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Ian Hershaw: Hitler

RESENHA

Ian Hershaw - Hitler* * Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Rogério Souza Silva

O inesperado. É assim que pode ser definida a construção de Adolf Hitler feita por Ian Kershaw em sua obra. Nos primeiros oito capítulos (origens do personagem e sua ascensão ao poder), o autor mostra o homem que se tornaria o líder máximo da Alemanha, a partir de 1933, como uma figura política com características bastante peculiares. Ele e seu movimento representaram a culminação de um conjunto de crises na cultura política ocidental, ou propriamente alemã, entre o final do século XIX e o início do XX, tendo a Primeira Guerra Mundial dado condições para o aprofundamento desses processos. Assim, ele surgiu dos escombros de uma nação derrotada como uma alternativa para recuperar o orgulho nacional. Ao longo das mais de mil páginas de texto, Hitler aparece pelas mãos de seu biógrafo como despreparado politicamente, sem conhecimentos fundamentais do funcionamento de um governo e sem ter passado por etapas comuns que formavam lideranças liberais, conservadoras, comunistas ou socialistas dentro do cenário europeu.

Suas peculiaridades não terminariam em seus aspectos políticos. Kershaw apresenta a vida pessoal do futuro ditador como um grande vazio - "A biografia de uma 'não pessoa'" (p. 29). As já bastante conhecidas relações opressivas com o pai, de super proteção com a mãe e o sentimento possessivo pela sua sobrinha Geli Raubal são enriquecidas com maiores detalhes. O adolescente solitário tornou-se o adulto solitário, sem amores e sem amigos. São destacados alguns companheiros de caminhadas pelas ruas de Linz, na Áustria, de óperas em Viena e de cafés e cervejarias em Munique. São muito ricos os detalhes de suas tentativas de inserção profissional em que o fracasso esteve presente em todas, seja como pintor ou arquiteto. Sua queda na marginalidade social é acompanhada por um exame psicológico bem detalhado. A forma como o nacionalismo germânico entrou nas suas concepções estéticas aparecem em diálogos variados de sua vida e testemunhos de época. Em 1914, o seu entusiasmo levou-o a alistar-se no Exército bávaro e esse foi um momento de formação crucial de sua vida. Contudo, sem defini-lo totalmente e sem dar-lhe pistas sobre o seu futuro, pois um aspecto de grande importância desse livro é o esforço do autor em dividir Adolf Hitler antes de ser Adolf Hitler, evitando, assim, inúmeros anacronismos e determinismos. Isso se reforça quando o autor mostra, com muita clareza, que após o conflito, próximo à casa dos trinta anos, o então cabo não tinha em mente o que faria após a desmobilização das tropas.

Uma das perguntas centrais do livro é como, nas expressões usadas por Ian Kershaw, um "desajustado tão bizarro", "autodidata sem sofisticação", "demagogo de cervejaria", entre outras, conseguiu dominar uma das nações mais ricas e sofisticas de então. Nesse ponto há uma tentativa de estabelecer uma tensão entre o personagem e o contexto. Hitler, em sua opinião, é a figura central do século. No entanto, os desdobramentos políticos na Europa do pós-I Guerra, o papel da extrema-direita, o ataque, ao que era visto, como os valores da civilização, tem nele o seu principal ator, mas não a sua causa fundamental. Com maestria, Kershaw conduz o leitor pelos cenários de uma Alemanha devastada pelo que era, até aquele momento, a maior guerra de todos os tempos. O Hitler que sai dos campos de combate teve, como única alternativa, estender a sua permanência no Exército, ocupando funções em quartéis de Munique na guarda de prisioneiros. Essa permanência como militar estava relacionada à possibilidade de manter a sobrevivência à custa do Estado, pois, não tendo nenhuma profissão, essa seria a saída mais viável. Esse contexto traz um dado, que Hitler fez o possível para esconder, muito curioso de sua biografia, que foi a sua adesão ao regime socialista que controlava a Baviera nesse contexto. Ele foi escolhido vice-representante do batalhão no qual servia. Então teria existido um "Hitler Vermelho"? O autor acha improvável, pois suas opiniões baseadas no nacionalismo, racismo e anti-semitismo, ao lado de um rechaço às ideias de esquerda, continuavam presentes. Tem-se, sim, um Hitler oportunista que queria de qualquer maneira continuar sobrevivendo como militar. Outros futuros nazistas estiveram na mesmo situação durante a Räterepublik.

As questões colocadas acima remetem à forma como Hitler entendia o poder. Kershaw é bastante claro ao dizer que seu biografado tomou dimensão de suas possibilidades políticas apenas durante a sua prisão (entre novembro de 1923 e dezembro de 1924) em Landsberg causada pelo fracassado putsch da cervejaria. Há uma mescla bastante interessante entre oportunismo e fanatismo, baseado em uma fé incontrolável em si mesmo. Os sucessos na organização do Partido dos Trabalhadores Alemães - depois Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães -, o seu crescimento entre a população, as mobilizações paramilitares, a tomada do poder, a política internacional agressiva e recheada de sucessos iniciais, fez com que no momento da Segunda Guerra Mundial o oportunismo desse lugar ao fanatismo que, no crepúsculo de sua existência em seu bunker, chegou ao ápice, divorciando-o completamente da realidade. Porém, existem aspectos de suas concepções de poder que são bastante semelhantes entre o momento de sua tomada de consciência até a sua morte. Como já foi colocado, Hitler próximo dos trinta anos não tinha uma noção do que faria na vida e também era um homem que não havia passado pelos ritos tradicionais de lideranças políticas de diferentes espectros da Europa de então. Sua entrada no movimento nazista é fruto de sua ação como espião a serviço do Exército. Sua missão original logo se converte em simpatia pelas ideias völkisch (racistas) expressas pelos que eram parte de suas fileiras. Aqui o autor mostra que o homem que havia fracassado tentando ser pintor e arquiteto descobria, finalmente, o seu talento:

Do modo como as coisas aconteceram, ainda que apenas nas portas das cervejarias, ele podia se tornar um agitador e propagandista político em tempo integral. Podia ganhar a vida fazendo a única coisa em que era bom: falar. (p. 111)

A sua maneira de falar apelava para os medos, preconceitos, ódios, para toda e qualquer forma de instintos baixos. Hitler concebia política e propaganda da mesma forma, falava coisas não originais de uma forma original, a apresentação deveria ser mais importante que o conteúdo, discursos diferentes para públicos diferentes: "Ele era, sobretudo, um ator consumado" (p. 207), as aparências, indumentárias, bandeiras, cartazes davam visibilidade ao partido, aparecer, estar em evidência a qualquer preço, era mais fundamental do que elaborar programas de governo esclarecedores. O autor cita frases de seu personagem onde isso fica evidente: "Não faz diferença se riem de nós ou se nos insultam" ou "se nos representam como palhaços ou criminosos; o principal é que nos mencionem, que se preocupem conosco frequentemente" (p. 121).

Portanto, há uma subversão de práticas políticas enraizadas no continente europeu. Para o Führer, os padrões políticos comuns não eram viáveis para o que se tornou o nazismo. São feitas no livro várias referências à admiração que muitos membros do movimento tinham pelo estilo gangster norte-americano que incluía chapéu de abas curtas, casaco, arma na cintura. O próprio Hitler adotou, em determinados momentos, esse estilo de se vestir nos anos vinte - Kershaw chama-o em uma passagem de "(...) perigoso líder de uma quadrilha de gângsteres políticos" (p. 288). Esse estilo criminoso não se resumia exclusivamente às roupas, porém mais às práticas de perseguição, intimidação e assassinato de inimigos ou mesmo de oponentes dentro do próprio partido. A chamada noite dos longos punhais, onde um nacional-socialista histórico como Ernst Röhm foi assassinado, demonstra isso com clareza.

Segundo o autor, a mentalidade política das elites e das massas que deram condições à ascensão de Adolf Hitler e do nazismo estava ligada a um conjunto de crises já manifestadas na Alemanha cerca de duas décadas anteriores à Primeira Grande Guerra. Muitos elementos, como o pangermanismo, os movimentos völkisch, o autoritarismo, já se faziam presentes naquela sociedade. O nacional-socialismo usou muitas dessas ideias, mas ao mesmo tempo viu a necessidade de agir para destruir muito do que era o país antes de seu domínio total. Assim, ao contrário de Daniel Jonah Goldhagen (1999), que vê uma sociedade e uma cultura alemã que respaldaram totalmente o nazismo, Kershaw mostra uma relação tensa com vínculos, rupturas, oportunismos, oposições silenciosas. Hitler procurava mostrar-se como parte de uma linhagem que começava em Frederico, o Grande, passava por Bismarck e Himdenburg. Na obra essa visão é quebrada, pois o autor nega que o ditador fosse parte de uma conduta especificamente alemã ou culminação de tendências históricas de longo prazo (ideológicas ou culturais).

A obra mostra que foram sem precedentes na diplomacia o uso que os nazistas fizeram da mentira, chantagem e constantes quebras de acordos. Na política internacional, houve ainda as ligações existentes entre as demandas territoriais e históricas da Alemanha no leste Europeu e as ideias dos seguidores de Hitler. Especialmente no capítulo 17, que trata da invasão da Polônia, há uma análise das convergências e divergências entre os planos dos militares e das tropas de choque nacional-socialistas. Resgatando ideias já discutidas nos anos cinquenta que viam a ação de conquistas do nazismo como uma política colonial intraeuropeia (Arendt, 1989 , p. 151-152; Césaire, 1971, p. 13), o livro dá uma maior fundamentação documental a tais interpretações. A noção de "espaço vital" (Lebensraum) aparece em seus discursos e no livro Mein Kampf. Essas várias fontes mostram que se misturavam em sua mente elementos do colonialismo europeu na África e na Ásia e referências à colonização do leste feita na Idade Média. O tratamento dado aos povos conquistados tinha também aspectos coloniais:

Na visão primitiva de seus novos senhores, o que era antes a Polônia não passava de um território colonial na Europa Oriental: recursos naturais para serem saqueados à vontade, um povo visto - com a ajuda de modernas teorias racistas que revestiam velhos preconceitos - como seres humanos inferiores, a serem tratados tão brutalmente quanto julgassem apropriado. (p. 551)

Nos doze anos de governo nazista houve na Alemanha uma verdadeira confusão administrativa. Hanna Arendt em sua obra já fazia referência a essa característica que ela via como própria dos totalitarismos (hitlerismo e stalinismo) onde uma ideia de governar voltada para questões administrativas, econômicas, industriais, ou pensando no cotidiano da população, não estava presente nas questões mais urgentes desses regimes. Sua prioridade era a construção "do chamado princípio de liderança" (Arendt, 1989, p. 454). Com um embasamento documental maior, Kershaw aprofunda essa análise mostrando como não havia qualquer traço próprio de um governo moderno, com diferentes instâncias e decisões coletivas. Todas as decisões passavam por Hitler, seus seguidores mais próximos recebiam informações importantes em cima da hora ou com atraso, muitas delas eram dadas apenas verbalmente, as reuniões de gabinete tornaram-se cada vez mais escassas ao longo de seus anos de poder (p. 356). O Führer, durante a sua vida, se caracterizou por ser pouco organizado, metódico e planejado. Baseado em sua pesquisa, o autor mostra que sua atuação como membro do Partido Nazista esteve longe de ser a de um organizador, no sentido administrativo. Seu papel ficava reservado ao de centro irradiador do movimento, usando seu talento para a fala, sendo o "arauto" e líder militar. Havia um magnetismo inegável em sua figura, o autor faz uso do conceito de carisma desenvolvido por Max Weber, em Economia e sociedade.

O nacional-socialismo possuía diferentes projetos e distinções regionais. Entre o final dos anos vinte e o início dos trinta, Hitler impõe uma unidade transformando o Partido Nazista em um partido de líder, concentrando o poder de maneira absoluta. Nisso, a necessidade de interpretar as vontades do ditador levavam seus seguidores (os mais próximos e os mais distantes) a um constante debate sobre a natureza de suas ordens. Aqui Kershaw utiliza uma expressão corriqueira entre os admiradores de Adolf Hitler: "Trabalhar para o Führer". Com ela o autor quer mostrar que muitas das ações que eram praticadas no Terceiro Reich - do ponto mais alto ao mais baixo da escala de poder - era fruto de uma interpretação dos adeptos do movimento.. Os nazistas não fizeram uma constituição para substituir a de Weimar, assim passaram a criar decretos para impor a sua ditadura. Ao lado disso, o regime se caracterizou pela criação de órgãos sobrepostos e concorrentes entre si e que, no fim das contas, dependiam todos das vontades pessoais do líder.

Essa postura na condução da Alemanha revela traços muito significativos de Hitler. O sigilo foi parte marcante da sua personalidade. Mesmo pessoas de seu círculo mais íntimo tinham dificuldades de conhecer aspectos de seu caráter. Uma das contribuições mais importantes da obra é a discussão de sua atuação nos assassinatos em massa cometidos pelo regime que comandou. O autor mostra que há um documento oficial assinado por Hitler autorizando o processo de "eutanásia" (p. 561), que, na verdade, tinha mais as características de assassinato, pois tal procedimento médico visa diminuir o sofrimento de doentes com quadro irreversível - algo bem inverso ao que estava acontecendo na Alemanha. Contudo, na formulação da solução final -exterminação física dos judeus de toda a Europa -, Hitler aparece como idealizador, tendo uma ação indireta, não deixando documentos que o envolvessem, estando longe da direção do processo. Porém, para que tal crime ocorresse, o seu conjunto de ideias foi de importância fundamental, Kershaw mostra que seu papel:

Consistira mais em autorizar do que em dirigir. E as diatribes cheias de ódio, embora sem par em sua desumanidade profunda, continuaram no nível das generalidades. Não obstante, não pode haver dúvidas: o papel de Hitler foi decisivo e indispensável no caminho para a solução final. Se em 1933, em vez dele, tivesse subido ao poder um governo nacionalista-conservador, talvez uma ditadura militar, é bem provável que, mesmo assim, uma legislação discriminatória contra os judeus tivesse sido introduzida na Alemanha. Mas, sem Hitler e o regime peculiar que chefiou, a criação de um programa para exterminar fisicamente os judeus da Europa teria sido impensável (p. 734).

Portanto, Hitler pensou, mas não organizou. Pelas suas características pouco burocráticas e incapacidade administrativa, estava longe de seu horizonte elaborar uma máquina de matança em escala industrial como foi o Holocausto. Segundo o autor, as possibilidades para o genocídio ficaram concretas a partir de 1941, quando a Alemanha invade a União Soviética e os nazistas passaram, devido a isso, a ter mais territórios e populações judaicas a sua disposição. Nesse mesmo ano ocorre a Conferência de Wannsee, na qual as diretrizes para a eliminação dos judeus foram colocadas. Kershaw diz não ter certeza se Hitler sabia desse evento, porém os homens que "trabalhavam para o Führer", como Reinhard Heydrich e Heinrich Himmler, tiveram carta branca. Outro nome que acendeu nas fileiras do partido e tornou-se um elemento central na solução final foi o do burocrata Adolf Eichmann.

A permanência da ideia do "grande personagem histórico" é um problema incômodo existente na obra. Por mais que o autor insista em dizer que existiram fatores primordiais para o que ocorreu na Alemanha e no mundo entre os anos vinte até 1945 e que Hitler é um ator principal e não o efeito desencadeador; por mais que ele tente fazer a ligação entre o personagem e contexto; por maiores que sejam seus esforços para mostrar a ação dos que "trabalhavam para o Führer"; apesar do seu esforço em apresentar Adolf Hitler filho de sua época e lugar, envolvido por fatores culturais, econômicos e políticos de seu tempo, o "grande personagem histórico", mola mestra de sua época, emergiu em muitos momentos da obra. O exercício de entendimento psicológico do biografado é interessante para decifrá-lo, porém torna-se um tanto inválido, quando pensamos que ele não foi o único filho oprimido pelo pai, superprotegido pela mãe, adolescente e homem solitário, profissionalmente e sexualmente frustrado, traumatizado e fascinado pela guerra, de opiniões reacionárias, racistas e antissemitas de seu contexto. Por exemplo, há uma passagem em que o autor fala sobre o entusiasmo de Hitler pela guerra, afirmando:

No início de agosto de 1914, ele estava entre as dezenas de milhares de habitantes de Munique tomados por um deliro emocional, entusiasmados com a perspectiva da guerra de forma apaixonada. Como aconteceu com tantos outros, seu júbilo se transformaria depois em profunda amargura. No caso de Hitler, o pêndulo emocional posto em movimento pelo início da guerra oscilou com mais violência do que para a maioria. (p. 86)

Como, em um conjunto populacional tão gigantesco, se pode afirmar que o personagem central da obra foi mais afetado pelo ímpeto violência do que a maioria? Contraditoriamente, o autor abraça um mito que Hitler criou para si mesmo, o do amor a guerra, e que colocou em prática quando se transformou em líder incontestável dos nazistas e depois da Alemanha. Os seus ímpetos de violência provavelmente foram muito grandes, mas é um equivoco isolá-lo de outros homens que podem ter possuído perfis semelhantes aos dele.

Desse modo, o que torna o personagem interessante e mostra a importância de se investigá-lo não é o seu ineditismo, mas sim o seu aspecto ordinário - no sentido que foi estudado por Michel de Certeau (2007). Hitler era um homem comum. O teatrólogo Dietrich Eckart (uma das figuras que mais o influenciou, sendo uma espécie de mentor) descreveu na mesa de um café, enquanto bebia, o modelo ideal de líder que os alemães deveriam possuir:

Não preciso de um oficial. As pessoas comuns perderam todo o respeito por eles. O melhor seria um trabalhador que saiba como falar. Não precisa saber muito. A política é a mais estúpida profissão da face da Terra. (Ryback, 2009, p. 59)

Eckart, segundo Timothy Ryback, fez essas afirmações antes de conhecer Adolf Hitler. O autor coloca algumas dúvidas sobre a veracidade do episódio. Mas, sendo verdadeira ou não, a passagem demonstra o clima político e as expectativas que ajudaram na sua ascensão ao poder. Esse homem que as pessoas comuns se identificariam foi bem retratado em uma fotografia que aparece no livro de Ian Kershaw, tirada por Heinrich Hoffmann, mostrando-o, ainda jovem, em meio à multidão, comemorando, na Odeonsplatz, em Munique, a proclamação da guerra de 1914 - em passagem já citada. Karl Kraus (2003), em Os últimos dias da humanidade, tem em Viena um cenário para mostrar como as pessoas comuns, parecidas com o futuro ditador alemão, clamavam pelo conflito. Nunca é demais lembrar que entre a queda de Napoleão até o momento de eclosão da I Guerra, a Europa não viveu nenhum confronto militar de dimensões continentais. Os novos padrões de violência bélica que se desenvolveram, em seus momentos preliminares, fizeram com que seus efeitos catastróficos fossem imprevisíveis no instante em que aquela foto foi realizada.

Tanto Kershaw, como Ryback, mostram que uma boa parte de sua formação intelectual deu-se em torno de jornais e revistas völkisch e de livros que pregavam o antisemitismo e exaltavam o passado alemão, ao lado de leituras superficiais de autores como Nietzsche e Marx (feitas em Landesberg). Os dois historiadores citados anteriormente mostram também as deficiências básicas de educação formal que caracterizaram o personagem. Possuidor de um conhecimento básico de história da arte, entusiasta da música de Wagner, ao mesmo tempo admirador dos automóveis Mercedes e do cinema norte-americano.

O homem comum - ou ordinário - não é naturalmente fascista e intelectualmente mediano, o seu perfil é múltiplo. Porém, no contexto do início do século XX, quando a cultura política do século anterior demonstrava o seu esgotamento, criou-se um cenário que favoreceu a construção de uma sociedade onde homens sem a mais absoluta qualidade, como Hitler, entendessem a linguagem política que passou a vigorar e interagissem entre si, usando elementos tradicionais do poder somados às novidades da sociedade tecno-industrial. No auge do nazismo, houve um clima de aceitação, entendimento e identificação entre ele (com claros elementos demagógicos) e o povo alemão nos espetáculos de exaltação do Terceiro Reich.

Ao terminar a leitura do livro surge uma questão perturbadora. Hitler foi uma figura histórica inesperada e fora de qualquer possibilidade de previsão. No entanto, os elementos que favoreceram a sua ascensão estavam presentes já há bastante tempo na Alemanha. Em um século que está apenas começando, como o nosso, e que tem perspectivas colocadas com muita certeza por diversos analistas, como: o crescimento de poder da China, a decadência dos EUA, o novo papel do Brasil, uma Europa em busca de uma nova identidade, a expansão da informática, a força dos movimentos islâmicos, dentre outras. Diante disso não é demais indagar: o que é inesperado para nós?

Ian Kershaw mostra o terrível legado deixado por Adolf Hitler, diante disso a indagação feita acima não é um mero exercício de futurologia, mas uma possibilidade de pensarmos os caminhos e as escolhas que nossas sociedades estão fazendo.

  • ARENDT, Hannah. 1989. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras.
  • CERTEAU, Michel de. 2007. A invenção do cotidiano, vol. 1: Artes de fazer. 13Ş ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes.
  • CÉSAIRE, Aimé. 1971. Discurso sobre o colonialismo Trad. Carlos S. Pereira. Porto: Cadernos para o Diálogo.
  • GOLDHAGEN, Daniel Jonah. 1999. Os carrascos voluntários de Hitler: o povo alemão e o Holocausto. 2Ş ed. Trad. Luís Sérgio Roizman. São Paulo: Companhia das Letras.
  • KRAUS, Karl. 2003. Os últimos dias da humanidade Trad. António Sousa Ribeiro. Lisboa: Antígona.
  • RYBACK, Timothy W. 2009. A biblioteca esquecida de Hitler: os livros que moldaram a vida do Führer. Trad. Ivo Korytowski. São Paulo. Companhia das Letras.
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    Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2012
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