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Toxicidade dos anestésicos locais: o debate continua!

EDITORIAL

Toxicidade dos Anestésicos Locais: O Debate Continua!

Nos últimos 40 anos tivemos algumas vitórias sobre as complicações causadas pelos anestésicos locais, entretanto, parece que ainda estamos longe da resolução do problema. Recentes publicações relatando parada cardíaca em conseqüência do uso da ropivacaína em bloqueios periféricos1,2, considerada por muitos isenta de cardiotoxicidade clínica, evidencia que nossas preocupações em relação aos efeitos tóxicos dos anestésicos locais, permanecem vivas. Esse número da Rev Bras Anestesiol contempla estudo experimental3 em cães, avaliando a cardiotoxicidade da bupivacaína com excesso enantiomérico (S75-R25) em comparação à bupivacaína racêmica, apresentando piores resultados para o lado cardíaco em comparação a bupivacaína racêmica.

A ropivacaína foi introduzida na prática clínica no início dos anos 1990 como uma possível alternativa segura à bupivacaína. Em 19794 Albright publicou editorial relatando 6 casos, informalmente, onde quase simultaneamente houve convulsão e colapso cardiovascular após injeção intravascular inadvertida de bupivacaína. A reanimação não teve êxito na maioria dos casos e ficou então evidente que, diferentemente da lidocaína, esse novo anestésico local apresentava concentrações plasmáticas necessárias para produzir convulsões muito próximas às necessárias para produzir parada cardíaca. Portanto, apresentando menor margem de segurança. O colapso cardiovascular é conseqüente a graves disritmias ventriculares desproporcionais à potência do fármaco em comparação a outros anestésicos locais.

Como a ropivacaína é composta basicamente do isômero levógiro concluiu-se que a cardiotoxicidade estava mais ligada ao isômero dextrógiro. A partir daí, passou-se ao desenvolvimento da levobupivacaína, anestésico local composto apenas pelo isômero levógiro da bupivacaína. Pode-se observar5 comparando-se a bupivacaína, a ropivacaína e a levobupivacaína, toxicidade maior para a bupivacaína, seguida da levobupivacaína e menor para a ropivacaína (Figura 1).


Entretanto, observou-se também que a potência dos anestésicos locais citados apresenta diferenças. A ropivacaína apresentava menor potência que a bupivacaína6 e a levobupivacaína potência intermediária. Ou seja, de que adianta ser menos tóxico e causar anestesia clínica de pior qualidade, levando a necessidade de utilização de maiores concentrações do fármaco? Apesar dos aspectos citados serem verdadeiros, a bupivacaína racêmica apresenta maior potencial de desenvolvimento de graves disritmias ventriculares com lenta dissociação dos canais de sódio durante a diástole ventricular7.

No artigo publicado nesse número da revista3, o anestésico com maior componente levógiro, teoricamente deveria apresentar menor cardiotoxicidade, entretanto, observou-se menor depressão miocárdica com a bupivacaína racêmica. Fato intrigante, também, foi o comportamento da pressão venosa central e pressão capilar pulmonar que aumentaram significativamente com a bupivacaína racêmica em comparação a bupivacaína com excesso enantiomérico, apesar da bupivacaína racêmica apresentar menor depressão miocárdica. Outro fato não levantado foi a avaliação do ritmo cardíaco. A injeção intravascular de bupivacaína desenvolve disritmias ventriculares importantes em doses supra-convulsivantes, normalmente o mecanismo de colapso cardiovascular.

Na atualidade, parece que o maior risco de toxicidade sistêmica com anestésicos locais não seja conseqüente à anestesia peridural em cirurgias gerais ou em obstetrícia. Os bloqueios periféricos representam a maioria dos casos descritos de cárdio e neurotoxicidade2,3. O uso criterioso da anestesia peridural, com respeito às doses tóxicas, uso da dose teste, uso de cateter para fracionamento das doses, monitorização do ritmo cardíaco durante a realização do bloqueio, atenção a sinais clínicos de intoxicação e padronização e treinamento das manobras de reanimação cardíaca, levaram a drástica redução dos relatos de toxicidade.

No campo da anestesia obstétrica, além dos cuidados acima citados, podemos acrescentar o fato de que para analgesia do trabalho de parto, se emprega concentrações de anestésicos locais muito reduzidas a uma velocidade de infusão lenta. Paralelamente, nesses últimos 10 anos, principalmente no Brasil, mas também em vários outros países, a prática de anestesia para operações cesarianas também se alterou. Hoje, na maioria dos centros, a raquianestesia passou a ser a técnica de escolha. A dose empregada varia de 10 a 15 mg de bupivacaína hiperbárica a 0,5%, tornando a possibilidade de injeção intravascular com intoxicação cardíaca ou convulsões muito pouco prováveis. No complexo hospitalar Pró-Matre Paulista - Santa Joana e no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo quase 100% das operações cesarianas são realizadas com raquianestesia.

Nos bloqueios periféricos parece existir uma tendência à substituição da bupivacaína tradicional pelos anestésicos locais levógiros. A ropivacaína, levobupivacaína e atualmente a bupivacaína com excesso enantiomérico, parecem ter a preferência sobre a bupivacaína racêmica. Apesar disso continuam a serem relatados casos de colapso cardiovascular e convulsões após bloqueios periféricos com esses fármacos. Obviamente, devemos procurar fármacos ideais, mas não devemos nos esquecer que o mecanismo de bloqueio da condução nervosa (bloqueio reversível dos canais de sódio) tão útil na anestesia regional, é também o mecanismo que desencadeia a cardiotoxicidade e as convulsões. Nos bloqueios periféricos, o uso de novas técnicas, para localização precisa dos plexos e nervos, como o estimulador de nervos periféricos, que já é realidade e a ultra-sonografia em fase de introdução na clínica, devem ser cada vez mais utilizados. O uso de cateteres que possibilitem a injeção fracionada de anestésicos locais, apesar das dificuldades técnicas na sua passagem, também pode representar avanços. Não devemos nos esquecer que nos bloqueios periféricos os nervos normalmente correm muito próximos a veias e artérias, e mesmo que não haja uma injeção intravascular inadvertida, a absorção sistêmica pode ser rápida levando a concentrações plasmáticas elevadas dos anestésicos locais. Como sempre foi, e provavelmente sempre será, a diferença está em quem introduz a agulha. Nós, anestesiologistas não podemos nos contentar em sermos somente exímios "fazedores de bloqueio", devemos também ter conhecimentos científicos atualizados e incorporar cada vez mais novos recursos técnicos à prática clínica diária.

Devemos também considerar a importância da análise crítica ao interpretarmos trabalhos científicos. Um trabalho científico sempre carrega consigo alguma informação. Mas deve ser considerado parte de um todo, na busca do conhecimento global. A informação apresentada nesse número da revista é intrigante3. Um anestésico local que carrega em sua fórmula maior componente do isômero levógiro em relação ao dextrógiro, apresentou maior depressão miocárdica que a mistura racêmica. Porém, tal resultado não pode ser analisado de forma matemática. Inúmeras interpretações para o fato podem ser dadas e deve ser reproduzido em outras espécies, com outros métodos para conclusões definitivas.

Unitermos: ANESTÉSICOS, Local: bupivacaína, levobupivacaína, mistura com excesso enantiomérico, ropivacaína; COMPLICAÇÕES: toxicidade sistêmica.

Dr. Marcelo Luís Abramides Torres, TSA

Professor Doutor da Disciplina de Anestesiologia da FMUSP

Coordenador da equipe de Anestesiologia da Maternidade Pró-Matre Paulista

Presidente da LASRA

REFERÊNCIAS

01. Chazalon P, Tourtier JP, Villevieille T et al - Ropivacaine-induced cardiac arrest after peripheral nerve block: successful resuscitation. Anesthesiology, 2003;99:1449-1451.

02. Huet O, Eyrolle LJ, Mazoit JX et al - Cardiac arrest and plasma concentration after injection of ropivacaine for posterior lumbar plexus blockade. Anesthesiology, 2003;99:1451-1453

03. Udelsman A, Munhoz DC, Silva WA et al - Comparação entre os efeitos hemodinâmicos da intoxicação aguda com bupivacaína racêmica e a mistura com excesso enantiomérico de 50% (S75-R25). Estudo experimental em cães. Rev Bras Anestesiol, 2006;56:391-401.

04. Albright GA - Cardiac arrest following regional anesthesia with etidocaine and bupivacaine. Anesthesiology, 1979; 51:285-287.

05. Santos AC, DeArmas PI Systemic toxicity of levopubivacaine, bupivacaine, and ropivacaine during continuous intravenous infusion to nonpregnant and pregnant ewes. Anesthesiology, 2001;95:1256-1264.

06. Polley L, Columb M, Naughton N et al - Relative analgesic potencies of ropivacaine and bupivacaine for epidural analgesia in labor: Implications for therapeutic indexes. Anesthesiology, 1999;90:944-950.

07. Clarkson CW, Hondeghem LM - Mechanism for bupivacaine depression of cardiac conduction: Fast block of sodium channels during the action potential with slow recovery from block during diastole. Anesthesiology, 1985;62:396-405.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
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