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Diálogo de gerações

RESENHAS

Diálogo de gerações

Norma Côrtes

Caio Navarro TOLEDO (org). Intelectuais e política no Brasil: a experiência do ISEB. Rio de Janeiro, Revan, 2005. 264 páginas.

Intelectuais e política no Brasil foi lançado quando das celebrações dos cinqüenta anos da fundação do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB. Reúne três gerações de intelectuais que se puseram a avaliar a experiência do ISEB e, neste gesto, acabaram nos brindando com um singular exercício de revisão histórica acerca do significado desse Instituto na vida cultural brasileira. O livro promoveu um encontro insuspeitado – enfeixou numa única publicação os artigos recentes de alguns ex-isebianos históricos (Candido Mendes de Almeida, Helio Jaguaribe, Joel Rufino dos Santos e Jorge Miglioli); textos escritos à época pelos seus membros ou críticos (Nelson Werneck Sodré e Gerard Lebrun); revisões críticas atuais formuladas pelos herdeiros dessa querela, isto é, escritas por alguns dos seus analistas e estudiosos acadêmicos tanto do Rio de Janeiro como de São Paulo (Alzira Alves Abreu, Caio Navarro Toledo e Luis Carlos Bresser-Pereira); e, por fim, também adicionou a toda essa polifônica variação de percepções teóricas, diferenças geracionais e diversidade de inscrições institucionais ou de origens citadinas mais duas importantes contribuições de dois jovens autores paulistas (Alexsandro Eugenio Pereira e Edison Bariani Júnior).

A coletânea honra a história do ISEB. E não apenas porque celebra sua memória e perfaz um dos ideais de congraçamento do Grupo de Itatiaia (o qual esboçou o que mais tarde se tornaria o Instituto), reunindo uma variada gama de pensadores dispostos a aquilatar o papel da inteligência na vida política, mas também e principalmente porque traduz pela diversidade de seus autores a duradoura, vívida e fecunda produtividade intelectual das querelas nacionalistas dos anos de 1950 e 1960. Peça ativa desse debate, Intelectuais e política no Brasil atualiza tradições e dá visibilidade às metamorfoses ocorridas no interior desse intenso e longevo conflito de interpretações sobre a realidade brasileira.

No conjunto, seus autores se irmanam sob uma inédita disposição para o entendimento. E apesar de não ter havido autocríticas explícitas (o que seria desnecessário), uma vez que a maioria revê, altera ou moderniza posicionamentos anteriores, seus artigos exibem um ânimo intelectual profundamente distinto da surda hostilidade que durante anos grassou entre as gerações de estudiosos saídos da USP e os ex-isebianos. Para além de revelar amadurecimento e também cicatrizar eventuais feridas à vaidade, o alcance dessa nova atitude de abertura e diálogo conduz a uma importante reconsideração acerca do estatuto cognitivo da história intelectual e das idéias no Brasil. E isso envolve bem mais do que pacificar a "querela entre antigos e modernos", uma vez que seu principal efeito se traduz numa ativa releitura da história e da trajetória da inteligência brasileira que, abandonando a arrogância dos juízos cientificistas evolutivos (e a sua insistência em degradar as crenças e visões de mundo do passado a meros equívocos ideológicos), revela os esforços de transmissão, auto-avaliação e reconhecimento de uma tradição de experiência pensante que há muitos anos disputa a prerrogativa para definir os predicados que qualificam a chamada realidade.

É importante salientar, contudo, que tal inclinação amistosa não conduziu a qualquer consenso interpretativo. Ao contrário. Em vez de levar à acomodação do passado, para cada um de seus partícipes, o ISEB perdura como uma experiência intelectual múltipla e com significados incomensuráveis. Essa extraordinária vitalidade transparece até mesmo nos dúbios atos falhos de Candido Mendes que, embora troque o nome ISEB por Iuperj, conclui curiosamente pela virginal irrepetibilidade da experiência isebiana. Tal compreensão não é compartilhada por Hélio Jaguaribe. Em um esforço para narrar a trajetória de conformação do Instituto desde as suas primeiríssimas horas, Jaguaribe retraça as polêmicas desenvolvimentistas e, descrevendo o percurso de tais debates, atualiza a indagação sobre quem eram seus protagonistas políticos: "Será que o ISEB tinha razão quando sustentava que havia uma burguesia nacional na década de 1950?". Ao fazê-lo, insinua a urgência do renascimento da tese isebiana e, incansável, mais uma vez, interpela a atualidade do tempo presente. Depoimento emocionado, o artigo de Joel Rufino dos Santos é uma saborosa memória sobre os percalços da História Nova. Ele faz lembrar o alcance pedagógico das investidas isebianas – os livrinhos de bolso de Nelson Werneck Sodré eram comparáveis às reformas de base – e a crescente radicalização política dos anos que precederam ao golpe de 1964. Por sua vez, no texto "O ISEB e a encruzilhada nacional", Jorge Miglioli salienta a vocação pública dos isebianos. Ele retoma a questão acerca da existência e do papel histórico da burguesia nacional, mas conclui noutra direção, sugerindo tanto sua inexpressividade como suas inclinações cosmopolitas.

A babélica dissonância que resulta de todas essas visões e releituras do passado e dos seus respectivos gestos da memória não encontra solução nem mesmo nos dedicados esforços dos intérpretes do ISEB. Este, certamente, é um dos maiores méritos de Intelectuais e política no Brasil. A sua desordem interpretativa revela um aspecto essencial do conhecimento histórico: nosso acesso epistemológico ao passado dá-se necessariamente pelos relatos que, tendo sido elaborados à época (ou não), sempre oferecem perspectivas situacionais. Em outras palavras, não existe o relato verdadeiro sobre o Instituto, isto é, não existe nenhum texto fundamentalmente correto diante do qual todas as demais interpretações seriam apenas variações. Isso porque nem mesmo apelando para os escritos originais conseguiríamos identificar o discurso primevo, fundamental, fidelíssimo, capaz de validar e corrigir todos os outros relatos. Ora, como identificar qual dos textos à época foi o mais verdadeiro?! A análise filosófica de Gerard Lebrun, "A realidade nacional e seus equívocos", ou o combativo depoimento de Werneck Sodré em "História da História Nova"? (textos respectivamente de 1963 e 1965, republicados em Intelectuais e política no Brasil).

Evidentemente, isso não significa renunciar à pretensão de se conhecer o passado, mas sugere uma concepção de História – e particularmente da história intelectual ou das idéias – que, desprezando a espontaneidade da progressão linear (a malfadada fila indiana do tempo), dá-se como linguagem transmitida temporalmente por meio dos esforços sempre renovados e compartilhados por várias gerações. Nesse sentido, o diálogo geracional estabelecido pela reunião de textos que Navarro Toledo organizou não apenas franqueia a continuidade para essa conversa sobre o passado (eis o valor do exaustivo recenseamento bibliográfico elaborado por Edison Bariani Júnior e da novidade sobre o chamado último ISEB trazida pela investigação de Alexsandro Pereira), como também envolve o reconhecimento da diferença como fato histórico constitutivo do diálogo que somos nós.

Finalmente, Alzira Abreu traduziu um fragmento da sua indispensável tese de doutorado – mais uma vez, ela ofereceu aos leitores uma abordagem com personalidade própria. Sob sua pena, o ISEB tornou-se compreensível a partir da dinâmica de transformações dos papéis sociais e do alcance político da intelectualidade no Brasil. Em "Do ISEB e da CEPAL à teoria da dependência", Luis Carlos Bresser-Pereira elaborou capítulos para uma história intelectual e fez uma aguda contextualização entre as idéias e as mudanças socioeconômicas que marcaram a década de 1950 até meados de 1970. Fiel a si mesmo, Caio Navarro Toledo permanece manipulando um repertório conceitual de matriz althusseriana (aparelhos ideológicos). Todavia, inverteu o valor de seus termos e, principalmente, assumiu uma atitude autoral cujo tônus é bastante distinto daquele que o notabilizou em ISEB: fábrica de ideologias. Novamente, o autor concebeu um livro que deve se tornar referência obrigatória, mas agora fez um "gol de placa": reconciliou os passados de três gerações de intelectuais brasileiros com a história das idéias no Brasil.

Norma Côrtes é historiadora e professora-adjunta de Teoria e Metodologia da História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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