer critério significativo proposto por teorias que medem o estado da arte da democracia, o país está em boa posição”. No entanto, não se pode dizer que o país conseguiu construir uma democracia genuinamente focada no bem comum. O Brasil permanece uma democracia eleitoral, sem ter desenvolvido lógicas universalistas e coletivas de funcionamento. A construção social no país sempre apresentou níveis elevadíssimos de desigualdade social e baixos níveis de confiança e capital social. As elites econômicas, políticas e burocráticas sempre se beneficiaram de altas rendas e de melhores serviços públicos do que a média brasileira e, ainda, em certa medida, sempre se colocaram acima da lei.

Essas elites estabeleceram historicamente laços com os governantes e com o judiciário para obterem benefícios garantidos até mesmo pela legislação. Carvalho (2008Carvalho, J. M. (2008). Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro, RJ: ed. Civilização Brasileira., p. 215) afirma que, no Brasil, “existem cidadãos de primeira classe, pessoas privilegiadas, doutores que estão acima da lei e sempre conseguem defender seu próprio interesse pelo poder do dinheiro e prestígio social. Os “doutores” são invariavelmente brancos, ricos, bem vestidos, com educação universitária”. Portanto, considerando a teoria de Tocqueville, ainda não é possível afirmar que existe, na prática, soberania popular no Brasil. Não há indicação de mudanças significativas na capacidade da sociedade brasileira de interferir efetivamente nas instituições de maneira a resolver problemas cívicos e de interesse público. A Tabela 1 demonstra alguns indicadores sociais para o período após a redemocratização do Brasil de forma a auxiliar na análise da noção de força coletiva na sociedade brasileira.

Tabela 1
Força coletiva - Brasil

A Tabela 1 mostra um declínio significativo no indicador “segurança e confiança interpessoal”, reduzindo de 0,477 em 1990 para 0,286 em 2010. Os demais indicadores permaneceram relativamente constantes no mesmo período. Apesar dos dados do ISDI não serem tão recentes, a tendência de queda que eles demonstram foi confirmada por uma pesquisa de confiança interpessoal realizada pelo IBOPE5 5 Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística. em 2014, a pedido da Confederação Nacional da Indústria. Segundo o IBOPE, apenas 6% da população indicou ter muita confiança nas pessoas em geral. Entre os respondentes, 31% indicaram ter alguma confiança e a maioria revelou não confiar nas outras pessoas.

Por outro lado, é importante destacar que a tendência de ativismo e associação da sociedade civil não apresenta um declínio significativo desde 1990. Essa força da sociedade civil pode ser vista nos movimentos sociais que ocorreram no país em 2013, precedendo a aprovação de leis anticorrupção e o uso do acordo de colaboração premiada e favorecendo ao surgimento da Operação Lava Jato. A questão, no entanto, é que tipo de mudanças essa força pode produzir quando inexiste confiança interpessoal e senso de coletividade.

4.4 Inferências preliminares sobre o caso brasileiro

A descrição resumida e preliminar do caso brasileiro está indicada no Quadro 6. Em termos de gatilho e de escopo da tentativa de mudança, o caso brasileiro guarda forte semelhança com o caso italiano. No que diz respeito aos antecedentes institucionais, há alguma similaridade, como no caso de mudanças em processos de investigação (surgimento da previsão da delação ou do acordo de colaboração, por exemplo), mas mudanças institucionais ocorridas no Brasil após a redemocratização podem ser um diferencial nos resultados da Lava-Jato. Um fato relevante é que, durante o processo de enfrentamento da corrupção em curso, o Brasil ainda não enfrentou mudanças em seu ordenamento jurídico voltadas a proteger infratores ou a dificultar a punição de desvios, tal como aconteceu na Itália. O entendimento recente do Supremo Tribunal de que os infratores condenados no tribunal de apelação não podem ser presos se ainda houver instâncias legais para apelar não representa uma mudança, mas uma interpretação de um ponto específico da Constituição Federal que tem provocado polêmicas jurídicas.

Já em relação à força coletiva, diferentemente dos casos da Suécia e da Itália, a condição da sociedade civil brasileira para defender seus interesses é muito mais frágil. A sociedade apresenta um baixo nível de confiança interpessoal e profunda desigualdade social, o que fragiliza o sentido de coletividade.

Quadro 6
Resumo do caso brasileiro

Outro aspecto importante da atual crise de legitimidade do Estado, é que o Brasil enfrenta profunda crise econômica desde 2014. A sociedade brasileira apresenta-se severamente impactada e com dificuldade em defender sua coesão social. Nas últimas eleições federais de 2018, um forte movimento social levou à rejeição de partidos políticos tradicionais e mais consolidados e dividiu a sociedade.

O atual cenário institucional é complexo e desafiador, mas ainda não há sinais de que essas crises sejam suficientes para que sejam consideradas um gatilho capaz de desencadear uma solução de mudança institucional endógena (como observado na Suécia no século XIX) para a superação do estágio da corrupção sistêmica no Brasil. Essa possibilidade, no entanto, não pode ser descartada, especialmente se os problemas políticos, institucionais e econômicos se agravarem. Nesse contexto, a lição da Suécia é que uma parte significativa da sociedade, incluindo parte das elites, pode se dar conta de que a situação representa risco de perda para todos, o que motivaria a decisão de se trabalhar conjuntamente para mudar as regras do jogo social dominante.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura mostra que a questão da corrupção ganhou relevância nos dias atuais, com particular importância nos países caracterizados por corrupção sistêmica - que são a maioria dos países do mundo. Neles pode-se perceber clara limitação na estabilização dos fundamentos do estado de direito, tais como: (a) não há separação efetiva entre ganhos políticos privados ou entre as elites econômicas, e os recursos públicos; (b) não há impessoalidade nas relações entre a esfera pública e a privada; e (c) o bem comum declarado pelo direito positivo é articulado a partir do interesse econômico, por meio de conluio com a classe política, aprisionando assim as estruturas legais.

As teorias econômicas, principalmente a teoria da agência, sugerem mecanismos para controlar a burocracia pública, mesmo na ausência do “principal incorruptível”. Alguns desses mecanismos podem ser o estabelecimento de instituições e agências de controle horizontal, mas o impacto de tais instituições nos Estados onde há corrupção sistêmica é muito diferente do que o observado em países desenvolvidos. À luz das limitações da teoria da agência, a teoria da ação coletiva pode servir de complemento na luta pela superação da corrupção sistêmica. Nesse sentido, os casos da Suécia, Itália e Brasil, trazem alguns pontos que merecem reflexão.

A existência de um fenômeno externo parece necessária para romper o equilíbrio perverso da corrupção sistêmica. A Suécia buscou um novo equilíbrio motivada por uma guerra, que colocava em risco a própria continuidade do Estado. Itália e Brasil, por sua vez, não experimentaram um fenômeno externo. A luta do judiciário contra certos tipos de corrupção, como a prática do suborno, por exemplo, não pode ser caracterizada como um fenômeno externo, mas a particularidade da crise brasileira, no entanto, poderia ser vista como um fenômeno do gênero. A crise no Brasil combina: (i) uma crise de legitimidade das classes políticas, impulsionada pela Operação Lava Jato; (ii) uma grave crise econômica; e (iii) uma brutal desigualdade social. Essa combinação ameaça à ordem democrática e à estabilidade das instituições. É precisamente essa ameaça que pode ser considerada um fenômeno externo.

Restrições legais, existência de um poder judiciário independente e sistemas de controle adequados, baseados na teoria da agência, são elementos necessários para incentivar os agentes públicos a se alinharem aos padrões oficiais. A Suécia teve uma reforma do judiciário antecedendo o processo de superação da corrupção sistêmica. O País instituiu novas regras do jogo para o funcionamento do Estado, bem assim mecanismos de controle para interagir com interesses privados. A Itália e o Brasil, por sua vez, possuem sistemas de controle que se mostraram limitados no contexto de combate a corrupção sistêmica. Seus aparatos foram estabelecidos em períodos anteriores aos casos analisados e eles foram absorvidos pelas regras do jogo perversas.

A mudança deve ser endógena. Na Suécia, o pacto geral para mudar as regras do jogo envolveu os campos político e burocrático e permeou todas as áreas e instituições. Na Itália, uma parte do judiciário conduziu a acusação de um tipo específico de corrupção (suborno), típico da relação entre partidos políticos e o mercado. Nesse contexto, esses dois atores se protegeram e encontraram uma maneira de superar a crise, contribuindo para que não houvesse uma mudança profunda nas regras do jogo vigentes. A corrupção sistêmica, então, não foi superada. O Brasil apresenta atualmente um tipo de combate à corrupção similar ao da Itália.

A força coletiva também é uma condição estrutural relevante para superar a corrupção sistêmica. Na Suécia, a sociedade civil produziu um forte movimento para construir uma democracia liberal, eficiente e igualitária. Na Itália, a sociedade civil tinha um alto nível de ativismo político e confiança social. No entanto, não atuou como agente de pressão por mudanças na governança pública, uma vez que a sociedade italiana goza das mais altas taxas de bem-estar social do mundo, como expectativa de vida, escolaridade e bem-estar humano. Por fim, a estrutura social no Brasil é diferente da italiana e, desde a década de 1980, momento da reconstrução da democracia no país, a sociedade brasileira não tem conseguido avançar nos índices de bem-estar humano.

Considerando que a Operação Lava Jato ainda está em andamento, esse artigo busca alertar contra perspectivas sectárias de soluções para o problema da corrupção no Brasil. Um esforço conjunto de lideranças de todos os setores para um possível pacto que venha a mudar as atuais regras do jogo da corrupção pode ser uma estratégia de mudança. Não é possível dividir agentes em corruptos e não corruptos. Em vez disso, é essencial perceber a corrupção sistêmica como um problema para todos.

Uma nova agenda de pesquisa sobre finanças públicas, prestação de contas e controle da corrupção poderia ser aprimorada por meio da análise comparativa entre países, conforme feito aqui. Algumas questões relevantes relacionadas à cultura política dos países e à trajetória das políticas públicas, considerando as instituições, podem trazer novos insights para essas questões acadêmicas, que são tão relevantes para a sociedade e aos formuladores de políticas públicas. Futuros estudos devem ser realizados para ampliar a compreensão do tema em questão, avançando em pontos que não foram enfatizados aqui, como o papel das empresas privadas adotando (ou não) auto-regulação especialmente relacionada a corrupção, o tipo de ativismo contra a corrupção criado pelas organizações da sociedade civil e a percepção da população sobre os crimes éticos nas finanças públicas.

REFERENCES

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    Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística.
  • [Versão traduzida]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2018
  • Aceito
    09 Nov 2019
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