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Anestesia e doença de Alzheimer – Percepções atuais

Resumo

Justificativa e objetivos:

Tem sido especulado que o uso de agentes anestésicos possa ser um fator de risco para o desenvolvimento de doença de Alzheimer. O objetivo desta revisão é descrever e discutir dados pré-clínicos e clínicos relacionados com a anestesia e essa doença.

Conteúdo:

A doença de Alzheimer afeta cerca de 5% da população com mais de 65 anos, a idade é o principal fator de risco e está associada a uma elevada morbidade. A evidência atual questiona uma possível associação entre anestesia, cirurgia e efeitos cognitivos em longo prazo, o que inclui a doença de Alzheimer. Embora os dados obtidos em alguns dos estudos animais sugiram uma associação entre anestesia e neurotoxicidade, esse elo permanece inconclusivo em humanos. Fizemos uma revisão da literatura em que foram selecionados artigos científicos na base de dados Pubmed, publicados entre 2005 e 2016 (um de 1998 pela relevância histórica), em inglês, que abordam a eventual relação entre anestesia e doença de Alzheimer. Foram eleitos 49 artigos.

Conclusão:

A possível relação entre agentes anestésicos, disfunção cognitiva e doença de Alzheimer permanece por esclarecer. Serão necessários estudos de coorte prospetivos ou ensaios clínicos randomizados para melhor compreensão dessa associação.

PALAVRAS-CHAVE
Doença de Alzheimer; Anestesia geral; Disfunção cognitiva pós-operatória

Abstract

Background and objectives:

It has been speculated that the use of anesthetic agents may be a risk factor for the development of Alzheimer disease. The objective of this review is to describe and discuss pre-clinical and clinical data related to anesthesia and this disease.

Content:

Alzheimer disease affects about 5% of the population over 65 years old, with age being the main risk factor and being associated with a high morbidity. Current evidence questions a possible association between anesthesia, surgery, and long-term cognitive effects, including Alzheimer disease. Although data from some animal studies suggest an association between anesthesia and neurotoxicity, this link remains inconclusive in humans. We performed a review of the literature in which we selected scientific articles in the PubMed database, published between 2005 and 2016 (one article from 1998 due to its historical relevance), in English, which address the possible relationship between anesthesia and Alzheimer disease. 49 articles were selected.

Conclusion:

The possible relationship between anesthetic agents, cognitive dysfunction, and Alzheimer disease remains to be clarified. Prospective cohort studies or randomized clinical trials for a better understanding of this association will be required.

KEYWORDS
Alzheimer disease; General anesthesia; Postoperative cognitive dysfunction

Introdução

A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência da atualidade, estima-se que atinja 26,6 milhões de pessoas em todo o mundo,11 Brookmeyer R, Johnson E, Ziegler-Graham K, et al. Forecasting the global burden of Alzheimer's disease. Alzheimers Dement. 2007;3:186-91. cerca de 5% da população com mais de 65 anos.22 Hebert LE, Bienias JL, Aggarwal NT, et al. Change in risk of Alzheimer disease over time. Neurology. 2010;75:786-91. A descoberta de uma possível deterioração cognitiva como resultado de um evento anestésico/cirúrgico conduziu à investigação desse fenômeno, motivada também pela maior preocupação e procura de informação por parte dos doentes e das suas famílias.33 Thaler A, Siry R, Cai L, et al. Memory loss, Alzheimer's disease and general anesthesia: a preoperative concern. J Anesth Clin Res. 2012:3.

A disfunção cognitiva pós-operatória é uma síndrome perioperatória bem reconhecida, consequência da anestesia e cirurgia cuja causa exata permanece por esclarecer.44 Riedel B, Browne K, Silbert B. Cerebral protection: inflammation, endothelial dysfunction, and postoperative cognitive dysfunction. Curr Opin Anaesthesiol. 2014;27:89-97. De que forma a disfunção cognitiva pós-operatória e a doença de Alzheimer podem estar ligadas permanece uma questão em estudo. A bioquímica subjacente ao processo de demência, o estudo da relação entre doença de Alzheimer e disfunção cognitiva pós-operatória enquanto provável espectro de uma mesma doença e a relação de ambas com os agentes anestésicos motivam a exploração dessa área.

Fizemos uma pesquisa na Pubmed com as palavras “Alzheimer disease”, “Anesthesia” e “Postoperative Cognitive Dysfunction”, foram incluídos artigos científicos publicados entre 2005 e 2016 (um de 1998 pela relevância histórica), em inglês, que abordam a eventual relação entre anestesia e doença de Alzheimer. De acordo com os critérios de inclusão e pela sua relevância foram eleitos 49 artigos.

Esta revisão visa a sumarizar a definição e a patofisiologia da doença de Alzheimer, bem como discutir o conhecimento científico que relaciona a exposição a agentes anestésicos com o desenvolvimento dessa demência.

A doença de Alzheimer

É uma demência progressiva que conduz ao declínio das capacidades cognitivas. A grande maioria dos casos de doença de Alzheimer é esporádica, ou de início tardio, e presume-se que seja uma doença multifatorial resultante da interação entre fatores genéticos e ambientais.55 Daviglus ML, Bell CC, Berrettini W, et al. National Institutes of Health State-of-the-Science Conference statement: preventing alzheimer disease and cognitive decline. Ann Intern Med. 2010;153:176-81. O principal fator de risco é a idade, embora outros, como sexo feminino, baixo nível educacional, história familiar e mutações genéticas específicas (genótipo da apolipoproteína E),66 Chen CW, Lin CC, Chen KB, et al. Increased risk of dementia in people with previous exposure to general anesthesia: a nationwide population-based case–control study. Alzheimers Dement. 2014;10:196-204.,77 Papon MA, Whittington RA, El-Khoury NB, et al. Alzheimer's disease and anesthesia. Front Neurosci. 2011;4:272. também possam contribuir. Estão descritos vários fatores de risco modificáveis, como doenças cardiovasculares, antecedentes de traumatismo crânio-encefálico,66 Chen CW, Lin CC, Chen KB, et al. Increased risk of dementia in people with previous exposure to general anesthesia: a nationwide population-based case–control study. Alzheimers Dement. 2014;10:196-204. diabetes,88 Cheng G, Huang C, Deng H, et al. Diabetes as a risk factor for dementia and mild cognitive impairment: a meta-analysis of longitudinal studies. Intern Med J. 2012;42:484-91. hipertensão e dislipidemia,99 Craft S. The role of metabolic disorders in Alzheimer disease and vascular dementia: two roads converged. Arch Neurol. 2009;66:300-5. A associação entre exposição ambiental a fatores de risco modificáveis e doença de Alzheimer providenciou uma analogia potencial para o eventual papel da anestesia geral na patogênese dessa doença. Nessa linha de pensamento, a redução desses fatores de risco modificáveis diminuiria a incidência da demência.

Patofisiologia da doença de Alzheimer

A doença de Alzheimer caracteriza-se por neurodegeneração severa, neuroinflamação e perda progressiva das aptidões cognitivas.1010 Castellani RJ, Rolston RK, Smith MA. Alzheimer disease. Dis Mon. 2010;56:484-546. Os critérios de diagnóstico para demência divulgados pela Associação Nacional Americana do Envelhecimento e Associação do Alzheimer definem demência como o desenvolvimento de sintomas cognitivos ou comportamentais associados ao declínio do nível prévio do desempenho, envolvendo vários domínios cognitivos que não possam ser explicados por delírio ou distúrbios psiquiátricos.1111 McKhann GM, Knopman DS, Chertkow H, et al. The diagnosis of dementia due to Alzheimer's disease: recommendations from the National Institute on Aging-Alzheimer's Association workgroups on diagnostic guidelines for Alzheimer's disease. Alzheimers Dement. 2011;7:263-9. Recentemente, as diretrizes incluíram também biomarcadores como critérios de diagnóstico, tais como: níveis diminuídos de proteína amiloide (por oligomerização) associados a aumento da proteína tau total ou tau fosforilada no líquido cefalorraquidiano (LCR).1212 Dubois B, Feldman HH, Jacova C, et al. Advancing research diagnostic criteria for Alzheimer's disease: the IWG-2 criteria. Lancet Neurol. 2014;13:614-29. Além disso, a razão entre a proteína tau total e a proteína amiloide pode também ser usada como adjunto no diagnóstico de doença de Alzheimer.1313 Lu H, Zhu XC, Jiang T, et al. Body fluid biomarkers in Alzheimer's disease. Ann Transl Med. 2015;3:70.

O distúrbio principal envolvido na sua patofisiologia é o folding proteico anormal, tem como características neuropatológicas marcantes: 1) A acumulação de placas senis formadas por agregados de proteína amiloide extracelular; e 2) A formação de emaranhados neurofibrilares intraneuronais de proteína tau hiperfosforilada.1414 Querfurth HW, LaFerla FM. Alzheimer's disease. N Engl J Med. 2010;362:329-44.,1515 Serrano-Pozo A, Frosch MP, Masliah E, et al. Neuropathological alterations in Alzheimer disease. Cold Spring Harb Perspect Med. 2011;1:a006189. Esses distúrbios induzem estresse oxidativo, inflamação e disfunção neuronal com eventual morte celular.1414 Querfurth HW, LaFerla FM. Alzheimer's disease. N Engl J Med. 2010;362:329-44. A perda da hemóstase da fosforilação da proteína tau pode resultar da desregulação das cínases e das fosfatases envolvidas nesse processo. Fatores ambientais também podem contribuir para alterações da transdução de sinal, que conduzam à perda desse equilíbrio e culminam na degeneração neurofibrilar e morte celular.1616 Whittington RA, Bretteville A, Dickler MF, et al. Anesthesia and tau pathology. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. 2013;47:147-55. A hipótese amiloide reconhece que a desregulação entre a produção e a clearance de proteína amiloide conduz à sua acumulação.1717 Xie Z, Xu Z. General anesthetics and beta-amyloid protein. Prog Neuropsychopharmacol Biol Psychiatry. 2013;47:140-6. Essa hipótese contempla ainda que algumas formas do peptídeo amiloide são neurotóxicas e contribuem para a fosforilação anormal da proteína tau. Em última instância, essa cascata culmina em dano mitocondrial, desregulação do cálcio, apoptose e neurodegeneração.1818 Hussain M, Berger M, Eckenhoff RG, et al. General anesthetic and the risk of dementia in elderly patients: current insights. Clin Interv Aging. 2014;9:1619-28.

Estudos de biomarcadores mostram que as concentrações de proteína amiloide no LCR estão inversamente relacionadas com o grau de doença de Alzheimer.1919 Fagan AM, Mintun MA, Mach RH, et al. Inverse relation between in vivo amyloid imaging load and cerebrospinal fluid Abeta42 in humans. Ann Neurol. 2006;59:512-9. No entanto, quer as placas amiloides quer a diminuição da proteína amiloide podem ser encontradas em idosos sem clínica de disfunção cognitiva, pelo que a amiloidopatia por si só parece ser insuficiente para o desenvolvimento de sintomas de demência.2020 Aizenstein HJ, Nebes RD, Saxton JA, et al. Frequent amyloid deposition without significant cognitive impairment among the elderly. Arch Neurol. 2008;65:1509-17.

Alguns neurotransmissores parecem ter um papel no contexto da demência de Alzheimer. A disfunção colinérgica parece estar envolvida nos sintomas clínicos de demência. A doença de Alzheimer aparenta estar associada à perda de neurônios colinérgicos uma vez que a acetilcolina modula funções cerebrais superiores como atenção, aprendizagem e memória. Dessa forma, o grau de disfunção cognitiva pode ser associado ao déficit colinérgico presente, o que levanta a questão do potencial papel dos inibidores da acetilcolinesterase.1818 Hussain M, Berger M, Eckenhoff RG, et al. General anesthetic and the risk of dementia in elderly patients: current insights. Clin Interv Aging. 2014;9:1619-28.

A tentativa de relacionar exposições ambientais, tais como a anestesiaa, ao desenvolvimento de doença de Alzheimer, deve ter por base evidência entre exposição e processos fisiopatológicos subjacentes à doença. Além disso, a cirurgia, por si só, é considerada fomentadora de resposta de estresse inflamatório, podendo promover a patogênese da doença.2121 Tang JX, Baranov D, Hammond M, et al. Human Alzheimer and inflammation biomarkers after anesthesia and surgery. Anesthesiology. 2011;115:727-32.

Modelos animais

Vários estudos geraram evidência no sentido de que os agentes anestésicos pudessem contribuir ou mesmo exacerbar doenças neurodegenerativas, tais como a doença de Alzheimer.2222 Baranov D, Bickler PE, Crosby GJ, et al. First International Workshop on Anesthetics and Alzheimer's Disease. Consensus statement: First International Workshop on Anesthetics and Alzheimer's Disease. Anesth Analg. 2009;108:1627-30.,2323 Liu Y, Pan N, Ma Y, et al. Inhaled sevoflurane may promote progression of amnestic mild cognitive impairment: a prospective, randomized parallel-group study. Am J Med Sci. 2013;345:355-60. Enquanto alguns estudos demonstraram alterações nos níveis de citosinas e proteína tau do líquido LCR humano posteriormente a anestesia/cirurgia, coincidentes com os níveis encontrados em pacientes com essa demência,2121 Tang JX, Baranov D, Hammond M, et al. Human Alzheimer and inflammation biomarkers after anesthesia and surgery. Anesthesiology. 2011;115:727-32. outros não encontraram contributo significativo da anestesia e cirurgia no seu desenvolvimento.2424 Sprung J, Jankowski CJ, Roberts RO, et al. Anesthesia and incident dementia: a population-based, nested, case–control study. Mayo Clin Proc. 2013;88:552-61.,2525 Avidan MS, Searleman AC, Storandt M, et al. Long-term cognitive decline in older subjects was not attributable to noncardiac surgery or major illness. Anesthesiology. 2009;111:964-70.

O uso de modelos animais permite a exploração dos mecanismos através dos quais os anestésicos possam estar envolvidos na patogenia da doença de Alzheimer. Um estudo piloto nesta área, in vitro – que usou um modelo de células livres – demonstrou que anestésicos voláteis como o halotano, o isoflurano e o sevoflurano poderiam potenciar a oligomerização e a citotoxidade dos peptídeos amiloides relacionados com a doença de Alzheimer.2626 Eckenhoff RG, Johansson JS, Wei H, et al. Inhaled anesthetic enhancement of amyloid-beta oligomerization and cytotoxicity. Anesthesiology. 2004;101:703-9. De referir que a oligomerização da proteína amiloide com halotano foi dose-dependente e que as doses usadas foram elevadas (~4 MAC). O efeito permaneceu horas após a retirada do anestésico volátil. Estudos in vitro e em animais demonstraram que o uso de isoflurano a 1,4% e sevoflurano a 2,5% durante duas horas potencia o processamento da proteína precursora amiloide em proteína amiloide, aumentando os seus níveis cerebrais em ratinhos wild type (com cinco meses), o que conduz à ativação da caspase-3 e causa apoptose neuronal.2727 Xie Z, Culley DJ, Dong Y, et al. The common inhalation anesthetic isoflurane induces caspase activation and increases amyloid beta-protein level in vivo. Ann Neurol. 2008;64:618-27.,2828 Dong Y, Zhang G, Zhang B, et al. The common inhalational anesthetic sevoflurane induces apoptosis and increases beta-amyloid protein levels. Arch Neurol. 2009;66:620-31. Um estudo recente reportou que a anestesia com sevoflurano a 2,1% durante seis horas pode induzir a ativação da caspase-3 e o aumento dos níveis de proteína amiloide no cérebro de ratinhos naive com seis dias e ratinhos transgênicos para a doença de Alzheimer (mutação da proteína precursora amiloide), esses últimos podem ser mais vulneráveis à neurotoxicidade.2929 Lu Y, Wu X, Dong Y, et al. Anesthetic sevoflurane causes neurotoxicity differently in neonatal naive and Alzheimer disease transgenic mice. Anesthesiology. 2010;112:1404-16. Demonstrou, assim, que certos modelos de ratinho têm um risco aumentado de desenvolvimento de doença de Alzheimer.

Em 2008 um grupo de trabalho expôs ratinhos transgênicos (mutação para expressão da proteína precursora amiloide humana) de 12 meses e ratinhos não transgênicos da mesma ninhada ao isoflurano e ao halotano durante 120 minutos por dia durante cinco dias. Concluiu que no rato transgênico houve sobrecarga de placas de proteína amiloide após uso de halotano e agregação de proteína tau após exposição à isoflurano.3030 Bianchi SL, Tran T, Liu C, et al. Brain and behavior changes in 12-month-old Tg2576 and nontransgenic mice exposed to anesthetics. Neurobiol Aging. 2008;29:1002-10. No entanto, não foi encontrada alteração no desempenho cognitivo no ratinho mutante, não foi encontrado efeito dos anestésicos voláteis sobre a apoptose quer no ratinho transgênico quer no controle e não se verificou dissociação entre a geração de placas amiloide (halotano – ratinho mutante) versus declínio do desempenho cognitivo (isoflurano – ratinho controle). Mais tarde, com o mesmo modelo de ratinhos, os animais foram expostos a isoflurano 20-30 minutos duas vezes por semana durante três meses e constatou-se que apresentavam diminuição comportamental e aumento da mortalidade. Respostas similares à doença de Alzheimer foram também identificadas no ratinho transgênico, como número aumentado de células apoptóticas, reduzida autofagia, redução da astroglia e aumento da resposta da microglia, bem como aumento dos agregados de proteína amiloide.3131 Perucho J, Rubio I, Casarejos MJ, et al. Anesthesia with isoflurane increases amyloid pathology in mice models of Alzheimer's disease. J Alzheimers Dis. 2010;19:1245-57.

Em 2011, um estudo com modelos de ratinhos triplamente mutados para a doença de Alzheimer expôs um grupo a anestesia geral com halotano ou isoflurano cinco horas por semana durante quatro semanas (a três diferentes idades: dois, quatro e seis meses) e um grupo sem exposição aos anestésicos inalatórios.3232 Tang JX, Mardini F, Caltagarone BM, et al. Anesthesia in presymptomatic Alzheimer's disease: a study using the triple-transgenic mouse model. Alzheimers Dement. 2011;7,521-31.e521. Não foram encontradas diferenças no declínio cognitivo dos ratinhos mutados expostos ao anestésico volátil quando comparados com os ratinhos mutados que não foram expostos. Apesar de os níveis de proteína tau fosforilada no hipocampo estarem aumentados dois meses após a cirurgia, não foram encontradas alterações amiloides, das caspases, da microglia ou da sinaptofisina. Esses resultados pareceram indicar que a exposição a esses agentes inalatórios durante o período pré-sintomático da doença de Alzheimer não se relaciona com o acelerar do declínio cognitivo.

Agentes anestésicos intravenosos, em concreto o propofol, também estão associados ao aumento da proteína tau no hipocampo do rato, e tal efeito parece dever-se à ação direta do fármaco, e não a efeitos fisiológicos secundários (como hipotermia).3333 Whittington RA, Virag L, Marcouiller F, et al. Propofol directly increases tau phosphorylation. PLOS ONE. 2011;6:e16648.

Perante a eventual ligação entre cirurgia e/ou anestesia e alterações patofisiológicas relacionadas com a doença de Alzheimer, uma das maiores dificuldades nessa avaliação é a separação entre a exposição aos anestésicos e os efeitos da cirurgia.

A existência de declínio cognitivo após cirurgia está razoavelmente bem estabelecida e há muita literatura de estudos em animais que examina essa interação. O declínio cognitivo pós-cirúrgico em ratinhos envelhecidos foi associado à microgliose, produção de proteína amiloide e hiperfosforilação da proteína tau no hipocampo.3434 Terrando N, Eriksson LI, Ryu JK, et al. Resolving postoperative neuroinflammation and cognitive decline. Ann Neurol. 2011;70:986-95. O papel da neuroinflamação na disfunção cognitiva pós-cirúrgica e relação com a doença de Alzheimer também tem sido estudado. Em ratinhos jovens wild type a cirurgia, e não a anestesia, causou neuroinflamação e perdas cognitivas agudas e tanto a microgliose como os déficit cognitivos foram reduzidos por agentes anti-inflamatórios.3535 Wan Y, Xu J, Ma D, et al. Postoperative impairment of cognitive function in rats: a possible role for cytokine-mediated inflammation in the hippocampus. Anesthesiology. 2007;106:436-43.3737 Cibelli M, Fidalgo AR, Terrando N, et al. Role of interleukin-1beta in postoperative cognitive dysfunction. Ann Neurol. 2010;68:360-8. A cirurgia conduz à formação de fator de necrose tumoral-α, que provoca lesão da barreira hematoencefálica e permite a infiltração de macrófagos inflamatórios, sobretudo no hipocampo.3434 Terrando N, Eriksson LI, Ryu JK, et al. Resolving postoperative neuroinflammation and cognitive decline. Ann Neurol. 2011;70:986-95. Ratinhos submetidos a cirurgia, quando comparados com ratinhos que apenas foram anestesiados sem sofrer qualquer intervenção cirúrgica, apresentaram níveis aumentados de interleucina-1β e interleucina-6.3737 Cibelli M, Fidalgo AR, Terrando N, et al. Role of interleukin-1beta in postoperative cognitive dysfunction. Ann Neurol. 2010;68:360-8.

Deve ser mencionado que os estudos animais não são capazes de separar totalmente a anestesia da cirurgia, porque cada procedimento cirúrgico é sempre feito com um agente anestésico, e tem-se tornado mais evidente que os anestésicos são capazes de modular a resposta imune/inflamatória.

A ciência e a investigação científica nessa aérea não estagnaram e já em 2008 surgiu um estudo que veio apoiar as baixas concentrações de amiloide enquanto substância com potencial papel de modulação da neurotransmissão,3838 Puzzo D, Privitera L, Leznik E, et al. Picomolar amyloid-beta positively modulates synaptic plasticity and memory in hippocampus. J Neurosci. 2008;28:14537-45. o que veio contrariar a atitude culpabilizadora da comunidade científica em geral.

Evidência clínica

Estudos prospectivos

Perante a evidência de que a anestesia provoca diminuição das capacidades cognitivas em indivíduos suscetíveis após cirurgia eletiva, sugere-se que os mecanismos patológicos subjacentes à disfunção cognitiva pós-operatória mimetizem os da doença de Alzheimer.3939 Fodale V, Santamaria LB, Schifilliti D, et al. Anaesthetics and postoperative cognitive dysfunction: a pathological mechanism mimicking Alzheimer's disease. Anaesthesia. 2010;65:388-95.

O primeiro grande estudo internacional de disfunção cognitiva pós-operatória (o estudo ISPOCD) reportava uma incidência de 25% em pacientes submetidos a cirurgia não cardíaca após uma semana e 9,9% após três meses.4040 Moller JT, Cluitmans P, Rasmussen LS, et al. Long-term postoperative cognitive dysfunction in the elderly ISPOCD1 study. International Study of Post-Operative Cognitive Dysfunction. Lancet. 1998;351:857-61. O número de estudos prospectivos que exploram a associação entre exposição a agentes anestésicos e doença de Alzheimer é limitado. A partir do estudo original ISPOCD, 701 pacientes foram seguidos por 8,5 anos. Nesse estudo os doentes que desenvolveram disfunção cognitiva pós-operatória apresentavam maior mortalidade e maior risco de dependência social, mas não é feita qualquer referência à incidência de demência.4141 Steinmetz J, Christensen KB, Lund T, et al. Long-term consequences of postoperative cognitive dysfunction. Anesthesiology. 2009;110:548-55. O mesmo autor, numa avaliação separada, seguiu 686 indivíduos envolvidos no estudo ISPOCD desde 1994-1996 e 1998-2000 até 1 de julho de 2011, através do registro nacional de doentes dinamarquês e do registro central de pesquisa psiquiátrica, desses apenas 32 desenvolveram demência e não foi encontrada uma relação estatisticamente significativa entre disfunção cognitiva pós-operatória e demência.4242 Steinmetz J, Siersma V, Kessing LV, et al. Is postoperative cognitive dysfunction a risk factor for dementia? A cohort follow-up study. Br J Anaesth. 2013;(Suppl. 1):i92-i97. Recentemente foi conduzido um estudo prospectivo randomizado com um grupo de 180 pacientes diagnosticados com diminuição cognitiva amnéstica, um subtipo de disfunção cognitiva com predomínio de dificuldade de memória, com o objetivo de avaliar o efeito da anestesia na progressão dessa perturbação para doença de Alzheimer com um período de seguimento de dois anos.2323 Liu Y, Pan N, Ma Y, et al. Inhaled sevoflurane may promote progression of amnestic mild cognitive impairment: a prospective, randomized parallel-group study. Am J Med Sci. 2013;345:355-60. Sessenta pacientes de ambulatório com o mesmo diagnóstico foram usados como grupo de controle, enquanto os restantes foram submetidos a cirurgia lombar espinhal e randomizados para receber sevoflurano, propofol ou anestesia epidural com lidocaína. Através de testes neuropsicológicos e avaliação de níveis de peptídeo amiloide, proteína tau total e tau fosforilada, os investigadores concluíram que o número de casos de doença de Alzheimer emergentes não diferiu entre os grupos. O número de casos de disfunção cognitiva amnéstica progressiva foi maior no grupo do sevoflurano do que no grupo controle (p = 0,001), mas os pacientes que receberam anestesia epidural com lidocaína ou anestesia endovenosa com propofol apresentaram a mesma taxa de progressão que o grupo controle. A taxa de progressão para demência foi mais rápida no grupo que recebeu sevoflurano, embora esse valor não fosse estatisticamente significativo.2323 Liu Y, Pan N, Ma Y, et al. Inhaled sevoflurane may promote progression of amnestic mild cognitive impairment: a prospective, randomized parallel-group study. Am J Med Sci. 2013;345:355-60.

Estudos retrospectivos observacionais

Uma grande parte da literatura que pretende examinar a relação entre exposições prévias à anestesia/cirurgia e o risco subsequente de desenvolvimento de demência tem recorrido a bases de dados e técnicas epidemiológicas (observacionais) para o efeito. De notar que é um desafio examinar de forma independente os efeitos da anestesia e da cirurgia (tabela 1).

Tabela 1
Estudos relevantes que evidenciaram a relação entre demência e cirurgia/anestesia

Estudos de coorte

Em 2005, foi feito um estudo de coorte retrospectivo, com o objetivo de avaliar o risco de desenvolvimento de doença de Alzheimer após cirurgia de revascularização miocárdica sob anestesia geral comparativamente com outro grupo submetido a angioplastia percutânea transluminal sob sedação (sem anestesia geral).4343 Lee TA, Wolozin B, Weiss KB, et al. Assessment of the emergence of Alzheimer's disease following coronary artery bypass graft surgery or percutaneous transluminal coronary angioplasty. J Alzheimers Dis. 2005;7:319-24. Foram selecionados 5.216 e 3.954 pacientes, respectivamente, através da base de dados do sistema de saúde de veteranos. A população em estudo incluía todos os pacientes com 55 anos ou mais, sem diagnóstico prévio de demência, submetidos a cirurgia de revascularização coronária ou angioplastia percutânea transluminal entre outubro de 1996 e setembro de 1997. Os pacientes foram acompanhados desde a data da intervenção a que foram submetidos até setembro de 2002, até ao diagnóstico de doença de Alzheimer ou até a morte. Os resultados mostraram que 119 pacientes (78 submetidos a revascularização miocárdica e 41 a angioplastia percutânea transluminal) desenvolveram doença de Alzheimer durante o período de seguimento. O risco relativo de doença de Alzheimer foi comparado em ambos os grupos. No modelo final ajustado, a cirurgia de revascularização do miocárdio com anestesia geral estava associada a 1,71 vez maior risco de desenvolver doença de Alzheimer quando comparada com a angioplastia percutânea sem anestesia geral (razão de risco = 1,71; IC 95% entre 1,02-2,87; p = 0,04).

Em 2009, um estudo de coorte retrospectivo identificou três grupos de pacientes selecionados através do Centro de Pesquisa para a Doença de Alzheimer da Universidade de Washington: 1) Sem antecedentes de cirurgia cardíaca; 2) Sem antecedentes de doença; 3) Grupo controle. Desse modo foi feito o seguimento em longo prazo da função cognitiva antes e após cirurgia e doença.2525 Avidan MS, Searleman AC, Storandt M, et al. Long-term cognitive decline in older subjects was not attributable to noncardiac surgery or major illness. Anesthesiology. 2009;111:964-70. Esses pacientes eram submetidos a exames anuais e na altura do recrutamento dos 575 selecionados 214 não apresentavam demência, enquanto 361 apresentavam demência ligeira ou muito ligeira. Verificaram que no grupo de pacientes sem demência houve progressão para demência clínica, ao longo do estudo, de forma idêntica nos três grupos, sendo que os mais velhos tinham maior probabilidade de progressão (p < 0,0001). No grupo de doentes com demência ad initium antecipou-se que a disfunção cognitiva pós-operatória se pudesse manifestar como um aumento na taxa de declínio cognitivo, no entanto não foram encontradas diferenças nas trajetórias cognitivas entre os grupos.

Procedimentos cirúrgicos que possam ser feitos sob anestesia geral ou regional são possíveis fontes de comparação dos efeitos da anestesia geral no desenvolvimento de doença de Alzheimer. Nesse sentido, em 2010, foi elaborado um estudo de coorte retrospectivo com dois grupos de pacientes cirúrgicos (cirurgia prostática e cirurgia de hérnia), com o objetivo de comparar o risco de desenvolvimento de doença de Alzheimer após exposição à anestesia geral e anestesia regional.4444 Vanderweyde T, Bednar MM, Forman SA, et al. Iatrogenic risk factors for Alzheimer's disease: surgery and anesthesia. J Alzheimers Dis. 2010;22(Suppl. 3):91-104. No estudo das hérnias foram selecionados 3.769 doentes, dos quais 2.658 (70,5%) foram expostos a anestesia geral e 1.111 (29,5%) foram intervencionados sob anestesia regional. A razão de risco ajustada para idade, duração do internamento, o número de procedimentos prévios e número de diagnósticos no momento da admissão mostraram não existir uma associação entre anestesia geral e risco aumentado de desenvolvimento de doença de Alzheimer comparativamente à anestesia regional (razão de risco = 0,65; IC 95% 0,49-0,85). No estudo da próstata foram incluídos 6.511 pacientes, 2.820 (43,3%) foram expostos a anestesia geral e 3.691 (56,7%) a anestesia regional. Similarmente ao encontrado no estudo das hérnias, o risco de desenvolver doença de Alzheimer em indivíduos submetidos a anestesia geral não se encontrava elevado comparativamente com a anestesia regional (razão de risco = 0,71; IC 95% 0,49-1,04).

Metanálises e estudos de caso-controle

Em 2011 foi publicada uma metanálise de estudos de caso-controle que avaliava a associação entre exposição à anestesia geral e o desenvolvimento de doença de Alzheimer.4545 Seitz DP, Shah PS, Herrmann N, et al. Exposure to general anesthesia and risk of Alzheimer's disease: a systematic review and meta-analysis. BMC Geriatr. 2011;11:83. Esse trabalho definia exposição à anestesia geral como qualquer história de cirurgia sob anestesia geral comparada com ausência de história de cirurgia sob anestesia geral. O grupo controle incluía pacientes não cirúrgicos ou pacientes cirúrgicos sob anestesia regional. Nessas condições foram incluídos 15 estudos, com 1.752 casos e 5.261 controles. O outcome primário era o diagnóstico de doença de Alzheimer de qualquer gravidade. Os outcomes secundários diziam respeito ao tempo decorrido até ao desenvolvimento da doença, desenvolvimento de início precoce (< 65 anos) ou tardio (> 65 anos). A análise feita não revelou associação estatisticamente significativa entre anestesia geral e o desenvolvimento de doença de Alzheimer, com um odds ratio combinado de 1,05; p = 0,43. Dois dos subgrupos de análise desse estudo visavam a comparar a exposição à anestesia geral com a exposição à anestesia regional e a associação entre o número de anestesias gerais prévias ou a exposição cumulativa a anestesia geral e doença de Alzheimer. Não foi encontrada diferença estatisticamente significava no desenvolvimento de doença de Alzheimer entre a anestesia geral ou a anestesia regional nem associação entre exposição cumulativa à anestesia geral e o desenvolvimento desse tipo de demência.

Recentemente, um grupo de investigadores publicou um estudo de caso-controle de base populacional com recurso ao projeto epidemiológico de Rochester e ao registro de pacientes com doença de Alzheimer da Clínica Mayo.2424 Sprung J, Jankowski CJ, Roberts RO, et al. Anesthesia and incident dementia: a population-based, nested, case–control study. Mayo Clin Proc. 2013;88:552-61. Entre 1 de janeiro de 1985 e 31 de dezembro de 1994 foram identificados 877 casos incidentes de doença de Alzheimer e para cada caso foi selecionado aleatoriamente um controle, livre de doença e emparelhado de acordo com o sexo e a idade, consoante o ano índice. Os registros médicos de cada paciente a partir dos 45 anos e até ao ano índice foram examinados para determinar a exposição à anestesia. Entre os casos de demência, 615 (70%) foram submetidos a procedimentos sob anestesia geral contra 636 controles (72,5%) nas mesmas circunstâncias, e não foi encontrada associação estatisticamente significativa entre a exposição e o diagnóstico (p = 0,27). Além disso, os autores não encontraram associação expressiva entre exposição em termos quantitativos (número de exposições à anestesia) e o desenvolvimento de demência.

Outro estudo de caso controle de base populacional publicado em 2014 procurou avaliar a associação entre exposição prévia a vários tipos de anestesia geral e a incidência de demência.66 Chen CW, Lin CC, Chen KB, et al. Increased risk of dementia in people with previous exposure to general anesthesia: a nationwide population-based case–control study. Alzheimers Dement. 2014;10:196-204. Para isso foram usados os dados de um milhão de pacientes abrangidos pelo seguro de saúde universal tailandês entre 2005 e 2009. Foram identificados 5.345 casos de indivíduos com mais de 50 anos recém-diagnosticados com demência. Os indivíduos sem demência (n = 21.830) foram emparelhados para sexo, idade e data de diagnóstico. A anestesia geral foi dividida em três grupos: 1) Anestesia geral com intubação por tubo endotraqueal; 2) Anestesia geral por injeção intravenosa ou anestesia geral por injeção intramuscular; e 3) Sedação profunda. Os autores concluíram que indivíduos expostos à cirurgia sob anestesia geral com intubação endotraqueal (OR = 1,34; IC 95% 1,25-1,44) e anestesia geral por injeção intravenosa ou injeção intramuscular (OR = 1,28; IC 95% 1,14-,43) corriam um maior risco de desenvolver demência, esse risco aumentava com o aumento da exposição (p < 0,0001). Não se verificaram diferenças entre os grupos relativamente à exposição à sedação profunda.

Atualidade

Novos estudos têm surgido nessa área. Um estudo prospectivo longitudinal de 2016 envolveu doentes submetidos pela primeira vez à cirurgia de bypass coronário e que foram envolvidos inicialmente num estudo de comparação de outcomes cognitivos após randomização para recepção de baixas ou altas doses de fentanil. Após a avaliação dos 12 meses os mesmos doentes foram convidados a participar num estudo de seguimento aos 7,5 anos após cirurgia.4646 Evered LA, Silbert BS, Scott DA, et al. Prevalence of dementia 7.5 years after coronary artery bypass graft surgery. Anesthesiology. 2016;125:62-71. Foram analisados 193 dos 326 doentes iniciais com 55 anos ou mais. Avaliaram-se os doentes para o desenvolvimento de demência e foi também pesquisada disfunção cognitiva pós-operatória aos três meses, 12 meses e 7,5 anos após cirurgia. No entanto, só foi possível avaliar 113 doentes quer para demência quer para disfunção cognitiva pós-operatória. Nos 7,5 anos após a cirurgia a prevalência de demência foi 30,8% nos pacientes com mais de 55 anos à data da intervenção. Os autores atribuem essa elevada prevalência de demência à anestesia/cirurgia ou ao natural declínio das capacidades cognitivas com o envelhecimento e em doentes com patologia cardiovascular grave. Acrescentam ainda que como não existiu seguimento de um grupo de controle não cirúrgico, essa será uma limitação importante do estudo. A disfunção cognitiva pós-operatória foi detectada em 32,8%. Dos 113 doentes avaliados para ambas as entidades, 44% dos que apresentavam demência foram também classificados com disfunção cognitiva pós-operatória. O déficit cognitivo preexistente e a doença vascular periférica foram ambos associados à demência aos 7,5 anos após cirurgia de bypass coronário e a disfunção cognitiva pós-operatória quer aos três quer aos seis meses foi associada a aumento da mortalidade a 7,5 anos.

Outro grupo de trabalho analisou 8.503 pares de gêmeos dinamarqueses de meia-idade (< 70 anos) e de idade avançada (≥ 70 anos). Foram criados dois grupos: 1) Os que tinham sido submetidos a pelo menos uma cirurgia (18 a 24 anos antes da avaliação cognitiva); 2) Os que não tinham sofrido qualquer intervenção cirúrgica. Além disso, os pacientes que foram operados foram divididos em quatro grupos: 1) Cirurgias major; 2) Artoplastias do joelho e anca; 3) Cirurgias minor; 4) Outras. Os resultados de cinco estudos cognitivos foram comparados entre os gêmeos. A genética e o ambiente enquanto confundidores foram avaliados numa análise intrapares de 87 pares de gêmeos monozigóticos e 124 dizigóticos do mesmo sexo em que um tinha história de cirurgia e o outro não.4747 Dokkedal U, Hansen TG, Rasmussen LS, et al. Cognitive functioning after surgery in middle-aged and elderly danish twins. Anesthesiology. 2016;124:312-21. Os gêmeos que sofreram cirurgias major pontuaram ligeiramente pior nos testes de cognição comparados com os que não sofreram qualquer intervenção, no entanto os autores consideram a diferença como um efeito de tamanho negligenciável. Na análise intrapares o gêmeo exposto à cirurgia tinha pontuações mais baixas nos testes cognitivos em 49% dos pares. Os gêmeos com 70 anos ou mais que foram submetidos à artoplastia da anca e joelho tiveram pontuações superiores nos testes cognitivos, inclusive superiores àqueles que não sofreram qualquer intervenção. O estudo nota que as doenças subjacentes podem ser um fator de risco importante nas ligeiras variações da função cognitiva entre grupos cirúrgicos e não cirúrgicos e que a função cognitiva pré-operatória pode ser um determinante mais importante do funcionamento cognitivo em idades mais avançadas do que a cirurgia e a anestesia.

Outro estudo de coorte prospectivo que procurou avaliar a associação entre anestesia e demência ou doença de Alzheimer incluiu doentes com 65 anos ou mais sem demência (n = 3.988) seguidos até ao desenvolvimento de demência, morte ou abandono. No início do estudo foi colhida informação relativa aos procedimentos cirúrgicos prévios sob anestesia geral ou do neuroeixo e novas intervenções foram reportadas a cada dois anos.4848 Aiello Bowles EJ, Larson EB, Pong RP, et al. Anesthesia exposure and risk of dementia and AQlzheimer's disease: a prospective study. J Am Geriatr Soc. 2016;64:602-7. Foi feita uma comparação entre pacientes submetidos a cirurgias de alto risco sob anestesia geral, outras cirurgias sob anestesia geral e outras cirurgias com anestesia do neuroeixo com pacientes que não foram sujeitos a intervenção cirúrgica e a anestesia. Durante o período de seguimento, 946 (24%) pessoas foram diagnosticadas com demência, 752 (19%) apresentavam doença de Alzheimer e 42% dos envolvidos alcançaram o fim do estudo sem qualquer diagnóstico de demência. O risco ajustado de demência não foi superior no grupo de pessoas com cirurgias de alto risco sob anestesia geral comparativamente com o grupo sem história de anestesia (HR = 0,86; IC 95% 0,58-1,28); o mesmo se verificou no caso de doença de Alzheimer (HR = 0,95; IC 95% 0,61-1.49). Os autores concluíram não existir associação entre exposição à anestesia e desenvolvimento de demência/doença de Alzheimer no adulto de idade avançada.

Em 2016, investigadores da Clínica Mayo publicaram um novo estudo de coorte prospectivo, de base populacional, que visava a avaliar a associação entre exposição à anestesia geral após os 40 anos com a incidência de diminuição cognitiva ligeira em idosos. Foram selecionados indivíduos entre os 70 e os 89 anos (n = 19.731) submetidos a várias avaliações neuropsicológicas no início do estudo e aos 15 meses e foram também recolhidos dados relativos à exposição à anestesia após os 40 anos.4949 Sprung J, Roberts RO, Knopman DS, et al. Association of mild cognitive impairment with exposure to general anesthesia for surgical and nonsurgical procedures: a population-based study. Mayo Clin Proc. 2016;91:208-17. Dos 1.731 participantes, 536 (31%) desenvolveram diminuição cognitiva ligeira. A exposição à anestesia, o número de exposições e a duração da exposição cumulativa total não foram associadas a diminuição cognitiva ligeira. No entanto, numa análise sensitiva secundária, verificaram uma associação entre anestesia após os 60 anos e incidência de diminuição cognitiva ligeira (HR ajustado = 1,25; IC 95% 1,02-1,55; p = 0,04). Os autores não excluem a possibilidade de a exposição a agentes anestésicos numa fase de vida avançada poder estar associada ao aumento da taxa de incidência de diminuição cognitiva ligeira. No entanto, concluem não existir associação significativa entre exposição cumulativa à anestesia após os 40 anos e essa alteração cognitiva.

Conclusão

Prevê-se que a prevalência da doença de Alzheimer aumente com o envelhecimento da população. Cada vez mais idosos são submetidos a cirurgia e a anestesia geral, pelo que é pertinente averiguar a sua associação com o desenvolvimento de demência. Estudos animais sugerem que a cirurgia e os anestésicos possam acelerar a patologia de Alzheimer, sendo comuns alterações cognitivas, tais como a disfunção cognitiva pós-operatória. A evidência clínica que relaciona os efeitos adversos da anestesia com a deterioração cognitiva e exacerbação da neurodegeneração em indivíduos suscetíveis é merecedora de atenção. Na maioria das situações é difícil discernir se as alterações cognitivas são devidas à cirurgia ou à anestesia, à inflamação ou se trata de um percurso natural de envelhecimento do indivíduo. Os resultados de estudos observacionais em humanos que estudam a relação entre anestesia, cirurgia e demência têm sido inconsistentes. Vários fatores devem ser levados em consideração em futuros desenhos de estudo, tais como seleção de uma amostra suficiente, grupos de controle apropriados (não cirúrgicos e sem anestesia), avaliação pré-operatória da função cognitiva através de testes psicológicos padronizados e o uso de biomarcadores e neuroimagem para determinar a existência de doença de Alzheimer e a carga amiloide. Além disso, seria interessante o desenvolvimento de hipóteses de estudos futuros que tivessem por base a relação entre anestesia e doença de Alzheimer e o processo neurobiológico subjacente à doença.

Mais estudos de coorte prospectivos ou ensaios clínicos randomizados, idealmente com biomarcadores e/ou neuroimagem, são necessários para compreender a relação entre anestesia e a doença de Alzheimer. Até lá deve ser feito um esforço no sentido de aprimorar o cuidado perioperatório de adultos de idade mais avançada que possam estar em risco de alterações cognitivas pós-operatórias e a escolha da técnica anestésica deve ter por base o procedimento cirúrgico e outros fatores clínicos relativos quer ao doente quer à técnica em questão.

  • Local do estudo: Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2016
  • Aceito
    27 Set 2017
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