Acessibilidade / Reportar erro

Ventilação mecânica não invasiva e anestesia peridural em colecistectomia aberta de emergência

Resumo

Ventilação não invasiva é uma modalidade de tratamento aceita tanto em exacerbações agudas de doenças respiratórias quanto em doença pulmonar obstrutiva crônica. É comumente usada em unidades de terapia intensiva ou para suporte respiratório pós-cirúrgico em salas de recuperação pós-anestesia. Este relato descreve o suporte intraoperatório em ventilação não invasiva para bloqueio do neuroeixo em cirurgia abdominal alta de emergência.

PALAVRAS-CHAVE
Ventilação não invasiva; Anestesia regional; Doença pulmonar obstrutiva crônica

Abstract

Non-invasive ventilation is an accepted treatment modality in both acute exacerbations of respiratory diseases and chronic obstructive lung disease. It is commonly utilized in the intensive care units, or for postoperative respiratory support in post-anesthesia care units. This report describes intraoperative support in non-invasive ventilation to neuroaxial anesthesia for an emergency upper abdominal surgery.

KEYWORDS
Non-invasive ventilation; Regional anesthesia; Chronic obstructive pulmonary disease

Introdução

A Iniciativa Global para Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica define a DPOC como “uma doença comum evitável e tratável, caracterizada por limitação persistente do fluxo aéreo, geralmente progressiva, associada ao aumento da resposta inflamatória crônica das vias aéreas e dos pulmões à exposição de partículas ou gases nocivos”.11 Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease. Global strategy for the diagnosis, management and prevention of chronic obstructive pulmonary disease; 2014 http://www.goldcopd.org/uploads/users/files/GOLD_Report2014_Feb07.pdf[accessed 18.02.2014].
http://www.goldcopd.org/uploads/users/fi...
DPOC afeta milhões de pessoas em todo o mundo e sua incidência em adultos acima de 40 anos é de quase 10%.22 Halbert RJ, Natoli JL, Gano A, et al. Global burden of COPD: systematic review and meta-analysis. Eur Respir J. 2006;28:523-32. O tratamento de pacientes com DPOC é principalmente farmacológico; a ventilação não invasiva (VNI) é uma ferramenta adicional para aumentar a sobrevida e melhorar a qualidade de vida dos portadores de DPOC grave.33 Theerakittikul T, Ricaurte B, Aboussouan LS. Noninvasive positive pressure ventilation for stable outpatients: CPAP and beyond. Cleve Clin J Med. 2010;77:705-14. O papel da VNI no período pós-operatório foi bem documentado, porém o conhecimento sobre seu uso no período intra-operatório é limitado e muito do conhecimento atual advém de relatos de casos ocasionais.44 Glossop AJ, Shephard N, Bryden DC, et al. Non-invasive ventilation for weaning, avoiding reintubation after extubation and in the postoperative period: a meta-analysis. Br J Anaesth. 2012;109:305-14.

5 Alonso-Iñigo JM, Herranz-Gordo A, Fas MJ, et al. Epidural anesthesia and non-invasive ventilation for radical retropubic prostatectomy in two obese patients with chronic obstructive pulmonary disease. Rev Esp Anestesiol Reanim. 2012;59:573-6.

6 Erdogan G, Okyay DZ, Yurtlu S, et al. NIV with spinal anesthesia for cesarean delivery. Int J Obstet Anesth. 2010;19:438-40.
-77 Cabrini L, Nobile L, Plumari VP, et al. Intraoperative prophylactic and therapeutic non-invasive ventilation: a systematic review. Br J Anaesth. 2014 [Epub ahead of print].

Uma revisão sistemática recente desses relatos de casos nos quais VNI foi usada no período perioperatório constata que quase todos os relatos estão relacionados a cirurgias de extremidade inferior ou cesarianas.77 Cabrini L, Nobile L, Plumari VP, et al. Intraoperative prophylactic and therapeutic non-invasive ventilation: a systematic review. Br J Anaesth. 2014 [Epub ahead of print]. Uma das principais vantagens esperadas da VNI é evitar as complicações pulmonares comuns associadas à intubação. A cirurgia abdominal superior representa um grande fator de risco para complicações pulmonares no pós-operatório.88 Smetana GW, Lawrence VA, Cornell JE, et al. Preoperative pulmonary risk stratification for noncardiothoracic surgery: systematic review for the American College of Physicians. Ann Intern Med. 2006;144:581-95. O presente relato descreve o uso de VNI durante cirurgia abdominal superior e a prevenção bem-sucedida de complicações respiratórias em um paciente com DPOC gravemente doente.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 46 anos, deu entrada no departamento de emergência com dor no quadrante abdominal superior. Exames, físico e laboratorial, contribuíram para o diagnóstico de colecistite subaguda e o paciente foi agendado para uma colecistectomia de emergência.

O paciente fora diagnosticado com DPOC havia oito anos e estava em tratamento regular com medicamentos, incluindo furosemida, diltiazem, formoterol inalatório, budesonida e brometo de tiotrópio. O paciente recebia O2 suplementar e usava um dispositivo de VNI em casa havia um ano. Ele apresentou estertores bilaterais e roncos ao exame de tórax, estava plenamente consciente ao receber 2 L.min-1 de O2 suplementar via cânula nasal, mas a saturação periférica de oxigênio (SpO2) era de 74%. Sangue foi colhido para gasometria arterial e testes de função pulmonar foram feitos. Os resultados dos testes de função pulmonar foram: capacidade vital forçada de 1,62 L (40,7% do previsto), volume expiratório forçado no primeiro segundo de 0,70 L (21,3% do previsto) e volume expiratório forçado no primeiro segundo/capacidade vital forçada 43,1%. Os resultados pré-operatórios das gasometrias são apresentados na tabela 1. Broncodilatador de ação rápida, salbutamol e 40 mg de prednisolona infusão intravenosa (IV) foram adicionados ao tratamento. A despeito da terapia máxima, a condição respiratória se manteve inalterada e o paciente foi transferido para o centro cirúrgico. A monitoração incluiu ECG, SpO2 e pressão arterial não invasiva. A frequência cardíaca era de 115 bpm, a pressão arterial não invasiva de 162/95 mmHg e o SpO2 de 70% durante a administração de 2 L de O2 via cânula nasal. A artéria radial foi cateterizada para mensurações da pressão arterial e coletas adicionais de amostras para a gasometria arterial. O uso de anestesia peridural foi discutido com o cirurgião e o paciente deu consentimento para a técnica. Um cateter peridural foi inserido no interespaço T8-9, com o paciente em posição sentada. Após aspiração negativa do cateter, a anestesia foi iniciada com 3 mL de lidocaína a 2% e depois mantida com doses fracionadas de 9 mL de bupivacaína em mistura de 50 mcg de fentanil. Exames seriados da evolução do bloqueio sensorial foram feitos durante a administração peridural dos medicamentos. Quando o bloqueio sensorial atingiu o nível superior no dermátomo T4, a cirurgia foi iniciada. Durante o procedimento cirúrgico, o paciente recebeu suporte ventilatório intermitente com pressão positiva bifásica através de seu próprio dispositivo de VNI. Ipap foi ajustada para 25 cm H2O, EpaP para 6 cm H2O e FiO2 para 35%. Gasometria foi feita 30 minutos após a aplicação de VNI (tabela 1). O procedimento cirúrgico foi feito dentro de uma hora, sem qualquer complicação. O paciente foi transferido para a unidade de terapia intensiva (UTI) e recebeu VNI intermitente. O resultado da gasometria colhida uma hora após o transporte para a UTI é mostrado na tabela 1. Não houve complicações respiratórias ou cirúrgicas durante o acompanhamento em UTI. O paciente foi transferido para a enfermaria no terceiro dia de pós-operatório e recebeu alta hospitalar dois dias depois, com a fisioterapia respiratória regular.

Tabela 1
Valores da gasometria arterial

Discussão

Segundo nossa pesquisa, este é o primeiro relato de uso bem-sucedido de VNI em conjunto com anestesia regional para cirurgia abdominal superior. O suporte respiratório adicional fornecido com VNI melhorou a oxigenação e as trocas gasosas durante a anestesia regional do paciente.

A cirurgia abdominal superior é geralmente feita com anestesia geral e intubação endotraqueal. Porém, os efeitos residuais tanto dos agentes anestésicos gerais quanto da dor relacionada à cirurgia em si interferem nas funções dos músculos respiratórios e aumentam o risco de atelectasia e outras complicações pulmonares no pós-operatório.88 Smetana GW, Lawrence VA, Cornell JE, et al. Preoperative pulmonary risk stratification for noncardiothoracic surgery: systematic review for the American College of Physicians. Ann Intern Med. 2006;144:581-95. A anestesia regional pode diminuir a taxa de complicações respiratórias no pós-operatório, em comparação com a anestesia geral com intubação endotraqueal.

Em caso de reserva funcional respiratória limitada, a incidência de possíveis complicações pulmonares aumenta.99 Sasaki N, Meyer MJ, Eikermann M. Postoperative respiratory muscle dysfunction: pathophysiology and preventive strategies. Anesthesiology. 2013;118:961-78. Sabe-se bem que a ventilação mecânica invasiva aumenta a permanência em UTI e as taxas de mortalidade em pacientes com exacerbações agudas de DPOC. Em estudo observacional que comparou a eficácia da ventilação mecânica invasiva com VNI, em cenário de exacerbação aguda de insuficiência respiratória em pacientes com DPOC, relatou-se que pode ser mais seguro usar VNI nesse grupo de pacientes.1010 Tsai CL, Lee WY, Delclos GL, et al. Comparative effectiveness of noninvasive ventilation vs invasive mechanical ventilation in chronic obstructive pulmonary disease patients with acute respiratory failure. J Hosp Med. 2013;8:165-72.

Como o nosso paciente já usava um dispositivo de VNI em casa, permitimos a ele usar seu dispositivo durante todo o procedimento. Estávamos cientes do fato de a anestesia peridural torácica poder interferir na função dos músculos respiratórios.77 Cabrini L, Nobile L, Plumari VP, et al. Intraoperative prophylactic and therapeutic non-invasive ventilation: a systematic review. Br J Anaesth. 2014 [Epub ahead of print]. No presente caso, a VNI poderia ter sido útil para combater os efeitos da anestesia peridural torácica sobre os músculos respiratórios, caso tivessem existido. No entanto, a aceitação da anestesia regional pelo paciente e sua cooperação com as equipes de cirurgia e anestesia proporcionaram uma vantagem adicional para concluir o procedimento com sucesso.

A VNI é uma forma aceitável de tratamento em pacientes com insuficiência respiratória aguda.66 Erdogan G, Okyay DZ, Yurtlu S, et al. NIV with spinal anesthesia for cesarean delivery. Int J Obstet Anesth. 2010;19:438-40.,1111 Brunner ME, Lyazidi A, Richard JC, et al. Non-invasive ventilation: indication for acute respiratory failure. Rev Med Suisse. 2012;8:2382-7. Geralmente, a VNI não é adequada para pacientes que temem usar uma máscara apertada no rosto, que não conseguem eliminar as secreções ou que estão em nível de consciência alterada/flutuante. VNI é geralmente usada em UTI, enfermarias para doenças torácicas ou prontos-socorros. Os anestesiologistas estão muito familiarizados com a ventilação mecânica invasiva em salas de cirurgia e UTIs. Embora a aplicação de VNI em centro cirúrgico não seja uma prática comum, seu uso em centro cirúrgico, como neste caso, tem a vantagem da presença permanente de um anestesiologista, um profissional que está prontamente disponível para reconhecer qualquer problema e proporcionar suporte respiratório adicional. Paralelamente, o número de relatos de casos que descrevem a combinação do uso de VNI e anestesia regional vem aumentando nos últimos anos.55 Alonso-Iñigo JM, Herranz-Gordo A, Fas MJ, et al. Epidural anesthesia and non-invasive ventilation for radical retropubic prostatectomy in two obese patients with chronic obstructive pulmonary disease. Rev Esp Anestesiol Reanim. 2012;59:573-6.

6 Erdogan G, Okyay DZ, Yurtlu S, et al. NIV with spinal anesthesia for cesarean delivery. Int J Obstet Anesth. 2010;19:438-40.
-77 Cabrini L, Nobile L, Plumari VP, et al. Intraoperative prophylactic and therapeutic non-invasive ventilation: a systematic review. Br J Anaesth. 2014 [Epub ahead of print].,99 Sasaki N, Meyer MJ, Eikermann M. Postoperative respiratory muscle dysfunction: pathophysiology and preventive strategies. Anesthesiology. 2013;118:961-78.

Em conclusão a combinação de VNI e anestesia peridural torácica é aplicável para consequente cirurgia abdominal superior e seu uso evitou uma provável permanência prolongada em UTI por causa da ventilação mecânica invasiva. Estudos clínicos prospectivos e randomizados com pacientes de alto risco para complicações pulmonares são necessários para descobrir se a combinação de VNI e anestesia regional é mais vantajosa do que a anestesia geral com intubação endotraqueal.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Dr. Ali Uğur Emre, professor doutor de cirurgia geral da Universidade Bülent Ecevit, por sua harmonia com a equipe de anestesia durante a cirurgia do paciente.

References

  • 1
    Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease. Global strategy for the diagnosis, management and prevention of chronic obstructive pulmonary disease; 2014 http://www.goldcopd.org/uploads/users/files/GOLD_Report2014_Feb07.pdf[accessed 18.02.2014].
    » http://www.goldcopd.org/uploads/users/files/GOLD_Report2014_Feb07.pdf
  • 2
    Halbert RJ, Natoli JL, Gano A, et al. Global burden of COPD: systematic review and meta-analysis. Eur Respir J. 2006;28:523-32.
  • 3
    Theerakittikul T, Ricaurte B, Aboussouan LS. Noninvasive positive pressure ventilation for stable outpatients: CPAP and beyond. Cleve Clin J Med. 2010;77:705-14.
  • 4
    Glossop AJ, Shephard N, Bryden DC, et al. Non-invasive ventilation for weaning, avoiding reintubation after extubation and in the postoperative period: a meta-analysis. Br J Anaesth. 2012;109:305-14.
  • 5
    Alonso-Iñigo JM, Herranz-Gordo A, Fas MJ, et al. Epidural anesthesia and non-invasive ventilation for radical retropubic prostatectomy in two obese patients with chronic obstructive pulmonary disease. Rev Esp Anestesiol Reanim. 2012;59:573-6.
  • 6
    Erdogan G, Okyay DZ, Yurtlu S, et al. NIV with spinal anesthesia for cesarean delivery. Int J Obstet Anesth. 2010;19:438-40.
  • 7
    Cabrini L, Nobile L, Plumari VP, et al. Intraoperative prophylactic and therapeutic non-invasive ventilation: a systematic review. Br J Anaesth. 2014 [Epub ahead of print].
  • 8
    Smetana GW, Lawrence VA, Cornell JE, et al. Preoperative pulmonary risk stratification for noncardiothoracic surgery: systematic review for the American College of Physicians. Ann Intern Med. 2006;144:581-95.
  • 9
    Sasaki N, Meyer MJ, Eikermann M. Postoperative respiratory muscle dysfunction: pathophysiology and preventive strategies. Anesthesiology. 2013;118:961-78.
  • 10
    Tsai CL, Lee WY, Delclos GL, et al. Comparative effectiveness of noninvasive ventilation vs invasive mechanical ventilation in chronic obstructive pulmonary disease patients with acute respiratory failure. J Hosp Med. 2013;8:165-72.
  • 11
    Brunner ME, Lyazidi A, Richard JC, et al. Non-invasive ventilation: indication for acute respiratory failure. Rev Med Suisse. 2012;8:2382-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2014
  • Aceito
    6 Maio 2014
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org