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Correção de gastrosquise sob anestesia caudal: uma série de três casos

Resumo

Gastrosquise é uma anomalia congênita caracterizada por um defeito da parede abdominal anterior com protrusão de vísceras abdominais. A mortalidade no período perioperatório é muito elevada nesses pacientes. Tradicionalmente, a correc¸ão de gastrosquise tem sido feita sob anestesia geral com intubac¸ão orotraqueal, o que requer internac¸ão em unidade de terapia intensiva e ventilac¸ão mecânica no pós-operatório. O bloqueio caudal é uma opc¸ão atraente à anestesia geral. Apresentamos uma série de três casos de recém-nascidos com gastrosquise corrigida unicamente sob anestesia caudal.

PALAVRAS-CHAVE
Gastrosquise; Anestesia caudal; Lactentes, recém-nascido

Abstract

Gastroschisis is a congenital anomaly characterized by a defect in the anterior abdominal wall with protrusion of abdominal viscera. Perioperative mortality is very high in these patients. Traditionally gastroschisis repair has been performed under general anesthesia with endotracheal intubation, requiring postoperative intensive care admission and mechanical ventilation. Caudalblock is an attractive alternative to general anesthesia. We present a series of three neonates with gastroschisis, repaired solely under caudal anesthesia.

KEYWORDS
Gastroschisis; Anesthesia, caudal; Infant, newborn

Introdução

Gastrosquise é uma malformação congênita da parede abdominal anterior com protrusão de vísceras para fora da cavidade abdominal. A incidência é de 2-4,9 por 10.000 nascidos vivos, com preponderância do sexo masculino.11 Klein MD. Congenital defects of the abdominal wall. In: Grosfeld JL, O'Neill JA Jr, Coran AG, Fonkalsrud EW, Caldamone AA, editors. Textbook of paediatric surgery. 6th ed. Philadelphia: Mosby Elsevier; 2006. p. 1157-71 [Chapter 73]. A administração de anestesia geral a esses recém-nascidos aumenta a probabilidade de apneia no período pós-operatório e a necessidade de ventilação mecânica. Para superar esses problemas, os bloqueios neuraxiais centrais são vistos como uma opção. Relatamos uma série de três casos de recém-nascidos com gastrosquise nos quais a cirurgia foi feita apenas sob anestesia caudal.

Série de casos

Caso um

Neonato com dois dias de vida, nascido prematuramente na 34ª semana, com 1,5 kg, enviado para aplicação de silo para gastrosquise. Ao exame, o intestino delgado do paciente estava projetado para fora da parede abdominal. O recém-nascido estava ativo e com bom choro. A frequência de pulso do paciente era de 130 batimentos por minuto (bpm) e a respiratória de 35 incursões por minuto (ipm). A avaliação no pré-operatório não revelou qualquer anomalia sistêmica. Os testes laboratoriais estavam dentro dos limites normais. Dextrose a 10% (120 mL.kg-1.dia-1) foi administrada por dois dias.

Caso dois

Neonato com quatro dias de vida, nascido prematuramente na 34ª semana, com 2 kg, enviado para aplicação de silo para gastrosquise. O intestino delgado e parte do estômago estavam fora da cavidade abdominal. A frequência de pulso do paciente no pré-operatório era de 145 bpm e a respiratória de 40 ipm. A avaliação cardiorrespiratória e as análises bioquímicas estavam dentro dos limites normais. Soluções eletrolíticas foram administradas (150 mL.kg-1.dia-1).

Caso três

Neonato com 12 horas de vida, nascido na 36a semana, com 2,1 kg, enviado para redução completa devido à gastrosquise. Parte do intestino delgado e do intestino grosso estava em protrusão para fora do abdômen. O recém-nascido estava ativo e com bom choro. A frequência de pulso era de 144 bpm e a respiratória de 45 ipm. Todos os testes estavam dentro dos limites normais. Dextrose a 10% (100 mL.kg-1.dia-1) foi administrada.

Manejo da anestesia

No período intraoperatório, a monitoração incluiu cardioscópio, oxímetro de pulso pré- e pós-ductal, sensor de temperatura e pressão arterial não invasiva.

Todos os procedimentos foram feitos somente sob bloqueio caudal. A indução por inalação foi feita com sevoflurano via máscara facial para manter a imobilidade dos recém-nascidos durante a realização do bloqueio caudal. Após o posicionamento do paciente em decúbito lateral esquerdo e sob todas as precauções assépticas, uma combinação de 2 mg.kg-1 de bupivacaína a 0,5% e 7 mg de lidocaína a 2% com adrenalina a 1:200.000 foi administrada. O volume total das substancias administradas em todos os casos foi de 1,25 mL.kg-1; a combinação dos anestésicos locais foi diluída com soro fisiológico normal para perfazer o volume calculado. Nenhuma outra medicação foi administrada. Oxigênio foi fornecido através de cateter nasal a 1 L.min-1 e a monitoração contínua do CO2 expirado foi feita. A analgesia foi complementada com paracetamol injetável (7,5 mg.kg-1). Os líquidos no período perioperatório consistiram em 10 mL.kg-1 de dextrose a10% para manutenção e 15 mL.kg-1 de soro fisiológico para reposição de líquidos. Os sinais vitais mantiveram-se estáveis no período perioperatório. Os recém-nascidos respiraram espontaneamente durante todo o tempo. A aplicação de tela foi feita nos dois primeiros casos, enquanto o fechamento primário foi feito no terceiro caso. Os procedimentos duraram 60 minutos (min), 75 min e 90 min, respectivamente. A perda de sangue foi mínima em todos os casos. Os três recém-nascidos foram transferidos para a UTI neonatal, respiravam espontaneamente e sem qualquer necessidade de intubação ou suporte ventilatório e foram observados para depressão respiratória, apneia e sinais de desenvolvimento de síndrome compartimental.

Discussão

As cirurgias abdominais de grande porte em recém-nascidos são em sua maioria feitas sob anestesia geral com intubação endotraqueal ou sob anestesia geral com bloqueio regional. Porém, a anestesia geral aumenta a probabilidade de complicações, como a necessidade de ventilação mecânica prolongada e a morbidade associada à ventilação prolongada, especialmente em recém-nascidos prematuros de alto risco.22 Steward DJ. Preterm infants are more prone to complications following surgery than term infants. Anesthesiology. 1982;56:304-6.

A anestesia regional tem sido defendida para recém-nascidos de alto risco que precisam respirar espontaneamente após a cirurgia. Pode ser considerada como uma técnica anestésica eficaz em recém-nascidos e lactentes acordados ou sedados como uma opção para a anestesia geral em cirurgia gastrointestinal. Nesta série de três casos, o bloqueio caudal com injeção única foi administrado com êxito para correção de gastrosquise.22 Steward DJ. Preterm infants are more prone to complications following surgery than term infants. Anesthesiology. 1982;56:304-6.

O bloqueio caudal está associado a uma mínima alteração cardiorrespiratória, mas oferece estabilidade hemodinâmica com bom relaxamento muscular. Esse bloqueio diminui a necessidade de analgésicos opioides no perioperatório e a depressão respiratória associada. Outras vantagens incluem a redução da resposta ao estresse cirúrgico e da incidência de hipoxemia e bradicardia no pós-operatório. Além disso, um recém-nascido com respiração espontânea permite ao cirurgião decidir sobre a viabilidade de fechamento primário. Dessa forma, o desconforto respiratório devido ao aumento da pressão intra-abdominal pode ser reconhecido precocemente.33 Vane DW, Abajian JC, Hong AR. Spinal anaesthesia for primary repair of gastroschisis: a new and safe technique for selected patients. J Paediatr Surg. 1994;29:1234-5. O oxímetro de pulso em membro inferior ajuda o cirurgião a determinar a extensão da reposição do intestino no abdome que será tolerada pelo neonato sem comprometer a circulação no membro inferior.

A raquianestesia também pode ser usada como técnica anestésica para correção de gastrosquise.33 Vane DW, Abajian JC, Hong AR. Spinal anaesthesia for primary repair of gastroschisis: a new and safe technique for selected patients. J Paediatr Surg. 1994;29:1234-5.,44 Tobias JD. Spinal anaesthesia in infants and children. Paediatr Anaesth. 2000;10:5-16. Sua desvantagem é a dificuldade de avaliar o nível da coluna vertebral em recém-nascidos e o curto tempo de ação. O reposicionamento do conteúdo abdominal aumenta a pressão intra-abdominal, o que também aumenta a chance da anestesia espinhal alta ou total levar ao desconforto respiratório. O bloqueio caudal ajuda ainda mais a evitar essas complicações.

A combinação de raquiperidural também foi relatada como uma técnica anestésica segura para correção de gastrosquise. Porém, essa abordagem é demorada e apresenta outros problemas, como dificuldade técnica, falha na colocação de cateteres peridurais e deslocamento acidental de cateteres.55 Somri M, Tome R, Yanovski B, et al. Combined spinal-epidural anaesthesia in major abdominal surgery in high-risk neonates and infants. Paediatr Anaesth. 2007;17:1059-65.

Para concluir, relatamos a administração segura do bloqueio caudal para correção de gastrosquise, especialmente nos países em desenvolvimento, onde os recursos são limitados ou restritos.

References

  • 1
    Klein MD. Congenital defects of the abdominal wall. In: Grosfeld JL, O'Neill JA Jr, Coran AG, Fonkalsrud EW, Caldamone AA, editors. Textbook of paediatric surgery. 6th ed. Philadelphia: Mosby Elsevier; 2006. p. 1157-71 [Chapter 73].
  • 2
    Steward DJ. Preterm infants are more prone to complications following surgery than term infants. Anesthesiology. 1982;56:304-6.
  • 3
    Vane DW, Abajian JC, Hong AR. Spinal anaesthesia for primary repair of gastroschisis: a new and safe technique for selected patients. J Paediatr Surg. 1994;29:1234-5.
  • 4
    Tobias JD. Spinal anaesthesia in infants and children. Paediatr Anaesth. 2000;10:5-16.
  • 5
    Somri M, Tome R, Yanovski B, et al. Combined spinal-epidural anaesthesia in major abdominal surgery in high-risk neonates and infants. Paediatr Anaesth. 2007;17:1059-65.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2016
  • Aceito
    22 Jul 2016
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