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Manejo anestésico de criança com neuroblastoma abdominal gigante

Resumo

Neuroblastoma é o tumor mais comum do sistema nervoso não central na infância. Esse tumor tem o potencial de sintetizar catecolaminas; entretanto, a presença de hipertensão é rara. Relatamos o manejo perioperatório de uma criança de cinco meses com neuroblastoma abdominal gigante que apresentou hipertensão grave. As alterações fisiopatológicas do neuroblastoma foram revistas e o manejo perioperatório é apresentado.

PALAVRAS-CHAVE
Neuroblastoma; Anestesia pediátrica; Criança; Hipertensão

Abstract

Neuroblastoma is the most common, non-central nervous system tumor of childhood. It has the potential to synthesize catecholamines. However, the presences of hypertension are uncommon. We report the perioperative management of a 15-month-old infant with giant abdominal neuroblastoma who presented severe hypertension. The pathophysiological alterations of neuroblastoma are reviewed and perioperative management presented.

KEYWORDS
Neuroblastoma; Pediatric anesthesia; Infant; Hypertension

Introdução

Neuroblastoma é o tumor extracraniano sólido mais comum na infância.11 Hammer G, Hall S, Davis PJ. Anesthesia for general abdominal, thoracic, urologic, and bariatric surgery. Neuroblastoma procedures. In: Davis PJ, Cladis FP, Motoyama EK, editors. Smith's anesthesia for infants and children. 8th ed. Philadelphia: Elsevier Mosby; 2006. p. 754-5. Afeta anualmente 6-10 milhões de crianças e representa 7-8% dos tumores pediátricos. A apresentação clínica é altamente variável, depende da localização. Pode incluir sinais e sintomas inespecíficos, como dor abdominal, vômito, perda de peso, anorexia, fadiga, diarreia e massa palpável.22 Seefelder C, Sparks JW, Chirnomas D, et al. Perioperative management of a child with severe hypertension from a catecholamine secreting neuroblastoma. Paediatr Anaesth. 2005;15:606-10. Sua origem é embrionária, desenvolve-se a partir de fibras nervosas simpáticas pós-ganglionares e pode estar associada a níveis elevados de catecolaminas. No entanto, a hipertensão arterial é rara, está presente em 10-27% dos casos.33 Kwok SY, Cheng FW, Lo AF, et al. Variants of cardiomyopathy and hypertension in neuroblastoma. J Pediatr Hematol Oncol. 2014;36:e158-61. A possível afetação multiorgânica, principalmente os efeitos nos sistemas cardiovascular e respiratório, bem como o tratamento da hipertensão grave, merece ser revista. Os pais do paciente assinaram o termo de consentimento informado para a publicação deste artigo.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 15 meses, 8,5 kg, foi internado no serviço de emergência de nossa instituição, com fadiga, rejeição parcial da ingestão, perda de peso, vômito e distensão abdominal (fig. 1). Os testes laboratoriais revelaram hiperuricemia (7,1 mg/dL), hipoalbuminemia (3,2 g/dL), LDH (4205 IU/L), sódio (129 mEq/L), potássio (3,5 mEq/L), cloreto (90 mEq/L). A RM abdominal mostrou uma grande massa abdominal (12 cm ×10 cm × 10 cm), que abrangia o mesentério e o retroperitônio, e compressão e deslocamento de ambos os rins, que circundaram circunferencialmente a aorta e as artérias e as veias renais (fig. 2). O paciente apresentava hipertensão grave e persistente (180-120 mm/Hg). Ecocardiografia descartou a presença de cardiopatia associada. Uma infusão intravenosa de nitroprussiato de sódio (0,5-3 mg/kg/min) foi administrada para o controle da pressão arterial aguda. Após 72 h, o tratamento oral sequencial foi iniciado com clonidina (20 mg/6 h), nifedipina (4 mg/6 h) e propranolol (3 mg/8 h), atingiu uma pressão arterial média (PAM) estável (alvo de 100 mm/Hg). Uma PAM inferior a 100 mm/Hg determinou uma diminuição crítica na pressão de perfusão tecidual, refletida com o estabelecimento de oligoanúria. O paciente foi levado para a sala de operações para uma série de biópsias (massa abdominal, medula óssea e linfonodos) para confirmar o diagnóstico. A indução com a técnica de sequência rápida foi feita com a manobra de Sellick após pré-oxigenação adequada com oxigênio a 100% e indução da anestesia com remifentanil (0,2 µg/kg/min), propofol (2,5 mg/kg), rocurônio (1,2 mg/kg) e lidocaína (1 mg/kg). A intubação traqueal não produziu alterações significativas nos sinais vitais. A ventilação controlada por pressão foi ajustada para manter a normocapnia, com o uso de uma mistura de oxigênio/ar (FiO 50%). A manutenção da anestesia geral foi feita com sevoflurano e remifentanil (0,2-0,6 µg/kg/min). A hipertensão persistente foi controlada com o tratamento anti-hipertensivo estabelecido e incremento das doses de remifentanil durante a cirurgia. Após a conclusão do procedimento cirúrgico, o paciente foi transferido para a SRPA pediátrica, manteve-se a infusão intravenosa de nitroprussiato de sódio. O diagnóstico de neuroblastoma foi confirmado. Catecolaminas urinárias ou os seus metabolitos eram indetectáveis. As subsequentes quimioterapia e ressecção tumoral permitiram a restauração da pressão arterial normal.

Figura 1
Paciente após a indução anestésica.

Figura 2
RM axial que mostra a massa intra-abdominal gigante.

Discussão

O neuroblastoma deriva de células da crista neural e pode estar localizado em qualquer lugar onde essas células estejam presentes, pois têm o potencial de sintetizar catecolaminas. Ambas as características são determinantes das alterações fisiopatológicas associadas.44 Kain ZN, Shamberger RS, Holzman RS. Anesthetic management of children with neuroblastoma. J Clin Anesth. 1993;5:486-91.

Sua localização é geralmente intra-abdominal, embora a localização intratorácica ou cervical seja possível, e pode comprometer as vias aéreas. A presença de massa abdominal aumenta a pressão intra-abdominal (PIA).11 Hammer G, Hall S, Davis PJ. Anesthesia for general abdominal, thoracic, urologic, and bariatric surgery. Neuroblastoma procedures. In: Davis PJ, Cladis FP, Motoyama EK, editors. Smith's anesthesia for infants and children. 8th ed. Philadelphia: Elsevier Mosby; 2006. p. 754-5. Isso aumenta o risco de aspiração; portanto, a técnica de indução de sequência rápida é recomendável. No sistema respiratório, o neuroblastoma determina o deslocamento cefálico do diafragma, aumenta a pressão intratorácica e diminui a complacência pulmonar e a capacidade residual funcional, o que determina uma tendência maior à atelectasia pulmonar, diminuição da razão de perfusão ventilatória após a indução de anestesia geral e hipercapnia e hipoxemia. Produz vasoconstrição pulmonar e aumenta o comprometimento da troca gasosa na unidade alveolar-capilar. A extensão das alterações no sistema cardiovascular depende da magnitude da PIA, presença de cardiomiopatia, estado do volume intravascular, modo de ventilação mecânica, condições cirúrgicas e agentes anestésicos empregados. A resistência vascular sistêmica aumenta devido à compressão mecânica da aorta abdominal, altos níveis de fatores neuro-humorais, como vasopressina, ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e compressão das artérias renais, e leva à hipertensão. Essa alta pós-carga aumenta o risco de edema pulmonar agudo. A compressão da veia cava inferior reduz a pré-carga e o débito cardíaco, diminui a perfusão tecidual, particularmente na presença de hipovolemia. Taquiarritmias são frequentes devido à hipercapnia e ao aumento dos níveis de catecolaminas circulantes. Todas essas alterações podem diminuir após a laparotomia devido à descompressão da cavidade abdominal, mas a correção pode ser gradual.

A hipertensão, além dos mecanismos acima mencionados, pode resultar da ação vasoconstritora das catecolaminas secretadas pelo tumor ou da estimulação do sistema renina-angiotensina-aldosterona secundária à compressão da artéria renal. Pode haver uma cardiomiopatia associada, mas é incomum. Sua etiologia é multifatorial;33 Kwok SY, Cheng FW, Lo AF, et al. Variants of cardiomyopathy and hypertension in neuroblastoma. J Pediatr Hematol Oncol. 2014;36:e158-61. inclui vasoconstrição induzida por catecolaminas, vasoespasmo coronário, taquicardia miocárdica crônica secundária ao estado hiperadrenérgico, redução de receptores β-adrenérgicos e promoção do influxo de cálcio no sarcolema. O tratamento eficaz da hipertensão arterial antes da cirurgia é obrigatório para reduzir a morbimortalidade no perioperatório. Pode ocorrer crise hipertensiva no período intraoperatório, especialmente durante a intubação traqueal, indução anestésica e manipulação do tumor. Portanto, é crítico minimizar a resposta simpática secundária à laringoscopia direta.55 Kako H, Taghon T, Veneziano G, et al. Severe intraoperative hypertension after induction of anesthesia in a child with a neuroblastoma. J Anesth. 2013;27:464-7. Tiopental, succinilcolina e morfina devem ser usados com cautela devido à liberação de catecolamina secundária à liberação de histamina por tiopental ou morfina, aumento da pressão abdominal ou estimulação simpática após succinilcolina.22 Seefelder C, Sparks JW, Chirnomas D, et al. Perioperative management of a child with severe hypertension from a catecholamine secreting neuroblastoma. Paediatr Anaesth. 2005;15:606-10. A hipertensão no intraoperatório em pacientes com neuroblastomas secretores de catecolaminas é controlada por agentes de ação curta, como nitroprussiato de sódio, antagonistas de cálcio, fentolamina, adenosina ou prostaglandina E1.22 Seefelder C, Sparks JW, Chirnomas D, et al. Perioperative management of a child with severe hypertension from a catecholamine secreting neuroblastoma. Paediatr Anaesth. 2005;15:606-10. O uso de fármacos anti-hipertensivos em pacientes pediátricos deve ser iniciado na dose mais baixa sob monitoração cardiovascular atenta e titulado para o efeito.66 Cladis FP. Pediatric drug dosages. In: Davis PJ, Cladis FP, Motoyama EK, editors. Smith's anesthesia for infants and children. 8th ed. Philadelphia: Elsevier Mosby; 2006 [Appendix A].,77 Avinash C, Shukla, James M, et al. Cardiac physiology and pharmacology. In: Coté CJ, Lerman J, Todres D, editors. A practice of anesthesia for infants and children. 4th ed. Philadelphia: Saunders, Elsevier Inc.; 2009. p. 373-88. A tabela 1 mostra os fármacos comumente usados no tratamento da hipertensão na população pediátrica.

Tabela 1
Medicamentos comuns usados no tratamento da hipertensão em pacientes pediátricos

O tratamento de pacientes com neuroblastoma abdominal gigante é um desafio anestésico. O conhecimento das implicações fisiopatológicas e o tratamento anti-hipertensivo adequado são essenciais para o sucesso do manejo anestésico.

References

  • 1
    Hammer G, Hall S, Davis PJ. Anesthesia for general abdominal, thoracic, urologic, and bariatric surgery. Neuroblastoma procedures. In: Davis PJ, Cladis FP, Motoyama EK, editors. Smith's anesthesia for infants and children. 8th ed. Philadelphia: Elsevier Mosby; 2006. p. 754-5.
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    Seefelder C, Sparks JW, Chirnomas D, et al. Perioperative management of a child with severe hypertension from a catecholamine secreting neuroblastoma. Paediatr Anaesth. 2005;15:606-10.
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    Cladis FP. Pediatric drug dosages. In: Davis PJ, Cladis FP, Motoyama EK, editors. Smith's anesthesia for infants and children. 8th ed. Philadelphia: Elsevier Mosby; 2006 [Appendix A].
  • 7
    Avinash C, Shukla, James M, et al. Cardiac physiology and pharmacology. In: Coté CJ, Lerman J, Todres D, editors. A practice of anesthesia for infants and children. 4th ed. Philadelphia: Saunders, Elsevier Inc.; 2009. p. 373-88.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    6 Jul 2014
  • Aceito
    21 Jul 2014
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