Acessibilidade / Reportar erro

Bloqueio intermitente de ramo esquerdo - reversão para condução normal durante anestesia geral

Resumo

Justificativa e objetivos:

Alterações transitórias da condução cardíaca no intraoperatório são pouco frequentes. Foram reportados raros casos de desenvolvimento ou remissão de bloqueio completo de ramo esquerdo sob anestesia (geral e locorregional), associados a isquemia do miocárdio, hipertensão, taquicardia e fármacos. O bloqueio completo de ramo esquerdo é uma manifestação clínica importante em alguns hipertensos crônicos, pode também significar doença arterial coronária, doença valvular aórtica ou cardiomiopatia subjacentes. Embora habitualmente permanente, pode ocorrer na forma intermitente dependente da frequência cardíaca (quando a frequência cardíaca excede determinado valor crítico).

Relato de caso:

Este é um caso de bloqueio completo de ramo esquerdo registrado no pré-operatório de cirurgia urgente que reverteu para condução normal no intraoperatório sob anestesia geral após diminuição da frequência cardíaca. Ressurgiu, de forma intermitente e dependente da frequência cardíaca, no pós-operatório imediato, acabou por reverter novamente à condução normal de forma sustentada durante vigilância em unidade semi-intensiva. O estudo com marcadores de necrose muscular cardíacos foi negativo. A dor do quadro cirúrgico urgente e pós-operatório imediato pode ter estado na origem da subida da frequência cardíaca até ao valor crítico e causado bloqueio.

Conclusões:

Embora o desenvolvimento ou a remissão desse bloqueio sob anestesia sejam incomuns, o anestesiologista deverá estar alertado para a possibilidade da sua ocorrência. Pode ter caráter benigno, contudo o diagnóstico correto é muito importante. As manifestações eletrocardiográficas podem ser confundidas com ou encobrir isquemia miocárdica, fatos de especial importância num paciente sob anestesia geral incapaz de referir sintomatologia característica de isquemia.

PALAVRAS-CHAVE
Defeitos da condução cardíaca; Arritmia; Bloqueio completo de ramo esquerdo; Anestesia geral

Abstract

Background and objectives:

Transient changes in intraoperative cardiac conduction are uncommon. Rare cases of the development or remission of complete left bundle branch block under general and locoregional anesthesia associated with myocardial ischemia, hypertension, tachycardia, and drugs have been reported. Complete left bundle branch block is an important clinical manifestation in some chronic hypertensive patients, which may also be a sign of coronary artery disease, aortic valve disease, or underlying cardiomyopathy. Although usually permanent, it can occur intermittently depending on heart rate (when heart rate exceeds a certain critical value).

Case report:

This is a case of complete left bundle branch block recorded in the preoperative period of urgent surgery that reverted to normal intraoperative conduction under general anesthesia after a decrease in heart rate. It resurfaced, intermittently and in a heart-rate-dependent manner, in the early postoperative period, eventually reverting to normal conduction in a sustained manner during semi-intensive unit monitoring. The test to identify markers of cardiac muscle necrosis was negative. Pain due to the emergency surgical condition and in the early postoperative period may have been the cause of the increase in heart rate up to the critical value, causing blockage.

Conclusions:

Although the development or remission of this blockade under anesthesia is uncommon, the anesthesiologist should be alert to the possibility of its occurrence. It may be benign; however, the correct diagnosis is very important. The electrocardiographic manifestations may mask or be confused with myocardial ischemia, factors that are especially important in a patient under general anesthesia unable to report the characteristic symptoms of ischemia.

KEYWORDS
Cardiac conduction defects; Arrhythmia; Complete left bundle branch block; General anesthesia

Introdução

O desenvolvimento ou a remissão de bloqueio completo de ramo esquerdo em pacientes sob anestesia são incomuns.11 Tanus-Santos JE. Transient left bundle branch block during anesthesia. Rev Mex Anest. 1998;21:211-3.

2 Tagliente TM, Jayagopal S. Transient left bundle branch block following lidocaine. Anesth Analg. 1989;69:545-7.

3 Edelman JD, Hurlbert BJ. Intermittent left bundle branch block during anesthesia. Anesth Analg. 1980;59:628-30.
-44 Azar I, Turndorf H. Paroxysmal left bundle branch block during nitrous oxide anesthesia in a patient on lithium carbonate: a case report. Anesth Analg. 1977;56:868-70. A forma de bloqueio intermitente dependente da frequência cardíaca pode ter um carácter benigno,55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.,66 Chapman JH. Intermittent left bundle branch block in the athletic heart syndrome - autonomic influence on intraventricular conduction. Chest. 1977;71:776-9. contudo o diagnóstico correto é muito importante. As manifestações eletrocardiográficas podem ser confundidas com ou encobrir uma isquemia miocárdica,55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.,77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22. fatos de especial importância num paciente sob anestesia geral incapaz de referir a sintomatologia característica de isquemia miocárdica.

Este é um caso de bloqueio completo de ramo esquerdo pré-operatório que reverteu para condução normal após diminuição da frequência cardíaca no decorrer de uma cirurgia sob anestesia geral e que ressurgiu, de forma intermitente e dependente da frequência cardíaca, no pós-operatório imediato.

Caso clínico

Uma paciente de 73 anos com suspeita de perfuração iatrogênica do cólon sigmoide durante colonoscopia com polipectomia foi proposta para laparotomia exploratória urgente. A avaliação pré-anestésica revelou antecedentes médicos de asma brônquica, hipertensão arterial, diabetes melito tipo 2, gastrite, hérnia do hiato, obesidade e síndrome depressiva. Os antecedentes anestésicos incluíam anestesia geral para histerectomia e locorregional para cirurgia de varizes, sem complicações conhecidas. Do exame físico destacava-se apenas quadro de dor abdominal, sem sinais de irritação peritoneal nem disfunções significativas de outros órgãos ou sistemas. O estudo laboratorial mostrava leucocitose (21.100 mm3), sem outras alterações, notadamente no hemograma, nas funções renal e hepática ou no ionograma. A gasometria arterial não tinha alterações. O ECG mostrava ritmo sinusal com 82 bpm e padrão compatível com Bloqueio Completo de Ramo Esquerdo (BCRE) (fig. 1). Desde a admissão hospitalar até a admissão na sala operatória a paciente manteve-se sem dor torácica e com valores de pressão arterial e de Frequência Cardíaca (FC) dentro da normalidade.

Figura 1
ECG de 12 derivações pré-operatório com padrão compatível com BCRE.

Dados o carácter urgente da cirurgia e a estabilidade hemodinâmica, decidiu-se não adiar o procedimento cirúrgico para estudo adicional das alterações eletrocardiográficas.

Na admissão à sala operatória a paciente apresentava: pressão arterial 123/69 mmHg, FC 83 bpm, saturação periférica de oxigênio 96% e BCRE. Sob monitoração standard da American Society of Anesthesiology, foi efetuada indução de anestesia geral com bólus de propofol (2 mg.kg-1) e perfusão de remifentanil (0,5 µg.kg-1 durante um minuto, seguido de 0,1 µg.kg-1.min-1) e bloqueio neuromuscular com rocurônio (0,6 mg.kg-1), após a qual se procedeu à intubação orotraqueal com tubo 7,5 mm de diâmetro interno com cuff, sem intercorrências. Seguiu-se episódio de broncospasmo que reverteu com a administração de hidrocortisona endovenosa (100 mg) e salbutamol (400 µg) e brometo de ipratrópio (40 µg) por câmara expansora. Na manutenção da anestesia usou-se mistura de oxigênio, ar e sevoflurano (FiO2 35%, sevoflurano expirado 1,8%) e perfusão de remifentanil (0,1-0,2 µg.kg-1.min-1), a ventilação foi controlada mecanicamente. Foi feita analgesia com 1 g de paracetamol e 150 mg de tramadol endovenosos e profilaxia antiemética com 4 mg de dexametasona endovenosa (na indução) e 4 mg de ondansetron no fim da cirurgia.

Durante o intraoperatório, após cerca de 30 minutos de anestesia, o BCRE reverteu para condução normal, altura em que a FC atingiu 74 bpm após uma redução gradual e assim se manteve durante as duas horas de cirurgia. A pressão arterial média variou entre 73 e 80 mmHg e a FC entre 65 e 74 bpm durante esse período. No fim da cirurgia, mas ainda antes da reversão da anestesia, fez-se ECG de 12 derivações que confirmou ausência de BCRE (fig. 2).

Figura 2
ECG de 12 derivações intraoperatório com condução normal, sem BCRE.

A paciente foi então despertada, reverteu-se o bloqueio neuromuscular com sugamadex (200 mg).

À chegada à Unidade de Recuperação Pós-Anestésica a monitoração mostrava pressão arterial 125/66 mmHg; FC 86 bpm e ECG com padrão de BCRE, o qual se manteve de forma intermitente e dependente de FC ≥ 75 bpm ao longo de duas horas de vigilância. Nesse período foram administrados dois bólus de 2 mg de morfina endovenosos para controle da dor. Durante os períodos de bloqueio não se verificaram alterações na pressão arterial.

Após avaliação conjunta do anestesiologista da Unidade de Recuperação Pós-Anestésica e do médico responsável pela Unidade Semi-Intensiva, decidiu-se internamento nessa unidade para vigilância clínica, laboratorial e eletrocardiográfica. A paciente permaneceu assintomática do foro cardíaco durante toda a estada nessa unidade, os marcadores de necrose muscular cardíacos foram negativos e os ECGs seriados revelaram ausência de bloqueio. Foi efetuada avaliação pelo cardiologista de urgência, que estabeleceu o diagnóstico de BCRE intermitente, sem necessidade de cuidados particulares. A paciente foi então levada para o internamento de Cirurgia Geral e o restante período pós-operatório não revelou quaisquer intercorrências.

Discussão e conclusões

O bloqueio de ramo condutor direito ou esquerdo está relacionado com o comprometimento da condução e atraso da propagação do impulso elétrico no ramo correspondente do Feixe de His.88 Breithardt G, Breithardt O-A. Left bundle branch block, an old-new entity. J Cardiovasc Trans Res. 2012;5:107-16.

O bloqueio de ramo pode ocorrer em várias situações. O BCRE é uma manifestação clínica importante em alguns hipertensos crônicos, pode também significar doença arterial coronária, doença valvular aórtica ou cardiomiopatia subjacentes.99 Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8. No adulto jovem é frequentemente um achado benigno,66 Chapman JH. Intermittent left bundle branch block in the athletic heart syndrome - autonomic influence on intraventricular conduction. Chest. 1977;71:776-9.,1010 Grady TA, Chiu AC, Snader CE, et al. Prognostic significance of exercise-induced left bundle branch block. JAMA. 1998;279:153-6. mas no idoso pode representar uma degeneração miocárdica progressiva que afeta o sistema condutor.99 Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8. Atrasos na condução intraventricular também podem ser causados por fatores extrínsecos que diminuam a condução como a hipercalemia ou fármacos (antiarrítmicos, antidepressivos tricíclicos e fenotiazídicos).

O comprometimento da condução nos ramos do Feixe de His é traduzido em nível eletrocardiográfico por um prolongamento do intervalo QRS (≥ 120 ms no bloqueio de ramo completo), o vetor QRS é dirigido para a região miocárdica em que a despolarização se encontra atrasada.88 Breithardt G, Breithardt O-A. Left bundle branch block, an old-new entity. J Cardiovasc Trans Res. 2012;5:107-16. O bloqueio de ramo esquerdo altera as fases inicial e tardia da despolarização ventricular. A despolarização septal ocorre anormalmente da direita para a esquerda e o vetor QRS principal apresenta-se dirigido para a esquerda e para trás.88 Breithardt G, Breithardt O-A. Left bundle branch block, an old-new entity. J Cardiovasc Trans Res. 2012;5:107-16. Assim, o BCRE gera no ECG complexos QS alargados predominantemente negativos nas derivações precordiais direitas e complexos R inteiramente positivos (ausência de ondas Q fisiológicas) na derivação V6.88 Breithardt G, Breithardt O-A. Left bundle branch block, an old-new entity. J Cardiovasc Trans Res. 2012;5:107-16. Além dessas alterações da despolarização, o bloqueio também se caracteriza por alterações secundárias da repolarização ventricular. Embora no nível celular a despolarização e a repolarização causem defleções de polaridade oposta, em condições normais, o complexo QRS e a onda T têm a mesma polaridade, uma vez que as ondas de despolarização e de repolarização têm, pelo menos em parte, direções opostas no nível do coração.77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22. No BCRE as sequências de despolarização e de repolarização estão alteradas de forma que as duas ondas têm direções quase paralelas.77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22. Adicionalmente, o atraso na condução no ramo esquerdo associado às alterações na sequência da despolarização e repolarização faz com que o período refratário da maioria dos miócitos não ocorra em simultâneo e permite que a despolarização atrasada da parede lateral do ventrículo esquerdo e a repolarização precoce do ventrículo direito ocorram no mesmo período.77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22. No ECG essas alterações manifestam-se pela discordância do complexo QRS e onda T (a onda T tipicamente apresenta polaridade oposta à da última defleção do QRS) e pela elevação ou depressão do segmento ST.77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22. Essas alterações secundárias da repolarização causadas pelo BCRE podem ser confundidas com ou encobrir alterações primárias da repolarização como as do Enfarte Agudo do Miocárdio (EAM).55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.,77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22.

Normalmente o bloqueio é permanente, mas pode ocorrer nas formas transitória, quando reverte a condução normal mesmo que temporariamente, ou intermitente, quando o bloqueio e a condução normal são observados num mesmo traçado de ECG.11 Tanus-Santos JE. Transient left bundle branch block during anesthesia. Rev Mex Anest. 1998;21:211-3.,33 Edelman JD, Hurlbert BJ. Intermittent left bundle branch block during anesthesia. Anesth Analg. 1980;59:628-30. Grande parte dos doentes com bloqueio intermitente acaba por desenvolver um bloqueio permanente.55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.,1111 Abben R, Rosen KM, Denes P. Intermittent left bundle branch block: anatomic substrate as reflected in the electrocardiogram during normal conduction. Circulation. 1979;59:1040-3. A causa desse bloqueio intermitente pode ser orgânica ou funcional. O mecanismo exato do bloqueio intermitente não está claramente definido, mas parece resultar de interrupções anatômicas ou fisiológicas num ramo condutor, quer por hipertrofia ou dilatação ventricular,33 Edelman JD, Hurlbert BJ. Intermittent left bundle branch block during anesthesia. Anesth Analg. 1980;59:628-30.,99 Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8. quer por depressão funcional ou neurogênica, com ou sem lesões subjacentes do tecido condutor.33 Edelman JD, Hurlbert BJ. Intermittent left bundle branch block during anesthesia. Anesth Analg. 1980;59:628-30.,99 Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8. A forma intermitente foi também associada a alguns fármacos22 Tagliente TM, Jayagopal S. Transient left bundle branch block following lidocaine. Anesth Analg. 1989;69:545-7.,44 Azar I, Turndorf H. Paroxysmal left bundle branch block during nitrous oxide anesthesia in a patient on lithium carbonate: a case report. Anesth Analg. 1977;56:868-70.,55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6. e taquicardia.11 Tanus-Santos JE. Transient left bundle branch block during anesthesia. Rev Mex Anest. 1998;21:211-3.

O bloqueio de ramo intermitente dependente da FC é o mais comumente reportado. Relaciona-se com um defeito na condução intraventricular que ocorre apenas quando a FC excede um determinado valor crítico, valor esse que se encontra habitualmente dentro dos valores "fisiológicos".55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.,1212 Chakrabarti D, Bhattacharjee A, Bhattacharyya A. Intermittent left bundle branch block - a diagnostic dilemma. JIACM. 2013;14:278-9. O aumento da FC e a diminuição do intervalo RR podem fazer com que impulsos elétricos descendentes encontrem um dos ramos condutores ainda no seu período refratário e originem o bloqueio.99 Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8. Esse persiste até que a FC seja mais lenta do que aquela crítica causadora do bloqueio, o intervalo RR em que ocorre o bloqueio é 80-170 ms mais curto do que aquele em que a condução retorna à normalidade (zone of linking).55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6. A transição de condução normal para bloqueio de ramo é súbita e pode ocorrer mesmo com variações de FC de apenas 1 ou 2 bpm55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.,99 Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8. e o valor crítico está dependente da velocidade de variação da FC: acelerações rápidas causam bloqueio com FC mais baixas, desacelerações rápidas causam reversão com FC mais altas.55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.,99 Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8. Estudos eletrofisiológicos mostraram que as células dos ramos condutores de pacientes com BCRE dependente da FC têm períodos refratários prolongados.55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6. Com FC mais altas, o seu potencial de membrana não diminui normalmente e a hipopolarização que apresentam condiciona um atraso da condução do impulso elétrico.55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.

Alterações transitórias da condução cardíaca durante o intraoperatório são incomuns.11 Tanus-Santos JE. Transient left bundle branch block during anesthesia. Rev Mex Anest. 1998;21:211-3.

2 Tagliente TM, Jayagopal S. Transient left bundle branch block following lidocaine. Anesth Analg. 1989;69:545-7.

3 Edelman JD, Hurlbert BJ. Intermittent left bundle branch block during anesthesia. Anesth Analg. 1980;59:628-30.
-44 Azar I, Turndorf H. Paroxysmal left bundle branch block during nitrous oxide anesthesia in a patient on lithium carbonate: a case report. Anesth Analg. 1977;56:868-70. Foram reportados raros casos de desenvolvimento ou remissão de BCRE sob anestesia (geral e locorregional), os quais foram associados a isquemia do miocárdio, hipertensão, taquicardia, variações da FC sem taquicardia e fármacos (lidocaína, trimetafano, lítio e atropina).11 Tanus-Santos JE. Transient left bundle branch block during anesthesia. Rev Mex Anest. 1998;21:211-3.,22 Tagliente TM, Jayagopal S. Transient left bundle branch block following lidocaine. Anesth Analg. 1989;69:545-7.,44 Azar I, Turndorf H. Paroxysmal left bundle branch block during nitrous oxide anesthesia in a patient on lithium carbonate: a case report. Anesth Analg. 1977;56:868-70.,55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.,99 Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8. Em certos casos não foi possível identificar a causa do bloqueio intermitente.33 Edelman JD, Hurlbert BJ. Intermittent left bundle branch block during anesthesia. Anesth Analg. 1980;59:628-30.

A dor aguda origina uma resposta neuroendócrina típica, proporcional à sua intensidade, mediada pelos sistemas endócrino e nervoso simpático, tem como principais efeitos cardiovasculares a vasoconstrição generalizada com aumento da resistência vascular periférica e o aumento da contratilidade e da frequência cardíacas.

No caso descrito, a paciente, embora não apresentasse história conhecida de doença arterial coronária, doença valvular aórtica ou cardiomiopatia, referia como um dos seus antecedentes uma hipertensão arterial com vários anos de evolução. Dada a dor abdominal aguda intensa provocada pelo quadro de perfuração de víscera oca que a paciente apresentava pré-operatoriamente, bem como uma dor do pós-operatório imediato inicialmente de difícil controle, é provável que os valores de FC medidos, embora dentro de valores normais, se situassem acima do seu valor basal. No intraoperatório, a diminuição do tónus simpático pelos fármacos analgésicos e anestésicos fez diminuir os valores de FC, os quais se mantiveram entre 65 e 74 bpm, possivelmente para um valor semelhante ou mesmo menor do que o basal da paciente. Na Unidade Semi-Intensiva, a dor pós-operatória estava já controlada e a FC estaria provavelmente perto dos valores basais da paciente. Assim, colocamos a hipótese de a FC poder ter estado intermitentemente acima da FC crítica (75 bpm) da paciente capaz de desencadear um BCRE num coração com prováveis alterações causadas pela diabetes e hipertensão. A investigação cardiológica feita não demonstrou condição patológica aguda.

Pensamos, portanto, estar perante um caso de BCRE intermitente dependente da FC, com bloqueio presente no pré e pós-operatório imediato e condução normal no intraoperatório.

Embora frequentemente associado a EAM, certos estudos apontam para um carácter benigno desse tipo de bloqueio, não associado a isquemia nem alterações da função ventricular.55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6. No entanto, as alterações eletrocardiográficas de ST-T associadas ao BCRE podem ser confundidas com ou encobrir alterações devidas a EAM,55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6. uma vez que a interpretação eletrocardiográfica do gradiente de repolarização entre miocárdio normal e anormalmente perfundido é a base para o diagnóstico EAM.77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22. Esse é um fato especialmente importante para o paciente sob anestesia geral, uma vez que se encontra incapaz de referir sintomatologia característica de isquemia miocárdica. O diagnóstico de EAM nesse contexto, embora desafiante, é possível. Atualmente, o sinal eletrocardiográfico mais preciso e confiável para o diagnóstico de EAM na presença de BCRE é o desnivelamento do segmento ST, o qual, representa o somatório das alterações de repolarização primárias do enfarte às secundárias ao bloqueio.77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22. Em 1996 Sgarbossa1313 Sgarbossa EB. Recent advances in the electrocardiographic diagnosis of myocardial infarction: left bundle branch block and pacing. Pacing Clin Electrophysiol. 1996;19:1370-9. descreveu um sistema de pontuação validado para o diagnóstico eletrocardiográfico de EAM em pacientes com BCRE. O diagnóstico é considerado positivo se forem atingidos 3 pontos baseados nos três critérios seguintes: elevação de pelo menos 1 mm do segmento ST numa derivação com complexo QRS e onda T concordantes (5 pontos); depressão de pelo menos 1 mm do segmento ST nas derivações V1, V2 ou V3 (3 pontos); elevação de pelo menos 5 mm do segmento ST numa derivação com complexo QRS e onda T discordantes (2 pontos).1313 Sgarbossa EB. Recent advances in the electrocardiographic diagnosis of myocardial infarction: left bundle branch block and pacing. Pacing Clin Electrophysiol. 1996;19:1370-9. Em 2012 Smith et al.1414 Smith SW, Dodd KW, Henry TD, et al. Diagnosis of ST-elevation myocardial infarction in the presence of left bundle branch block with the ST-elevation to S-wave ratio in a modified Sgarbossa rule. Ann Emerg Med. 2012;60:766-76. desenvolveram uma modificação aos critérios de Sgarbossa, baseada no ratio do desvio do segmento ST com amplitude da onda S ou R discordante. O sistema de Sgarbossa é altamente preditivo de EAM na presença de BCRE. Os critérios modificados parecem ser uteis no diagnóstico, contudo o cálculo manual de ST/S ou ST/R é moroso.77 Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22.

O BCRE dependente da FC também já foi confundido com taquicardia ventricular lenta e inapropriadamente tratado.11 Tanus-Santos JE. Transient left bundle branch block during anesthesia. Rev Mex Anest. 1998;21:211-3. Assim, o diagnóstico correto dessa alteração particular da condução cardíaca assume especial importância. Foram descritas manobras feitas no intraoperatório que, ao desencadear ou interromper o bloqueio através da alteração da FC (valsalva, massagem carotídea, administração de atropina, neostigmina ou propranolol), auxiliaram o diagnóstico de BCRE dependente de FC.55 Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6. As manobras provocativas devem, no entanto, ser usadas com cuidado em pacientes com doença cardiovascular, cerebrovascular ou do nodo aurículo-ventricular.

Embora o desenvolvimento ou a remissão desse bloqueio sob anestesia sejam incomuns, o anestesiologista deverá estar alertado para a possibilidade da sua ocorrência. Além do recurso aos critérios de Sgarbossa e/ou das manobras acima descritas, aconselha-se a feitura de estudo Holter após a cirurgia.

References

  • 1
    Tanus-Santos JE. Transient left bundle branch block during anesthesia. Rev Mex Anest. 1998;21:211-3.
  • 2
    Tagliente TM, Jayagopal S. Transient left bundle branch block following lidocaine. Anesth Analg. 1989;69:545-7.
  • 3
    Edelman JD, Hurlbert BJ. Intermittent left bundle branch block during anesthesia. Anesth Analg. 1980;59:628-30.
  • 4
    Azar I, Turndorf H. Paroxysmal left bundle branch block during nitrous oxide anesthesia in a patient on lithium carbonate: a case report. Anesth Analg. 1977;56:868-70.
  • 5
    Domino KB, LaMantia KL, Geer RT, et al. Intraoperative diagnosis of rate-dependent bundle branch block. Can Anaesth Soc J. 1984;31:302-6.
  • 6
    Chapman JH. Intermittent left bundle branch block in the athletic heart syndrome - autonomic influence on intraventricular conduction. Chest. 1977;71:776-9.
  • 7
    Herweg B, Marcus MB, Barold SS. Diagnosis of myocardial infarction and ischemia in the setting of bundle branch block and cardiac pacing. Herzschr Elektrophys. 2016;27:307-22.
  • 8
    Breithardt G, Breithardt O-A. Left bundle branch block, an old-new entity. J Cardiovasc Trans Res. 2012;5:107-16.
  • 9
    Mishra S, Nasa P, Goyal GN, et al. The rate dependent bundle branch block - transition from left bundle branch block to intraoperative normal sinus rhythm - case report. Middle East J Anesthesiol. 2009;20:295-8.
  • 10
    Grady TA, Chiu AC, Snader CE, et al. Prognostic significance of exercise-induced left bundle branch block. JAMA. 1998;279:153-6.
  • 11
    Abben R, Rosen KM, Denes P. Intermittent left bundle branch block: anatomic substrate as reflected in the electrocardiogram during normal conduction. Circulation. 1979;59:1040-3.
  • 12
    Chakrabarti D, Bhattacharjee A, Bhattacharyya A. Intermittent left bundle branch block - a diagnostic dilemma. JIACM. 2013;14:278-9.
  • 13
    Sgarbossa EB. Recent advances in the electrocardiographic diagnosis of myocardial infarction: left bundle branch block and pacing. Pacing Clin Electrophysiol. 1996;19:1370-9.
  • 14
    Smith SW, Dodd KW, Henry TD, et al. Diagnosis of ST-elevation myocardial infarction in the presence of left bundle branch block with the ST-elevation to S-wave ratio in a modified Sgarbossa rule. Ann Emerg Med. 2012;60:766-76.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    3 Ago 2016
  • Aceito
    23 Nov 2016
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org