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Infarto cerebelar após orquidopexia sob raquianestesia

Resumo

O presente relato descreve um caso de acidente vascular cerebral perioperatório que resultou em diplopia e dificuldade de marcha no segundo dia após orquidopexia de rotina sob raquianestesia em um jovem, em outros aspectos, saudável. Ressonância magnética cerebral revelou infarto agudo em hemisférios cerebelares bilaterais, metade esquerda do bulbo e tálamo esquerdo. Um diagnóstico de acidente vascular cerebral agudo (infarto) foi feito e o paciente começou a receber tratamento com aspirina oral (75 mg.dia-1), após o qual sua visão começou a melhorar após duas semanas. Possíveis mecanismos de desenvolvimento de acidente vascular cerebral no período perioperatório são discutidos, mas, mesmo após extensas investigações, a etiologia do infarto pode ser difícil de determinar. O infarto agudo após cirurgia eletiva não cardíaca e não neurológica é raro; talvez não seja possível identificar a etiologia em todos os casos. Os médicos devem ter um elevado grau de suspeita para diagnosticar essas complicações inesperadas, mesmo após procedimentos cirúrgicos de rotina, para diminuir a morbidade e as sequelas em longo prazo.

PALAVRAS-CHAVE
Isquemia; Acidente vascular cerebral; Orquidopexia; Raquianestesia

Abstract

The report describes a case of peri-operative stroke that presented as diplopia and gait difficulty on 2nd post-operative day after routine orchidopexy under spinal anesthesia in an otherwise healthy young boy. Magnetic resonance imaging of the brain revealed acute infarct in bilateral cerebellar hemispheres, left half of medulla and left thalamus. A diagnosis of acute stroke (infarct) was made and patient was started on oral aspirin 75 mg.day-1, following which his vision started improving after 2 weeks. Possible mechanisms of development of stroke in the peri-operative period are discussed, but, even after extensive investigations, the etiology of infarct may be difficult to determine. Acute infarct after elective non-cardiac, non-neurological surgery is rare; it may not be possible to identify the etiology in all cases. Clinicians must have a high index of suspicion to diagnose such unexpected complications even after routine surgical procedures in order to decrease the morbidity and long term sequelae.

KEYWORDS
Ischemia; Stroke; Orchidopexy; Spinal anestesia

Introdução

A ocorrência de acidente vascular cerebral (AVC) perioperatório após procedimentos que não são neurocirúrgicos e cardíacos é um evento muito raro, com relato de sua incidência em torno de 0,05-7%.11 Ng JL, Chan MT, Gelb AW. Perioperative stroke in noncardiac, nonneurosurgical surgery. Anesthesiology. 2011;115:879-90. Na maioria dos pacientes, o AVC ocorreu no período pós-operatório após a alta e presume-se que a etiologia seja em grande parte de natureza trombótica.11 Ng JL, Chan MT, Gelb AW. Perioperative stroke in noncardiac, nonneurosurgical surgery. Anesthesiology. 2011;115:879-90. O caso que apresentamos é o de uma cirurgia eletiva de rotina com uma complicação inesperada. O aprendizado resultante é que deve haver um elevado grau de suspeita para diagnosticar essas complicações inesperadas, mesmo após procedimentos cirúrgicos de rotina.

Relato de caso

Um menino de 10 anos com diagnóstico de criptorquidia bilateral foi internado em junho de 2016 em um centro de atendimento terciário no norte da Índia. O paciente não apresentava fatores de risco vasculares, inclusive história pregressa de discrasias sanguíneas, como doença falciforme, doenças cardiovasculares ou metabólicas. O menino apresentava boa compleição (peso: 30 kg; altura: 120 cm; IMC: 20,8 kg.m-2). A frequência cardíaca basal era de 96 bpm e a pressão arterial de 104/65 mm Hg. Ao exame físico o paciente apresentava bom estado geral e ao exame local apresentava escroto rudimentar, testículo inguinal bilateral, com comprimento peniano normal de acordo com a idade. O paciente foi submetido à orquidopexia bilateral sob raquianestesia. Após a sedação com 1 mg de midazolam intravenoso, a raquianestesia foi administrada por meio de uma agulha espinhal (Whitacre) de calibre 25G no interespaço L3-L4, através da qual bupivacaína hiperbárica (12 mg) e fentanil (25 mg) foram aplicados por via intratecal. O nível de raquianestesia para o bloqueio sensorial foi alcançado até o nível T10 da coluna vertebral e para o tato foi alcançado até o nível espinhal de T6. Além dos medicamentos mencionados acima, o único outro medicamento que o paciente recebeu foi uma injeção de 500 mg de cefazolina intravenosa como antibiótico profilático. O curso intraoperatório transcorreu sem incidentes. O paciente recebeu 800 mL de líquidos intravenosos (Ringer lactato) e a perda de sangue foi mínima. O efeito da raquianestesia durou aproximadamente duas horas e 30 minutos. Durante todo o procedimento, os parâmetros vitais (frequência cardíaca, frequência respiratória e pressão arterial) foram mantidos dentro dos limites normais prescritos para a idade - a documentação dos registros revelou que a pressão arterial média nunca caiu abaixo de 65 mm Hg, enquanto a menor pressão arterial sistólica registrada foi de 90 mm Hg. No segundo dia de pós-operatório, o paciente queixou-se de diplopia e dificuldade para andar. Não houve febre associada, rigidez do pescoço, convulsões ou vômito. Ao exame, os parâmetros vitais registraram temperatura de 37 °C, frequência de pulso de 92 bpm (faixa normal: 80-120 bpm), pressão arterial de 107/78 mm Hg (pressão sistólica normal: 102-120 mm Hg; pressão diastólica normal: 61-80 mm Hg), frequência respiratória de 16.min-1 (frequência respiratória normal: 20-25 por min) e Escala de Coma de Glasgow de 15/15. O exame oftalmológico revelou pupilas de tamanho normal, reativas à luz (direta e consensual). Havia diminuição da acuidade visual, nistagmo em todos os quatro olhares, estrabismo latente convergente do lado esquerdo com sinal de Romberg positivo (ataxia cerebelar positiva); a fundoscopia estava normal. O restante do exame neurológico estava normal. Não havia características clínicas sugestivas de trombose venosa profunda. O paciente foi encaminhado ao departamento de neurologia e com recomendação para uma ressonância magnética (RM) urgente do cérebro. A RM (em sequenciamento de spin-echo rápido, ponderado em T2 por recuperação da inversão atenuada de fluido) revelou múltiplos infartos agudos pequenos em hemisférios cerebelares bilaterais, metade esquerda da medula oblonga e tálamo esquerdo (ambos os territórios para artéria cerebelar anteroinferior [AICA] e artéria cerebelar posteroinferior [PICA]) (fig. 1); a angiorressonância (angio-RM) mostrou não visualização da porção vertebral e proximal bilateral da artéria basilar (fig. 2) e reformação da artéria cerebral posterior bilateral por artérias comunicantes bilaterais posteriores (fig. 3). Não havia evidência de anomalias arteriais congênitas. A RM orbital não apresentou anormalidade. A ecocardiografia revelou forame oval patente (desvio da esquerda para a direita). A RM da coluna lombossacra estava normal. A ortografia por TC também estava normal. Os tempos de protrombina e de tromboplastina parcial ativada e os níveis séricos de proteína C, proteína S e antitrombina III estavam normais. D-dímero e ESR também estavam normais. Outros estudos sanguíneos, inclusive hemograma completo, eletroforese de hemoglobina, perfil de anticorpos antifosfolípides (APLA); painel para hemoglobinúria paroxística noturna (PNH); anticorpos antinucleares [ANA]; e homocisteína sérica também estavam normais. A possibilidade de acidente vascular cerebral isquêmico agudo perioperatório foi mantida. O paciente foi iniciado em tratamento com aspirina oral (75 mg.dia-1) e sua visão começou a melhorar após duas semanas. O paciente recebeu alta após duas com prescrição de aspirina (75 mg.dia-1) por três meses. Após seis meses, o paciente obteve melhoria da visão e da marcha.

Figura 1
Múltiplas áreas pequenas, discretas e confluentes de restrição de difusão verdadeira envolvem os hemisférios cerebelares bilaterais sugestivos de infarto agudo (setas vermelhas).

Figura 2
Imagem da angio-RM com imagem 3D-TOF (time-of-flight) mostra a não visualização do realce relacionado ao fluxo da porção proximal e vertebral bilateral da artéria basilar (a porção distal da artéria basilar é marcada pela seta vermelha).

Figura 3
Imagem de angio-RM em 3D-TOF (time-of-flight) mostra artéria cerebral posterior bilateral (pontas de setas amarelas) reformada por artérias comunicantes bilaterais posteriores (pontas de setas vermelhas).

Discussão

O AVC perioperatório é uma condição grave que pode deixar sequelas angustiantes em curto e longo prazo se o tratamento oportuno não for feito. AVC perioperatório é definido como um infarto cerebral de etiologia isquêmica ou hemorrágica que ocorre durante a cirurgia ou dentro de um período de 30 dias após a cirurgia.22 Sacco RL, Kasner SE, Broderick JP, et al. An updated definition of stroke for the 21st century. Stroke. 2013;44:2064-89. Existem vários fatores de risco associados ao desenvolvimento de AVC perioperatório, como certos procedimentos cirúrgicos de risco, doença vascular coexistente, hipotensão intraoperatória e discrasias sanguíneas (como a doença falciforme).11 Ng JL, Chan MT, Gelb AW. Perioperative stroke in noncardiac, nonneurosurgical surgery. Anesthesiology. 2011;115:879-90. Sua incidência é incomum após procedimentos cirúrgicos não cardíacos, não neurológicos e de pequeno porte. No entanto, até onde sabemos, não há relatos de casos de AVC perioperatório em crianças. Lee et al. relataram um caso de infarto cerebelar em um homem de 48 anos, causado por abscesso peridural após neuroplastia peridural.33 Lee HY, Wang HS, Kim SW, et al. Cerebellar infarction following epidural abscess after epidural neuroplasty. Korean J Spine. 2015;12:26-8. O paciente desenvolveu febre, dor de cabeça e confusão, com sinais neurológicos focais de rigidez do pescoço três dias após o procedimento. Uma RM do cérebro revelou a presença de um infarto cerebelar esquerdo.33 Lee HY, Wang HS, Kim SW, et al. Cerebellar infarction following epidural abscess after epidural neuroplasty. Korean J Spine. 2015;12:26-8. Segundo os autores, o possível mecanismo para o desenvolvimento de AVC nesse caso pode ter sido a vasculopatia cerebral secundária à meningite bacteriana que pode ter se desenvolvido secundária ao abscesso peridural. Há outro relato publicado por Al-Asmi et al., no qual os autores descrevem o caso de uma mulher de 28 anos que desenvolveu infarto extenso da medula espinhal após tratamento de hematoma hepático e recebeu analgesia peridural pós-operatória.44 Al-Asmi A, John R, Nandhagopal R, et al. Spinal cord infarction following abdominal surgery and postoperative epidural analgaesia. Sultan Qaboos Univ Med J. 2010;10:396. A paciente não apresentou fatores de risco vascular para AVC. Oito horas após o início da analgesia peridural, ela desenvolveu fraqueza sensorial e motora nos membros inferiores juntamente com disfunção intestinal e da bexiga. Uma RM da coluna vertebral feita nessa paciente revelou hiperintensidade difusa da medula espinhal distal que envolvia a substância cinzenta central no lado esquerdo.44 Al-Asmi A, John R, Nandhagopal R, et al. Spinal cord infarction following abdominal surgery and postoperative epidural analgaesia. Sultan Qaboos Univ Med J. 2010;10:396. Os possíveis mecanismos que levam ao desenvolvimento de déficits neurológicos após anestesia espinhal ou peridural também podem incluir a compressão medular secundária ao hematoma peridural, lesão dos vasos peridurais que suprem a medula, contaminação e meningite iatrogênica.55 Kane RE. Neurologic deficits following epidural or spinal anesthesia. Anesth Analg. 1981;60:150-61.

6 Brull R, McCartney CJ, Chan VW, et al. Neurological complications after regional anesthesia: contemporary estimates of risk. Anesth Analg. 2007;104:965-74.
-77 Bromage PR, Benumof JL. Paraplegia following intracord injection during attempted epidural anesthesia under general anesthesia. Reg Anesth Pain Med. 1998;23:104-7. Overell et al. fizeram uma metanálise de estudos caso-controle sobre anormalidades do septo interatrial e AVC e propuseram que o forame oval patente pode resultar em AVC criptogênico em adultos com menos de 55 anos, secundário à embolia paradoxal por forame oval patente.88 Overell JR, Bone I, Lees KR. Interatrial septal abnormalities and stroke: a meta-analysis of case-control studies. Neurology. 2000;55:1172-9. Os mecanismos subjacentes ao AVC perioperatório durante cirurgias da coluna são menos claramente definidos. Mione et al. descreveram o caso de um paciente de 55 anos que apresentou AVC isquêmico bilateral em zonas de fronteira após laminectomia lombar feita para estenose da coluna vertebral.99 Mione G, Pische G, Wolff V, et al. Perioperative bioccipital watershed strokes in bilateral fetal posterior cerebral arteries during spinal surgery. World Neurosurg. 2016;85:e17-e21. Os autores propuseram que a hipotensão intraoperatória em uma variação na anatomia do círculo de Willis (origem fetal de ambas as artérias cerebrais posteriores com hipoplasia de segmentos proximais) pode diminuir o fluxo sanguíneo cerebral e levar ao AVC.99 Mione G, Pische G, Wolff V, et al. Perioperative bioccipital watershed strokes in bilateral fetal posterior cerebral arteries during spinal surgery. World Neurosurg. 2016;85:e17-e21. Zheng et al. divulgaram dados clínicos e características de exames de imagem de 178 pacientes com infarto cerebral.1010 Zheng M, Sun A, Sun Q, et al. Clinical and imaging analysis of a cerebellar watershed infarction. Chinese Med. 2015;6:6:54. Os autores relataram que as anormalidades hemodinâmicas causadas por lesões vasculares podem diminuir a pressão de perfusão cerebral, podem levar ao acúmulo de microembolias na periferia vascular e ao infarto nas zonas de fronteira de suprimento do vasos cerebrais.1010 Zheng M, Sun A, Sun Q, et al. Clinical and imaging analysis of a cerebellar watershed infarction. Chinese Med. 2015;6:6:54. Os autores propuseram que os pacientes com infartos corticais em zonas de fronteira apresentam alta prevalência de estenose dos grandes vasos sanguíneos e que um exame dos vasos extracranianos, especialmente o segmento extracraniano da artéria vertebral, deve ser feito para que a intervenção seja precoce e a progressão do AVC possa ser prevenida.1010 Zheng M, Sun A, Sun Q, et al. Clinical and imaging analysis of a cerebellar watershed infarction. Chinese Med. 2015;6:6:54. No entanto, em nosso paciente, não havia evidência de variação anatômica dos vasos cerebrais e não houve episódio documentado de hipotensão intraoperatória. Podemos apenas supor que o AVC pode ter sido causado devido a uma combinação de fatores, tais como forame oval patente, doença vascular coexistente (não visualização da porção vertebral e proximal bilateral da artéria basilar) combinada com oscilações não percebidas da pressão arterial durante a raquianestesia. Apesar da extensa investigação, a etiologia exata do AVC não pode ser determinada no presente caso.

Conclusão

O infarto agudo após cirurgia eletiva não cardíaca e não neurológica é raro; talvez não seja possível identificar a etiologia em todos os casos. Os médicos devem ter um elevado grau de suspeita para diagnosticar e tratar essas complicações inesperadas no intento de diminuir a morbidade e as sequelas em longo prazo. Achados sutis, como forame oval patente assintomático (shunt esquerda-direita), podem resultar em AVC criptogênico secundário à embolia paradoxal.

Agradecimentos

À cooperação dos residentes do Departamento de Urologia da King George's Medical University que participaram da coleta de dados e avaliação do paciente. Também reconhecemos o empenho e a disponibilidade do paciente em fornecer as informações necessárias.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2017
  • Aceito
    26 Jun 2018
  • Publicado
    6 Ago 2018
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