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Aspectos radiológicos da malformação arteriovenosa uterina: relato de caso de uma causa incomum e perigosa de sangramento vaginal anormal* * Trabalho realizado no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

Resumos

Malformações arteriovenosas uterinas podem causar sangramento genital anormal, representando risco de morte nas mulheres em idade reprodutiva. O ultrassom transvaginal com Doppler é um método não invasivo amplamente disponível e excelente ferramenta diagnóstica. Apresentamos o caso de paciente com história de doença trofoblástica gestacional e múltiplas curetagens que evoluiu com malformações arteriovenosas uterinas, apresentando remissão das lesões após tratamento com metotrexate.

Malformações arteriovenosas; Doppler; Sangramento genital anormal


Uterine arteriovenous malformations may cause life-threatening abnormal genital bleeding in women at childbearing age. Transvaginal Doppler ultrasonography is a widely available, noninvasive and excellent diagnostic method. The authors report the case of a patient with history of gestational trophoblastic disease and multiple curettage procedures who developed uterine arteriovenous malformations, with remission of the lesions after treatment with methotrexate.

Arteriovenous malformations; Doppler; Abnormal genital bleeding


INTRODUÇÃO

Malformação arteriovenosa (MAV) uterina é uma alteração vascular rara, com menos de 100 casos relatados na literatura. Trata-se de dilatação do espaço interviloso na intimidade miometrial que permite fluxo direto do sistema arterial para o venoso, sem participação capilar(1Belfort P, Braga A, Freire NS. Malformação arteriovenosa uterina após doença trofoblástica gestacional. Rev Bras Ginecol Obstet. 2006;28:112–21.). Representa cerca de 1–2% de todas as hemorragias genitais e intraperitoneais(2Cura M, Martinez N, Cura A, et al. Arteriovenous malformations of the uterus. Acta Radiol. 2009;50:823–9.).

As MAVs uterinas podem ser congênitas ou adquiridas. A forma congênita é rara, resultando do desenvolvimento embriológico anormal das estruturas vasculares primitivas, que determinam múltiplas comunicações anormais entre artérias e veias(3O'Brien P, Neyastani A, Buckley AR, et al. Uterine arteriovenous malformations: from diagnosis to treatment. J Ultrasound Med. 2006;25:1387–92; quiz 1394–5.). Contudo, a maioria é adquirida, com grande variedade de causas, incluindo doença trofoblástica gestacional (DTG), trauma pélvico, procedimentos cirúrgicos (cesariana, curetagem), carcinoma de colo ou endométrio, infecção e exposição ao dietilestilbestrol(4Timmerman D, Wauters J, Van Calenbergh S, et al. Color Doppler imaging is a valuable tool for the diagnosis and management of uterine vascular malformations. Ultrasound Obstet Gynecol. 2003;21: 570–7.,5Meilstrup JW, Fisher ME. Women's health case of the day. Uterine arteriovenous malformation. AJR Am J Roentgenol. 1994;162:1457–8.). A história clínica, aliada aos achados de imagem, são úteis na diferenciação entre causa congênita ou adquirida.

RELATO DO CASO

Paciente de 18 anos descobriu gestação e, após um mês, apresentou sangramento genital anormal, com ultrassonografia (US) sugestiva de DTG. Foi submetida a três curetagens, mantendo níveis altos de beta-HCG (34.818,00), com diagnóstico de DTG. A US endovaginal demonstrou fístulas arteriovenosas miometriais e pertuito tamponado da cavidade uterina até a serosa (sequela de perfuração em curetagem prévia).

Cinco meses após o início dos sintomas, a paciente ainda manteve beta-HCG elevado, sendo iniciado tratamento com metotrexate. Realizou nova US, com achados semelhantes aos do exame anterior (Figuras 1, 2 e 3). Foi realizada ressonância magnética (RM) da pelve, que confirmou a presença de fístulas arteriovenosas (Figura 4).

Figura 1.
US endovaginal em escala de cinza mostrando útero de volume aumentado com ecotextura miometrial heterogênea devido à presença de múltiplas imagens anecoicas, destacando-se a maior na parede lateral esquerda (seta).

Figura 2.
US endovaginal em escala de cinza demonstrando volumosa massa anecoica intramiometrial (A). O estudo com color Doppler evidenciou fluxo turbulento no interior da massa (B).

Figura 3.
US endovaginal com color Doppler demonstrando intensa hipervascularização miometrial com fluxo turbulento.

Figura 4.
RM de pelve, sequência T2 TSE, nos planos sagital (A,D), axial (B) e coronal (C). O exame mostra útero de volume aumentado, com múltiplas estruturas serpiginosas de aspecto vascular, caracterizadas por flow void (seta em A). Na região fúndica/parede lateral esquerda observa-se lesão arredondada com características semelhantes, que corresponde a volumosa fístula arteriovenosa (seta em B). Nota-se ainda proeminência dos vasos parametriais à direita (setas em C e D). V, cavidade vaginal distendida por gel.

Houve boa resposta à monoquimioterapia, com negativação do beta-HCG em sete meses. Uma US de controle após o tratamento mostrou útero com volume normal, pequena quantidade de líquido na cavidade uterina e hematossalpinge. As fístulas arteriovenosas não mais existiam.

Após três meses da negativação do beta-HCG, este retornou a níveis elevados. Iniciou-se poliquimioterapia, porém a paciente faleceu por complicações sépticas.

DISCUSSÃO

MAVs adquiridas são comunicações anormais entre ramos intramurais da artéria uterina e o plexo venoso miometrial, na intimidade do miométrio e endométrio. Podem ter suprimento sanguíneo de uma ou ambas as artérias uterinas, sem suprimento de artérias extrauterinas ou interposição de um plexo vascular. Causas adquiridas incluem curetagem e DTG, sendo que as MAVs persistem em 10–15% das DTGs em remissão por quimioterapia.

Estas lesões geralmente ocorrem na idade reprodutiva, com sintomas agudos ou crônicos(2Cura M, Martinez N, Cura A, et al. Arteriovenous malformations of the uterus. Acta Radiol. 2009;50:823–9.,6Huang MW, Muradali D, Thurston WA, et al. Uterine arteriovenous malformations: gray-scale and Doppler US features with MR imaging correlation. Radiology. 1998;206:115–23.). O mais comum é a menorragia ou menometrorragia. Outros incluem abortos espontâneos recorrentes, dor abdominal baixa, dispareunia e anemia secundária à perda sanguínea. Exame pélvico pode demonstrar massa pulsátil(2Cura M, Martinez N, Cura A, et al. Arteriovenous malformations of the uterus. Acta Radiol. 2009;50:823–9.,4Timmerman D, Wauters J, Van Calenbergh S, et al. Color Doppler imaging is a valuable tool for the diagnosis and management of uterine vascular malformations. Ultrasound Obstet Gynecol. 2003;21: 570–7.). Acredita-se que o sangramento ocorra quando os vasos da malformação são expostos pela descamação do endométrio durante a menstruação ou iatrogenicamente, durante dilatação e curetagem(6Huang MW, Muradali D, Thurston WA, et al. Uterine arteriovenous malformations: gray-scale and Doppler US features with MR imaging correlation. Radiology. 1998;206:115–23.).

Historicamente, o diagnóstico era feito após laparotomia. Subsequentemente, a angiografia tornou-se padrão ouro. Atualmente, o método mais utilizado é a US endovaginal com Doppler, reservando-se angiografia para casos submetidos a tratamento cirúrgico ou embolização terapêutica(4Timmerman D, Wauters J, Van Calenbergh S, et al. Color Doppler imaging is a valuable tool for the diagnosis and management of uterine vascular malformations. Ultrasound Obstet Gynecol. 2003;21: 570–7.).

Os achados à US incluem massa mal definida, heterogênea, com múltiplas estruturas hipoecoicas císticas ou tubularifomes de tamanhos variados, além de espessamento endometrial e miometrial focal ou assimétrico. O Doppler mostra shunt arteriovenoso com fluxo de baixa resistência e alta velocidade. A análise espectral pode predizer o grau de arterialização da lesão vascular e ajudar a definir o tratamento(3O'Brien P, Neyastani A, Buckley AR, et al. Uterine arteriovenous malformations: from diagnosis to treatment. J Ultrasound Med. 2006;25:1387–92; quiz 1394–5.).

Embora a US com Doppler possa sugerir fortemente presença de MAV, sua habilidade em determinar precisamente a extensão da lesão na pelve pode ser limitada. A RM é um excelente método para determinar extensão da doença e ajudar na confirmação diagnóstica por métodos não invasivos(6Huang MW, Muradali D, Thurston WA, et al. Uterine arteriovenous malformations: gray-scale and Doppler US features with MR imaging correlation. Radiology. 1998;206:115–23.). Achados incluem útero volumoso, massa mal definida, interrupção focal ou difusa da zona juncional, flow voids serpiginosos e vasos parametriais proeminentes(2Cura M, Martinez N, Cura A, et al. Arteriovenous malformations of the uterus. Acta Radiol. 2009;50:823–9.).

Diagnósticos diferenciais com achados ultrassonográficos semelhantes incluem DTG e outras lesões hipervasculares, como produtos retidos da concepção e placentação anormal(2Cura M, Martinez N, Cura A, et al. Arteriovenous malformations of the uterus. Acta Radiol. 2009;50:823–9.). Esta diferenciação é importante, uma vez que a curetagem não é terapêutica nos casos de MAV e pode exacerbar o sangramento(7Poli-Neto OB, Víbrio Neto JB, Nogueira AA, et al. Embolização arterial seletiva em fístula arteriovenosa uterina pós-traumática. Radiol Bras. 2004;37:303–5.). Pacientes estáveis podem ser tratadas conservadoramente, com regressão espontânea da lesão. Embolização terapêutica está indicada em pacientes anêmicas ou hemodinamicamente instáveis(2Cura M, Martinez N, Cura A, et al. Arteriovenous malformations of the uterus. Acta Radiol. 2009;50:823–9.,7Poli-Neto OB, Víbrio Neto JB, Nogueira AA, et al. Embolização arterial seletiva em fístula arteriovenosa uterina pós-traumática. Radiol Bras. 2004;37:303–5.).

MAVs uterinas são lesões incomuns, mas podem ser causa de sangramento genital grave(2Cura M, Martinez N, Cura A, et al. Arteriovenous malformations of the uterus. Acta Radiol. 2009;50:823–9.). Este diagnóstico deve ser considerado em pacientes em idade reprodutiva com história de instrumentação uterina ou outros fatores de risco (como DTG), que apresentam sangramento anormal. A US com Doppler é um método não invasivo e amplamente disponível, sendo essencial o conhecimento e diagnóstico desta entidade clínica, apesar de sua raridade.

REFERENCES

  • 1
    Belfort P, Braga A, Freire NS. Malformação arteriovenosa uterina após doença trofoblástica gestacional. Rev Bras Ginecol Obstet. 2006;28:112–21.
  • 2
    Cura M, Martinez N, Cura A, et al. Arteriovenous malformations of the uterus. Acta Radiol. 2009;50:823–9.
  • 3
    O'Brien P, Neyastani A, Buckley AR, et al. Uterine arteriovenous malformations: from diagnosis to treatment. J Ultrasound Med. 2006;25:1387–92; quiz 1394–5.
  • 4
    Timmerman D, Wauters J, Van Calenbergh S, et al. Color Doppler imaging is a valuable tool for the diagnosis and management of uterine vascular malformations. Ultrasound Obstet Gynecol. 2003;21: 570–7.
  • 5
    Meilstrup JW, Fisher ME. Women's health case of the day. Uterine arteriovenous malformation. AJR Am J Roentgenol. 1994;162:1457–8.
  • 6
    Huang MW, Muradali D, Thurston WA, et al. Uterine arteriovenous malformations: gray-scale and Doppler US features with MR imaging correlation. Radiology. 1998;206:115–23.
  • 7
    Poli-Neto OB, Víbrio Neto JB, Nogueira AA, et al. Embolização arterial seletiva em fístula arteriovenosa uterina pós-traumática. Radiol Bras. 2004;37:303–5.
Endereço para correspondência: Dra. Marcela Sales Farias. Rua Doutor Delmiro Coimbra, 80, cobertura 2A, Mata da Praia. Vitória, ES, Brasil, 29065-360. E-mail: lelasf@gmail.com *
Trabalho realizado no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2014

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2012
  • Aceito
    22 Jul 2013
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