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Súbita perda sensitiva e motora devido a hematoma retroperitoneal durante os períodos de pós-operatório: relato de caso O estudo foi conduzido no Department of Anesthesiology, Baskent University Istanbul Training and Medical Research Center, Istambul, Turquia. O estudo foi apresentado no 48° Congresso Nacional da Sociedade Turca de Anestesiologia e Reanimação, de 25 a 29 de outubro de 2014. Identificação do paciente: obtivemos o consentimento do paciente.

Resumo

Paciente do sexo masculino, 68 anos, hospitalizado para prostatectomia radical. O paciente não tinha história médica anormal, inclusive nem déficit neurológico, antes da operação. Antes da anestesia geral, um cateter peridural foi inserido no espaço intermédio L3-4 para analgesia no intra e pós-operatório. Após a cirurgia, que durou nove horas, o paciente desenvolveu confusão e paralisia flácida bilateral dos membros inferiores. Tomografia computadorizada de crânio e imagem de difusão por ressonância magnética não detectaram lesão. Os achados nas imagens de ressonância magnética torácica/lombar eram normais. A pressão intra-abdominal era de 25 mmHg e o ultrassom abdominal revelou progressão de inflamação/edema/hematoma na região perirrenal. O escore de Bromage voltou a 1 no pé direito na 24a hora e no pé esquerdo na 26a hora. A paraplegia desenvolvida nos pacientes após a infusão epidural pode ter sido causada por um efeito potencializado do anestésico local devido a hematoma retroperitoneal e/ou pressão intra-abdominal elevada.

PALAVRAS-CHAVE
Anestesia peridural; Paralisia flácida; Hematoma retroperitonial

Abstract

A 68 year-old male patient was hospitalized for radical prostatectomy. He had no abnormal medical history including neurological deficit before the operation. Prior to general anesthesia, an epidural catheter was inserted in the L3-4 interspace for intraoperative and postoperative analgesia. After surgery for nine hours, he developed confusion and flaccid paralysis of bilateral lower extremities occurred. No pathology was detected from cranial computed tomography and diffusion magnetic resonance imaging no pathology was detected. His thoracic/lumbar magnetic resonance imaging. Intraabdominal pressure was shown to be 25 mmHg, and abdominal ultrasonography revealed progression in the inflammation/edema/hematoma in the perirenal region. The Bromage score was back to 1 in the right foot on the 24th hour and in the left foot on the 26th hour. Paraplegia developed in patients after epidural infusion might be caused by potentiated local anesthetic effect due to retroperitoneal hematoma and/or elevated intra-abdominal pressure.

KEYWORDS
Epidural anesthesia; Flaccid paralysis; Retroperitoneal hematoma

Introdução

A taxa de complicações neurológicas após anestesia regional é de 4/10.000.11 Ortiz de la Tabla González R, Martínez Navas A. Neurologic complications of central neuraxial blocks. Rev Esp Anestesiol Reanim. 2011;58:434-443. As complicações neurológicas resultam de fatores como lesão direta do nervo relacionada à colocação da agulha ou cateter, neurotoxicidade relacionada ao medicamento, injeção de anestésico local no nervo e isquemia neural.22 Reynolds F. Damage to the conus medullaris following spinal anaesthesia. Anaesthesia. 2001;56:238-247.

3 Auroy Y, Narchi P, Messiah A, et al. Serious complications related to regional anesthesia: results of a prospective survey in France. Anesthesiology. 1997;87:479-486.

4 Myers RR, Heckman HM. Effects of local anesthesia on nerve blood flow: studies using lidocaine with and without epinephrine. Anesthesiology. 1989;71:757-62.
-55 Rigler ML, Drasner K, Krejcie TC, et al. Cauda equina syndrome after continuous spinal anesthesia. Anesth Analg. 1991;72:275-81. Diferentemente das causas comuns de complicações neurológicas, apresentamos neste relato o desenvolvimento de paraplegia devido a hematoma retroperitoneal em paciente submetido à cirurgia para câncer de próstata.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 68 anos, hospitalizado para prostatectomia radical, com pré-diagnóstico de câncer de próstata considerado com base em biópsia de ressecção transuretral feita devido à elevação assintomática do antígeno prostático específico. O paciente passou por cirurgia com escore de risco ASA I (American Society of Anesthesiologists - ASA). Ácido acetilsalicílico (150 mg.dia-1), que o paciente tomava, foi interrompido sete dias antes da cirurgia. A monitoração do paciente em sala de operação seguiu as normas da ASA; uma via intravenosa foi estabelecida e a reposição de líquidos foi iniciada. Após a infiltração cutânea e subcutânea da anestesia local no espaço intervertebral L3-L4 com 2 mL de solução de lidocaína a 2% com o paciente na posição sentada, um cateter epidural (18G) foi inserido com o método da perda de resistência. Após aspiração negativa e dose teste, bupivacaína a 0,5% (7 mL) foi administrada através do cateter peridural. Quinze minutos depois, a anestesia geral foi administrada ao paciente, no qual o nível de bloqueio sensitivo estava em T8. A pressão arterial do paciente pré-indução era de 130x70 mmHg, a frequência de pulso em 84 bpm e a saturação periférica de oxigênio (SpO2) de 100%; pré-oxigenação foi feita e a anestesia geral induzida com 200 mg de propofol e 40 mg de rocurônio. A anestesia foi mantida com isoflurano a 0,8-0,6% em mistura de oxigênio/ar (50/50%). Noventa minutos após a dose bolus peridural, bupivacaína a 0,25% foi administrada através do cateter peridural a uma taxa de infusão de 5 mL.h-1. Durante o período intraoperatório, duas unidades de concentrado de hemácias, 500 mL de coloides e 4.500 mL cristaloides foram administrados. O tempo total do procedimento cirúrgico foi de 3 horas (h). A infusão total de bupivacaína foi de 37,5 mg. O paciente acordou sem qualquer problema no fim da cirurgia. As quantidades totais de urina e perda sanguínea durante o curso da cirurgia foram 800 mL e 700 mL, respectivamente. O paciente foi mantido em sala de recuperação pós-anestesia por uma hora. Durante a transferência para a clínica, seu nível de hemoglobina era de 10 g.dL-1 e hematócrito de 28,8%. Na sala de monitoração pós-operatória, o paciente apresentou pressão arterial de 123 x 60 mmHg, SpO2 de 99%, frequência de pulso em 56 bpm, escore na escala VAS = 0 (Visual Analogue Scale - VAS) e escore de Aldrete = 10. O exame das funções motoras estava normal (escore de Bromage = 1).

Após a cirurgia, o paciente foi monitorado na clínica por meio de analgesia controlada pelo paciente. A analgesia no período pós-operatório foi feita com bupivacaína a 0,1% administrada via cateter peridural a uma taxa de 5 mL.h-1. Na 2a hora de pós-operatório, quando o paciente apresentou escore VAS = 6, a taxa de infusão foi aumentada para 8 mL.h-1. Aproximadamente, a pressão arterial era de 100 x 60 mmHg e a frequência de pulso em 80 bpm. Na sexta hora de pós-operatório, a taxa de infusão foi diminuída para 3 mL.h-1 porque o exame de suas funções motoras estava normal (escore de Bromage = 1) e escore VAS = 0.

Na nona hora de pós-operatório, uma equipe de emergência foi acionada porque o paciente desenvolveu confusão mental e perda de função motora. Quando a equipe de emergência chegou, o exame físico do paciente revelou confusão mental, agitação e discurso sem sentido. A pressão arterial era de 78 x 40 mmHg. No entanto, registramos escore de Bromage = 4. A infusão peridural foi imediatamente interrompida e, após a obtenção de amostra de sangue para hemograma completo, o paciente foi submetido a tomografia computadorizada de crânio e difusão por ressonância magnética (RM), com o pré-diagnóstico de afecção intracraniana e/ou hematoma epidural-isquemia; porém, nenhuma condição foi detectada (fig. 1). Ao exame físico do paciente, transferido para a unidade de terapia intensiva (UTI) após 15 horas de pós-operatório, o abdome estava rígido, com Bromage = 4 para os pés. Os resultados da RM torácica/lombar do paciente, cujo exame neurológico não revelou melhoria em 15 horas de pós-operatório, estavam normais (fig. 2). A pressão intra-abdominal (PIA) foi medida através do cateter urinário na UTI e mostrou 25 mmHg. Como o resultado do hemograma completo revelou concentração de hematócritos de 25%, o paciente foi submetido a ultrassonografia (US) de emergência. A US abdominal revelou aumento de densidade que poderia refletir inflamação maciça, edema ou hemorragia em regiões perirrenais bilaterais do retroperitônio e hematoma sob a bexiga (fig. 3). O escore de Bromage voltou a 1 no pé direito na 24a hora e no pé esquerdo na 26a hora. A distensão abdominal do paciente aumentou e não houve descarga de gases-fezes no terceiro dia de pós-operatório. O nível de creatinina aumentou de 0,9 mg.dL-1 para 2,3 mg.dL-1 e o de ureia (BUN) de 23 mg.dL-1 para 70 mg.dL-1. A radiografia do abdome feita em posição sentada no quarto dia de pós-operatório estava normal. Ultrassonografia abdominal revelou progressão de inflamação/edema/hematoma na região perirrenal. O tratamento foi iniciado para pielonefrite; antibioticoterapia foi providenciada. A temperatura corporal do paciente não diminuiu no sexto dia de monitoração no pós-operatório e a elevação das concentrações de BUN-creatinina persistiu de forma incremental. Cintilografia renal feita no sétimo dia de pós-operatório revelou vazamento bilateral de ambos os cálices renais. Tubos bilaterais de nefrostomia foram colocados pelo Departamento de Radiologia Intervencionista e o hematoma sob a bexiga foi aspirado. No oitavo dia de pós-operatório, as concentrações de ureia/creatinina diminuíram para 15/1,3 mg.dL-1. À medida que a passagem do agente de contraste desapareceu durante o acompanhamento, os tubos de nefrostomia foram removidos. O paciente recebeu alta hospitalar no 14° dia de pós-operatório.

Figura 1
Tomografia computadorizada de crânio e difusão por ressonância magnética.

Figura 2
Ressonância magnética torácica/lombar.

Figura 3
Ultrassonografia abdominal.

Discussão

No presente caso, o compartimento pélvico e/ou aumento da pressão intrapélvica devido ao hematoma no retroperitônio e à hipotensão poderia ter levado à diminuição da pressão de perfusão nos vasos peridurais e ao prolongamento da regressão do bloqueio peridural. No presente caso, primeiro pensamos no provável desenvolvimento de hematoma epidural no momento do evento e depois na toxicidade medicamentosa porque, clinicamente, tanto a perda súbita da função motora quanto a alteração da consciência desenvolveram-se simultaneamente. A paraplegia no período pós-operatório pode resultar de hematoma espinhal, injeção intramedular, toxicidade medicamentosa ou compressão ou perfusão prejudicada devido ao ar no espaço epidural.66 Tryba M. Epidural regional anesthesia and low molecular heparin: Pro. Anasthesiol Intensivmed Notfallmed Schmerzther. 1993;28:179-81.

7 de Medicis E, de Leon-Casasola OA. Reversible paraplegia associated with lumbar epidural analgesia and thoracic vertebral metastasis. Anesth Analg. 2001;92:1316-8.

8 Moen V, Dahlgren N, Irestedt L. Severe neurological complications after central neuraxial blockades in Sweden 1990-1999. Anesthesiology. 2004;101:950-9.
-99 Mayall MF, Calder I. Spinal cord injury following an attempted thoracic epidural. Anaesthesia. 1999;54:990-4. Além disso, diminuição na perfusão da medula espinhal em decorrência da cirurgia,1010 Short HD. Paraplegia associated with the use of oxidized cellulose in posterolateral thoracotomy incisions. Ann Thorac Surg. 1990;50:288-9.,1111 Mato M, Perez A, Otero J, et al. Paraplegia after left thoracotomy in a patient carrying an epidural catheter. Rev Esp Anestesiol Reanim. 2001;48:89-92. metástase vertebral preexistente,77 de Medicis E, de Leon-Casasola OA. Reversible paraplegia associated with lumbar epidural analgesia and thoracic vertebral metastasis. Anesth Analg. 2001;92:1316-8.,1212 Hirlekar G. Paraplegia after epidural analgesia associated with an extradural spinal tumor. Anaesthesia. 1980;35:363-4. hérnia de disco torácico1313 Matsuura JA, Makhoul RG, Posner MP, et al. Intradural herniation of a thoracic disc causing paraplegia coincident with epidural anesthesia. Anesth Analg. 1997;84:922-3. e síndrome da artéria espinhal anterior1414 Crystal Z, Katz Y. Postoperative epidural analgesia and possible transient anterior spinal artery syndrome. Pain Practice. 2001;1:372-3. também podem causar paraplegia. No presente caso, como o diagnóstico não pôde ser estabelecido via tomografia computadorizada, feita para o diagnóstico precoce, eliminamos o pré-diagnóstico de compressão/isquemia vascular epidural, de acordo com a RM torácica e lombar feita para descartar isquemia e hematoma.

Subsequentemente, consideramos uma toxicidade sistêmica devido à toxicidade medicamentosa. A toxicidade sistêmica devido aos anestésicos locais provavelmente não causaria paraplegia porque a infusão peridural foi diminuída pelo menos 10 h antes da descoberta de paraplegia. Além disso, os sintomas nervosos centrais, como confusão, foram causados pela hipotensão devido à hemorragia no pós-operatório.

O diagnóstico foi estabelecido após se medir a pressão intra-abdominal (25 mmHg) via cateter urinário e o ultrassom revelar hematoma retroperitoneal. Acreditamos que a mesma evidência para gravidez corrobora o mecanismo. O aumento da pressão intra-abdominal durante a gravidez aumenta o volume sanguíneo no plexo venoso epidural ao comprimir a veia cava inferior, diminui o volume de líquido cerebrospinal, diminui o volume epidural e aumenta a pressão nesse local e, consequentemente, diminui em 30% a necessidade de uma dose epidural.1515 Redai I. Physiology of pregnancy. In: Akhabahian A, Ciupta R, editors. The anesthesia guide. USA: McGraw-Hill Education; 2013. p. 757-86. No presente caso, acreditamos que o hematoma retroperitoneal tenha ocorrido após a prostatectomia radical ter causado bloqueio sensitivo/motor ao aumentar a pressão intra-abdominal e o volume de sangue no plexo venoso epidural, o que diminui o volume e aumenta a pressão epidural e, assim, diminui a necessidade de dose epidural.

Com o presente relato, demonstramos que o desenvolvimento de paraplegia em pacientes pós-infusão epidural pode ser causado por um efeito potencializado do anestésico local devido a hematoma retroperitoneal e/ou pressão intra-abdominal elevada. A intervenção precoce evita o desenvolvimento de danos neurológicos irreversíveis.

  • O estudo foi conduzido no Department of Anesthesiology, Baskent University Istanbul Training and Medical Research Center, Istambul, Turquia. O estudo foi apresentado no 48° Congresso Nacional da Sociedade Turca de Anestesiologia e Reanimação, de 25 a 29 de outubro de 2014. Identificação do paciente: obtivemos o consentimento do paciente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2015
  • Aceito
    10 Fev 2016
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