Acessibilidade / Reportar erro

Paralisia de cordas vocais após intubação endotraqueal: uma complicação incomum da anestesia geral Este relato de caso foi aprovado pelo Comitê de Ética Científico da Faculdade de Medicina, Pontificia Universidad Católica de Chile (Projeto n°. 16-188).

Resumo

Justificativa:

A anestesia geral é um procedimento seguro e frequente na prática clínica. Embora seja muito rara em procedimentos não relacionados à cirurgia de cabeça ou pescoço, a paralisia das cordas vocais é uma complicação séria e importante. Sua incidência tem sido associada à idade e comorbidades do paciente, bem como à posição do tubo endotraqueal e seu balonete. A paralisia das cordas vocais pode ser uma condição perigosa porque predispõe à aspiração.

Objetivos:

Apresentar um caso e analisar os fatores de risco associados ao aumento do risco de paralisia das cordas vocais descritos na literatura.

Relato de caso:

Paciente do sexo masculino, 53 anos, diabético, que desenvolveu rouquidão no pós-operatório após anestesia geral para cirurgia laparoscópica abdominal eletiva. A avaliação otorrinolaringológica mostrou paralisia da corda vocal esquerda.

Conclusão:

A paralisia de cordas vocais pode ser uma complicação séria da anestesia geral devido ao risco grave de disfunção da voz e aspiração. O manejo dessa condição ainda não está totalmente estabelecido, de modo que a prevenção e o diagnóstico precoce são essenciais.

PALAVRAS-CHAVE
Paralisia de cordas vocais; Intubação; Anestesia geral; Rouquidão

Abstract

Background:

General anesthesia is a safe, frequent procedure in clinical practice. Although it is very unusual in procedures not related to head and or neck surgery, vocal cord paralysis is a serious and important complication. Incidence has been associated with patient age and comorbidities, as well as the position of the endotracheal tube and cuff. It can become a dangerous scenario because it predisposes aspiration.

Objectives:

To present a case and analyze the risk factors associated with increased risk of vocal cord paralysis described in the literature.

Case report:

53 year-old diabetic man, who developed hoarseness in the postoperative period after receiving general anesthesia for an elective abdominal laparoscopic surgery. Otolaryngological evaluation showed left vocal cord paralysis.

Conclusions:

Vocal cord paralysis can be a serious complication of general anesthesia because of important voice dysfunction and risk of aspiration. The management is not yet fully established, so prevention and early diagnosis is essential.

KEYWORDS
Vocal cord paralysis; Intubation; General anesthesia; Hoarseness

Introdução

A anestesia geral é considerada um procedimento seguro, com baixa taxa de morbidade e mortalidade associada. Dentre suas complicações, a presença de rouquidão é comum no período pós-operatório. Uma das causas, embora muito rara, é a paralisia das cordas vocais.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30. A suspeita pode advir de fatores de risco, inclusive a idade do paciente, doenças pré-existentes, bem como a duração da cirurgia e a posição do tubo endotraqueal e seu balonete.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30. No diagnóstico, uma história clínica caracterizada por rouquidão é essencial.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30. O exame deve ser complementado com uma videoestroboscopia da estrutura e função da laringe. Quanto ao tratamento, não há estudos que incluam um grande número desses pacientes devido à baixa incidência. As opções de tratamento incluem fonoterapia, laringoplastia por medialização com injeção de ácido hialurônico (Restylane®) e tireoplastia por medialização.

O objetivo deste relato é apresentar um caso clínico de paralisia das cordas vocais subsequente à intubação endotraqueal para cirurgia abdominal, bem como uma revisão da literatura disponível.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 53 anos, 176 cm, 82 kg, diabético (em uso de 500 mg.dia−1 de metformina por via oral), sem alergias conhecidas, foi internado em nosso hospital para cirurgia eletiva (sigmoidectomia laparoscópica). O paciente foi classificado como ASA II, com história de anestesia geral para cirurgias anteriores sem incidentes. A avaliação das vias aéreas mostrou classificação de Mallampati III, distância tiromentoniana de pouco menos de 6 cm e abertura da boca de mais de 3 cm, com dentes firmes em boas condições. Testes laboratoriais e ECG com resultados normais. O plano anestésico foi anestesia geral balanceada com monitoração padrão (ECG na derivação II, SpO2, PANI, termômetro nasofaríngeo), além de cateter Foley, meias antiembolismo, compressão pneumática intermitente, manta de aquecimento e colchão antiderrapante.

A indução foi feita por via intravenosa com fentanil (300 µg), lidocaína (80 mg), propofol (120 mg), rocurônio (50 mg). O paciente foi facilmente ventilado e intubado na primeira tentativa, com um tubo endotraqueal (TET) com balonete de tamanho 8,0 com um fio-guia reusável (Portex®), descreveu-se uma laringoscopia de grau 2 B (Cormack-Lehane) com manobra BURP. Sevoflurano foi administrado para manutenção (concentração no fim da expiração de 1,6-1,8%) e fentanil e rocurônio em bolus. Um tubo orogástrico também foi inserido sem incidentes. O paciente permaneceu estável durante todo o procedimento.

A cirurgia laparoscópica durou cinco horas (h) e 30 minutos (min), na maior parte em posição de Trendelenburg, sem incidentes. O paciente foi extubado após a reversão do relaxamento muscular com Sugamadex IV (200 mg) e transferido para a sala de recuperação, onde permaneceu por 125 min, e então foi transferido para o quarto, com controle adequado da dor.

Vinte e quatro horas após o procedimento, o paciente apresentava rouquidão, sem disfagia ou outras alterações. Uma avaliação otorrinolaringológica foi solicitada, revelou voz fraca e rouca sem dor no pescoço. Uma videostroboscopia laríngea evidenciou imobilidade da corda vocal esquerda na posição paramediana, borda livre curvada e aritenoide ipsilateral pendente, determinou um fechamento glótico incompleto. O "sinal de esbarrão" estava presente (o sinal de "esbarrão" descreve um movimento mediano passivo da corda vocal afetada durante a adução devido à ausência de tensão lateral da musculatura desnervada e ajuda a discriminar entre uma paralisia de corda vocal e uma subluxação de aritenoide). A mobilidade da corda vocal direita foi preservada em adução e abdução e não havia sinal de hematoma ou trauma. Fonoterapia foi indicada e a avaliação médica ambulatorial com videostroboscopia laríngea oito dias após a cirurgia não mostrou alterações. A fonoterapia foi insatisfatória, então uma laringoplastia de medialização percutânea com injeção de ácido hialurônico (Restylane®) foi feita 23 dias após a cirurgia, com evolução favorável para o paciente.

Discussão

A intubação endotraqueal é um procedimento rotineiro e seguro em todo o mundo, mas pode ser uma fonte de morbidade. A lesão de vias aéreas é uma complicação amplamente conhecida, envolve principalmente mulheres e durante a cirurgia eletiva.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30.

A laringe é o sítio mais comum de lesão das vias aéreas durante a intubação endotraqueal, representa um terço dos casos, inclusive granuloma, hematoma, paralisia de cordas vocais e subluxação de aritenoide. Apenas 20% dos casos estão associados a intubações difíceis.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30.

A rouquidão é um sintoma que geralmente pode surgir após intubação endotraqueal, mesmo em cirurgia não relacionada com afecções da cabeça e pescoço. A incidência varia amplamente, está presente em até 71% dos pacientes submetidos à anestesia geral. A duração média da rouquidão é de 3-4 dias, torna-se permanente em 1% dos casos. Há um pequeno número de casos documentados na literatura nos quais a rouquidão é explicada por paralisia de cordas vocais, secundária ao processo de intubação, é assim uma complicação rara. Em geral, os sintomas são evidentes nas primeiras 24 horas pós-intubação; entretanto, o diagnóstico de paralisia de corda vocal é feito em média após duas semanas.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30.

A paralisia de cordas vocais é geralmente unilateral, compromete a corda vocal esquerda em aproximadamente 70% dos casos. Isso pode ser explicado pela fixação do tubo endotraqueal no ângulo direito da boca, com menos chance de lesionar o nervo laríngeo recorrente nesse lado.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30. O posicionamento do tubo nasogástrico também pode comprimir o nervo.

Clinicamente, os pacientes com paralisia unilateral de corda vocal apresentam alterações na qualidade da voz, percebidas como disfonia. Outros sintomas associados (como fadiga vocal, menor alcance e intensidade) podem afetar as habilidades de comunicação. Além das alterações na voz, a paralisia de cordas vocais produz um mecanismo ineficiente de tosse, o que pode levar a aspiração com consequente risco de pneumonia. Um grupo de pacientes apresenta insuficiência respiratória, estridor e sintomas obstrutivos. Portanto, a paralisia de cordas vocais pode ser uma complicação grave que requer diagnóstico imediato e tratamento médico.

O diagnóstico suspeito começa com a percepção subjetiva de alterações na voz do paciente após cirurgia sob anestesia geral. O exame físico de pacientes com paralisia unilateral de corda vocal revela uma voz fraca e rouca, com perda de projeção, fadiga vocal e perda do alcance vocal, especialmente do registro superior. Essas características são explicadas por insuficiência glótica, secundária à paresia ou paralisia de corda vocal. Na avaliação diagnóstica é necessário examinar a estrutura e a função da laringe. A videostroboscopia da laringe é uma ferramenta útil no diagnóstico de distúrbios da voz.22 Young VN, Smith LJ, Rosen C. Voice outcome following acute unilateral vocal fold paralysis. Ann Otol Rhinol Laryngol. 2013;122:197-204.

Os pacientes que desenvolvem rouquidão secundária à paralisia de corda vocal após intubação endotraqueal podem ser categorizados em dois grupos: em certos casos a intubação resulta em dificuldade por razões anatômicas e em outros casos não é possível identificar uma causa óbvia.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30.

Vários fatores estão associados ao desenvolvimento dessa complicação. Quanto aos fatores relacionados ao paciente, observa-se que a incidência desses sintomas aumenta com a idade. Em uma análise multivariada, verificou-se que o risco aumenta três vezes em pessoas com mais de 50 anos. Os registros médicos também foram relevantes. O risco dobrou em pacientes com diabetes melito e hipertensão arterial.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30.

Quanto aos fatores relacionados ao processo de intubação e anestesia, parece que a incidência aumenta com a duração da anestesia, é particularmente mais arriscada se durar mais de 6 h.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30. Porém, há casos relatados nos quais a cirurgia foi de curta duração.

Ellis e Pallister, ao dissecar cadáveres em 1975, descreveram o trajeto do nervo laríngeo recorrente, seus dois ramos e a relação entre eles ao inserir um tubo endotraqueal e insuflar seu balonete na traqueia. Seu estudo mostrou que o nervo laríngeo recorrente se divide em dois ramos antes de atingir a borda superior da cartilagem cricoide. O ramo posterior inerva os músculos interaritenoides e cricoaritenoide posterior, sem contato com o balonete. Por outro lado, o ramo anterior corre medialmente para a lâmina da cartilagem tireoidea, inerva os músculos laterais cricoaritenoideo e tireoaritenoideo. Devido à sua localização anatômica, pode ser comprimido entre o tubo endotraqueal e a lâmina da cartilagem tireoidiana se o balonete for insuflado na laringe, o que produzi neuropraxia. Esses autores sugeriram que essa complicação poderia ocorrer se o manguito fosse posicionado no nível, ou logo abaixo, das cordas vocais. Além disso, se o manguito não for devidamente desinsuflado antes da extubação, o ramo anterior do nervo laríngeo recorrente pode ser lesionado. Portanto, outro fator a considerar é a posição adequada do tubo endotraqueal33 Ellis PD, Pallister WK. Recurrent laryngeal nerve palsy and endotracheal intubation. J Laryngol Otol. 1975;89:823-6. e o seu tamanho.11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30.

Como a paralisia de corda vocal pode ser uma complicação grave, devemos estar alertas para o diagnóstico precoce, considerar os fatores de risco mencionados acima e os sintomas clássicos. Embora, na maioria dos casos, a paralisia unilateral de corda vocal secundária à intubação endotraqueal tenha um curso benigno,11 Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30. há fatores prognósticos ruins, definidos pela eletromiografia da larínge,44 Pardo-Maza A, García-Lopez I, Santiago-Pérez S, et al. Laryngeal electromyography for prognosis of vocal fold paralysis. J Voice. 2017;31:90-3. bem como sintomas. Como essa doença é rara, a maioria dos estudos inclui pacientes com paralisia unilateral de corda vocal de várias etiologias. Os tratamentos descritos incluem a utilidade da fonoterapia, laringoplastia de medialização com diferentes materiais injetados e tireoplastia por medialização.22 Young VN, Smith LJ, Rosen C. Voice outcome following acute unilateral vocal fold paralysis. Ann Otol Rhinol Laryngol. 2013;122:197-204. Porém, não há estudos disponíveis para avaliar os resultados nesse subgrupo em particular. Essa é a principal razão pela qual os esforços devem ser concentrados na prevenção.

Uma metanálise recente concluiu que o uso profilático de corticosteroides reduz de modo significativo a prevalência e a gravidade da dor de garganta, rouquidão, edema laríngeo e as reintubações associadas à intubação traqueal após cirurgia sob anestesia geral.55 Zhang W, Zhao G, Li L, et al. Prophylactic administration of corticosteroids for preventing postoperative complications related to tracheal intubation: a systematic review and meta-analysis of 18 randomized controlled trials. Clin Drug Investig. 2016;36:255-65.

Conclusão

No caso clínico descrito, é possível reconhecer vários fatores de risco para o desenvolvimento de paralisia de cordas vocais após intubação endotraqueal (idade acima de 50 anos, história de diabetes melito e duração da cirurgia eletiva). No entanto, durante o processo de intubação, nenhuma alteração ou dificuldade foi descrita. A paralisia de cordas vocais comprometeu exclusivamente a corda vocal esquerda, conforme descrito na maioria dos casos relatados anteriormente na literatura.

Embora seja uma complicação rara da anestesia geral, é necessário considerá-la dentre as possibilidades diagnósticas encontradas no surgimento de rouquidão no pós-operatório para proporcionar um tratamento multidisciplinar adequado. O tratamento, no entanto, deve ser focado na prevenção.

  • Este relato de caso foi aprovado pelo Comitê de Ética Científico da Faculdade de Medicina, Pontificia Universidad Católica de Chile (Projeto n°. 16-188).

References

  • 1
    Kikura M, Suzuki K, Itagaki T, et al. Age and comorbidity as risk factors for vocal cord paralysis associated with tracheal intubation. Br J Anaesth. 2007;98:524-30.
  • 2
    Young VN, Smith LJ, Rosen C. Voice outcome following acute unilateral vocal fold paralysis. Ann Otol Rhinol Laryngol. 2013;122:197-204.
  • 3
    Ellis PD, Pallister WK. Recurrent laryngeal nerve palsy and endotracheal intubation. J Laryngol Otol. 1975;89:823-6.
  • 4
    Pardo-Maza A, García-Lopez I, Santiago-Pérez S, et al. Laryngeal electromyography for prognosis of vocal fold paralysis. J Voice. 2017;31:90-3.
  • 5
    Zhang W, Zhao G, Li L, et al. Prophylactic administration of corticosteroids for preventing postoperative complications related to tracheal intubation: a systematic review and meta-analysis of 18 randomized controlled trials. Clin Drug Investig. 2016;36:255-65.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    4 Maio 2017
  • Aceito
    28 Dez 2017
  • Publicado
    21 Mar 2018
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org