Acessibilidade / Reportar erro

Colecistectomia laparoscópica sob raquianestesia contínua em paciente com doença de Steinert

RESUMO

A doença de Steinert é uma desordem intrínseca do músculo com manifestações multissistêmicas. A miotonia pode afetar qualquer grupo muscular e é provocada por vários fatores e medicamentos usados em anestesia geral, como hipnóticos, sedativos e opiáceos. Embora alguns autores recomendem o uso de anestesia regional ou anestesia combinada com opiáceos em doses baixas, a técnica anestésica mais segura ainda precisa ser estabelecida. Administramos raquianestesia contínua em um paciente com doença de Steinert submetido à colecistectomia laparoscópica, com 10 mg de bupivacaína a 0,5%, e fornecemos suporte ventilatório no período perioperatório. A raquianestesia contínua foi usada com segurança em pacientes com doença de Steinert, mas não foi relatada em colecistectomia laparoscópica. Relatamos a raquianestesia contínua como uma técnica adequada para a colecistectomia laparoscópica e particularmente valiosa em pacientes com doença de Steinert.

Palavras-chave:
Raquianestesia contínua; Doença de Steinert; Colecistectomia laparoscópica

ABSTRACT

Steinert's disease is an intrinsic disorder of the muscle with multisystem manifestations. Myotonia may affect any muscle group, is elicited by several factors and drugs used in general anesthesia like hypnotics, sedatives and opioids. Although some authors recommend the use of regional anesthesia or combined anesthesia with low doses of opioids, the safest anesthetic technique still has to be established. We performed a continuous spinal anesthesia in a patient with Steinert's disease undergoing laparoscopic cholecystectomy using 10 mg of bupivacaine 0.5% and provided ventilatory support in the perioperative period. Continuous spinal anesthesia was safely used in Steinert's disease patients but is not described for laparoscopic cholecystectomy. We reported a continuous spinal anesthesia as an appropriate technique for laparoscopic cholecystectomy and particularly valuable in Steinert's disease patients.

Keywords:
Continuous spinal anesthesia; Steinert's disease; Laparoscopic cholecystectomy

Introdução

A doença de Steinert (DS) é uma desordem intrínseca do músculo com manifestações multissistêmicas. A hereditariedade é autossômica dominante e estima-se que tenha uma prevalência de 3-5/100.000.11 Udd B, Krahe R. The myotonic dystrophies: molecular, clinical, and therapeutic challenges. Lancet Neurol. 2012;11(10):891-905. Os pacientes geralmente se apresentam entre 15 e 35 anos, sem firmeza nas mãos, flexão dorsal dos pés prejudicada, catarata e infertilidade. A fraqueza muscular é normalmente observada no rosto, pescoço e grupo de músculos distais e contribui para a aparência facial característica. A miotonia pode afetar qualquer grupo muscular e é provocada pelo uso de drogas, por dor, frio, calafrios, manipulações cirúrgicas e bisturi elétrico, entre outros fatores.22 Mathieu J, Allard P, Gobeil G, et al. Anesthetic and surgical complications in 219 cases of myotonic dystrophy. Neurology. 1997;49(6):1646-50.

O envolvimento extramuscular é quase invariável com a afecção cardíaca (sistema de condução e músculo cardíaco), ventilatória (fraqueza dos músculos respiratórios, anormalidades centrais), gastrointestinal (disfagia, redução da taxa de esvaziamento gástrico) e endócrina (hipotireoidismo, insuficiência gonadal primária, diabete melito).

A avaliação perioperatória desses pacientes deve priorizar as manifestações extramusculares da doença, que podem ser fatais. A condução da anestesia apresenta problemas específicos, incluindo o aumento da sensibilidade a vários medicamentos usados durante a anestesia geral. Os pacientes com essa doença apresentam aumento da sensibilidade a hipnóticos e sedativos que podem causar apneia, mesmo em doses pequenas.33 Speedy H. Exaggerated physiological responses to propofol in myotonic dystrophy. Br J Anaesth. 1990;64:110-2. Os agentes inalatórios podem comprometer ainda mais os já comprometidos sistemas cardiovascular e respiratório, enquanto os tremores no pós-operatório podem precipitar uma crise miotônica.44 Aldridge LM. Anaesthetic problems in myotonic dystrophy. A case report and review of the Aberdeen experience comprising 48 general anaesthetics in a further 16 patients. Br J Anesth. 1985;57(11):1119-30. Os relaxantes despolarizantes devem ser evitados, pois podem desencadear uma crise miotônica e dificultar a ventilação e a intubação.55 Azar I. The response of patients with neuromuscular disorders to muscle relaxants: a review. Anesthesiology. 1978;49:44-8. Os bloqueadores neuromusculares não despolarizantes costumam provocar uma resposta normal, mas se houver perda de massa muscular, o prolongamento da resposta pode ocorrer.44 Aldridge LM. Anaesthetic problems in myotonic dystrophy. A case report and review of the Aberdeen experience comprising 48 general anaesthetics in a further 16 patients. Br J Anesth. 1985;57(11):1119-30.

As complicações no período pós-operatório geralmente resultam em disfunção pulmonar e cardíaca e fraqueza da musculatura faríngea. Portanto, a anestesia regional é considerada a melhor opção nesses pacientes, embora a técnica anestésica mais segura ainda não tenha sido estabelecida.

Apresentamos uma raquianestesia contínua (RAC) em paciente com DS para colecistectomia laparoscópica (CL).

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 35 anos, branca, com DS, programada para CL eletiva.

A paciente estava sendo acompanhada no departamento de pneumologia e apresentou doença pulmonar restritiva com leve impacto ventilatório e indicação para suporte noturno via Bipap, ao qual ela não aderiu. Atualmente, a paciente não toma qualquer medicação. Cesariana cervical anterior sob anestesia combinada raquiperidural transcorreu sem complicações. O exame físico revelou atonia facial, prognatismo leve e pescoço curto.

Após o monitoramento convencional, a raquianestesia contínua foi feita sem pré-medicação, em decúbito lateral direito, no nível L2-L3 com abordagem paramediana, com agulhas de calibre 24-29 (kit Spinocath B. Braun(r)), e fentanil (20 mcg) foi administrado com solução salina normal (1 mL). Com a paciente já em pronação, bupivacaína hiperbárica (5 mg) foi administrada via cateter com solução salina normal (2 mL). O nível sensorial após cinco minutos era T12 e, subsequentemente, um incremento de 5 mg de bupivacaína isobárica com 1 mL de soro fisiológico permitiu uma difusão para o nível T7. O nível T4 foi atingido cinco minutos mais tarde.

A analgesia incluiu fentanil (80 mcg) pré-incisão, acetaminofeno (1 g) e parecoxib (40 mg) durante o procedimento. A queixa de dor no ombro esquerdo foi efetivamente controlada com instilação diafragmática de lidocaína a 2%. Após 40 minutos, uma perfusão espinhal com ropivacaína a 0,1% (2 mL/h) foi iniciada e mantida durante 24 horas.

Suporte com ventilação não invasiva (VNI) foi instituído 12 horas antes da cirurgia até 24 horas após a cirurgia com Bipap E/T (Espontâneo/Temporário) (6/14 cm H2O) e dispositivo que auxilia o mecanismo de tosse. Espirometria e gasometria arterial foram avaliadas durante o período perioperatório (Tabela 1 and Tabela 2). A pressão intra-abdominal máxima (PIA) era de 10 mmHg e no fim da cirurgia era de 8 mmHg. A saturação mínima de oxigênio no sangue era de 92%.

Tabela 1
Avaliação espirométrica no pós-operatório
Tabela 2
Análise gasométrica no perioperatório

Crises miotônicas não foram desencadeadas durante o procedimento.

Após três horas na sala de recuperação pós-anestesia (SRPA), o bloqueio motor foi completamente revertido e a paciente não referiu dor ou dispneia.

Em 24 horas o cateter espinhal foi removido sem complicações e a paciente recebeu alta hospitalar sem intercorrências.

Discussão

A RAC permitiu um bloqueio sensorial adequado para a cirurgia e mínimo comprometimento respiratório. A escolha da RAC levou em consideração as comorbidades da paciente, a adequação do procedimento e as complicações já descritas da anestesia geral nesse contexto. De fato, Cope et al.,66 Cope D, Miller J. Local and spinal anesthesia for cesarean section in a patient with myotonic dystrophy. Anesth Analg. 1986;65:687-90. consideraram que a anestesia regional é a melhor opção nesses pacientes porque medicamentos que desencadeiam crises miotônicas não são usados. March et al.,77 March X, Ross J, Vizuete G, et al. Anestesia general combinada com anestesia peridural en un caso de enfermedad de Steinert. Rev Esp Anestesiol Reanim. 1992;39(2):133. recomendaram a anestesia regional ou a combinação de anestesia geral-regional com uso restrito de opiáceos, porque esses pacientes apresentam mais risco de depressão respiratória. RAC foi usada com sucesso em pacientes de alto risco submetidos à cirurgia abdominal,88 Kumar CM, Corbett WA, Wilson RG. Spinal anaesthesia with a micro-catheter in high-risk patients undergoing colorectal cancer and other major abdominal surgery. Surg Oncol. 2008;17(2):73-9. incluindo CL.99 Van Zundert A, Stultiens G, Jakimowicz J, et al. Laparoscopic cholecystectomy under segmental thoracic spinal anaesthesia: a feasibility study. Br J Anaesth. 2007;98:682-6.,1010 Gramatica L Jr, Brasesco OE, Mercado Luna A, et al. Laparoscopic cholecystectomy performed under regional anesthesia in patients with chronic obstructive pulmonary disease. Surg Endosc. 2002;16:472-5.,1111 Van Zundert A, Stultiens G, Jakimowicz J, et al. Segmental spinal anesthesia for cholecystectomy in a patient with severe lung disease. Br J Anaesth. 2006;96:464-6.,1212 Sinha R, Gurwara AK, Gupta SC. Laparoscopic surgery under spinal anesthesia. JSLS. 2008;12(2):133-8.and1313 Imbelloni LE, Sant'Anna R, Fornasari M, et al. Laparoscopic cholecystectomy under spinal anesthesia: comparative study between conventional-dose and low-dose hyperbaric bupivacaine. Local Reg Anesth. 2011;4:41-6. Além disso, Verdaguer et al.1414 Verdaguer Mitjans M, Bernal Dzekonsky J, Noguera García J, et al. Continuous subarachnoid block in a case of Steinert disease. Rev Esp Anestesiol Reanim. 1991;38(3):204. descreveram um caso de RAC em paciente com DS submetida à histerectomia. Porém, pelo que sabemos, este é o primeiro caso de CL sob RAC em paciente com doença de Steinert. Bennun et al.1515 Bennun M, Goldstein B, Finkelstein Y, et al. Continuous propofol anaesthesia for patients with myotonic dystrophy. Br J Anaesth. 2000;85:407-9. relataram uma diminuição significativa da média da capacidade vital no pós-operatório (de 965 a 349 mL) em relação ao valor pré-operatório durante a anestesia contínua com propofol. Em nossa paciente não houve diminuição da capacidade vital no pós-operatório em comparação com os valores no pré-operatório. De acordo com a avaliação espirométrica, não houve comprometimento significativo dos mecanismos de ventilação, mesmo após o estabelecimento pleno do bloqueio sensorial ou após o pneumoperitônio. Além disso, a gasometria seriada validou a contribuição do suporte ventilatório não invasivo no perioperatório.

Conclusão

O controle da dor no pós-operatório foi eficaz e opiáceos foram evitados. Não observamos dor de cabeça associada à raquianestesia, o que pode ser explicado pela remoção do cateter apenas após 24 horas.1616 Ayad S, Demian Y, Narouze SN, et al. Subarachnoid catheter placement after wet tap for analgesia in labor: influence on the risk of headache in obstetric patients. Reg Anesth Pain Med. 2003;28:512-5. Relatamos a RAC como uma técnica adequada para CL e com valor particular em pacientes DS.

References

  • 1
    Udd B, Krahe R. The myotonic dystrophies: molecular, clinical, and therapeutic challenges. Lancet Neurol. 2012;11(10):891-905.
  • 2
    Mathieu J, Allard P, Gobeil G, et al. Anesthetic and surgical complications in 219 cases of myotonic dystrophy. Neurology. 1997;49(6):1646-50.
  • 3
    Speedy H. Exaggerated physiological responses to propofol in myotonic dystrophy. Br J Anaesth. 1990;64:110-2.
  • 4
    Aldridge LM. Anaesthetic problems in myotonic dystrophy. A case report and review of the Aberdeen experience comprising 48 general anaesthetics in a further 16 patients. Br J Anesth. 1985;57(11):1119-30.
  • 5
    Azar I. The response of patients with neuromuscular disorders to muscle relaxants: a review. Anesthesiology. 1978;49:44-8.
  • 6
    Cope D, Miller J. Local and spinal anesthesia for cesarean section in a patient with myotonic dystrophy. Anesth Analg. 1986;65:687-90.
  • 7
    March X, Ross J, Vizuete G, et al. Anestesia general combinada com anestesia peridural en un caso de enfermedad de Steinert. Rev Esp Anestesiol Reanim. 1992;39(2):133.
  • 8
    Kumar CM, Corbett WA, Wilson RG. Spinal anaesthesia with a micro-catheter in high-risk patients undergoing colorectal cancer and other major abdominal surgery. Surg Oncol. 2008;17(2):73-9.
  • 9
    Van Zundert A, Stultiens G, Jakimowicz J, et al. Laparoscopic cholecystectomy under segmental thoracic spinal anaesthesia: a feasibility study. Br J Anaesth. 2007;98:682-6.
  • 10
    Gramatica L Jr, Brasesco OE, Mercado Luna A, et al. Laparoscopic cholecystectomy performed under regional anesthesia in patients with chronic obstructive pulmonary disease. Surg Endosc. 2002;16:472-5.
  • 11
    Van Zundert A, Stultiens G, Jakimowicz J, et al. Segmental spinal anesthesia for cholecystectomy in a patient with severe lung disease. Br J Anaesth. 2006;96:464-6.
  • 12
    Sinha R, Gurwara AK, Gupta SC. Laparoscopic surgery under spinal anesthesia. JSLS. 2008;12(2):133-8.
  • 13
    Imbelloni LE, Sant'Anna R, Fornasari M, et al. Laparoscopic cholecystectomy under spinal anesthesia: comparative study between conventional-dose and low-dose hyperbaric bupivacaine. Local Reg Anesth. 2011;4:41-6.
  • 14
    Verdaguer Mitjans M, Bernal Dzekonsky J, Noguera García J, et al. Continuous subarachnoid block in a case of Steinert disease. Rev Esp Anestesiol Reanim. 1991;38(3):204.
  • 15
    Bennun M, Goldstein B, Finkelstein Y, et al. Continuous propofol anaesthesia for patients with myotonic dystrophy. Br J Anaesth. 2000;85:407-9.
  • 16
    Ayad S, Demian Y, Narouze SN, et al. Subarachnoid catheter placement after wet tap for analgesia in labor: influence on the risk of headache in obstetric patients. Reg Anesth Pain Med. 2003;28:512-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2013
  • Aceito
    02 Jan 2014
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org