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Os deuses que dançam em São Paulo

Os deuses que dançam em São Paulo

Reginaldo PRANDI. Mitologia dos orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. 624 páginas.

Monique Augras

Este livro estava fazendo falta. Nele, Reginaldo Prandi, conhecido especialista do campo afro-brasileiro, nos apresenta uma soma de mitos ilustrativos da significação de cada um dos orixás que hoje dançam nos terreiros brasileiros. Consegue harmonizar erudição e recriação poética ao transcrever, em poemas de versos livres, histórias recolhidas ao longo da pesquisa de campo e lendas encontradas nos textos dos estudiosos.

A obra se situa, por assim dizer, na dobradiça que une tradição religiosa e produção acadêmica, transmissão oral e registro escrito. Assim fazendo, Reginaldo Prandi toma clara posição entre os autores que, sem deixar de homenagear o valor e o peso das referências africanas, vêem o candomblé como uma religião em franca expansão e permanente transformação, na qual novos mitos e ritos podem estar surgindo e merecem o registro, com a mesma legitimidade que outrora — em evidente ilustração da permanência, entre os cientistas sociais, do "ídolo das origens", como dizia Marc Bloch — se atribuía exclusivamente às "raízes africanas".

A questão das fontes das informações compiladas pela equipe coordenada por Prandi ao longo de vários anos é por ele tratada com peculiar sutileza, ao referir-se ao material proveniente dos cadernos redigidos por iniciados de alta patente. Esses cadernos continham recomendações referentes aos diversos rituais de oferenda, bem como a narrativa dos mitos que lhes davam sustento. Ainda que sempre aludidos de forma mais ou menos sigilosa, há muito tempo circulavam entre os terreiros e parte do seu conteúdo há muito também já havia sido publicada por diversos pesquisadores. É com muito tato e delicadeza que o autor se esforça em situar os empréstimos — nem sempre claramente assumidos — e deslindar os caminhos ao longo dos quais os ensinamentos de uma das mais ilustres mães-de-santo da Bahia se foram transmitindo e transformando. Tal sutileza, diga-se de passsagem, faz também parte do estilo próprio do povo-de-santo, apreciador de comentários intrigantes sobre a fundação dos terreiros, o comportamento dos seus dignitários e a constituição das famílias-de-santo.

O livro pode ser lido, portanto, em vários níveis. Primeiro, o acadêmico, com o levantamento quase exaustivo dos autores que transcreveram mitos referentes aos orixás na Nigéria, no Benin, em Cuba e no Brasil. Cada mito relatado no corpo do texto remete a uma nota que, no fim do volume, analisa criticamente as fontes e as diversas versões. Do mesmo modo, as fontes orais são minuciosamente estipuladas, bem como a identificação dos terreiros de São Paulo onde foi realizado o trabalho de campo. Um glossário completa a informação etnológica.

Mas pode ser visto também como uma tentativa, particularmente bem-sucedida, de divulgação de importante vertente da cultura brasileira. Para o público mais amplo, "mitologia" remete quase que exclusivamente à mitologia grega, ou romana. Os dicionários de alcance geral reforçam essa percepção: "Mitologia: História fabulosa dos deuses, semideuses e hérois da Antiguidade." (Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, São Paulo, Abril Cultural, 1971). É, claramente, da "Antiguidade" clássica que se trata, a verdadeira, a que legitima a cultura ocidental... Quantas vezes, ao ministrar alguma palestra para pessoas esclarecidas da boa sociedade, não ouvi a observação maravilhada mas um tanto perplexa: "Mas é tão bonito quanto os Gregos!". É tão bonito quanto, é verdade. E não será um dos menores méritos de Reginaldo Prandi o de apresentar, sob forma literária, sem dúvida mais palatável do que os nossos costumeiros tratados de Antropologia, uma soma tão extensa e completa das lendas dos orixás.

Em sua avaliação aguda e crítica do papel dos pesquisadores em relação ao seu campo de investigação, Roberto Motta costuma sublinhar que nós, os acadêmicos, somos os teólogos dessa religião de transmissão oral e que os mitos transcritos e organizados por nós não deixam de ser, em certo sentido, obra nossa. Mas não podemos esquecer que a própria mitologia grega, tal como a conhecemos, tampouco retrata o nível cotidiano e concreto dos rituais, ou as crenças vivenciadas por sacerdotes e devotos. O que temos são obras de intelectuais, poetas e autores trágicos, que deram forma ao material que os rodeavam e, provavelmente, o interpretaram. Daí a sua forma acabada e a coerência do seu conteúdo. Mutatis mutandis, algo parecido pode ser dito a favor do empreendimento de Reginaldo Prandi. É obra de um intelectual, de um cientista social, mas é também, assumidamente, uma produção poética, nas entrelinhas da qual é também permitido perceber os ecos de uma vivência religiosa.

E tal como já tivemos todos a oportunidade de verificar, o campo não se mantém passivo diante da nossa produção. Sabe muito bem utilizá-la em proveito de sua sobrevivência no seio da sociedade mais ampla. Há um diálogo constante entre pesquisadores e pesquisados e, além do mais, como bem o sublinha o autor, o povo-de-santo se move doravante dentro do mundo do escrito, com livros publicados por sacerdotes e sacerdotisas. A mitologia aqui organizada e formatada terá, sem dúvida, certa influência sobre a maneira como, daí por diante, será transmitido para os noviços o acervo do "conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o governo do mundo dos homens e da natureza, sobre o desenrolar do destino dos homens, das mulheres e das crianças e sobre os caminhos de cada um na luta cotidiana contra os infortúnios." (p. 17).

É portanto um mundo reencantado que o livro apresenta, e o encantamento se expressa também no plano visual, pois a transcrição dos mitos vem precedida de um ensaio fotográfico que introduz o leitor no mundo dos deuses que dançam. Tal como o texto, a parte iconográfica pode ser entendida em vários níveis: o do simples deleite — o interesse estético sempre me pareceu um aspecto relevante na motivação da assistência às festas de candomblé —; o da análise dos diversos elementos que se combinam na indumentária e nos paramentos dos orixás, de um referencial barroco inspirado das vestes litúrgicas do catolicismo pré-Vaticano II até a reinvenção de enfeites africanos; e sobretudo o da visualização dos próprios mitos. Pois a apresentação das fotos tiradas no decorrer do trabalho de campo não segue apenas a ordem do xirê (sucessão usual da manifestação dos orixás ao longo da festa), mas ilustra também a diversidade das "qualidades" de cada um dos deuses, e sem dúvida o leitor afeito à freqüentação das casas-de-santo deliciar-se-á em reconhecer, no virar da página, uma forma particularmente gloriosa do seu santo-de-cabeça, ou em identificar a mise-en-scène sagrada de um mito que lhe seja particularmente caro, como o de Xangô carregando o pai nas costas...

Mesmo porque, além de todos os brilhantes aspectos acadêmicos e etnográficos do livro, Mitologia dos orixás é também, claramente, a expressão de uma vivência religiosa, nesse jogo de segredo ao mesmo tempo revelado e disfarçado que, com a sabedoria aprendida nos próprios terreiros, Reginaldo Prandi coloca, desde as suas primeiras palavras, sob a proteção do Senhor da Transformação, fiador da comunicação entre todas as dimensões do mundo e entre todos os seres que nele vivem, sejam homens ou deuses.

MONIQUE AUGRAS é professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Jun 2001
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