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VERDADE POLICIAL COMO VERDADE JURÍDICA: NARRATIVAS DO TRÁFICO DE DROGAS NO SISTEMA DE JUSTIÇA * * Este artigo foi adaptado do trabalho apresentado no 40º Encontro Anual da Anpocs, no SPG 11 – Drogas, atores e sociedade, em Caxambu, MG, 2016. A pesquisa foi desenvolvida com apoio da Fapesp, processo 2014/19557-8.

POLICE TRUTH AS LEGAL TRUTH: NARRATIVES OF DRUG TRAFFICKING IN THE JUSTICE SYSTEM

LA VÉRITÉ POLICIÈRE EN TANT QUE VÉRITÉ JURIDIQUE: LES RÉCITS DU TRAFIC DE STUPÉFIANTS DANS LE SYSTÈME DE LA JUSTICE

Resumos

O que torna possível que narrativas policiais de flagrantes de tráfico de drogas sejam recepcionadas como verdade pelos operadores do direito, sobretudo juízes? Para responder a essa questão, o artigo apresenta análises de processos, entrevistas com policiais, juízes e promotores e registros de campo de audiências judiciais. Foram utilizados multimétodos, combinados à análise de fluxo do sistema de justiça. Constatou-se que a verdade policial resulta de um processo de seleção daquilo que os policiais do flagrante vão considerar adequado tornar oficial. Essa verdade é recepcionada pelos operadores do direito e justificada a partir de um repertório de crenças: a crença na função policial, a crença no saber policial e a crença na conduta do policial. A crença dispensa o conhecer, pois não se questiona a forma como as informações foram produzidas pelos policiais. A verdade policial é uma verdade que vale para o direito, sendo o elemento central para a constituição da verdade jurídica.

Verdade jurídica; Tráfico de drogas; Justiça criminal; Polícia; Verdade policial


What makes it possible for jurists and civil servants, especially judges, to receive police narratives about red-handed drug trafficking offences as truth? To answer this question, this paper presents case analyzes, field records of judicial hearings and interviews with police officers, judges and prosecutors. It verified that the police truth arises from a selection process relative to what the arresting officers consider appropriate to report as official. Several beliefs enable judges to acknowledge this narrative as truth: belief in police function, in the police knowledge, and the conduct of the police officer. But belief dispenses with knowing, unbeknownst to how the information was produced and acquired by the police. Police truth is a narrative that holds legitimacy for justice, comprising the central element for the constitution of legal truth.

Legal truth; Drug trafficking; Criminal justice; Police; Police truth


Qu’est-ce qui permet que les récits de la police à propos de flagrants de trafic de stupéfiants soient accueillis comme une vérité par les opérateurs du droit, particulièrement les juges ? Pour répondre à cette question, l’article présente l’analyse des processus, des entretiens avec les policiers, des juges et des procureurs et des registres faits sur place des audiences judiciaires. Des méthodes multiples ont été utilisées, combinées à l’analyse des flux du système de justice. Il a été constaté que la vérité de la police découle d’un processus de sélection de ce que les policiers responsables du flagrant jugeront approprié de rendre officiel. Cette vérité est accueillie par les opérateurs du droit et justifiée à partir d’un répertoire de croyances : la croyance en la fonction policière, la croyance dans le savoir de la police et la croyance en la conduite de la police. La croyance dispense la connaissance, car on ne questionne pas la façon par laquelle les informations ont été produites par les policiers. La vérité policière est une vérité qui s’applique au droit, étant l’élément central de la constitution de la vérité juridique.

Vérité juridique; Trafic de stupéfiants; Justice pénale; Police; La vérité policière


Introdução

O papel dos policiais como testemunhas nos processos originados das prisões em flagrante que efetuaram parece ainda não ter sido estudado suficientemente, sobretudo no campo do debate da verdade jurídica. Há uma extensa literatura sobre a participação da polícia judiciária na produção dessa verdade, mas pouco se tratou sobre a participação do policiamento ostensivo, sobretudo aquele focado em realizar prisões em flagrante. Provavelmente essa ausência está relacionada à centralidade do inquérito policial (IP) no sistema de justiça criminal brasileiro, sendo o delegado a autoridade competente para sua elaboração ( Lima, 1989LIMA, Roberto Kant de. (1989), “Cultura jurídica e práticas policiais: a tradição inquisitorial no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais , 4,10: 65-84. , 2004LIMA, Roberto Kant de. (2004), “Direito civis e direitos humanos: uma tradição judiciária pré-republicana?” São Paulo em Perspectiva , 1,18: 49-59. , 2010LIMA, Roberto Kant de. (2010), “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada”. Anuário Antropológico , 2009, 2: 25-51. ; Misse, 2010aMISSE, Michel. (2010a), “O inquérito policial no Brasil: resultados gerais de uma pesquisa”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , 3, 7: 35-50. ; Figueira, 2007FIGUEIRA, Luiz Eduardo. (2007), O ritual judiciário do tribunal do júri: o caso do ônibus 174 . Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói. ; Vargas e Rodrigues, 2011VARGAS, Joana Domingues & RODRIGUES, Juliana. (2011). Controle e cerimônia: o inquérito policial em um sistema de justiça criminal frouxamente ajustado. Sociedade e Estado , 26, 1: 77-96. ; entre outros).

Esse tema ganha maior relevância quando observamos o volume de prisões provisórias decorrentes de prisões em flagrantes promovidas, sobretudo, por policiais militares ( Santos et al., 2015SANTOS, Rogério et al. (2015), Excesso de prisão provisória no Brasil: um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico (Bahia e Santa Catarina, 2008-2012) . Brasília, Ministério da Justiça/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ipea. ). A centralidade da narrativa policial para os casos envolvendo drogas foi o que nos levou a apresentar como recorte da pesquisa os processos criminais com a acusação de tráfico de entorpecentes. A pesquisa Prisão Provisória e Lei de Drogas ( Jesus et al., 2011JESUS, Maria Gorete Marques de et al. (2011), Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo . São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência/USP. ), mostra que os policiais figuraram como únicas testemunhas em 74% dos autos de prisão em flagrante analisados.1 1 Outras pesquisas já sinalizaram para essa questão ( Campos, 2015 ; Boiteux, 2014 ; Coelho, 2014 , 2016 ; Lemgruber, 2013 ; Lemgruber e Fernandes, 2015 ).

É importante destacar também o aumento do número de pessoas presas sob a acusação de tráfico de drogas no Brasil, especialmente nos últimos dez anos. De acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional ( Depen/MJ, 2015DEPEN/MJ – Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça. (2015), Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen): junho de 2014. Disponível em http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novorelatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf, consultado em 7/8/2016.
http://www.justica.gov.br/noticias/mj-di...
), de 2006 a 2014 houve um aumento de 339% de aprisionamento por tráfico de drogas no país, passando de 31 mil para 138 mil prisões. A maioria das pessoas presas sob esse tipo de acusação são jovens na faixa etária de 18 a 29 anos, negros, que apresentam até o primeiro grau completo, declararam exercer algum tipo de atividade remunerada e não tinham antecedentes criminais. As mudanças ocorridas na legislação em 2006 (Lei n. 11.343/2006), não repercutiram na diminuição do aprisionamento ( Boiteux e Wiecko, 2009BOITEUX, Luciana & WIECKO, Ela. (2009), Relatório de pesquisa: Tráfico de drogas e Constituição . Rio de Janeiro/Brasília, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Universidade de Brasília. ; Carvalho, 2013CARVALHO, Salo. (2013), Política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático . São Paulo, Saraiva. ; Campos, 2015CAMPOS, Marcelo. (2015), Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo . São Paulo: Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. ; entre outros).

O perfil das pessoas presas por tráfico de drogas diz muito sobre a seletividade do sistema de justiça, mas pouco elucida sobre as dinâmicas da economia criminal da droga, que reúnem diversos atores sociais como agentes públicos, empresários, políticos e outros segmentos raramente alvos de ações policiais ( Peralva, 2015PERALVA, Angelina. (2015), “Questão de drogas e de mercados”. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar , 5, 1: 19-36. ). Os casos de tráfico de drogas encaminhados diariamente à Justiça são aqueles territorializados, fragmentados e relacionados ao varejo. Essa seletividade revela o papel central dos agentes policiais na gestão diferenciada dos ilegalismos ( Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. (1987), Vigiar e punir: o nascimento da prisão . Petrópolis, Vozes. ), sobretudo na economia da droga, em que a extorsão e a violência são partes de um princípio organizador dessa gestão ( Teixeira, 2012TEIXEIRA, Alessandra. (2012), Construir a delinquência, articular a criminalidade: um estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo . Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. ).

As narrativas policiais dos flagrantes de tráfico de drogas são, portanto, centrais para as decisões judiciais acerca desses casos. Percebe-se também que os relatos dos agentes que efetuaram a prisão permanecem, na maioria das vezes, sem questionamento pelos operadores do direito2 2 Juízes, promotores, defensores públicos e advogados. ( Jesus et al., 2011JESUS, Maria Gorete Marques de et al. (2011), Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo . São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência/USP. ; Jesus, 2016JESUS, Maria Gorete Marques de. (2016), “‘O que está no mundo não está nos autos’: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas” . Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. ). Há uma tendência em se acatar a versão do policial como verdadeira, e a do acusado como falsa.

Somam-se a esse cenário os problemas relacionados à definição do delito na legislação e que permitem um elevado grau de participação dos policiais na classificação do acusado como “usuário” ou como “traficante”. O segundo parágrafo do artigo 28º da lei n. 11.343/2006 descreve que, para definir se a droga se destina para o consumo pessoal ou para o tráfico: “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” ( Brasil, 2006BRASIL. (2006), Lei n. 11.343, de 26 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm, consultado em 5/10/2019.
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).

Analisando os processos criminais, podemos nos perguntar quais são as provas consideradas pelos juízes e que lhes permitem decidir pela condenação ou absolvição das pessoas acusadas de tráfico de drogas. Majoritariamente, aquelas produzidas pelos policiais do flagrante. Mas em que consistem tais provas? Nas narrativas desses agentes da lei e nas substâncias apreendidas. No limite, é a polícia que define quem é “usuário” e quem é “traficante”. É esse agente que vai narrar os fatos como crime e oferecer à justiça criminal os “indícios” de “materialidade” e “autoria” considerados fundamentais para o início de uma ação penal. E são esses mesmos policiais do flagrante que vão figurar como testemunhas nos casos de tráfico de drogas, constituindo-se, ao mesmo tempo, em autores das narrativas e personagens “testemunhas” de todo o processo de incriminação na política de drogas.

São os policiais que narram “as circunstâncias da prisão”, onde é o local conhecido como ponto de venda de drogas, afirmam quem estava com a droga ou a quem pertencia e alegam a “confissão informal” da pessoa acusada, entre outros elementos. Diante desse cenário, como os operadores do direito, sobretudo promotores e juízes, recepcionam as narrativas policiais? Para responder a essa questão, realizamos uma análise dos autos de prisão em flagrante por tráfico de drogas, de processos criminais, entrevistas com policiais civis e militares e operadores do direito, e observamos audiências, tanto de custódia3 3 Essa audiência consiste na apresentação do preso ao juiz no prazo de 24 horas e foi implementada no Fórum Criminal da Barra Funda, na cidade de São Paulo, em fevereiro de 2015. quanto de instrução e julgamento. Esse material empírico nos permitiu acessar os argumentos e justificativas mobilizados por promotores e juízes no processo criminal, que convergem para o estabelecimento de manifestações e sentenças judiciais, focando especialmente a forma como justificam a acolhida das narrativas policiais.

Para a análise dessas narrativas utilizamos um conceito elaborado por Wright Mills (1940)MILLS, C. Wright. (1940), “Situated actions and vocabularies of motive”. American Sociological Review , 5, 6: 904-913. chamado “vocabulário de motivos”. Corresponde a termos e expressões usados pelos atores sociais como forma de interpretarem suas condutas e de justificarem suas ações. Buscamos com isso analisar como os policiais conformam uma realidade complexa e diversa em categorias policiais, representadas na pesquisa como “vocabulário de motivos”, e que serão consideradas no campo jurídico a partir dos operadores do direito. Esse conceito contribuiu para abordar uma dimensão importante para compreender as práticas judiciais e o processo decisório dos operadores do direito.

O artigo está divido em três partes: a primeira apresenta os percursos metodológicos para a coleta e análise do material empírico da pesquisa; a segunda apresenta as análises e interpretações dos resultados do estudo; a terceira descreve as principais conclusões e destaca alguns pontos a serem aprofundados.

Percursos metodológicos

Para o desenvolvimento da pesquisa dispusemos de um rico material empírico. Parte dele foi cedido pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP e corresponde ao material utilizado na pesquisa Prisão Provisória e Lei de Drogas ( Jesus et al., 2011JESUS, Maria Gorete Marques de et al. (2011), Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo . São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência/USP. ),4 4 Agradecimento especial ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) por ceder o material da pesquisa. a saber: 667 autos de prisão em flagrante (APF)5 5 Os autos de prisão em flagrante são compostos pelos seguintes documentos: cópia do flagrante; ofício ao juiz corregedor; boletim de ocorrência; laudo de constatação; auto de qualificação; informações sobre a vida pregressa; antecedentes criminais; auto de exibição e apreensão. de tráfico de drogas lavrados em novembro e dezembro de 2010 e janeiro de 2011,6 6 Correspondente a todos os distritos policiais do município de São Paulo e encaminhados ao Departamento de Inquérito Policial (Dipo) do Fórum Criminal da Barra Funda. O acesso e coleta de tais documentos ocorreram nos Departamentos de Inquéritos Policiais (Dipo) 3 e 4 do Fórum Criminal da Barra Funda da cidade de São Paulo. 604 sentenças de processos judiciais de crimes de tráfico de drogas correspondentes ao mesmo período;7 7 A coleta foi realizada a partir do site do Tribunal de Justiça de São Paulo ( www.tj.sp.gov.br ), no período de fevereiro a novembro de 2011, quando a pesquisa do NEV-USP foi concluída. setenta entrevistas semiestruturadas com profissionais da segurança pública e do sistema de justiça criminal,8 8 Sendo: 26 policiais militares, 16 policiais civis (sobretudo delegados de polícia), 11 juízes, oito promotores e nove defensores públicos. Todas entrevistas foram realizadas pela equipe de pesquisa do NEV/USP e ocorreram nos distritos policiais (no caso dos policiais civis), nos batalhões da polícia militar (no caso dos policiais militares), no Fórum Criminal da Barra Funda (no caso dos promotores, juízes e defensores públicos). As entrevistas foram numeradas para não identificar os(as) entrevistados(as), conforme compromisso estabelecido no termo de confidencialidade. diários de campo de dez audiências de instrução e julgamento de casos denunciados como tráfico de droga, assistidas entre os meses de fevereiro e maio de 2011;9 9 A escolha dessas audiências buscou selecionar aqueles que representam o padrão de casos que chegavam ao sistema de justiça criminal. diários de campo de 63 audiências de custódia10 10 Consiste na apresentação do preso em flagrante em 24 horas diante do juiz para que ele decida a manutenção ou não da prisão. Tais audiências averiguam a necessidade da manutenção das prisões, avaliam a legalidade de tais detenções e atentam para a violência policial e tortura possivelmente praticada contra presos. de casos de pessoas presas em flagrante por suposto crime de tráfico de drogas, no período de abril a julho de 2015; diários de campo de 27 audiências de instrução e julgamento, no período de julho a novembro do mesmo ano.

Esse material possibilitou diferentes perspectivas de análise e interpretação. Os autos,11 11 Considera-se ‘autos’ toda a documentação reunida na pesquisa: os autos de prisão em flagrante, os processos, as manifestações da acusação e defesa e a sentença judicial. as entrevistas e a observação direta das audiências (registrada em diários de campo) representaram diferentes formas de obtenção de dados, complementando-se mutuamente. O uso de variados métodos de pesquisa é apontado por Laura Beth Nielsen (2010)NIELSEN, Laura Beth. (2010),“The need for multi-method approaches in empirical legal research”, in P. Cane & H.M. Kritzer (ed.), The Oxford Handbook of Empirical Legal Research , New York, Oxford University Press. como um recurso que permite abordar o objeto a partir de vários referenciais. A diversidade das fontes, trabalhadas em conjunto e relacionadas, comparadas e estudadas de forma transversal possibilitaram refinar a análise, tanto quanto foi possível ( Cellard, 2010CELLARD, André. (2010), “A análise documental”, in A. Pires et al. (org.), A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos . Petrópolis, Vozes. ).

Iniciamos a pesquisa com a análise documental dos autos de prisão em flagrante e dos processos e decisões judiciais, recompondo as fases do sistema de justiça criminal e as manifestações dos policiais e operadores do direito. Para realizar essa análise foi importante descrever o percurso dos autos nas variadas formas que assumiram ao longo do fluxo do sistema de justiça criminal. A leitura repetida e as diversas observações extraídas da documentação permitiram identificar regularidades de vocabulários, expressões, posicionamentos, argumentos e justificativas apresentadas pelos atores envolvidos no sistema. O foco das análises foi observar como esses operadores recepcionavam as narrativas dos policiais, das testemunhas de defesa e das pessoas acusadas.

A análise documental foi combinada à análise das entrevistas com policiais civis e militares, defensores, promotores e juízes, que possibilitaram acessar discursos que não estavam presentes nos autos, mas que circulavam na organização policial e no campo do direito. Isso nos permitiu observar o que os atores levam em conta para justificar suas manifestações no campo do direito, dentro dos vocabulários disponíveis.

Além da análise documental e das entrevistas, a observação direta das audiências foi outra estratégia, cujo resultado foi o acesso a outros tipos de informações. Conforme Jaccoud e Mayer (2010)JACCOUD, Mayer & MAYER, Robert. (2010), “A observação direta e a pesquisa qualitativa”, in A. Pires et al. (org.), A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos , Petrópolis, Vozes. , o método da observação direta exige que o pesquisador observe pessoalmente e de maneira prolongada situações e comportamentos pelos quais tem interesse. Toda observação direta é exaustivamente registrada, sendo amplamente documentada e, posteriormente, transformada em objeto de análise.

A observação direta das audiências foi importante, pois ao longo da pesquisa percebemos que a versão das pessoas presas quase não aparecia nos autos. Tal seletividade foi confirmada em campo, quando foi possível perceber que nem tudo o que acontecia nas audiências era registrado nas sentenças. Notamos uma seleção, filtragem e distorção dos relatos dos atores.

Apesar da audiência de custódia não ter como objetivo “alcançar a verdade” sobre os fatos, ela corresponde a um momento-chave, sobretudo nos casos envolvendo drogas. A possibilidade de o juiz compreender o caso como porte para uso, e não para venda, representava um espaço potencial de redução do número de pessoas presas por tráfico, diminuindo as chances de “usuários” serem presos como “traficantes”.

Durante a realização da pesquisa, decidimos assistir às audiências de instrução e julgamento referentes aos casos das audiências de custódia acompanhados. Assim, foi possível analisar ambas as audiências e ter uma observação do fluxo do processo, obtendo a perspectiva da audiência de custódia e, posteriormente, da audiência de instrução e julgamento.

O grande desafio da pesquisa foi entrelaçar as análises documentais com as das entrevistas e dos registros das observações de campo. Uma das estratégias de organização desse material foi a de percorrer as etapas do sistema de justiça criminal, desde a abordagem policial até o julgamento, utilizando o estudo de fluxo. Essa metodologia é frequentemente utilizada em estudos de processos judiciais.12 12 Conforme Sérgio Adorno (1994) , desde a década de 1980 muitos antropólogos, sociólogos e historiadores tem utilizado como fonte de pesquisa os processos penais. Obras como a de Corrêa (1983) , Chalhoub (1986) , Fausto (1984) entre outros. Atualmente, encontra-se uma série de estudos que se valem dos autos, principalmente na temática da violência, como os trabalhos de Adorno (1994 , 1995 ), Adorno e Pasinato (2007) , Raupp (2005), Vargas (2008), Vargas e Mendonça (2008) , entre outros. Consiste em pesquisa longitudinal, do registro policial até o desfecho processual, com objetivo de identificar os processos de seleção e de filtragem a que o processo judicial é submetido no decorrer do processamento ( Vargas e Mendonça, 2008VARGAS, Joana Domingues & MENDONÇA, Ludmila. (2008). “Estudos de fluxo da justiça criminal: balanço e perspectivas”. Anais do Encontro Anual da Anpocs (32), Caxambu, Anpocs. ). A ideia foi utilizar essa metodologia para compreender a forma como os operadores do direito produzem suas decisões, como se manifestam e decidem em cada fase processual.

A análise realizada no material empírico nos permitiu identificar o que chamamos de repertório de crenças, que fundamenta muitos dos argumentos e justificativas apresentados pelos operadores do direito para acolherem as narrativas policiais como verdade para o campo do direito. A seguir descrevemos o que compõe esse repertório e como ele é mobilizado no sistema de justiça criminal pelos atores envolvidos.

O repertório de crenças

Para descrever as prisões, os policiais dispõem de expressões, linguagens e categorias utilizadas em suas narrativas, tais como: “atitude suspeita”, “denúncia anônima”, “entrada franqueada”, “confissão informal”, “posse da droga”, entre outras. Tais vocabulários de motivos são considerados verdadeiros, em detrimento de outros que aparecem ao longo do processo. A “entrada franqueada”, por exemplo, surge descrita pelos presos como “invasão de domicílio” e/ou entrada com uso de violência policial; a “confissão informal” como “pressão psicológica”, “ameaça”, “coação”, “chantagem”, ou como “confissão falsa”, já que algumas das pessoas presas negaram a prática do crime e sua confissão. A “posse” da droga para venda também é questionada. Algumas pessoas alegavam ser usuárias, não lhes pertencendo a quantidade de drogas apresentada pela polícia; ou diziam ter sido vítimas de “forjado”, “intrujado”, “plantado” pelos policiais. Diante de tais versões, como reagem os operadores do direito? Com base em quais justificativas adotam uma versão em detrimento de outras?

Os promotores tendem a acolher, sem muitos questionamentos, as narrativas policiais das prisões em flagrante, e utilizam os vocabulários policiais na elaboração das denúncias. Em nenhum dos casos analisados os promotores chegaram a solicitar novas diligências, ou a busca de novas testemunhas, ou mesmo qualquer procedimento adicional aos que foram produzidos pela polícia. Ao exercer seu papel de autoridade interpretativa ( Figueira, 2007FIGUEIRA, Luiz Eduardo. (2007), O ritual judiciário do tribunal do júri: o caso do ônibus 174 . Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói. ), o promotor valida a narrativa policial como verdade dos fatos, atualizando o vocabulário policial e tornando-o real para o direito. Ao fazer isto, esse operador exclui de sua observação qualquer outra narrativa possível do caso.

Percebemos o mesmo quando observamos os juízes. O juiz confere aos policiais, testemunhas do caso, uma credibilidade inquestionável, ressaltando em suas manifestações que esses agentes gozam de “presunção de legitimidade dos seus atos”. Em suas decisões vão aparecer a “confissão informal”, “entrada franqueada”, “denúncia anônima”, “atitude suspeita”, “local conhecido como ponto de venda de drogas”, “presença de dinheiro”, entre outros termos que fazem parte do vocabulário policial.

A citação de jurisprudência que certifica os testemunhos policiais como idôneos e desinteressados é uma forma dos juízes justificarem a incorporação das narrativas policiais em suas decisões.13 13 No caso do Rio de Janeiro, essa questão é bem explicita, já que a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Estado estabelece que “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. A pesquisa de Julita Lemgruber destaca a centralidade dessa súmula para a acolhida dos testemunhos policiais nos processos de tráfico de drogas nas decisões dos juízes, que condenam apenas com o depoimento de policiais ( Lemgruber e Fernandes, 2015 ). Eles não problematizam os possíveis interesses desses agentes em realizar flagrantes, ou mesmo possíveis ilegalidades na atuação policial. Quando acolhem a narrativa policial como legítima, os juízes atualizam e incorporam os vocabulários policiais em suas decisões.

A defesa (defensores públicos ou advogados) busca problematizar a narrativa policial como prova idônea ao longo do processo, tanto na fase da audiência de custódia, quanto na audiência de instrução e julgamento. No entanto, percebemos que existe uma tendência em se desconsiderar os apelos da defesa.14 14 As análises da atuação da defesa com relação às narrativas policiais estão mais devolvidas na nossa tese ( Jesus, 2016 ). Optamos por trazer para este artigo apenas as análises dos argumentos dos promotores e juízes, pois elas revelam as condições de possibilidade para a atualização da verdade policial como verdade jurídica no sistema de justiça criminal.

Portanto, a análise do material empírico nos permitiu acessar os argumentos dos operadores do direito, sobretudo promotores e juízes, para acolherem os testemunhos dos policiais como legítimos. O vocabulário de motivos reconhecido como pertinente para justificar as ações policiais é atualizado no campo do direito. Mas o que torna isso possível?

Tanto nos autos quanto nas entrevistas, os operadores do direito evidenciaram uma tendência em acreditar na palavra dos policiais em detrimento da dos acusados. A expressão “preciso acreditar” apareceu com frequência, sobretudo nas entrevistas.

Testemunha policial ou você acredita ou você não acredita [...]. Aliás, o crime de tráfico prima pela inexistência de testemunha civil. Se eu obrigar os policiais a conseguirem testemunha civil, de duas uma, ou eles não vão conseguir fazer nenhuma prisão , ou quando essas testemunhas forem arroladas elas vão ser extraídas do próprio contexto do traficante e ajudarão a encobertá-lo (Promotor 2).

A crença é apresentada pelos operadores do direito como necessária para o próprio funcionamento do sistema: “Se eu fosse ser realmente rigoroso, não daria para prender ninguém, tudo é muito precário. Então é assim, ou eu acredito no policial ou eu não acredito, caso contrário a coisa não funciona” (Promotor 1). Esse argumento, baseado na crença, aparece de diversas formas, tanto nos autos quanto nos argumentos apresentados nas entrevistas. Percebemos um repertório de crenças, que passamos a detalhar mais detidamente abaixo.

Crença na função policial

As expressões encontradas nas manifestações e decisões dos promotores e juízes e que se referem ao que chamamos de crença na função policial são as seguintes: “os policiais são funcionários públicos no cumprimento do dever legal”; “os policiais têm fé pública”; “os policiais atuam na defesa da sociedade”; “os policiais gozam de presunção de veracidade”.

É possível perceber nessas justificativas a existência de uma crença de que os agentes policiais representam e fazem parte de uma instituição do Estado, são funcionários públicos, que atuam no “exercício de sua função”, e que, portanto, “têm fé pública”. Esse argumento se relaciona à crença na burocracia do Estado, de que os funcionários agem com “boa fé” e realizam suas funções de acordo com as atribuições dos órgãos que representam, ou seja, “da crença na validade de estatutos legais e da competência objetiva, fundamentada em regras racionalmente criadas” ( Weber, 2004WEBER, Max. (2004), Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva , v. 2. Brasília/ São Paulo: Editora UnB/Imprensa Oficial. , p.526).

A confiança entre as instituições do Estado é ponto de reflexão de diversas pesquisas ( Tankebe et al., 2013TANKEBE, Justice & LIEBLING, Alison. (org.). (2013), Legitimacy and criminal justice . Oxford, Oxford Universtity Press, 2013. ; Bradford e Quinton, 2014BRADFORD, Ben & QUINTON, Paul. (2014), “Self-legitimacy, police culture and support for democratic policing in an English constabulary”. British Journal of Criminology , 54, 6: 1023-1046. ). De acordo com a literatura especializada, existe uma tendência entre os órgãos de Estado (burocracias) de aceitarem e ratificarem as decisões tomadas por outras instituições estatais, pois cada uma necessita da decisão da outra para tomar as suas próprias. Lipsky (2010)LIPSKY, Michael. (2010), Street-level bureaucracy: the dilemmas of the individual in public services . New York, Russell Sage Foundation. oferece como um exemplo disso justamente a situação em que juízes aceitam os argumentos apresentados pelos policiais sem questioná-los, algo que se assemelha ao identificado nesta pesquisa.

Crença na conduta policial

Os argumentos baseados na crença da conduta policial encontrados nos autos, nas audiências (de custódia e de instrução e julgamento) e nas entrevistas foram os seguintes: “os policiais não têm motivos ou interesses para saírem por aí prendendo pessoas inocentes que não conhecem”; “por que, sem qualquer motivação, os policiais imputariam a pessoas que não conhecem um crime como este?”; “por qual razão os policiais estariam querendo te prejudicar?”; “funcionários públicos no exercício de suas funções não apresentam nenhum interesse em prender inocentes”.

Esses e outros argumentos revelam que existe uma crença de que policiais não saem por aí “prendendo pessoas sem motivos”, especialmente “pessoas que não conhecem”. Baseia-se na ideia de que esses agentes vão agir conforme a lei e não vão atuar em causa própria. Não parece possível duvidar dos policiais, cogitar que possam ter como um dos motivos para “prender pessoas que não conhecem” a questão da produtividade policial,15 15 Durante a realização das entrevistas, os policiais civis e militares mencionaram a existência de uma política de metas, que tem como principal indicador a prisão. Há uma orientação, baseada na lógica de uma produtividade policial, de que determinadas metas precisam ser cumpridas. É possível visualizar essa centralidade das prisões e a relação com produtividade policial no site da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP). O link referente a dados estatísticos disponibiliza uma página cujo título é “produtividade policial”, em que se elencam todas as prisões em flagrantes realizadas mês a mês pela polícia. Disponível em http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Pesquisa.aspx?t=P , acessado em 11/07/2018. por exemplo. Essa motivação não aparece para os operadores do direito como possibilidade de justificativa para tais prisões porque não é colocada como uma questão, muito menos problematizada.

Relatos de violência policial também foram recorrentes nos depoimentos de pessoas presas em flagrante e conduzidas às audiências de custódia. O relatório do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) apresentou 277 de casos com indícios de torturas, entre fevereiro e setembro de 2015, e em quase 80% dos casos os agentes eram policiais militares ( Resk, 2015RESK, Felipe. (2015), “Audiência de custódia revela indício de tortura em 277 casos de prisões”. O Estado de S. Paulo , 20 set. Disponível em http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,audiencia-de-custodia-revela-indicio-de-tortura-em277-casos-de-prisoes,1765856, consultado em 5/01/2016.
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias...
). Por tais situações não estarem descritas nos autos, juízes e promotores questionavam as pessoas sobre os “motivos pelos quais policiais agiriam com violência”. Perguntavam se a pessoa havia “resistido à prisão” e “onde estariam as marcas das agressões”. Segue abaixo um trecho do diário de campo que ilustra um dos casos acompanhados:

Entra na sala de audiência um jovem. Ele está machucado, apresenta arranhões nos braços e nas pernas, um sinal vermelho no pescoço e a boca está ferida. O juiz inicia uma série de perguntas ao preso: “Quantos anos tem? Onde mora? Trabalha? É usuário de drogas? Quer falar sobre o que aconteceu? ” O rapaz responde que tem 19 anos, mora na periferia da Zona Sul [ele fala o endereço], trabalha como ajudante de pedreiro, é usuário de maconha e que, no dia de sua prisão, foi abordado por policiais militares perto de uma “biqueira” quando ia comprar maconha. Disse que foi agredido pelos policiais. O juiz o interrompe e pergunta “você conhecia os policiais que te prenderam” , e o rapaz responde “não”. O juiz o questiona “ por que policiais teriam o interesse de fazer isso com você se eles não te conheciam ?”. O rapaz responde: “não sei não senhor, mas o policial foi falando e falando, e tudo aquilo foi entrando na minha mente, eles me puxaram, me agrediram, tentaram me enforcar”. “Sei”, disse o juiz. Nada mais perguntou sobre as agressões. O promotor não fez perguntas. O defensor perguntou ao rapaz se ele tinha medo dos policiais, que respondeu “ sim, fui muito ameaçado ”. O juiz o questionou por que não havia relatado as agressões na delegacia. “Como, doutor? Os policiais estavam lá, eu tive medo, e depois mandaram ‘eu’ assinar a papelada, nem sei o que eu assinei”, respondeu o rapaz.16 16 Diário de campo AC n. 36, 14/05/2015.

Que diferença faz se o acusado conhece ou não o policial que o agrediu? Essa pergunta causa a impressão de que a violência policial não tolerada é aquela praticada por interesses próprios do agente, por vingança. Há um esvaziamento de qualquer outra motivação para justificar a agressão. Os juízes não parecem conceber a violência como um procedimento adotado pelos policiais durante as abordagens. Ao restringir a justificativa da violência ao âmbito pessoal (ou privado), desvia-se da possibilidade de entender um ato de agressão policial como violência institucional.17 A pergunta do juiz, da maneira como foi formulada, sugere o entendimento de que a violência policial só pode ser concebida como um desvio pontual e antiprofissional do policial, individual e situacional.

Segundo Egon Bittner (2003)BITTNER, Egon. (2003), Aspectos do trabalho policial . São Paulo, EdUSP. , os juízes apresentam certa resistência em fiscalizar o trabalho da polícia, talvez porque precisem acolher o trabalho policial para que seu próprio seja realizado. Não se questiona também a forma como os agentes policiais conseguem confissões e provas, pois os juízes precisam desses elementos no processo. A crença de que policiais cumprem suas funções no estrito limite da lei é compatível com o pressuposto de que somente em alguns casos individualizados há sinais de sua “má conduta”, estes sim, reprováveis.

A narrativa de violência é, frequentemente, recepcionada de forma seletiva pelos juízes, a depender do perfil da pessoa, seus antecedentes, seu histórico e as “circunstâncias de sua prisão”, que geralmente são narradas pelos policiais como “tranquilas e sem intercorrências”. Nos casos em que as marcas e lesões eram evidentes, eram descritas como tendo sido causadas por “quedas após tentativa de fuga” ou “resistência à prisão”. Tais argumentos eram considerados válidos pelos juízes e promotores, sem que houvesse possibilidade de considerarem outra versão sobre os fatos.

Crença no saber policial

Outro argumento presente nas justificativas apresentadas pelos operadores do direito diz respeito ao reconhecimento do saber policial: “os policiais sabem quem é traficante”; “os policiais têm suas técnicas para realizarem os flagrantes”; “os policiais têm mecanismos para conseguir a confissão”; “os policiais sabem onde tem a ‘biqueira’, onde fica a ‘boca’, então quando dizem que prenderam o sujeito nesse local, difícil acreditar que o cara não esteja envolvido com o tráfico”.

Nas entrevistas, os promotores e juízes destacaram a dificuldade em definir os casos envolvendo drogas. De acordo com um dos promotores, há uma série de dificuldades para a diferenciação e definição do crime, e a quantidade não é um fator determinante. E completa:

[...] o que existe é uma carga de subjetividade grande na definição do crime, depende estritamente do olhar do policial , ele que é determinante para a definição do crime. Nós dependemos daquilo que a polícia informa, se eles dizem que a pessoa estava em atitude suspeita, em local conhecido como ponto de venda de drogas, a droga separada e tal, ele sabe quem é o “traficante”, ele “tá” na área todo dia, a gente tem que acreditar nele (Promotor 7).

Durante as entrevistas, juízes disseram que os policiais conseguiam fazer a classificação do delito “na ponta”, pois tinham experiência e conhecimento. Segundo um dos juízes entrevistados:

Normalmente a polícia tem tido o bom discernimento na diferenciação entre o usuário e o traficante. Eles conseguem perceber quando a pessoa é um mero usuário, e quando, apesar de estar portando uma pequena quantidade de entorpecente, ela na verdade se dedica ao tráfico. Então, são feitas campanas, são recolhidas informações, eles também ficam atentos à postura , analisam para ver se uma pessoa está passando uma coisa pra outra [pessoa], outros apetrechos que ela possa estar portando, entendeu, e que denotem que ela está realmente envolvida na atividade do tráfico (Juiz 10).

Esse saber também apareceu nas entrevistas com policiais. Foi recorrente o uso do termo “tirocínio” (termo nativo) como algo que justifica a abordagem realizada por esses agentes. Esse saber policial aparece definido como um processo de seleção na observação policial, que perpassa a prática diária, a relação com os demais policiais, os procedimentos operacionais e o contato com a população. Trata-se de “um tipo de conhecimento peculiar esculpido nas ruas das cidades” ( Muniz, 2012MUNIZ, Jacqueline de Oliveira. (2012), “Fim da inocência: um ensaio sobre os atributos do saber policial de rua”, in L.A.F. Souza; B.R. Magalhães & T.T. Sabatine (org.), Desafios à segurança pública: controle social, democracia e gênero . Marília/São Paulo, Oficina Universitária/Cultura Acadêmica. , p.17). Esse saber policial não é científico. Está fundamentado em um “fazer policial” atento ao que é considerado um “indício” de “anormalidade”, àquilo considerado “fora do lugar”.

Jacqueline Muniz (2012MUNIZ, Jacqueline de Oliveira. (2012), “Fim da inocência: um ensaio sobre os atributos do saber policial de rua”, in L.A.F. Souza; B.R. Magalhães & T.T. Sabatine (org.), Desafios à segurança pública: controle social, democracia e gênero . Marília/São Paulo, Oficina Universitária/Cultura Acadêmica. , p.38) descreve esse saber como um modo de conhecer, na atividade diária de rua, uma maneira de olhar vigilante, “de certa forma panóptico”, que produz certo tipo de “verdade”. O saber policial, na sua “vontade de conhecer”, cria seu sistema de classificação do mundo social, distinguindo o que é “tolerável”, “aceito” e “normal”, das condutas interpretadas como “desviantes”, “suspeitas” e “criminosas”. “Sua finalidade prática – ‘policiar’, volta-se para a produção de controle, mesmo que difuso e indireto” ( Muniz, 2012MUNIZ, Jacqueline de Oliveira. (2012), “Fim da inocência: um ensaio sobre os atributos do saber policial de rua”, in L.A.F. Souza; B.R. Magalhães & T.T. Sabatine (org.), Desafios à segurança pública: controle social, democracia e gênero . Marília/São Paulo, Oficina Universitária/Cultura Acadêmica. , p.38).

O saber policial reaparece nos argumentos dos promotores e juízes como elemento importante para a comprovação de que determinado indivíduo estava com a droga para vendê-la, e integra suas manifestações e decisões. Tais justificativas sustentam a validade da narrativa policial no campo do direito.

Crença de que o acusado vai mentir

Essa crença vem da ideia de que a “mentira” consiste em uma estratégia utilizada pelos acusados e pela defesa para livrá-los da prisão, e que suas declarações devem ser recebidas com reservas. Acredita-se que o acusado tem o direito de mentir porque ele não é obrigado a depor contra si mesmo, em razão do “princípio da não autoincriminação” ( Figueira, 2007FIGUEIRA, Luiz Eduardo. (2007), O ritual judiciário do tribunal do júri: o caso do ônibus 174 . Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói. ; Fraga, 2013FRAGA, Fernanda Prates. (2013), La construction du verdict de culpabilité: magistrature pénale et production de vérité judiciaire au Brésil . Tese de doutorado. Université de Montreal, Montreal. , entre outros).

Encontramos os seguintes argumentos referentes a essa crença: “réu pode mentir”; “por que manteve silêncio na delegacia? Inocentes nunca se calam”; “se você não cometeu o crime, por que ficou em silêncio na delegacia? Por que vem negar aqui no momento da audiência? Você deveria ter falado isso na delegacia, e não aqui”; “o acusado pode mentir, mas o policial tem o compromisso com a verdade”.

No modelo de produção da verdade jurídica na justiça criminal brasileira, o acusado só tem algumas opções: calar-se e sofrer forte suspeita de ser o culpado, pois “quem cala, consente” ( Lima, 2010LIMA, Roberto Kant de. (2010), “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada”. Anuário Antropológico , 2009, 2: 25-51. ); admitir sua culpa, confessando aquilo de que foi acusado; ou trazer uma nova versão dos fatos ao juiz ( Lima, 2012LIMA, Roberto Kant de. (2012), “Antropologia jurídica”, in A.C. de Lima (org.), Antropologia & direito: temas antropológicos para estudos jurídicos , Rio de Janeiro/Brasília, Contra Capa/Laced/ABA. ). Na maioria das vezes, qualquer informação diferente do que está nos autos poderá ser desconsiderada devido à crença de que o acusado vai mentir.

A alegação de violência também é vista pelos juízes como uma estratégia do réu para “se livrar da incriminação”. Em uma das audiências que acompanhamos, o réu disse ter sofrido violência por parte dos policiais que o prenderam, e o juiz reagiu dizendo: “É muito fácil para você chegar aqui e acusar os policiais, é melhor você começar a dizer a verdade”.18 18 Diário de campo VC n. 4, 4/04/2011.

Crença de que existe uma relação entre criminalidade e o perfil dos acusados

Alguns policiais entrevistados disseram que a condição socioeconômica da pessoa acusada era levada em consideração no momento da classificação do delito. A própria lei estabelece que as condições sociais e pessoais devem ser consideradas para a tipificação do crime, no artigo 28, parágrafo 2º. Assim, não é de se estranhar que as políticas penais e de segurança pública tenham como alvo privilegiado as camadas populares, sobretudo jovens.

A legislação mantém a lógica de “tratar desigualmente os desiguais” ( Alvarez, 2002ALVAREZ, Marcos César. (2002), “A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais”. Dados , 45, 4: 677-704. ). De acordo com Campos (2015CAMPOS, Marcelo. (2015), Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo . São Paulo: Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. , p. 200), essa lógica estabelece relações em que para se considerar uma pessoa “usuária”, ela precisa estar com pouca quantidade de drogas, apenas de um tipo, no “lugar certo e com as pessoas certas”, ter “ocupação lícita”, boa escolaridade e não apresentar antecedentes criminais. A forma como os fatos são narrados pelos policiais também induz a essas associações. A posição social da pessoa apreendida pela autoridade policial, assim como seu perfil racial e geracional, são consideradas relevantes para a definição do delito: uso ou tráfico.

Outra relação estabelecida entre a condição socioeconômica do acusado e o seu envolvimento com o tráfico é a interpretação feita por policiais e compartilhada entre promotores e juízes, de que uma pessoa desempregada não teria como estar em posse de dinheiro e droga, e isto é visto como um “indício” de seu envolvimento com o crime. Foi comum ouvir de promotores que “o acusado não conseguiu comprovar trabalho lícito, encontra-se desempregado, ficando evidente que o dinheiro encontrado no flagrante provém do tráfico de drogas”,19 19 Diário de campo AC n. 11, 16/04/2015. ou “a indiciada não trabalha, o que aponta que a renda é proveniente do tráfico”.20 20 Diário de campo AC n. 14, 17/04/2015.

Outro aspecto da crença do envolvimento com o crime a partir do perfil socioeconômico está na relação estabelecida com as pessoas que apresentam antecedentes criminais. Na descrição das abordagens policiais, os acusados disseram que era comum policiais chegarem já perguntando: “quem tem bronca com a polícia”. Em seguida, pegavam os documentos (RG) das pessoas abordadas para fazer uma averiguação, “puxar no sistema”. Aquelas que tinham algum registro policial eram mais hostilizadas.

Esses relatos descrevem um processo de sujeição criminal ( Misse, 2008MISSE, Michel. (2008), “Sobre a acumulação da violência no Rio de Janeiro”. Civitas , 8, 3: 371-385. ), em que as pessoas são abordadas pelos policiais já sob suspeição de terem cometido algum crime, por apresentarem “um tipo social” que supostamente cometerá crimes. Se o sujeito foi incriminado antes, se torna um “potencial suspeito” e, portanto, mais vulnerável à ação policial. Nota-se o mesmo padrão de atuação quando se observa a forma como os operadores do direito consideram as narrativas das pessoas presas.

Crença de que os juízes têm o papel de defender a sociedade

Essa crença aparece, sobretudo, nas decisões dos juízes quando utilizam os seguintes argumentos: “é preciso garantir a defesa da sociedade”; “precisamos mostrar para a sociedade que estamos combatendo o crime”; “temos que satisfazer o sentimento de justiça da sociedade”; “precisamos mostrar que a justiça criminal está funcionando”; “a prisão do acusado é necessária para o restabelecimento da ordem pública e para a credibilidade da justiça, a sociedade espera de mim que eu a defenda de pessoas como você [o acusado]”.

Em algumas decisões é possível observar o que chamamos de argumentos conjunturais apresentados por promotores e juízes, baseados em diagnósticos sobre violência, criminalidade e risco, e que fundamentam a necessidade da garantia da “ordem pública”, o que, no caso concreto, significa manter o acusado preso. A defesa da sociedade representa o foco central de tais manifestações. Há avaliações sobre o aumento da criminalidade, os danos sociais causados pelas drogas e outros argumentos que descrevem um cenário dramático da violência e do crime na sociedade.

O “crime de tráfico de drogas” é representado como o principal responsável pela “crescente onda de criminalidade”, que “intranquiliza a população”, gera “temor à população obreira” e “desestabiliza as relações familiares e sociais”. Toda a descrição feita é associada à figura do acusado, e sua prisão representa o restabelecimento da “ordem pública”, pois sua liberdade torna-se um risco à sociedade. Doutrinas21 21 “Doutrina jurídica é uma forma de construção de saber própria do campo jurídico. Trata-se de uma coleção de opiniões de estudiosos a respeito dos institutos jurídicos, da legislação e da jurisprudência” ( Mendes, 2012 , p. 455). são citadas para reforçar essa ideia: “Ordem pública é o estado de paz e de ausência de crimes na sociedade [...] se a liberdade de alguém acarreta perigo para a ordem pública , a prisão preventiva é o meio legal para a sua garantia” ( Feitoza, 2009FEITOZA, Denílson. (2009), Direito processual penal: teoria, crítica e práxis . 6a edição, Niterói, Impetus. , p.854; grifos nossos).

A “credibilidade da justiça” é um ponto destacado pela doutrina jurídica: “O conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão” ( Mirabete, 2007MIRABETE, Júlio Fabbrini. (2007), Processo penal . 18a edição, São Paulo, Atlas. , p. 386).

A necessidade de mostrar à sociedade que algo está sendo feito, que a justiça criminal está funcionando e de “satisfazer o sentimento de justiça” é apresentado como argumento para a manutenção da própria credibilidade no sistema de justiça.

A sociedade é enunciada como o público ao qual o juiz precisa se manifestar, e faz isso por meio da prisão. A prisão é necessária como um símbolo do funcionamento da justiça criminal. A responsabilidade pelo aumento da criminalidade e da violência passa a ser atribuída aos juízes que soltam. Para mostrar que está defendendo a sociedade, o magistrado precisa manter as prisões realizadas pela polícia. Vejamos outro caso em que isso aparece:

A pronta liberação do preso em flagrante por crime punido com reclusão, nestas condições, afora desprestigiar a atividade policial , vulnera a ordem pública, a qual a cautelaridade da prisão em flagrante, pela própria natureza de seus requisitos legais, resguarda. Ademais, deixa na sociedade o desconforto de sensação de impunidade.22 22 Processo n. 050.10.094306-3 – decisão do juiz. Grifo nosso.

Há uma associação entre “desprestigio da atividade policial”, “liberdade do preso” e “impunidade”, que implicitamente denotam uma “desordem pública”. O judiciário necessita de credibilidade, e para tê-la precisa acreditar na polícia para poder exercer o seu poder de prender. A manifestação do juiz no trecho da decisão citada abaixo ilustra essa questão:

Nada há nos autos a apontar que tivessem algum interesse em incriminar falsamente e, se assim o fosse, se houvesse desconsideração da palavra de policiais em todos os processos, não haveria justiça, mas sim impunidade [...] os funcionários da Polícia merecem, nos seus relatos, a normal credibilidade dos testemunhos em geral, a não ser quando se apresente razão concreta de suspeição. Enquanto isso não ocorra, desde que não defendem interesse próprio, mas agem na defesa da coletividade , sua palavra serve a informar o convencimento do julgador. Os policiais narram com detalhes a dinâmica dos fatos.23 23 Processo n. 05010096286-6 – decisão do juiz. Grifos nosso

O juiz afirma que a “desconsideração da palavra de policiais” representaria uma “impunidade”. Nota-se que o inverso da “justiça” não é “injustiça”, mas “impunidade”. Ou seja, o termo “justiça” está associado à “punição”, que é associado à “prisão”. Prender corresponde a uma manifestação de justiça. Essa associação indica uma afinidade entre o vocabulário policial e uma determinada cultura penal que desvaloriza outras formas de punição que não utilizem a privação de liberdade. O vocabulário policial é parte desse conjunto de vocabulários aceitos entre os operadores do direito e que fomentam os argumentos para a manutenção da prisão como mecanismo de justiça.

Luís Valois Coelho (2014COELHO, Luís Carlos Honório de Valois. (2014), “O direito à prova violado nos processos de tráfico de entorpecentes”, in S.S. Shecaira (org.), Drogas: uma nova perspectiva , São Paulo, IBCCRIM. , p.126) descreve como o Poder Judiciário, num contexto de “guerra às drogas”, assume a função de combater a criminalidade, se afastando “da posição de garantidor de direitos e liberdade”. Ressalta justamente a aderência da narrativa policial pelos juízes, que a recepcionam sem considerarem possíveis ilegalidades envolvidas nas ações policiais.

Os juízes e promotores acreditam em seu papel de defensores da sociedade. Essa crença também sustenta a crença na polícia, pois é a partir dela que os juízes conseguirão exercer o seu poder de prender e punir.

Considerações finais

A lei de drogas tem critérios genéricos para a definição do porte para uso ou venda dessas substâncias. Quem vai definir o que é um e o que é outro? Como descrever as circunstâncias da prisão? E por que são relevantes as condições pessoais e sociais da pessoa presa por tráfico?

O que foi possível observar a partir da presente pesquisa é que a polícia desempenha o papel de oferecer o vocabulário para a definição do crime, que vai preencher esses “espaços” deixados pela lei. No uso de seu poder discricionário, e com base em seu saber policial, utilizam expressões, linguagens e categorias – chamados aqui de vocabulários de motivos – que serão centrais para a própria definição do crime. A tradução de um “fato da realidade” para um “fato jurídico” é feita inicialmente pelos policiais, que, no caso dos flagrantes de tráfico de drogas, representam aqueles que efetuaram a prisão.

Com base nas análises foi possível perceber que a narrativa policial apresentada para justificar a abordagem e a prisão passa a fazer parte do campo do direito, incorporada e atualizada em manifestações e decisões judiciais. Mas o que torna isso possível? Inicialmente, parecia que a questão da “fé pública” era a justificativa central para a acolhida da narrativa policial. Contudo, percebeu-se que um repertório de crenças oferecia o suporte de veracidade às narrativas policiais: crença na função policial, em que os operadores do direito acreditam no agente policial por ele representar uma instituição do Estado; crença no saber policial, em que se acredita que os agentes apresentam suas técnicas, habilidades e estratégias para reconhecerem “usuários” e “traficantes”, e para efetuarem as prisões em flagrante; crença na conduta do policial, em que se acredita que policiais atuam de acordo com a legalidade, sem uso da violência ou abusos; crença de que o acusado vai mentir, em que se acredita que os réus têm o direito de mentir para se defenderem, portanto mereceriam menos crédito; crença de que existe uma relação entre criminalidade e perfil dos acusados, sendo a sujeição criminal ( Misse, 1999MISSE, Michel. (1999), Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro . Tese de doutorado. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. , 2010bMISSE, Michel. (2010b), “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria ‘bandido’”. Lua Nova , 79: 15-38. ) um ponto central dessa crença; crença de que os juízes têm o papel de defender a sociedade e de que a prisão representa um meio de dar visibilidade a isto. Essa crença é apresentada por promotores e juízes em seus argumentos e justificativas como necessária para o próprio funcionamento do sistema de justiça criminal.

A crença parece ser um elemento central para o exercício do poder de prender e punir. Os argumentos baseados em crenças têm o efeito de dispensar o conhecer. Não se questiona a forma como as informações foram produzidas e adquiridas pelos policiais. Ocorre um tipo de “trânsito de saberes”, em que os operadores do direito utilizam o vocabulário policial em suas justificativas. A verdade policial é uma verdade que vale para o direito, possui uma utilidade necessária para o funcionamento do sistema, para que os juízes exerçam seu poder de punir.

Identificamos algumas associações realizadas, sobretudo por promotores e juízes, entre a crença na polícia e a sua importância para a justiça e para o combate ao tráfico de drogas e à impunidade. Práticas de violência, tortura ou ameaça para conseguir informações não são averiguadas. Como não consideram verdadeiras as narrativas das pessoas presas, sobretudo aquelas acusadas por tráfico de drogas, expressões como “violência policial”, “extorsão”, “flagrante forjado” não aparecem nas deliberações de promotores e juízes.

Ao recepcionar o vocabulário policial de maneira inquestionável, os operadores do direito legitimam ações policiais que podem ser, na verdade, ilegais e violentas. A política de guerra ao crime e da guerra às drogas é acolhida e ratificada por juízes e promotores.

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    » http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,audiencia-de-custodia-revela-indicio-de-tortura-em277-casos-de-prisoes,1765856
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Notas

  • 1
    Outras pesquisas já sinalizaram para essa questão ( Campos, 2015CAMPOS, Marcelo. (2015), Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo . São Paulo: Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. ; Boiteux, 2014BOITEUX, Luciana. (2014), “Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas”, in S.S. Shecaira (org.), Drogas: uma nova perspectiva , São Paulo, IBCCRIM. ; Coelho, 2014COELHO, Luís Carlos Honório de Valois. (2014), “O direito à prova violado nos processos de tráfico de entorpecentes”, in S.S. Shecaira (org.), Drogas: uma nova perspectiva , São Paulo, IBCCRIM. , 2016COELHO, Luís Carlos Honório de Valois. (2016), O direito penal da guerra às drogas . Tese de doutorado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. ; Lemgruber, 2013LEMGRUBER, Julita et al. (2013), Usos e abusos da prisão provisória no Rio de Janeiro: avaliação do impacto da lei 12.403/2011 . Rio de Janeiro, ARP/Cesec. ; Lemgruber e Fernandes, 2015LEMGRUBER, Julita & FERNANDES, Marcia (coord.). (2015), “Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro: prisão provisória e direito de defesa”. Boletim Segurança e Cidadania , 17, nov. ).
  • 2
    Juízes, promotores, defensores públicos e advogados.
  • 3
    Essa audiência consiste na apresentação do preso ao juiz no prazo de 24 horas e foi implementada no Fórum Criminal da Barra Funda, na cidade de São Paulo, em fevereiro de 2015.
  • 4
    Agradecimento especial ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) por ceder o material da pesquisa.
  • 5
    Os autos de prisão em flagrante são compostos pelos seguintes documentos: cópia do flagrante; ofício ao juiz corregedor; boletim de ocorrência; laudo de constatação; auto de qualificação; informações sobre a vida pregressa; antecedentes criminais; auto de exibição e apreensão.
  • 6
    Correspondente a todos os distritos policiais do município de São Paulo e encaminhados ao Departamento de Inquérito Policial (Dipo) do Fórum Criminal da Barra Funda. O acesso e coleta de tais documentos ocorreram nos Departamentos de Inquéritos Policiais (Dipo) 3 e 4 do Fórum Criminal da Barra Funda da cidade de São Paulo.
  • 7
    A coleta foi realizada a partir do site do Tribunal de Justiça de São Paulo ( www.tj.sp.gov.br ), no período de fevereiro a novembro de 2011, quando a pesquisa do NEV-USP foi concluída.
  • 8
    Sendo: 26 policiais militares, 16 policiais civis (sobretudo delegados de polícia), 11 juízes, oito promotores e nove defensores públicos. Todas entrevistas foram realizadas pela equipe de pesquisa do NEV/USP e ocorreram nos distritos policiais (no caso dos policiais civis), nos batalhões da polícia militar (no caso dos policiais militares), no Fórum Criminal da Barra Funda (no caso dos promotores, juízes e defensores públicos). As entrevistas foram numeradas para não identificar os(as) entrevistados(as), conforme compromisso estabelecido no termo de confidencialidade.
  • 9
    A escolha dessas audiências buscou selecionar aqueles que representam o padrão de casos que chegavam ao sistema de justiça criminal.
  • 10
    Consiste na apresentação do preso em flagrante em 24 horas diante do juiz para que ele decida a manutenção ou não da prisão. Tais audiências averiguam a necessidade da manutenção das prisões, avaliam a legalidade de tais detenções e atentam para a violência policial e tortura possivelmente praticada contra presos.
  • 11
    Considera-se ‘autos’ toda a documentação reunida na pesquisa: os autos de prisão em flagrante, os processos, as manifestações da acusação e defesa e a sentença judicial.
  • 12
    Conforme Sérgio Adorno (1994)ADORNO, Sérgio. (1994), “Crime, justiça penal e igualdade jurídica: os crimes que se contam no tribunal do júri”. Revista USP , 21: 133-151. , desde a década de 1980 muitos antropólogos, sociólogos e historiadores tem utilizado como fonte de pesquisa os processos penais. Obras como a de Corrêa (1983)CORRÊA, Mariza. (1983), Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais . Rio de Janeiro, Graal. , Chalhoub (1986)CHALHOUB, Sidney. (1986), Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores do Rio de Janeiro da Belle Époque . São Paulo, Brasiliense. , Fausto (1984)FAUSTO, Boris. (1984), Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo, 1880-1924 . São Paulo, Brasiliense. entre outros. Atualmente, encontra-se uma série de estudos que se valem dos autos, principalmente na temática da violência, como os trabalhos de Adorno (1994ADORNO, Sérgio. (1994), “Crime, justiça penal e igualdade jurídica: os crimes que se contam no tribunal do júri”. Revista USP , 21: 133-151. , 1995ADORNO, Sérgio. (1995), “Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo”. Novos Estudos Cebrap , 43, nov.: 45-63. ), Adorno e Pasinato (2007)ADORNO, Sérgio & PASINATO, Wânia P. (2007),“A Justiça no tempo e o tempo da Justiça”. Tempo Social , 9, 2: 131-155. , Raupp (2005), Vargas (2008), Vargas e Mendonça (2008)VARGAS, Joana Domingues & MENDONÇA, Ludmila. (2008). “Estudos de fluxo da justiça criminal: balanço e perspectivas”. Anais do Encontro Anual da Anpocs (32), Caxambu, Anpocs. , entre outros.
  • 13
    No caso do Rio de Janeiro, essa questão é bem explicita, já que a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Estado estabelece que “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. A pesquisa de Julita Lemgruber destaca a centralidade dessa súmula para a acolhida dos testemunhos policiais nos processos de tráfico de drogas nas decisões dos juízes, que condenam apenas com o depoimento de policiais ( Lemgruber e Fernandes, 2015LEMGRUBER, Julita & FERNANDES, Marcia (coord.). (2015), “Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro: prisão provisória e direito de defesa”. Boletim Segurança e Cidadania , 17, nov. ).
  • 14
    As análises da atuação da defesa com relação às narrativas policiais estão mais devolvidas na nossa tese ( Jesus, 2016JESUS, Maria Gorete Marques de. (2016), “‘O que está no mundo não está nos autos’: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas” . Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. ). Optamos por trazer para este artigo apenas as análises dos argumentos dos promotores e juízes, pois elas revelam as condições de possibilidade para a atualização da verdade policial como verdade jurídica no sistema de justiça criminal.
  • 15
    Durante a realização das entrevistas, os policiais civis e militares mencionaram a existência de uma política de metas, que tem como principal indicador a prisão. Há uma orientação, baseada na lógica de uma produtividade policial, de que determinadas metas precisam ser cumpridas. É possível visualizar essa centralidade das prisões e a relação com produtividade policial no site da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP). O link referente a dados estatísticos disponibiliza uma página cujo título é “produtividade policial”, em que se elencam todas as prisões em flagrantes realizadas mês a mês pela polícia. Disponível em http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Pesquisa.aspx?t=P , acessado em 11/07/2018.
  • 16
    Diário de campo AC n. 36, 14/05/2015.
  • 17A violência policial no Brasil tem sido tema de uma série de pesquisas, especialmente após a ditadura civil militar. Ver: Adorno e Cardia (2000)ADORNO, Sérgio & CARDIA, Nancy. (2000), “The police violence, the democratic transition and the rule of law in Brazil” (1980-1990). Trabalho apresentado no XXII Congresso Internacional da Latin American Studies Association (Lasa). Miami, 16-18 mar. , Caldeira (2000)CALDEIRA, Teresa Pires. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo . São Paulo, Editora 34, EdUsp. , Pinheiro (2002)PINHEIRO, Paulo Sérgio. (2002), “O controle do arbítrio do Estado e o direito internacional dos direitos humanos”, in P.S. Pinheiro & S.P. Guimarães (org.), Direitos humanos no século XXI , parte 1, Brasília, Ipri/Funag. , entre outros.
  • 18
    Diário de campo VC n. 4, 4/04/2011.
  • 19
    Diário de campo AC n. 11, 16/04/2015.
  • 20
    Diário de campo AC n. 14, 17/04/2015.
  • 21
    “Doutrina jurídica é uma forma de construção de saber própria do campo jurídico. Trata-se de uma coleção de opiniões de estudiosos a respeito dos institutos jurídicos, da legislação e da jurisprudência” ( Mendes, 2012MENDES, Regina Lúcia Teixeira. (2012), “Verdade real e livre convencimento: o processo decisório judicial brasileiro visto de uma perspectiva empírica”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , 5, 3: 447-482. , p. 455).
  • 22
    Processo n. 050.10.094306-3 – decisão do juiz. Grifo nosso.
  • 23
    Processo n. 05010096286-6 – decisão do juiz. Grifos nosso
  • *
    Este artigo foi adaptado do trabalho apresentado no 40º Encontro Anual da Anpocs, no SPG 11 – Drogas, atores e sociedade, em Caxambu, MG, 2016. A pesquisa foi desenvolvida com apoio da Fapesp, processo 2014/19557-8.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2018
  • Aceito
    29 Ago 2019
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