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“VERDADES AFILIATIVAS”: Ignas Kalpokas e a sua teoria da pós-verdade

“AFFILIATIVE TRUTHS”: Ignas Kalpokas and his post-truth theory

KALPOKAS, Ignas. . (2019), A Political Theory of Post-Truth.Londres,Palgrave Macmillan. 135p.

O livro “A Political Theory of Post-Truth”, trabalho assinado pelo cientista político lituano Ignas Kalpokas, é uma obra curta e de estilo direto que, por meio de uma vastíssima revisão bibliográfica, avança uma abordagem teórica para pensar a noção de pós-verdade. O conceito passou a ser empregado na era pós-Trump e designa, na obra do pesquisador, não apenas a indiferença em relação aos fatos na circulação de informações, mas, acima de tudo, um trabalho consciente, elaborado e dirigido de construção de “ficções escapistas” (Kalpokas, 2019KALPOKAS, Ignas. (2019), A Political Theory of Post-Truth. Londres, Palgrave Macmillan., p.13) alicerçadas no uso generalizado de “atalhos” (p.34) afetivos.

As inspirações centrais para construir o trabalho não derivam do campo da filosofia da ciência ou do domínio conhecido como Science Studies – campos nos quais o tema da pós-verdade teve um alto rendimento a partir de 2016 –, mas de uma combinação entre os estudos de mídia, a filosofia de Espinosa e uma pletora de pesquisas contemporâneas sobre a algoritimização da vida produzida pelas ferramentais digitais. Tais áreas emprestam ao autor as ferramentas para construir uma teoria da pós-verdade que pretende pensar o fenômeno em sua abrangência, de tal forma que aqui o conceito se refere a uma condição geral de nosso tempo, a um traço civilizacional no qual estão imersos indivíduos com filiações ideológicas diversas. Nos termos de Kalpokas, “o livro busca demonstrar que a pós-verdade é universal e independe da convicção política” (p.3) e se constitui como um “atributo geral de nossos tempos” (p.42).

Só é possível sustentar essa posição porque, para o autor, a generalização das narrativas sem compromisso com qualquer forma de verificação e a sua consequente integração aos processos de formação de grupos políticos, a adesão às mais esdrúxulas teorias da conspiração por uma cada vez mais expressiva parcela da população mundial e a sua inscrição em práticas de disseminação de informações marcadas pelo desprezo pelos fatos compõem um processo que pode ser descrito como a insinuação de uma dimensão “afetiva” na criação, circulação e consumo de informações tanto políticas quanto científicas. Para Kalpokas, tudo se passaria como se “[p]olítica, entretenimento e os conteúdos de outras mídias se tornassem indistinguíveis” (p.6).

É que, na compreensão de Kalpokas, se a vida contemporânea é marcada por uma verdadeira miríade de núcleos emissores de enunciados que se pretendem verdadeiros, “[e]m um ambiente como esse ‘a verdade será simplesmente uma questão de afirmação’ (Suiter 2016:27), de tal forma que a questão principal é saber quem será capaz de afirmar o seu ponto mais efetivamente” (p. 10). Nessa espécie de esfera competitiva, o cientista político lituano introduz a noção de “verdades afiliativas” (p.9), isto é, enunciados conscientemente desenhados para operar em grupos particulares que, independentemente do valor de verdade de tais informações, funcionam se são capazes de se ajustar às expectativas das “audiências”. Conforme coloca o autor, “em um ambiente de pós-verdade, a ‘verdade’ é aquilo que funciona em uma situação particular” (p.14). Nesse cenário, portanto, parece operar uma definição pragmática de verdade porque “a vitória é o que importa – porque a efetividade de uma afirmação é realmente importante na avaliação dos enunciados que reivindicam verdade” (p.14).

Isso chama a nossa atenção para o fato de que, se na era da pós-verdade, os fatos em si não importam, as ficções caras aos grupos para os quais se dirigem as mensagens têm de ser levadas em conta. Pois, se Kalpokas defende que a pós-verdade é um tipo de “ficção escapista” (p.13), ele também sugere que ela é uma ficção construída coletivamente em uma espécie de jogo no qual os centros emissores de informação colaboram ativamente com as audiências que, além de consumirem os seus conteúdos, produzem outros que servem às lideranças políticas como meios para a avaliação de sua performance e como fontes de ideias para novas “verdades.”

Nesse tipo de “conluio” (p.17), o autor reconhece que as “verdades afiliativas” que se impõem com maior efetividade são aquelas capazes de produzir maior “prazer” nas audiências. Pois, segundo a compreensão da obra em tela, há algo como um “feel good factor” (p.19) na adesão a teorias que possuem um viés de confirmação em relação às disposições sobre o mundo anteriores, especialmente aquelas que “envolvem complôs feitos por outros maliciosos” (p.19). A imagem de pensamento utilizada para a escalada dos enunciados a níveis cada vez mais absurdos é a de uma sala altamente barulhenta, na qual “tendemos a levantar a voz para conseguir romper o barulho, mas, uma vez que todos fazem o mesmo, o nível termina subindo” (p.22).

Outro ponto importante que merece atenção na obra consiste no apontamento de que o trabalho da pós-verdade não se faz no vácuo. Isto é, segundo Kalpokas, as lideranças se valem de “algo compartilhado, como episódios selecionados da memória coletiva e experiências do passado” (p.28). Soma-se ao recurso à memória, o acoplar de técnicas de mineração de informações pessoais, hoje largamente possibilitadas pelas pegadas digitais que deixamos ao navegar na internet e que permitem adequar ainda mais os enunciados.

Uma ideia central para a economia conceitual deste livro é o conceito de “Era experiência”, que se define pela “interação, encontro momentâneo, conexões baseadas em experiências instantâneas com um pedaço de informação dado” (p.33). Tudo se passaria como se, no nosso atual cenário, a adesão a uma ou outra ideia não passasse mais pela análise cuidadosa de sua correspondência com um mundo lá fora. Ao contrário, a forma segundo a qual a informação é dirigida na “Era da experiência” tem os memes como o seu exemplo mais prototípico, de tal forma que “é um muito mais eficiente se valer de atalhos, como um click emocional com uma história ou com um pedaço de informação”(p.34). Segundo Kalpokas, “o critério para a adoção de uma opinião particular ou para abraçar uma afirmação específica não é mais a sua verificabilidade, mas, ao contrário, a sua aderência” (p.37). Isso obviamente está adequado a essa percepção que o autor tem de uma espécie de “pragmática” que passa a governar o espaço público.

É ao elaborar sobre o lugar da experiência na era da pós-verdade que Kalpokas parece nos dar uma contribuição importante, qual seja, o autor se desfaz da compreensão de que a adesão a teorias ou a fatos falsos se dá pela ignorância, pela falta de competência para o bom julgamento, pela ausência de treinamento científico ou pela baixa educação formal. Também apresenta certo ceticismo em relação às iniciativas das mídias de massa de desenvolver canais especiais para “checar as informações”. O autor compreende que, mesmo os meios para checagem estando disponíveis, os fatos são muito menos atrativos do que informações dotadas de clicks que apelam à experiência do receptor e o gratificam com alguma dose de prazer.

Todo esse conjunto de argumentos é desenvolvido até o capítulo dois. No capítulo três, intitulado “Habilitando a pós-verdade: midiatização e afeto”, Kalpokas se voltará a uma dupla tentativa: primeiro, o autor explora a relação entre a midiatização e a política. Em seguida, tenta uma utilização de elementos da ontologia do filósofo Baruch Espinosa para embasar uma teoria sobre o consumo na era da pós-verdade. Acerca da midiatização, isto é, “o processo através do qual várias esferas e instituições sociais são subsumidas a uma lógica midiática” (p.51), os dois aspectos mais relevantes observados pelo cientista político são: o fato do consumo de conteúdos políticos se fazer de modo muito similar ao consumo midiático; o apontamento de que, no cenário da pós-verdade, há uma tendência à midiatização da pessoa, isto é, a valência enquanto sujeito deriva da performance de um self virtual. Os dois temas informam a discussão do autor sobre as lideranças políticas.

No que tange à instrumentalização de Espinosa para desenvolver o argumento do livro, o autor apresenta-nos uma determinada ontologia segundo a qual todos o humanos desejam “perseverar enquanto ser” (p.68), o que na obra do filósofo holandês recebe a alcunha de “cognatus”. Ocorre que, de acordo com Kalpokas, essa tarefa se faz no contexto de “uma existência que nunca está completa” (p.68), daí certa abertura do sujeito para que as “afecções” – outro conceito de Espinosa – o transformem. Contudo, na era pós-verdade, essas forças transformativas são prioritariamente da ordem do pensamento, e não das afecções corporais (p.69) . Afecções que, na leitura do autor, parecem estar em um tipo de competição (p.71) relativa à sua influência sobre o ser, competição esta que se dá em termos daquela que é capaz de majorar o estímulo e atrair maior atenção. Nesse cenário, assistimos aos seguintes fenômenos: uma transformação no self, cujo moto para “perseverar na existência está ligado à maximização da capacidade afetiva” (p.74); na própria natureza da verdade, que se desliga da aspiração à correspondência e se relaciona a um quantum afetivo. Eis o acabamento da tese de Kalpokas (p. 76):

É aí que as narrativas da pós-verdade podem entrar no pensamento Espinosiano como esforços substitutos para perseverar na existência ou como tentativas de preencher um déficit constitutivo. Particularmente sob a premissa apresentada no último capítulo, qual seja, de que a política na pós-verdade pode ser atrativa para aqueles sofrendo alguma forma (real ou percebida) de marginalização (i.e o que a torna aspiracional por natureza), nós podemos facilmente tratar a pós-verdade como uma estratégia de perseverar na existência por meio da aderência à verdades afiliativas e aspiracionais ao confundir um julgamento emocional com práticas aspiracionais coletivas.

O tema da falta constitutiva que age como motivo para a acomodação do sujeito midiatizado ao contexto altamente mediado por clicks emocionais, que marca a pós-verdade, aparecerá novamente no capítulo quatro, intitulado “Tornando a teoria política”. Em termos de estilo, nada difere do que vimos até aqui: longos sobrevoos bibliográficos que ligam as reflexões sobre a estética na filosofia antiga e o mundo algoritimizado das redes sociais ocupam a mesma linha. É que os temas escolhidos neste capítulo são as noções de mimese e verossimilhança, dois conceitos cuja história na filosofia não se pode ignorar. O primeiro, por sua importância para o campo da Estética. O segundo, pela relevância que tem na filosofia da ciência. Quanto ao tema da mimese, a principal conclusão de Kalpokas consiste na afirmação de que a pós-verdade passa ao largo do tema da representação. Ao contrário, “a pós-verdade é uma forma de apresentação da realidade” (p.90). Esse mesmo deslocamento, de um mundo dividido entre realidade e representação, para o domínio de uma “pragmática” – isto é, tem valor de verdade aquilo que funciona entre determinadas audiências – replica-se também no self na era pós-verdade: “otimizado para impactar em outros e posicionado para ser afetado de volta” (p.91).

No que tange ao tema da verossimilhança, também alvo de uma extensa revisão, os aportes importantes consistem nas observações de que, no ambiente da pós-verdade, o elemento usado para medir a verossimilhança de um enunciado é “a experiência vivida daqueles que aderem” (p.94), portanto o seu valor varia “dentro do âmbito daquilo que é conhecido sobre o mundo pela audiência” (p.94). Ao descrever a forma como os enunciados circulam nas redes sociais contemporâneas, Kalpokas chega a nos instruir sobre aqueles que seriam os procedimentos mais adequados para fazer uma curadoria daquilo que tem a capacidade de aderir. A escolha do enunciado passa, nos termos do autor, por usar “aquilo que já circula no público como um material de apoio para o caso a ser criado” (p.95). É claro que a adesão só ocorre se aquilo que se veicula – e a linguagem escolhida por Kalpokas sinaliza para o aspecto intencional do que é disseminado –, se o enunciado “fizer sentido emocionalmente” (p.96). O autor tem razão ao pontuar que o melhor meio para atingir esse objetivo é investir em informações que se constroem ao modo de “narrativas oferecem a redenção da condição presente” (p.97) e que são capazes de criar “comunidades midiatizadas de pós-verdade” (p.103).

Ainda no capítulo quatro, uma importante discussão do autor diz respeito ao tema muito frequente da relação entre o pensamento pós-moderno, o seu questionamento dos pressupostos das filosofias da ciência de extração positivista e a emergência da pós-verdade enquanto uma condição civilizacional na qual boa parte do mundo se encontra. O autor se empenha em desfazer o elo construindo um argumento segundo o qual as diferentes tradições relativistas e construtivistas em relação ao conhecimento, longe de agirem para produzir esse cenário, são “um testemunho da perspicácia de pelo menos alguns pensadores pós-modernos, que foram capazes de prever algo próximo da condição pós-moderna décadas antes” (p.104).

Mas o próprio Kalpokas confessa que o cenário de luta competitiva entre narrativas que ele descreve tem algo do desenho de um mundo no qual, se, por um lado, foi desfeita a narrativa teleológica moderna em direção ao progresso do conhecimento, por outro, parecem figurar “nichos narrativos de escala menor baseados em reinvindicações de verdades afiliativas que funcionam como se elas fossem metanarrativas para os seus seguidores” (p.104).

Esses “nichos narrativos” só funcionam porque parece haver nos humanos um tipo de desejo pela completude (ou a “fantasia da completude” (p.111)), segundo a interpretação que Kalpokas faz do filósofo argentino Ernesto Laclau e que, obviamente, ecoa o que foi exposto a propósito de Espinosa. Os humanos abraçariam a “pós-verdade” em razão desse “déficit de existência” (p.108), o que o leva concluir que, “mesmo que caiamos acriticamente por uma construção hegemônica, nós o fazemos porque tomamos algo que precisamos em retorno[...] Este algo é o prazer (impossível) da fantasia de completude” (p.111). Compreende-se a partir da análise do autor que essa referida “fantasia da completude” parece ser um ativo disputado por aspirantes à liderança política, que “estabelecem o seu significante como o mais importante e então o completam com um significado a sua escolha” (p.129).

Há, conforme já vínhamos notando a propósito do esquema analítico do autor, um processo de mão dupla na adesão a esses nichos, de tal maneira que a obra em tela recusa uma figuração que reduza o fenômeno do populismo a uma “manipulação” unidirecional. Parece haver nas adesões certo “desejo pelo prazer” (p.114), que o autor trata como homólogo a certas práticas de consumo de produtos. Embora esse ponto me pareça particularmente desastrado, o autor chega inclusive a lançar mão brevemente de modelos comportamentais da biologia para refletir sobre o tema das gratificações associadas à adesão aos nichos narrativos da pós-verdade.

A conclusão do livro, alcançada no capítulo cinco – no qual o autor recapitula as suas teses –, parece apontar para o fato de que o ato de aderir aos “nichos narrativos” não pode ser lido na chave de um flerte com o irracionalismo, muito embora as narrativas que circulam nesses mesmos nichos sob análise de Kalpokas o sejam. A recusa em equacionar a adesão a um ato irracional ocorre porque o autor percebe nesse processo um tipo de via de sentido para os atores que nele se engajam (p.130). Isso acontece porque “elas podem não ser completamente críveis, mas ao menos oferecem uma visão alternativa da realidade de qualidade suficiente para permitir que outros aspectos indutores de prazer entrem em ação” (p.129).

O livro de Kalpokas, na medida em que pretende construir uma teoria política da pós-verdade, cumpre parcialmente o que promete. Digo parcialmente, porque o leitor acostumado à vida cotidiana no ambiente que o cientista político lituano descreve e, mais ainda, um pesquisador interessado nos usos políticos das teorias da conspiração, aspira ver uma leitura mais nuançada da tese que sustenta que os “nichos narrativos” alicerçados no apelo à experiência são um fenômeno global, a despeito do marcador ideológico.

Isto é, quando o autor constata a circulação dos clicks de natureza afetiva na comunicação política contemporânea, talvez fosse prudente qualificar que esse procedimento de formação de grupos por meio da criação das “verdades afiliativas” (ibidem) está acelerado e é constitutivo, principalmente, dos setores da extrema direita que aderem às lógicas populistas. Portanto, se aquilo que o autor chama de “era da experiência” (ibidem) faz sentido, o recurso a esse modo de constituição da esfera pública tem sido utilizado de modo mais acelerado por alguns setores da sociedade do que por outros.

Ainda anotando elementos que me parecem problemáticos da obra em tela, vale mencionar o anúncio de que a obra de Ernesto Laclau seria fundamental para o argumento construído e o pouco recurso a ela ao longo do livro; a decisão por utilizar de forma apressada e, salve melhor juízo, inadequada de modelos comportamentais humanos, provenientes da biologia, que apontam para uma tendência humana para evitar “adiar a gratificação” (p.118); e um recurso à noção de “mito” que pediria maior elaboração.

Mas o maior problema do livro, se o bem compreendi, está no fato de sua dependência da ontologia de Espinosa e o consequente recurso à noção de “déficit de existência” (p.52) autorizar uma leitura que toma o desejo pelas narrativas da pós-verdade como algo dotado de uma caráter necessário, como uma decorrência de uma condição existencial humana. A pergunta que fica é a seguinte: se esses apontamentos sobre a nossa ontologia estão corretos, quais seriam os outros modos de atender a nossas “fantasias de completude” (p.111) sem desenhar mundos tão perversos como este no qual estamos?

  • KALPOKAS, Ignas. (2019), A Political Theory of Post-Truth. Londres, Palgrave Macmillan. 135p.

Referências:

  • KALPOKAS, Ignas. (2019), A Political Theory of Post-Truth Londres, Palgrave Macmillan.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2020
  • Aceito
    28 Jul 2020
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