Acessibilidade / Reportar erro

Manejo simples de embolia gasosa durante miomectomia abdominal

Resumo

Relatamos um caso de embolia gasosa durante miomectomia abdominal. Embora a incidência exata de embolia gasosa não seja conhecida, a maioria dos casos relatados na literatura se refere à posição sentada em craniotomias. Muitos casos são subclínicos e os métodos diagnósticos têm diferentes graus de sensibilidade e especificidade. No momento da suspeita, a prevenção de qualquer êmbolo de ar subsequente é a chave fundamental do tratamento.

PALAVRAS-CHAVE
Embolia aérea; Miomectomia; Anestesia

Abstract

We report a case of venous air embolism during abdominal myomectomy. Although true incidence of venous air embolism is not known, in literature most of reported cases are belongs to sitting position craniotomies. Many of those are subclinical, and diagnostic methods have varying degrees of sensitivity and specificity. At time of suspicion, prevention of any subsequent air emboli is the cornerstone of treatment.

KEYWORDS
Venous air embolism; Myomectomy; Anesthesia

Paciente do sexo feminino, 36 anos, altura 150 cm, peso 80 kg, estado físico ASA II (de acordo com a classificação da Sociedade Americana de Anestesiologistas [ASA]), diagnosticada com asma e sob tratamento com fluticasona e salmeterol, foi agendada para correção de hérnia umbilical. Além do quadro apresentado, não tinha história médica específica. Os exames pré-operatório e laboratorial, o teste de função respiratória, o eletrocardiograma e a radiografia de tórax não revelaram achados anormais. Trinta minutos antes da cirurgia, a paciente foi hidratada com 10 mL.kg-1 de solução de Ringer com lactato. Monitoração de rotina foi feita logo que a paciente deu entrada na sala de operação. Para a raquianestesia, uma agulha espinhal de calibre 26G Atraucan foi inserida no interespaço L3-4, em posição sentada e abordagem pela linha média. Um bloqueio até T4 foi obtido e o escore de Bromage era 4 antes da cirurgia. Após a incisão cirúrgica na linha média, vários miomas grandes foram observados no útero. Após obter o termo de consentimento informado assinado pela família da paciente, os ginecologistas decidiram fazer miomectomia dos grandes miomas. No início da cirurgia, os sinais vitais estavam estáveis. A pressão arterial média era de 110/60 e a frequência cardíaca de 70-80 bpm. Três litros de oxigênio foram administrados via cânula nasal e a saturação de oxigênio era de 99-100%. Ao iniciar a miomectomia, a paciente queixou-se de sensibilidade abdominal e desconforto, a despeito da sedação com 0,05 mg.kg-1 de midazolam e 1 µg.kg-1 de fentanil. Então decidimos aplicar uma anestesia geral. Após a indução com 200 mg de propofol e 50 mg de rocurônio, a traqueia foi intubada. A anestesia foi mantida com uma mistura de O2:Ar ambiente (40:60%) e sevoflurano a 2%, com ventilação controlada com volume corrente de 500 mL, frequência respiratória de 12 e PEEP (pressão positiva no fim da expiração) de 5 cmH2O. Saturação de oxigênio (SpO2), ECG, fração expirada de CO2 (ETCO2) e pressão arterial não invasiva foram monitorados continuamente durante a cirurgia, que transcorreu sem intercorrências. Uma perda de sangue abundante (cerca de 500 mL) durante essa primeira miomectomia foi observada, com SpO2, pressão arterial e ETCO2 caindo para 80%, 65/40 mmHg e 20, respectivamente. Uma cânula foi inserida na artéria radial esquerda e a gasometria arterial detectou pH de 7,22; PO2 de 45 mmHg e PCO2 de 40 mmHg. Por causa dos resultados da gasometria e da instabilidade hemodinâmica, suspeitamos de embolia gasosa. Para visualizar o útero da paciente e os grandes miomas, o útero foi exteriorizado. Ausculta precordial do ápice do coração revelou um leve sopro cardíaco (semelhante à roda d’água). Por conseguinte, mudamos a posição da paciente para decúbito lateral esquerdo. Informamos aos cirurgiões sobre uma possível embolia gasosa. Os cirurgiões inundaram o campo cirúrgico com soro fisiológico. A imagem de bolhas de ar observada na ecocardiografia transtorácica também corroborou a nossa suspeita. Administramos oxigênio a 100% e aumentamos a PEEP para 10 cmH2O. Para aumentar a pressão venosa central e repor a perda de sangue, a paciente foi hidratada com 1.000 mL de solução de Ringer com lactato e 500 mL de coloides em uma hora. Junto com a hidratação, iniciamos uma infusão com 10 mg.h-1 de efedrina após duas doses em bolus de 5 mg. Dentro de 30 minutos, a pressão arterial, os valores de SpO2 e ETCO2 aumentaram gradualmente para 90/45 mmHg, 90% e 30, respectivamente. A gasometria arterial nesse momento mostrou pH de 7,30; PO2 de 224 mmHg e PCO2 de 35 mmHg. Subsequentemente, o sopro desapareceu. A cirurgia foi concluída com a paciente na posição de Trendelenburg reversa. A paciente foi extubada no fim da cirurgia e recebeu alta da UTI para a enfermaria geral um dia após a cirurgia.

Discussão

Embolia gasosa é definida como o aprisionamento no sistema venoso central de ar proveniente de lesão na estrutura venosa. Embora a embolia gasosa seja observada principalmente durante a posição sentada em craniotomias, embolia venosa também pode ser vista durante a cesariana.11 Mushkat Y, Luxman D, Nachum Z, et al. Gas embolism complicating obstetric or gynecologic procedures. Case reports and review of the literature. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 1995;63:97-103. Mecanismo de embolia venosa e diagnóstico durante a cesariana foram definidos em muitos estudos. 22 Lew TW, Tay DH, Thomas E. Venous air embolism during cesarean section: more common than previously thought. Anesth Analg. 1993;77:448-52.,33 Fong J, Gadalla F, Druzin M. Venous emboli occurring caesarean section: the effect of patient position. Can J Anaesth. 1991;38:191-5. A diferença de altura entre a incisão uterina e o coração causa um gradiente de pressão negativo que permite a embolia aérea. Pelo mesmo mecanismo, durante a miomectomia a exteriorização abdominal do útero provoca gradiente gravitacional e leva ao aprisionamento de ar na estrutura venosa danificada.44 Lang S. Precordial Doppler diagnosis of haemodynamically compromising air embolism during caesarean section. Can J Anaesth. 1991;38:255-6.

Em nossa paciente, a raquianestesia previamente administrada diminuiu a resistência vascular sistêmica e causou acúmulo de sangue venoso. Após a indução, a resistência vascular sistêmica diminuiu ainda mais. Todos esses fatores seriam uma explicação para esses sintomas porque, em estados de baixo débito cardíaco, a ETCO2 baixa pode ser observada. A asma relacionada ao broncoespasmo exibe o mesmo quadro sintomático.

A hidratação pré-operatória e a reposição da perda sanguínea com a mesma quantidade de solução de Ringer com lactato impediram a hipotensão profunda. Não observamos qualquer pico de pressão das vias aéreas ou broncoespasmo relacionado ao padrão da ETCO2. Portanto, descartamos as duas causas possíveis e principais que poderiam ser uma explicação para a alteração hemodinâmica e respiratória da paciente.

A suspeita de embolia gasosa durante procedimentos obstétricos pode ser considerada se hipotensão inexplicável e nível baixo de ETCO2 forem observados concomitantemente ou se hipotensão e hipóxia não forem explicadas apenas com hipovolemia.

Como embolia gasosa foi detectada com o ecocardiograma transtorácico, excluímos o tromboembolismo pulmonar, que poderia ser outra razão para esse quadro.

Não há dados validados que corroborem a inserção de cateter para aspiração de ar do átrio direito. Decidimos adiar a inserção de cateter venoso central para o caso de haver qualquer comprometimento hemodinâmico e respiratório adicional. Depois de aplicar todas as medidas preventivas e de apoio, os parâmetros hemodinâmicos e respiratórios da paciente foram normalizados, sem necessidade de qualquer procedimento intervencionista ou diagnóstico.

No processo de manejo do paciente, os cirurgiões devem ser informados sobre a suspeita de embolia gasosa. Assim, o cirurgião poderá verificar e proteger qualquer local possível de êmbolos para inibir a entrada adicional de ar. Hidratação para aumentar a pressão venosa central, aplicação imediata de alta pressão de oxigênio para maximizar a oxigenação do paciente e uso da posição de Trendelenburg para aprimorar a hemodinâmica são outros métodos de tratamento de apoio.

Este caso nos mostra que a embolia gasosa pode ser observada durante miomectomia. Embora as embolias gasosas tenham consequências dramáticas, elas podem ser tratadas de forma conservadora se medidas preventivas adicionais forem aplicadas em caso de suspeita.

References

  • 1
    Mushkat Y, Luxman D, Nachum Z, et al. Gas embolism complicating obstetric or gynecologic procedures. Case reports and review of the literature. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 1995;63:97-103.
  • 2
    Lew TW, Tay DH, Thomas E. Venous air embolism during cesarean section: more common than previously thought. Anesth Analg. 1993;77:448-52.
  • 3
    Fong J, Gadalla F, Druzin M. Venous emboli occurring caesarean section: the effect of patient position. Can J Anaesth. 1991;38:191-5.
  • 4
    Lang S. Precordial Doppler diagnosis of haemodynamically compromising air embolism during caesarean section. Can J Anaesth. 1991;38:255-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Jan 2014
  • Aceito
    5 Fev 2014
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org