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A epistemologia nos cursos de Educação Física: experiências e desafios (o contexto da Unochapeco)...1 1 O trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza. Agradeço ao Prof. Paulo Evaldo Fensterseifer pela leitura e contribuições ao texto.

The epistemology in Physical Education Courses: experiences and challenges (in the Unochapecó context)

La epistemologia en los Cursos de Educación Física: experiências y desafios (en el contexto de la Unochapeco)...

Resumos

O objetivo deste texto é refletir sobre a "presença" da epistemologia enquanto disciplina específica na formação inicial em Educação Física (EF). Para tal, apresento uma abordagem sobre o tema "epistemologia" na formação inicial em EF e, em seguida, reflexões sobre o modelo disciplinar na formação inicial. Entendo que não é suficiente tratar "epistemologia" como uma disciplina específica no processo de formação inicial em EF, embora seja possível, no sentido de possibilitar aprofundamentos. Concluo afirmando que, mais do que uma disciplina, trata-se de "assunto" que requer uma abordagem complexa, que "atravesse" os processos de formação, no cotidiano da formação inicial, em todas as disciplinas.

Epistemologia; disciplina curricular; formação inicial; Educação Física


The objective of this paper is to reflect about the "presence" of epistemology as a discipline at initial formation in Physical Education (PE). For this, I present an approach about the theme "epistemology" in initial formation at PE and, in sequence, reflections about disciplinary model in initial formation. I understand that it is not sufficient to approach "epistemology" as a specific discipline in initial formation at PE, but it is possible, in order to allow deepening. I conclude, more than a discipline, this "theme" requires a complex approach, which "crosses" formation processes, in the daily of initial formation, in all disciplines.

Epistemology; Curricular Discipline; Initial Formation; Physical Education


El propósito de este trabajo es reflexionar sobre la "presencia" de la epistemología como una disciplina en la formación inicial en Educación Física (EF). Para este fin, presento una abordaje acerca del tema "epistemología" en la formación inicial en el campo de la EF e, en seguida, reflexiones acerca del modelo disciplinar en la formación inicial. Entiendo que no es suficiente tratar el tema de la "epistemología" como una disciplina distinta en el proceso de formación inicial en EF, pero, se puede configurar en esta dirección, a fin de permitir puntos de vista más profundos. Concluo afirmando que esta disciplina es "asunto" que requiere un enfoque complejo, que "atraviese" los procesos de formación en el cotidiano de la formación inicial, en todas las disciplinas.

Epistemología; disciplina curricular; formación inicial; Educación Física


INTRODUÇÃO

Este texto se deriva de uma intervenção em uma Mesa organizada pelo Grupo de Trabalho Temático (GTT) "Epistemologia", intitulada "A disciplina epistemologia nos cursos de graduação e pós-graduação: experiências e desafios", realizada durante o XVII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte/IV Congresso Internacional de Ciências do Esporte (Porto Alegre, setembro de 2011).

O objetivo deste texto é refletir acerca da presença da epistemologia enquanto disciplina específica na formação inicial em Educação Física (EF). Inicialmente, tomei como ponto de partida a ementa do GTT Epistemologia proposta para a mesa.2 2 Expressa a seguir: "Considerando que a crise de identidade vivida pela Educação Física brasileira, em particular nos anos oitenta do século XX, desdobrou-se em uma profunda crise epistemológica, a qual ocupou boa parte do debate da área nos anos seguintes, tendo como um dos desdobramentos a inserção de disciplinas de caráter filosófico-epistemológico nos currículos de graduação e pós-graduação, entendemos ser adequado dar visibilidade às experiências e entendimentos que tem pautado os componentes curriculares responsáveis por este debate no interior dos programas de graduação e pós-graduação em nosso país. Entendemos com isso, contribuir não só para uma maior elucidação das práticas pedagógicas dos referidos componentes, mas, fundamentalmente contribuir com os processos de formação e investigação do conjunto da área." (GTT EPISTEMOLOGIA, 2011).

Devido à amplitude, não considerei prudente abordar "todos" os temas evidenciados na ementa. Procurei então, frente aos limites de tempo e espaço que me cabem, destacar alguns dos temas nela presentes como ponto de partida para apresentar duas experiências desenvolvidas a respeito, juntamente com outros colegas, no âmbito do curso de EF da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). A articulação entre estas referências permite ilustrar a complexidade da empreitada proposta. A seguir, enuncio os assuntos que destaquei da ementa: Disciplinas de caráter filosófico-epistemológico nos currículos de graduação; Experiências desenvolvidas neste âmbito; Contribuições para a formação e investigação do conjunto da área.

Na abordagem destes assuntos, cabe destacar que à epistemologia caberiam formas de explicações das "coisas do mundo" diferentes daquelas formuladas pelo senso comum (doxa) e daquelas formuladas pela fé ou pela crença (dogma). Parto da ideia de que epistemologia se trata de uma possibilidade de compreender melhor o conhecimento do conhecimento (episteme) que "está" nas "coisas do mundo", bem como, o que se deriva destas "coisas", para além das opiniões, do senso comum e dos dogmas.

Porém, para não nos iludirmos pelo "canto da sereia", se faz necessário reconhecer os limites desta empreitada, visto que ela se constitui "apenas" (e com tudo que isso implica) como uma mirada pela qual damos sentido às "coisas do mundo", condição que, ao expressar nossa finitude, contribui para que sejamos menos pretensiosos.

Entre estas "coisas do mundo", temos as disciplinas que compõem propostas curriculares em diferentes processos de formação inicial da EF. Até chegar ao estadono qual se encontra, em seu "hoje", o conhecimento que "está" nos processos de formação inicial e, por consequência, nestas disciplinas, é resultado de um conjunto de "escolhas", de possibilidades que se abrem, geralmente, ao mesmo tempo em que fecham outras, em meio a uma complexa conjuntura. Mesmo assim, em meio a uma infinidade de possibilidades, são escolhidos algum ou alguns dos caminhos possíveis. Ou seja, "apostamos as fichas" em um recorte daquilo que compreendemos como realidade. Isso permite edificar uma série de questões. O que nos leva a estes caminhos? O que nos faz pensar como pensamos? Por que fazemos o que fazemos?

Tratam-se de questões que, se não podem ser respondidas "de vez", como já se referiu Mario Osório Marques (1993), podem ser respondidas "a cada vez". Isso nos afasta da tentadora possibilidade de "acabar com o jogo", tentando respondê-las em definitivo. Por outro lado, compreendê-las na situação hermenêutica em que se encontram parece ser uma "saída" que nos resta. Ao menos uma responsabilidade que nos cabe, enquanto professores e pesquisadores que não se contentam com pretensões metafísicas ou relativistas. Lembrando Saramago (2009)SARAMAGO, J. Dogmas. In: ______. O caderno. Alfragide: Caminho, 2009., contribuir para avançarmos, enquanto seres humanos, em um processo de ampliação da compreensão de "Por que pensamos como pensamos" é aparentemente uma pergunta de pouca monta, mas que talvez não haja outra mais importante.

Questões próximas como as que aqui me proponho a abordar vem sendo tratadas em diferentes textos, nomeadamente Fensterseifer (2009)______. Epistemologia e prática pedagógica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 30, n. 3, p. 203-214, 2009.; Cena, Fassina e Garro (2009)CENA, M.; FASSINA, M.; GARRO, M. Práctica docente y epistemología: una reflexión inobviable en la formación de docentes de Educación Física. Pensar a Prática, Goiânia, v. 12, n. 2, p. 1-6, 2009., Rezer, Nascimento e Fensterseifer (2011)______.; NASCIMENTO, J. V.; FENSTERSEIFER, P. E. Um diálogo com diferentes "formas-de-ser" da Educação Física contemporânea - duas teses (não) conclusivas... Pensar a Prática, Goiânia, v. 14, n. 2, p. 01-14, maio/ago. 2011., entre outros, que se apresentam com preocupações voltadas a discutir o conhecimento do próprio campo, ou seja, com preocupações epistemológicas. O recorte aqui proposto não abre mão deste desafio, porém, procura focar no que se refere a perspectivas deste debate no interior de disciplinas com o papel específico de apresentar referências a respeito na formação inicial, tal como o tema da mesa proposta.3 3 Importante destacar que as preocupações com este tema parecem estar se ampliando. Como exemplo, no VI Colóquio de Epistemologia da Educação Física, realizado em Vitória (ES), no Centro de Educação Física e Desportos (UFES), em dezembro de 2012, foi realizada uma Mesa que pretendeu abordar esta problemática, intitulada "Ensino de epistemologia na (pós) graduação: experiências no Brasil, na Argentina e no Uruguai". A mesa contou com a participação de professores de diferentes universidades: UNDAV (Avellaneda/Argentina), UPE/UFPB (Brasil), UFSC (Brasil), IPEF (Córdoba/Argentina), UEM (Brasil), UDELAR (Montevidéu/Uruguai).

A seguir, apresento os desdobramentos desta introdução em dois momentos. Inicialmente, apresento uma abordagem sobre o tema "epistemologia" na formação inicial em EF. Em seguida, apresento reflexões sobre o modelo disciplinar na formação inicial, destacando um projeto com pretensões epistemológicas para trabalhar o esporte em suas diferentes manifestações no processo de formação inicial em EF na Unochapecó.

UMA ABORDAGEM SOBRE O TEMA "EPISTEMOLOGIA" NA FORMAÇÃO INICIAL EM EDUCAÇÃO FÍSICA...

Para iniciar este tópico, cabe destacar que, no curso de EF da Unochapecó, não há disciplina específica de "Epistemologia da EF". Neste caso, o objetivo inicial foi tentar estabelecer um alargamento desta discussão ao longo de todo curso, em todas ou, pelo menos, várias disciplinas, algo nem sempre bem sucedido. Se por um lado, as disciplinas permitem aprofundamentos frente a determinados temas, por outro, necessitam estar articuladas umas com as outras, como uma teia que se constitui no cotidiano complexo de um coletivo de professores e estudantes, em diferentes momentos de um processo de formação inicial.4 4 Tomo como exemplo o caso da leitura e da escrita. Penso que não "resolveremos" os problemas da escrita e leitura criando uma disciplina específica de "Leitura e escrita", como se os problemas desta ordem fossem resolvidos no âmbito disciplinar. Os problemas de leitura e escrita, tal como 'pouca leitura' e/ou 'dificuldade de escrever' dos estudantes, devem ser trabalhados em um conjunto de situações no processo de formação inicial, como um princípio do processo formativo, com a complexidade que lhe cabe - lembro que complexo trata-se de uma palavra derivada do latim "complexus" e significa "aquilo que é tecido em conjunto".

Desta forma, levar uma noção de complexidade, como pano de fundo para um processo de formação, que se é profissional, é antes de tudo, humana, parece se tratar de nobre tarefa. Portanto, tomamos como pressuposto a importância de "espalhar" preocupações epistemológicas em diferentes disciplinas no processo de formação inicial.

Por outro lado, há também a necessidade de trabalhar de maneira mais aprofundada, com determinadas questões epistemológicas. Ou seja, há necessidade de um mergulho mais focado, que possa permitir aos estudantes compreenderem melhor o conhecimento que constitui o campo da EF, o que venho denominando de um "passo atrás" (REZER, 2010REZER, R. O trabalho docente na formação inicial em Educação Física: reflexões epistemológicas... 2010. Tese (Doutorado em Educação Física) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.). Da mesma forma, necessitam compreender os "produtos" deste campo, no sentido de permitir um "olhar para dentro", tanto do campo da EF, como do processo de formação dos próprios estudantes.

Mesmo assim, apesar da intenção de que diferentes disciplinas possibilitem um olhar epistemológico para "si", no currículo do curso de licenciatura e bacharelado em EF da Unochapecó há duas disciplinas que se preocupam, de forma mais aprofundada, em pensar a epistemologia como conteúdo, como uma possibilidade de lidar com o conhecimento que se apresenta no âmbito da EF.5 5 Importante destacar que, tanto nos cursos de licenciatura ou bacharelado (UNOCHAPECO, 2009, 2010), as propostas se articulam em torno da centralidade da prática pedagógica como característica importante para o processo de formação. Desta forma, com base em outros trabalhos (REZER, 2010; REZER, NASCIMENTO, FENSTERSEIFER, 2011, entre outros), considero que, mesmo intervenções em distintos contextos, tais como escolas, clubes ou academias, certamente atravessadas pelo conhecimento específico que lhes cabe, se constituem como intervenções pedagógicas. Portanto, considero que a intervenção pedagógica se constitui como característica importante, senão central, para o campo da EF, tomada como referência neste texto.

Uma delas, "Fundamentos em EF", trata-se de uma disciplina do primeiro período, que tem a pretensão primeira de "apresentar" o campo da EF, bem como, a proposta curricular do curso de EF da Unochapecó. O esforço pretendido é, conforme apresento outro trabalho (REZER, 2010REZER, R. O trabalho docente na formação inicial em Educação Física: reflexões epistemológicas... 2010. Tese (Doutorado em Educação Física) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.), "abrir" as janelas do mundo da EF aos estudantes, proporcionando uma leitura panorâmica da condição contemporânea do campo, permitindo um mergulho na EF, sobre como ela se edificou e chegou ao estado na qual se encontra na contemporaneidade brasileira. A seguir, apresento a ementa da disciplina de 72 horas/aula (04 créditos).

• Aspectos históricos e tendências da EF no mundo e no Brasil; Epistemologia e EF; Projeto Pedagógico do curso de EF da UNOCHAPECÓ.

Ao longo do curso, diferentes outras disciplinas abordam de maneira mais distante ou mais próxima, elementos que se aproximam da discussão proposta. Por exemplo, o que tem sido produzido sobre metodologias de ensino no campo da EF, sobre concepções de esporte, passando por compreender o que "é" dança ou jogo, entre outras possibilidades.

Ao final do processo de formação, no último período do curso, há uma disciplina que propõe um olhar mais apurado sobre o conhecimento "da" EF: "Dimensões sociais, políticas e filosóficas da EF". Neste âmbito, a discussão se apresenta no sentido de problematizar o próprio processo de formação dos estudantes, o conhecimento produzido no campo da EF, bem como retomar e aprofundar a discussão proposta em Fundamentos da EF, sobre "que campo é este" - neste momento, com estudantes mais maduros, em fase final de conclusão de curso. Se na disciplina de Fundamentos em EF a preocupação era no sentido de "abrir as janelas da EF" aos estudantes, nesta disciplina, a preocupação maior se dá em ampliar os olhares endereçados ao campo, bem como possibilitar que este olhar seja mais apurado, criterioso e fundamentado. A seguir, apresento a ementa da disciplina, que possui 54 horas aula no semestre (03 créditos).

• Epistemologia e EF; EF no contexto social, político, econômico e cultural contemporâneo; Formação Profissional em EF; Ética.

Desta forma, as especificidades destas duas disciplinas procuram dar conta, de forma (mais) ampliada, da discussão epistemológica necessária a este contexto. Obstante, pensar que elas darão conta disso trata-se de uma pretensão equivocada. A articulação destas disciplinas com outras se trata de condição necessária a uma formação ampliada, que permita enxergar as chamadas "zonas cinzas", os borrões epistemológicos entre as disciplinas, estreitando a relação entre diferentes disciplinas no processo de formação inicial, empreitada ainda com longo caminho pela frente.

Este se trata de desafio complexo, nem sempre bem sucedido neste cenário. Certamente, há disciplinas que, por seu escopo, podem se aproximar de maneira mais efetiva da discussão aqui proposta (Metodologia da Pesquisa, por exemplo). Porém, há outras que apresentam dificuldades maiores (por exemplo, as disciplinas vinculadas ao esporte). Não se trata de que todas as disciplinas abordem a epistemologia em seu contexto, pois possuem especificidades próprias que devem ser preservadas. O que se propõe é que as diferentes disciplinas se preocupem em perguntar sobre aquilo que as constitui e aquilo que fazem. Aqui caberia o exercício da atividade epistemológica no campo da EF, tal como tratado por Fensterseifer (2001)FENSTERSEIFER, P. E. A Educação Física na crise da modernidade. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2001.. Três perguntas poderiam abrir janelas significativas para este esforço:

  • Que conhecimento constitui a disciplina que trabalho?

  • Quais as "origens" do conhecimento com o qual opero no cotidiano?

  • Que conhecimento vem sendo produzido neste âmbito?

Partindo destas questões, podem surgir contribuições importantes ao processo de formação e ao próprio professor, que passa a conhecer melhor a "matéria" a qual ensina. Se a epistemologia se trata de uma tentativa de retomar a aproximação entre ciência e filosofia, levar isso para o interior do trabalho educacional na Educação Superior também se trata de um longo percurso. Considerando as contribuições de Flickinger (1998)FLICKINGER, H. G. Para que filosofia da educação? 11 teses. Perspectiva, Florianópolis, v.16, n. 29, p. 19-28, jan./jun. 1998., se faz necessário o esforço de levar uma postura filosófica para dentro do trabalho educacional, que poderia resultar na ampliação da consciência (o que sei sobre o que sei?) quanto à importância de uma postura refletida enquanto constitutiva do cotidiano do trabalho docente, o que se trata de importante e complexo esforço epistemológico, certamente também ético e político.

Se tais investidas não resolvem os problemas derivados dos temas das ementas, pois convivem em meio a diferentes problemas,6 6 Como exemplo, há ainda uma noção de cátedra muito forte nas disciplinas. Certamente, romper com isso não garante nenhum avanço, como que por decreto. Porém, entendo como importante trabalhar em um contexto comunitário, sabendo e contribuindo minimamente com o que os colegas abordam no cotidiano frente aos estudantes. Além disso, esta preocupação é outra forma de perceber o afastamento entre docentes no cotidiano da Universidade. Faltaria o sentido de projeto coletivo? A sobrecarga de alguns e o desinteresse de outros seriam respostas adequadas? São questões que se apresentam com significativa complexidade na edificação de suas possíveis respostas. se preocupa ao menos em compartilhar responsabilidades entre docentes de algumas disciplinas, o que alça a discussão pretendida a uma complexidade inerente ao desafio proposto. Da mesma forma, abre caminhos para ampliar a discussão proposta. Desta forma, a epistemologia pode se constituir como uma possibilidade de interrogação sobre o conhecimento com o qual lidamos, bem como, sobre as condições objetivas de edificação do próprio campo.

REFLEXÕES SOBRE O MODELO DISCIPLINAR NA FORMAÇÃO INICIAL...

A ideia de disciplinas representa a "ponta" de um modelo de pensar o currículo, muitas vezes, reduzindo a complexidade dos diferentes conhecimentos, na perspectiva de permitir maior domínio e aprofundamento sobre eles, a partir de sua compartimentalização. Entendo que os problemas do mundo não são disciplinares e tratá-los apenas disciplinarmente pode tratar-se de uma limitação no processo formativo. Porém, não podemos desconsiderar os méritos de um modelo disciplinar de formação inicial, reconhecendo que nele se abrem possibilidades para um aprofundamento vertical sobre diferentes conhecimentos sistematizados e "testados" ao longo da história da humanidade. Isso vem promovendo historicamente, a seu modo, avanços no trato com o conhecimento - por exemplo, no aprofundamento de pesquisas em diferentes temas.

Sobre isto, Young (2011)YOUNG, M. F. D. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 48, set./dez. 2011., em um contundente artigo, faz uma radical defesa ao modelo disciplinar, considerando a necessidade de trabalhar com conceitos, esforço, via de regra, desenvolvido por comunidades de especialistas. Nesta direção, o autor considera que disciplinas representam comunidades de especialistas, e que, "O conhecimento da disciplina fornece aos professores a base de sua autoridade sobre os alunos" (YOUNG, 2011, p. 617YOUNG, M. F. D. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 48, set./dez. 2011.). Assim, as disciplinas, com suas fronteiras que separam aspectos do mundo testados ao longo do tempo, não só oferecem a base para analisar e fazer perguntas sobre o mundo, como também oferecem aos estudantes base social para um novo conjunto de identidade (YOUNG, 2011YOUNG, M. F. D. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 48, set./dez. 2011.).

Mesmo reconhecendo estes argumentos de Young sobre os méritos de um modelo disciplinar, penso que se torna importante promover diminuições dos muros disciplinares que se edificaram no "entre" as disciplinas, em vista das limitações que abordagens fragmentadas promovem para uma compreensão do trabalho docente pautado pela complexidade. Entendo que os especialistas necessitam dialogar entre si e entre diferentes comunidades.

Por outro lado, não basta supor ou propor a simples superação do modelo disciplinar no processo de formação inicial, até mesmo pela incipiente discussão a respeito, especialmente no campo da EF brasileira. Entendo que os problemas dos processos de formação inicial não se resumem somente aos problemas de uma formação pautada por um modelo disciplinar. Obstante, entendo que a ampliação das discussões sobre currículo pode ser percebida como elemento necessário ao debate sobre opções curriculares assumidas nos processos de formação inicial na Educação Superior.7 7 É possível ingerir que enquanto as discussões mais acaloradas em momentos de reestruturação curricular nas IES forem sobre a grade de disciplinas e carga horária de cada uma delas, a discussão curricular avançará pouco no interior do campo da EF, distante da pretensão de constituir uma tradição curricular para este campo.

Torna-se importante então, "olhar para os lados", percebendo modelos edificados em outros campos. Há experiências de propostas curriculares para a formação inicial no campo da Medicina, Enfermagem, entre outros, que podem servir de referencial para reflexão e crítica na EF, considerando a possibilidade de refletir sobre outros modelos, sem idealizá-los ou absolutizá-los. Lembro que em campos como a Medicina, por exemplo, currículos construídos na forma de módulos de conhecimento também encontram grandes e diferentes problemas em seu cotidiano.8 8 Por exemplo, muitos docentes mantêm o pensamento disciplinar, o que se desdobra na fragmentação dos módulos em pequenas disciplinas. Isso corrobora com a ideia de que há, sem dúvida, necessidade de preparação e estudo dos docentes, a fim de possibilitar um alargamento das perspectivas que se aproximam de propostas "alternativas", com todo cuidado que isso exige, sob risco de ilusões e da edificação de novos problemas.

Para apontar outras perspectivas na discussão proposta, uma possibilidade para promover fissuras entre os muros disciplinares poderia ser a construção coletiva de "temáticas transversais", em torno das quais algumas ou, por que não, todas as disciplinas poderiam se movimentar, sem deixar de preservar suas especificidades. Como exemplo, parto da ideia de que, independentemente do espaço de intervenção, todas as disciplinas, cada qual ao seu modo, apresentam procedimentos e conhecimentos em comum. Seguramente, a centralidade das discussões se dá de acordo com a centralidade específica das próprias disciplinas, mas a partir do momento que a centralidade do trabalho pedagógico no processo de formação inicial desloca seu epicentro do conhecimento específico para um diálogo entre este conhecimento e o trabalho docente, penso que se abre uma infinidade de possibilidades em diferentes disciplinas. Esse pressuposto não exime disciplinas tais como Fisiologia do Exercício ou Filosofia da Educação, entre outras, deste esforço - embora que, certamente, não irão tratá-lo com a mesma centralidade.

Promover o encontro de horizontes entre diferentes disciplinas parece representar um ponto de indubitável importância nos processos de formação inicial. Tal esforço ainda se manifesta com tímida repercussão nos contextos acadêmicos da Educação Superior, onde expressões como "minha disciplina" ou "minha aula" ainda são bastante usuais no cotidiano, representando uma dificuldade, transpassada por questões de poder e território.

Neste cenário, aproximações parecem apresentar dificuldades de serem edificadas em meio a um modelo disciplinar de formação inicial. Principalmente se a proposição curricular não proporcionar mecanismos que levem a maior aproximação entre os conhecimentos "entre" as disciplinas. Do contrário, as possibilidades de aproximação irão partir do professor, o que individualiza a discussão e pouco avança no conjunto da problemática evidenciada.

Trata-se então, de um problema a ser enfrentado coletivamente, pois os problemas do mundo da EF não podem ser resolvidos pela Fisiologia, pela Anatomia, pela Didática, pela Epistemologia, mas sim, pela articulação de um modo de pensar complexo, que pode "aparecer", ser construído no interior das disciplinas e, principalmente, no "entre" as disciplinas. Mesmo porque, a intervenção pedagógica dos docentes da formação inicial não é somente disciplinar, mas composta por um arcabouço de conhecimentos, que envolvem diferentes elementos (vão da didática, passando pela metodologia, indo até o conhecimento amplo e específico).9 9 Levar a sério o trabalho docente é transitar de forma responsável por diferentes subcampos da EF. Ou seja, trabalhar na EF escolar com diferentes manifestações da cultura corporal de movimento (esporte, dança, lutas, ginástica, jogo), e conhecer ainda sobre anatomia, fisiologia, corpo, cultura, pedagogia, didática, metodologia, entre outros, não é pouca coisa.

Pode-se supor que um modelo de formação inicial estabelecido a partir de uma grade disciplinar pode induzir também a um pensamento disciplinar. Pensar em outro modelo curricular para a formação inicial requer outros modelos de pensamento e, quem sabe, a possibilidade de pensar sobre um reaprender a "dar aula" na Educação Superior. Como expresso na nota de rodapé 08, em uma aula o professor não trabalha exclusivamente um conhecimento, mas conhecimentos que são necessários para determinadas intervenções. Talvez por isso, já tenhamos nos deparado com professores que são especialistas em campos específicos, mas verdadeiros desastres em situações de ensino. Ou seja, tem dificuldades em lidar com a noção de aplicação, neste caso, tomando como referência a experiência hermenêutica da presentificação contextualizada, tal como expresso por Palmer (2006)PALMER, R. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2006..

A fim de objetivar as considerações anteriores, apresento a seguir uma experiência que procura evidenciar o esforço em ampliar as possibilidades de lidar com determinados conteúdos e disciplinas no processo de formação inicial, especificamente neste caso, a pedagogia do esporte.

DE DISCIPLINAS A MÓDULOS DE CONHECIMENTO - UMA EXPERIÊNCIA, UM CAMINHO A SER PERCORRIDO...

Parto do pressuposto de que o exercício de promover fissuras nos "muros" disciplinares é uma dura prova de alteridade, que talvez seja necessária para o avanço do trabalho docente na formação inicial em EF, esforço que pode contribuir com a (re) configuração do próprio campo, pois necessita da aproximação de diferentes comunidades específicas da EF em busca de soluções para suas próprias problemáticas cotidianas. Essa condição necessita emergir de um amadurecimento das possibilidades edificadas por propostas que, se não pretendem abrir mão da noção disciplinar, pelo menos reconhecem a importância de enfrentar esta discussão com uma pretensão de complexidade.

Nessa direção, resgato uma proposta do Curso de EF da Unochapecó, desenvolvida entre julho de 2009 e dezembro de 2010. Foram constituídos três módulos para arregimentar disciplinas com caráter de semelhança, de acordo com os referenciais orientadores estabelecidos na proposta curricular do curso: Saúde, EF escolar e Pedagogia do Esporte. Os conteúdos tratados nas aulas e as relações entre cada disciplina passavam, por princípio, a serem orientados por uma perspectiva estabelecida a partir de uma articulação entre as disciplinas que possuem escopo semelhante no referido contexto. No meu caso, coordenei o Módulo de Pedagogia do Esporte, composto por onze disciplinas10 10 Metodologia, Teoria e Prática (MTP) do Handebol; MTP do Voleibol, MTP do Futebol/Futsal, MTP do Basquetebol, MTP do Atletismo, MTP da Ginástica I e II, MTP das Atividades Aquáticas, MTP da Natação I e II, Estudos do Lazer. ministradas por sete docentes. A função do módulo era aglutinar e orientar um processo de convergência deste conjunto de disciplinas que abordam o esporte a partir de diferentes perspectivas (coletivos, aquáticos e individuais, tratados sob as noções de modalidades específicas, conteúdo do lazer e/ou do treinamento esportivo), estruturando um conjunto de procedimentos e premissas aproximadas, no sentido de garantir maior articulação entre propostas para o ensino do esporte na formação inicial em EF neste contexto.

O módulo tomou forma a partir de reuniões sistemáticas entre os docentes, que procuravam orientar sua intervenção a partir de referências comuns. O processo, as temáticas e os textos orientadores eram determinados em reuniões, representando neste caso, a edificação de referenciais orientadores para uma abordagem reflexiva e crítica dos esportes na formação inicial, baseados na proposta curricular do curso. Desta forma, a proposta previa que cada disciplina se organizasse, levando em consideração os temas orientadores do módulo, a serem abordados em cada uma das disciplinas. As questões orientadoras eram:

  • Que conhecimento subsidia as disciplinas?

  • O que é importante aprender sobre esporte para ensinar esportes?

  • Quais metodologias de ensino do esporte serão ensinadas?

  • O que temos de ensinar sobre esporte na formação inicial em EF?

No conjunto, entendo-a como uma proposta introdutória, mas que manifestava a intenção de um coletivo para avançar por sobre os muros das disciplinas, percebendo as diversas fissuras que se mostram entre elas no cotidiano. Este esforço não pretendeu superar o modelo disciplinar de formação inicial, pois as disciplinas específicas permaneceram, mas procurou estabelecer canais de comunicação entre elas, o que permitiu pensar na promoção de fissuras disciplinares, espaços de interlocução a serem preenchidos coletivamente.

Inicialmente, a proposta pretendeu um desvelamento do que acontecia no interior de cada uma das disciplinas, ou seja, o que os professores faziam em aula. No início de 2009, os docentes apresentaram o plano de ensino (objetivos, ementa, conteúdos e referenciais, bem como, dilemas, problemas, acertos e erros que experimentavam em seu cotidiano). Um depoimento de um dos colegas participantes ilustra bem a receptividade de segmentos do corpo docente frente a isso: "Esse exercício faz com a gente não se sinta tão sozinho...".

Porém, o desenvolvimento deste processo não aconteceu sem problemas (inclusive de descontinuidade, ao final de 2010). Como exemplo, as dificuldades de tempo para a participação dos docentes nas reuniões era um dos principais problemas enfrentados. Os docentes demonstraram boa aceitação da proposta, porém, evidenciaram a dificuldade de participar das reuniões, determinada resistência em estudar os textos selecionados, o que tornou o processo mais lento e conflituoso que o esperado. Por outro lado, este esforço comunicativo abriu diversas possibilidades, entre elas, a necessidade de aproximar conhecimentos diferentes, bem como, estabelecer um canal de comunicação que permitisse perspectivar as disciplinas, não mais como territórios bem delimitados, mas como espaços de movimento, perpassados entre si, em um jogo entre distintos conhecimentos, que ora se aproximam, ora se afastam. A figura a seguir permite melhor compreensão a respeito.

Figura 1
Modelo de formação por módulos de conhecimento. Fonte: Rezer (2010).

Portanto, ao tentar assumir esta perspectiva, a discussão curricular poderia ser temática importante na agenda docente, articulada a experimentos pedagógicos que poderiam permitir a edificação de estratégias que contribuíssem com o próprio trabalho docente, tornando-o menos solitário, ao mesmo tempo em que poderia torná-lo mais denso, orientado por proposições coletivas. Parafraseando Berticelli (2004)BERTICELLI, I. A. A origem normativa da prática educacional na linguagem. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2004., chegou o momento dos educadores sentarem-se à mesa para conversar entre si, pois é necessário desenvolver esta competência, a de serem capazes de pensar processos complexos. Até porque se torna importante assumir, não apenas o estreito viés do descobrir e ensinar "como fazer", mas, para perguntar-se, junto com todos, sobre o porquê fazer e para refletir sobre as consequências de fazer ou deixar de fazer. Inclusive, possibilita refletir sobre o que dota de crédito uma modalidade esportiva, tal como o futsal ou o basquete, a tal ponto que ela seja alçada, quase que "naturalmente", sem maiores discussões, à condição de uma disciplina curricular em processos de formação inicial - salvo exceções.

Cabe destacar que os argumentos desenvolvidos neste tópico necessitam de discussões mais avançadas. Assim, não pretendo apresentar uma proposta de módulos. O que proponho introdutoriamente é o esforço de não parar de pensar sobre limites e possibilidades de um modelo disciplinar de formação inicial, mantendo a tensão permanente entre teoria e prática no cotidiano do trabalho docente neste âmbito. Mesmo porque, a preocupação aqui expressa não é com a velocidade da mudança, mas com a constância da reflexão.11 11 Lembro de uma inscrição em um painel localizado no interior da Escola da Ponte, em Rio das Aves (Porto, Portugal): "Mude, mas comece devagar, pois a direção é mais importante que a velocidade". Neste caso, a preocupação com a direção é muito importante, mais do que a pressa em "ir", muitas vezes, sem saber muito bem para onde.

Portanto, isso possibilita entender o currículo como a direção que escolhemos para o trabalho docente em um processo de formação inicial, que requer, mais que velocidade, de amadurecimento, fundamentação teórica e de abertura ao diálogo, como pressupostos fundamentais para a constituição de novas proposições curriculares, bem como, da solidificação de lastro para avaliar e/ou rever mudanças curriculares realizadas. Talvez aí, possamos avançar de um currículo centrado em um modelo disciplinar para novos voos, mais de acordo com a complexidade do mundo no qual vivemos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Finalizando, pertinente ao trabalho docente seria uma postura de suspeita frente ao conhecimento com que nos envolvemos, procurando compreender melhor suas "origens", bem como seus desdobramentos em diferentes cenários de intervenção dos egressos. Esta postura de suspeita se articula com a importância de pensar na articulação de determinado conhecimento a um determinado contexto.

Penso que ainda nos falte a densidade de um trabalho coletivo mais evidente, menos disciplinar e mais preocupado com a complexidade dos fenômenos com os quais nos deparamos. Nessa direção, alargar a dimensão da reflexão sobre as filosofias implícitas no trabalho docente, tanto em sala de aula como na pesquisa, inclusive, suspeitando de nosso próprio trabalho e das atitudes investigativas que empreendemos, trata-se de esforço importante.

Então, um esforço epistemológico pode permitir alargar os horizontes do trabalho docente,12 12 Um horizonte, conforme Gadamer (2007), não se trata de uma fronteira rígida, mas algo que se desloca conosco, conforme nosso avanço, e que convida a seguir adentrando a ele, que se move junto conosco. esforço que pode nos permitir a interrogação coletiva sobre o significado da docência e das pesquisas que desenvolvemos, bem como, para quê e para quem as realizamos, fortalecendo o conhecimento sobre nós mesmos e sobre aquilo que fazemos. Lembrando uma passagem de Kunz (2001)KUNZ, E. Fundamentos normativos para as mudanças no pensamento pedagógico em educação física no Brasil. In: CAPARROZ, F. E. (Org.). Educação física escolar: política, investigação e intervenção. Vitória: Proteoria, 2001. v. 1., somente na medida em que nós mesmos percebermos como nosso saber e nossa cultura são formados, esse saber ou essa cultura poderão nos formar.

Esta perspectiva pressupõe de antemão, conexões entre diferentes conhecimentos, entre estes, a sociedade, a cultura e as especificidades tratadas em aula, bem como reconhecer e enfrentar os porquês pelos quais nosso próprio trabalho se justifica, promovendo pontes entre conhecimentos que não foram pensados necessariamente para a universidade, tratando as relações estabelecidas em aula com os estudantes e com o conhecimento proposto, como importantes e complexos constructos teóricos.13 13 Inclusive, enfatizar a complexidade do trabalho docente pode contribuir com a superação da noção de que "dar aula" trata-se de qualquer coisa que acontece no tempo e no espaço. Talvez se assim fosse não seria necessário ouvir a pergunta de um amigo "Tu trabalhas na Unochapecó ou só dá aula lá?".

O trabalho docente e o exercício da pesquisa, nesta perspectiva, possuem fronteiras tênues entre si e diversos campos do conhecimento. Essa possibilidade se traduz a partir de um exercício coletivo e constante de reflexão e crítica, que pressupõe a presença da ética como capacidade de interrogação sobre aquilo que fazemos, bem como sobre o conhecimento do conhecimento com o qual operamos no cotidiano. Essa tarefa não é exclusividade das ditas humanidades ou de uma determinada disciplina, mas sim, inerente ao próprio trabalho docente, seja na graduação ou na pós-graduação, e como tal necessitam ser reconhecidas.

O processo de formação do campo da EF passou por um momento de ampliação da carga de disciplinas de caráter filosófico-epistemológico nas propostas curriculares ao longo das últimas décadas. Por outro lado, há um movimento contrário desenhado, em vista de processos de formação mais enxutos, mais adequados às diretrizes curriculares, que acabam "prescindindo" de disciplinas desta "natureza". Da mesma forma, é possível inferir sobre um aparente descrédito frente a disciplinas desta ordem, como se não fossem necessárias para contribuir no processo de formação de um campo que se edificou tendo por base preocupações com a "prática". Isso nos exige reflexão acerca de como vamos edificando estes cenários nos processos de formação, pois, de um lado, nos deparamos com uma preocupação pragmática (no sentido rasteiro do termo) que induz e seduz a uma formação específica, compacta, quase que cirúrgica (embora tenha dúvidas se ao menos isso estamos conseguindo). Por outro lado, como já nos alertou Saramago (2009a)SARAMAGO, J. Dogmas. In: ______. O caderno. Alfragide: Caminho, 2009., precisamos da reflexão, do trabalho de pensar, inclusive sobre nós mesmos, pois, sem isso, não vamos a parte alguma. Lidar com esta aporia se constitui como um desafio da ordem do dia, pois corremos o risco de alargar ainda mais o abismo existente entre teoria e prática, principalmente nos processos de formação inicial.

Assim sendo, ao que parece, a epistemologia, assim como a ética, não constituem escopo de disciplinas específicas, embora possam se desenhar nessa direção, no sentido de possibilitar determinados aprofundamentos. Porém, mais do que conteúdo para uma ou algumas disciplinas, trata-se de um "assunto" que requer uma abordagem complexa, que "atravesse" os processos de formação, que se dê de forma imbricada ao trabalho docente. Um esforço que é coletivo em última instância, que se edifica em um fazendo cotidiano, a muitas mãos, em muitos momentos dos processos formativos.

Isso requer um modelo de pensamento que, ao menos, se proponha ao desafio de enfrentar esta complexa discussão. Da mesma forma, requer um exercício de humildade e alteridade acadêmica por parte dos docentes, que se desdobre em propostas curriculares construídas coletivamente.

Desta forma, penso que as questões que abordo neste breve texto podem compor um pano de fundo para ações estratégicas em diferentes cenários de intervenção e, sem dúvida, podem derivar diferentes questões e críticas que podem compor parte da agenda acadêmico-científica do campo da EF. Finalizando, compromisso ético do qual não podemos nos abster é proporcionar o surgimento de novos e mais ricos cenários intelectuais que possam contribuir com importantes discussões epistemológicas para o campo da EF.

REFERÊNCIAS

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  • CENA, M.; FASSINA, M.; GARRO, M. Práctica docente y epistemología: una reflexión inobviable en la formación de docentes de Educación Física. Pensar a Prática, Goiânia, v. 12, n. 2, p. 1-6, 2009.
  • FENSTERSEIFER, P. E. A Educação Física na crise da modernidade. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2001.
  • ______. Epistemologia e prática pedagógica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 30, n. 3, p. 203-214, 2009.
  • GADAMER, H. G. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2007.
  • FLICKINGER, H. G. Para que filosofia da educação? 11 teses. Perspectiva, Florianópolis, v.16, n. 29, p. 19-28, jan./jun. 1998.
  • COLÉGIO BRASILEIRO DE CIÊNIAS DO ESPORTE (CBCE). A disciplina epistemologia nos cursos de graduação e pós-graduação: experiências e desafios. Porto Alegre, 2011. (GTT Epistemologia).
  • KUNZ, E. Fundamentos normativos para as mudanças no pensamento pedagógico em educação física no Brasil. In: CAPARROZ, F. E. (Org.). Educação física escolar: política, investigação e intervenção. Vitória: Proteoria, 2001. v. 1.
  • MARQUES, M. O. Conhecimento e modernidade em reconstrução. Ijuí: Ed. da Unijuí, 1993.
  • PALMER, R. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2006.
  • REZER, R. O trabalho docente na formação inicial em Educação Física: reflexões epistemológicas... 2010. Tese (Doutorado em Educação Física) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.
  • ______.; NASCIMENTO, J. V.; FENSTERSEIFER, P. E. Um diálogo com diferentes "formas-de-ser" da Educação Física contemporânea - duas teses (não) conclusivas... Pensar a Prática, Goiânia, v. 14, n. 2, p. 01-14, maio/ago. 2011.
  • SARAMAGO, J. Dogmas. In: ______. O caderno. Alfragide: Caminho, 2009.
  • ______. Entrevista. Zero Hora, Porto Alegre, 27 de julho de 2010. (Segundo Caderno).
  • UNOCHAPECÓ. Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Educação Física: licenciatura. Chapecó: Universidade Comunitária da Região de Chapecó, 2009.
  • UNOCHAPECÓ. Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Educação Física: bacharelado. Chapecó: Universidade Comunitária da Região de Chapecó, 2010.
  • YOUNG, M. F. D. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 48, set./dez. 2011.
  • 1
    O trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza. Agradeço ao Prof. Paulo Evaldo Fensterseifer pela leitura e contribuições ao texto.
  • 2
    Expressa a seguir: "Considerando que a crise de identidade vivida pela Educação Física brasileira, em particular nos anos oitenta do século XX, desdobrou-se em uma profunda crise epistemológica, a qual ocupou boa parte do debate da área nos anos seguintes, tendo como um dos desdobramentos a inserção de disciplinas de caráter filosófico-epistemológico nos currículos de graduação e pós-graduação, entendemos ser adequado dar visibilidade às experiências e entendimentos que tem pautado os componentes curriculares responsáveis por este debate no interior dos programas de graduação e pós-graduação em nosso país. Entendemos com isso, contribuir não só para uma maior elucidação das práticas pedagógicas dos referidos componentes, mas, fundamentalmente contribuir com os processos de formação e investigação do conjunto da área." (GTT EPISTEMOLOGIA, 2011).
  • 3
    Importante destacar que as preocupações com este tema parecem estar se ampliando. Como exemplo, no VI Colóquio de Epistemologia da Educação Física, realizado em Vitória (ES), no Centro de Educação Física e Desportos (UFES), em dezembro de 2012, foi realizada uma Mesa que pretendeu abordar esta problemática, intitulada "Ensino de epistemologia na (pós) graduação: experiências no Brasil, na Argentina e no Uruguai". A mesa contou com a participação de professores de diferentes universidades: UNDAV (Avellaneda/Argentina), UPE/UFPB (Brasil), UFSC (Brasil), IPEF (Córdoba/Argentina), UEM (Brasil), UDELAR (Montevidéu/Uruguai).
  • 4
    Tomo como exemplo o caso da leitura e da escrita. Penso que não "resolveremos" os problemas da escrita e leitura criando uma disciplina específica de "Leitura e escrita", como se os problemas desta ordem fossem resolvidos no âmbito disciplinar. Os problemas de leitura e escrita, tal como 'pouca leitura' e/ou 'dificuldade de escrever' dos estudantes, devem ser trabalhados em um conjunto de situações no processo de formação inicial, como um princípio do processo formativo, com a complexidade que lhe cabe - lembro que complexo trata-se de uma palavra derivada do latim "complexus" e significa "aquilo que é tecido em conjunto".
  • 5
    Importante destacar que, tanto nos cursos de licenciatura ou bacharelado (UNOCHAPECO, 2009, 2010), as propostas se articulam em torno da centralidade da prática pedagógica como característica importante para o processo de formação. Desta forma, com base em outros trabalhos (REZER, 2010; REZER, NASCIMENTO, FENSTERSEIFER, 2011, entre outros), considero que, mesmo intervenções em distintos contextos, tais como escolas, clubes ou academias, certamente atravessadas pelo conhecimento específico que lhes cabe, se constituem como intervenções pedagógicas. Portanto, considero que a intervenção pedagógica se constitui como característica importante, senão central, para o campo da EF, tomada como referência neste texto.
  • 6
    Como exemplo, há ainda uma noção de cátedra muito forte nas disciplinas. Certamente, romper com isso não garante nenhum avanço, como que por decreto. Porém, entendo como importante trabalhar em um contexto comunitário, sabendo e contribuindo minimamente com o que os colegas abordam no cotidiano frente aos estudantes. Além disso, esta preocupação é outra forma de perceber o afastamento entre docentes no cotidiano da Universidade. Faltaria o sentido de projeto coletivo? A sobrecarga de alguns e o desinteresse de outros seriam respostas adequadas? São questões que se apresentam com significativa complexidade na edificação de suas possíveis respostas.
  • 7
    É possível ingerir que enquanto as discussões mais acaloradas em momentos de reestruturação curricular nas IES forem sobre a grade de disciplinas e carga horária de cada uma delas, a discussão curricular avançará pouco no interior do campo da EF, distante da pretensão de constituir uma tradição curricular para este campo.
  • 8
    Por exemplo, muitos docentes mantêm o pensamento disciplinar, o que se desdobra na fragmentação dos módulos em pequenas disciplinas. Isso corrobora com a ideia de que há, sem dúvida, necessidade de preparação e estudo dos docentes, a fim de possibilitar um alargamento das perspectivas que se aproximam de propostas "alternativas", com todo cuidado que isso exige, sob risco de ilusões e da edificação de novos problemas.
  • 9
    Levar a sério o trabalho docente é transitar de forma responsável por diferentes subcampos da EF. Ou seja, trabalhar na EF escolar com diferentes manifestações da cultura corporal de movimento (esporte, dança, lutas, ginástica, jogo), e conhecer ainda sobre anatomia, fisiologia, corpo, cultura, pedagogia, didática, metodologia, entre outros, não é pouca coisa.
  • 10
    Metodologia, Teoria e Prática (MTP) do Handebol; MTP do Voleibol, MTP do Futebol/Futsal, MTP do Basquetebol, MTP do Atletismo, MTP da Ginástica I e II, MTP das Atividades Aquáticas, MTP da Natação I e II, Estudos do Lazer.
  • 11
    Lembro de uma inscrição em um painel localizado no interior da Escola da Ponte, em Rio das Aves (Porto, Portugal): "Mude, mas comece devagar, pois a direção é mais importante que a velocidade". Neste caso, a preocupação com a direção é muito importante, mais do que a pressa em "ir", muitas vezes, sem saber muito bem para onde.
  • 12
    Um horizonte, conforme Gadamer (2007), não se trata de uma fronteira rígida, mas algo que se desloca conosco, conforme nosso avanço, e que convida a seguir adentrando a ele, que se move junto conosco.
  • 13
    Inclusive, enfatizar a complexidade do trabalho docente pode contribuir com a superação da noção de que "dar aula" trata-se de qualquer coisa que acontece no tempo e no espaço. Talvez se assim fosse não seria necessário ouvir a pergunta de um amigo "Tu trabalhas na Unochapecó ou só dá aula lá?".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2012
  • Aceito
    27 Nov 2012
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