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PLANEJAMENTO COLABORATIVO NA CLASSE HOSPITALAR: CONTRIBUIçõES PARA AS REPRESENTAçõES SOCIAIS DO HOSPITAL SOB A ÓPTICA DAS CRIANçAS HOSPITALIZADAS1

COLLABORATIVE PLANNING IN THE HOSPITAL CLASS: CONTRIBUTIONS TO THE SOCIAL REPRESENTATIONS OF THE HOSPITAL FROM THE PERSPECTIVE OF HOSPITALIZED CHILDREN

RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo verificar se o planejamento colaborativo de um plano de intervenção pedagógico elaborado entre duas pesquisadoras e uma professora de Classe Hospitalar influencia na construção e reconstrução da representação social do hospital sob a óptica das crianças hospitalizadas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e colaborativa. Participaram três crianças entre 7 e 11 ano de idade, que se encontravam hospitalizadas por no mínimo dois dias e que ainda não tinham tido acesso ao serviço da Classe Hospitalar. Ademais, a integrante principal do estudo foi uma professora da Classe Hospitalar de um Hospital Universitário. O planejamento colaborativo do plano de intervenção pedagógico ocorreu por meio de cinco encontros na plataforma do Google Meet. Por meio da técnica “Desenho-Estória” adotada como recurso no plano de intervenção pedagógico, constatou-se que, inicialmente, as crianças possuíam representações sociais negativas sobre o hospital. Entretanto, após o desenvolvimento das práticas pedagógicas da professora da Classe Hospitalar, os participantes modificaram suas percepções sobre esse espaço. Conclui-se que o planejamento colaborativo foi de extrema importância para a construção de práticas pedagógicas que influenciaram positivamente a representação social do hospital para as crianças hospitalizadas.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Planejamento colaborativo; Representação social; Classe Hospitalar; Práticas pedagógicas

ABSTRACT

This research aimed to verify if the collaborative planning of an intervention pedagogical plan developed between two researchers and a Hospital Class teacher influences the construction and reconstruction of the hospital’s social representation from the perspective of the hospitalized children. It is a qualitative, descriptive and collaborative research. Three children between 7 and 11 years old participated, who were hospitalized for at least two days and who had never had access to the Hospital Class service. Furthermore, the main participant of the study was a teacher of the hospital class of a University Hospital. The collaborative planning of the pedagogical intervention plan took place through five meetings on the Google Meet platform. Through the “Drawing-Story” technique adopted as a resource in the pedagogical intervention plan, it was found that initially children have negative social representations about the hospital. However, after the development of the teaching practices of the hospital class teacher, the participants change their perceptions about this space. It is concluded that collaborative planning was extremely important for the construction of pedagogical practices that positively influenced the social representation of the hospital for hospitalized children.

KEYWORDS
Special Education; Collaborative planning; Social representation; Hospital Class; Pedagogical practices

1 INTRODUÇÃO

Com base no art. 205 da Constituição Federal (1988Constituição da República Federativa do Brasil. (1988). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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), a educação é um direito de todos os cidadãos brasileiros, sendo dever do Estado e da família em colaboração com a sociedade garantir a sua obrigatoriedade, gratuidade e qualidade. Nesse contexto, fica subtendido que as crianças e os adolescentes que se encontram afastados da escola por motivos de tratamento de saúde e/ou hospitalizados também possuem o mesmo direito. Entretanto, a especificidade do atendimento educacional para esse público consiste em uma conquista recente no Brasil, com muitas lacunas a serem preenchidas.

O termo “Classe Hospitalar” manifestou-se pela primeira vez na Política Nacional de Educação Especial (1994)Política Nacional de Educação Especial. (1994). Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Especial. MEC/SEESP.. Todavia, somente a partir dos anos 2000, que essa legalidade começou a se difundir no país. Assim, em 2002, foi elaborado um documento orientador pelo Ministério da Educação (MEC), que conceituou Classe Hospitalar como o “atendimento pedagógico-educacional que ocorre em ambientes de tratamento de saúde, seja na circunstância de internação, como tradicionalmente conhecida, seja na circunstância do atendimento em hospital-dia e hospital-semana ou em serviços de atenção integral à saúde mental” (MEC, 2002Ministério da Educação. (2002). Classe hospitalar e Atendimento Pedagógico Domiciliar: estratégias e orientações. MEC/SEESP. http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/livro9.pdf
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, p. 13). Ademais, o ofício descreve que as práticas pedagógicas nesse espaço devem ser adequadas às necessidades, especificidades e capacidades de cada criança.

Em 2018, um grande avanço nesse campo foi concebido, em decorrência da alteração no art. 4º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm#:~:text=L9394&text=Estabelece%20as%20diretrizes%20e%20bases%20da%20educa%C3%A7%C3%A3o%20nacional.&text=Art.%201%C2%BA%20A%20educa%C3%A7%C3%A3o%20abrange,civil%20e%20nas%20manifesta%C3%A7%C3%B5es%20culturais.
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- por meio da Lei nº 13.716, de 24 de setembro de 2018Lei nº 13.716, de 24 de setembro de 2018. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para assegurar atendimento educacional ao aluno da educação básica internado para tratamento de saúde em regime hospitalar ou domiciliar por tempo prolongado. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13716.htm#:~:text=%C3%89%20assegurado%20atendimento%20educacional%2C%20durante,esfera%20de%20sua%20compet%C3%AAncia%20federativa.%E2%80%9D
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, proclamando-se o direto ao “atendimento educacional, durante o período de internação, ao aluno da educação básica internado para tratamento de saúde em regime hospitalar ou domiciliar por tempo prolongado, conforme dispuser o Poder Público em regulamento, na esfera de sua competência federativa”.

Fonseca (2015)Fonseca, E. S. (2015). Classe Hospitalar e atendimento escolar domiciliar: direito de crianças e adolescentes doentes. Revista Educação e Políticas em Debate, 4(1), 12-28. https://doi.org/10.14393/REPOD-v4n1a2015-31308
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argumenta que a criança hospitalizada não deve ser reconhecida apenas por sua doença, visto que ela também “continua crescendo e se desenvolvendo mesmo que com alguns comprometimentos causados pela enfermidade ou pelo tratamento médico necessário” (p. 16). Nesse contexto, a assistência oferecida pelo docente é fundamental para garantir os seus interesses e as suas necessidades no âmbito acadêmico.

Em vista disso, a presente pesquisa pautou-se no seguinte problema: Como as práticas pedagógicas desenvolvidas por uma professora de Classe Hospitalar podem influenciar na construção e reconstrução das representações sociais do hospital sob a óptica das crianças hospitalizadas? Nesse sentido, recorre-se aos estudos de Moscovici (1978Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Zahar., 2003Moscovici, S. (2003). Representações sociais: investigações em psicologia social. Vozes.) para compreender o significado da Teoria das Representações Sociais (TRS). Para o autor, as representações sociais são conceitos, proposições e explicações de um determinado objeto; assim sendo, são construídas coletivamente por meio da comunicação e da linguagem, impactando no comportamento, nas ideias e na formação da identidade do sujeito. Além disso, não se restringem a meras opiniões ou imagens, são teorias coletivas sobre a realidade. Em suas palavras, “é uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos. [...] elas possuem uma função constitutiva da realidade, [...] é alternativamente, o sinal e a reprodução de um objeto socialmente valorizado” (Moscovici, 1978Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Zahar., p. 26-27).

Moscovici (2003)Moscovici, S. (2003). Representações sociais: investigações em psicologia social. Vozes. argumenta que as representações sociais têm por finalidade tornar o desconhecido algo familiar. Para tanto, são fundamentais os processos de ancoragem e objetivação. O primeiro mecanismo busca “ancorar ideais estranhas, reduzi-las a categorias e a imagens comuns, colocá-las em um contexto familiar” (p. 60). Em outras palavras, a ancoragem constitui-se na incorporação do objeto estranho no campo das ideias (âmbito cognitivo), para isso o sujeito recorre às percepções já familiares. A objetivação, por sua vez, refere-se ao movimento de materialização dos conceitos abstratos, ou seja, é a ação de “transformar algo abstrato em algo quase concreto, transferir o que está na mente em algo que exista no mundo físico” (p. 61).

Por meio de uma revisão de literatura, foram constatados, por um lado, poucos estudos relacionados às representações sociais no contexto hospitalar com participação ativa das crianças hospitalizadas. Por outro lado, foi encontrada uma grande quantidade de produções sobre as representações sociais de doenças, da unidade de terapia intensiva, do Vírus da Imunodeficiência Humana/da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (HIV/AIDS), da judicialização da saúde pública e das palavras “saúde” e “doença”. Entretanto, nenhuma tinha como foco principal a temática da presente pesquisa, bem como apresentavam as perspectivas dos funcionários do hospital e/ou de pacientes adultos (Barone et al., 2022Barone, B. V., Gonçalves, A. G., & Pedrino, M. C. (2022). Representações sociais do hospital e/ou da Classe Hospitalar para crianças em internação: uma revisão sistemática. In A. G. Gonçalves, & M. C. Pedrino (Orgs.), Atendimento ao estudante em contexto hospitalar ou domiciliar: relatos de pesquisa (1ª ed., pp. 101-122). Pedro & João Editores.).

Diante disso, para compor o arcabouço teórico, elencou-se para análise as pesquisas que mais se aproximavam da temática. Assim, foram localizadas algumas produções que investigavam sobre as representações sociais do processo de hospitalização, dos serviços oferecidos no hospital e de doenças/anomalias sob a óptica das crianças (Ferraz, 2013Ferraz, C. O. (2013). Representação social da criança com fissura labiopalatina: intervenção por meio de leitura de história [Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho]. Repositório da Unesp. https://repositorio.unesp.br/handle/11449/97518?locale-attribute=es
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; Santos, 2018Santos, L. F. (2018). Representação social da criança com câncer sobre o processo de adoecimento e tratamento [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco]. Repositório Digital da UFPE. https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/33088
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; Teibel, 2017Teibel, E. N. H. (2017). Narrativa como mediadora de vivências infantis no contexto hospitalar: as representações sociais sobre o cuidado em uma enfermaria pediátrica, segundo equipe de saúde e as significações infantis [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Mato Grosso]. Repositório Digital da UFMT. https://ri.ufmt.br/handle/1/1884
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).

A análise realizada por Ferreira et al. (2014)Ferreira, N. A. S., Esmeraldo, J. D., Black, M. de T., Antão, J. Y. F. de L., Raimundo, R. D., & Abreu, L. C. de. (2014). Representação social do lúdico no hospital: o olhar da criança. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 24(2), 188-194. buscou verificar as representações sociais da brinquedoteca para as crianças hospitalizadas. Nesse cenário, os pesquisadores constataram que os participantes a consideram um espaço familiar e que se sentem seguros, visto que possibilita o processo de brincar e a socialização entre os pares. Ademais, os autores concluem que a brinquedoteca influencia na mudança das representações sociais de um hospital como um lugar triste, de sofrimento e morte, para um ambiente de bem-estar, prazer e proteção.

Já a pesquisa de Lucon (2010)Lucon, C. B. (2010). Representações sociais de adolescentes em tratamento do câncer sobre a prática pedagógica do professor de classe hospitalar [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia]. Repositório da UFBA. https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/11786
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teve como finalidade identificar as representações sociais de crianças e adolescentes hospitalizados sobre a prática pedagógica desenvolvida pelo professor de Classe Hospitalar. Assim, os participantes destacaram o lúdico como instrumento principal da prática pedagógica no ambiente hospitalar, diferenciando-se da prática otimizada nas salas regulares das escolas de Educação Básica. Além disso, apontam que esse recurso auxilia na recuperação da saúde e minimiza o estresse do tratamento.

Por meio do estudo de Ribeiro e Pinto Junior (2009)Ribeiro, C. R., & Pinto Junior, A. A. (2009). A representação social da criança hospitalizada: um estudo por meio do procedimento de desenho-estória com tema. Revista SBPH, 12(1), 31-56., verificaram-se dois grupos de representações sociais sobre o hospital para as crianças hospitalizadas. Antes de apresentar esses dados, vale ressaltar que os autores adotaram para coleta a técnica do “Desenho-Estória”3 3 Termo utilizado por Trinca (2003). . Desse modo, um grupo de participantes conceituou o hospital como um local negativo, sendo permeado pela privação, pela exclusão, pelo sofrimento, pela punição e pelo castigo. No entanto, outras crianças classificaram-no como um espaço positivo, visto que possibilita a ajuda, o apoio, o tratamento e a salvação.

Mediante o exposto, esta pesquisa buscou realizar o cruzamento entre as práticas pedagógicas e a representação social do hospital, visto que não há nenhuma literatura científica que evidencie diretamente essa problemática, tornando este estudo inovador no campo científico. Dessarte, entende-se por prática pedagógica o “conjunto de atividades ordenadas, estruturadas e articuladas para a realização de certos objetivos educacionais, que tem um princípio e um fim conhecidos tanto pelos professores como pelos alunos” (Zabala, 1998Zabala, A. (1998). A prática educativa: como ensinar. Artmed., p. 18). Também, para Libâneo (2012)Libâneo, J. C. (2012). Temas de pedagogia: diálogos entre didática e currículo. Cortez., uma prática é considerada pedagógica quando está ancorada em concepções e possuiu uma intencionalidade que visa “atender a determinadas expectativas educacionais solicitadas/requeridas por uma dada comunidade social” (p. 173).

Diante disso, este estudo teve como finalidade principal verificar se o planejamento colaborativo de um plano de intervenção pedagógico elaborado entre duas pesquisadoras e uma professora de Classe Hospitalar influencia na construção e reconstrução da representação social do hospital sob a óptica das crianças hospitalizadas. Assim, justifica-se esta produção por evidenciar o papel do professor nesse espaço, visto que contribui para o processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança, bem como possibilita o entendimento sobre o seu processo de hospitalização, minimizando o estresse durante tratamento e a própria recuperação.

2 MÉTODO

O presente estudo adotou como base teórica e metodológica a TRS de Serge Moscovici (1978Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Zahar., 2003Moscovici, S. (2003). Representações sociais: investigações em psicologia social. Vozes.). Além disso, trata-se de uma pesquisa qualitativa e descritiva. Nesse cenário, as pesquisadoras buscaram descrever todas as informações do seu objeto de análise, sem qualquer finalidade de expressão quantitativa, numérica ou de mensuração. Procuraram compreender o fenômeno não só pela aparência, mas por sua essência, que diz respeito às “causas da existência dele procurando explicar sua origem, suas relações, suas mudanças” (Triviños, 1987Triviños, A. N. S. (1987). Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. Atlas., p. 129). Ampliando essa discussão para o objetivo proposto, as pesquisadoras investigaram a essência do fenômeno das representações sociais do hospital sob a óptica das crianças hospitalizadas, compreendendo sua origem e suas relações com as práticas pedagógicas de uma professora de Classe Hospitalar.

Trata-se, assim, de uma pesquisa colaborativa, visto que se buscou compartilhar a responsabilidade entre os participantes envolvidos, tanto na delimitação das tarefas de investigação quanto na construção dos conhecimentos relacionados à prática profissional. Nesse contexto, a atuação da professora é fundamental devido ao seu “potencial de análise das práticas pedagógicas; e o pesquisador, com o potencial de formador e de organizador das etapas formais da pesquisa” (Ibiapina, 2008Ibiapina, I. M. L. de M. (2008). Pesquisa colaborativa: investigação, formação e produção de conhecimentos. Líber Livro., p. 20).

Para coleta dos dados, o projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética Médica de um Hospital Universitário, bem como pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sob número do CAEE 52913921.0.0000.5504, cumprindo com a exigência da Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. O Plenário do Conselho Nacional de Saúde em sua Quinquagésima Nona Reunião Extraordinária, realizada nos dias 06 e 07 de abril de 2016, no uso de suas competências regimentais e atribuições conferidas pela Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, pela Lei no 8.142, de 28 de dezembro de 1990, pelo Decreto no 5.839, de 11 de julho de 2006 [...]. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2016/res0510_07_04_2016.html
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e complementares.

A participante principal desta pesquisa foi uma professora de Classe hospitalar (PCH) de um Hospital Universitário (HU)4 4 Nossos agradecimentos ao Hospital Universitário de Universidade Federal de São Carlos-SP (HU-UFSCar), Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). . O recrutamento da docente foi realizado por meio de amostra por conveniência, uma vez que já participou de dois projetos de extensão cadastrados na Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da UFSCar com as pesquisadoras. Dessa forma, foi realizado um primeiro contato via WhatsApp para saber sobre o seu interesse em participar do presente estudo, no qual se recebeu uma resposta positiva. Ademais, em vista do atual cenário brasileiro ocasionado pela pandemia da covid-19, apenas a professora teve contato presencial com as crianças hospitalizadas, pois já se encontrava inserida diariamente nesse espaço e seguia todos os protocolos exigidos. Diante disso, o Quadro 1 ilustra brevemente a caracterização dessa participante.

Quadro 1
Caracterização da professora da Classe Hospitalar

A rotina da docente no hospital inicia-se por meio do diálogo com a equipe de enfermagem para ter acesso ao prontuário das crianças. Em seguida, dirige-se até o leito com a finalidade de apresentar a proposta da Classe Hospitalar para a família e conhecer o estudante hospitalizado. Posteriormente, realiza uma sondagem para diagnosticar aquilo que já atingiu no ano escolar correspondente à sua idade, bem como o que ainda precisa alcançar. Feito isso, busca, nas pastas em seu armário, atividades pedagógicas a serem aplicadas. Por fim, realiza o relatório de todo o desenvolvimento do estudante nesse contexto, o qual será entregue aos responsáveis para o encaminhamento e a validação na escola de origem. Ainda, a professora descreve que, caso a hospitalização seja de curta duração, segue como referência o Currículo Paulista para o planejamento de suas aulas. No entanto, se a hospitalização for de longa duração, a profissional entra em contato com a escola da criança para que esta envie as atividades.

Além da professora, o presente estudo contou com a participação de três crianças. Nesse sentido, os critérios para inclusão foram: terem entre 7 e 11 anos de idade, estarem hospitalizadas por no mínimo dois dias e não terem tido contato com a Classe Hospitalar. Vale salientar que é exigido esse período mínimo de hospitalização para que o sujeito seja capaz de expressar sobre sua vivência no ambiente hospitalar. Diante disso, o Quadro 2 ilustra o perfil desses participantes.

Quadro 2
Caracterização das crianças hospitalizadas

Mediante o exposto, com o intuito de garantir os aspectos éticos de pesquisas com seres humanos, foi disponibilizado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para a professora e os responsáveis, o qual explicava detalhadamente a relevância do estudo, os seus riscos, desconfortos, custos e benefícios. Já para as crianças, foi apresentado o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) com uma linguagem apropriada para sua compreensão.

2.1 PROCEDIMENTOS PARA COLETA DE DADOS

Para responder à questão de pesquisa - como as práticas pedagógicas desenvolvidas por uma professora de Classe Hospitalar podem influenciar na construção e reconstrução da representação social do hospital sob a óptica da criança hospitalizada? -, foram realizados cinco encontros virtuais síncronos com a docente, por meio da plataforma do Google Meet, os quais tinham como finalidade construir um plano de intervenção pedagógico que possibilitasse identificar as representações sociais do hospital para as crianças hospitalizadas antes e após a implementação de suas práticas pedagógicas. Nesse sentido, o Quadro 3 expõe a organização desses momentos.

Quadro 3
Encontros do planejamento colaborativo do plano de intervenção pedagógico

Mediante os três primeiros encontros realizados, as pesquisadoras e a docente elencaram a técnica do “Desenho-Estória” como recurso para identificar as representações sociais. Desse modo, com base no estudo de Trinca (2003)Trinca, A. M. T. (2003). A intervenção terapêutica breve e a pré-cirúrgica infantil. Vetor., o desenho comunica as emoções dos sujeitos. A partir disso, a intervenção da professora no hospital foi organizada em três etapas: a primeira diz respeito à solicitação de um desenho para criança sobre o que representa o hospital; posteriormente, a docente desenvolveu suas práticas pedagógicas rotineiras, em que foi a única responsável por selecionar as atividades escolares; por fim, para responder à pergunta de pesquisa, foi solicitado um novo desenho sobre o hospital para os participantes.

2.2 ANáLISE DOS DADOS

Para análise dos resultados, foi empregada a análise temática. Esse critério é indicado para ser utilizado quando o recorte em pequenas unidades acaba por segmentar o conteúdo do material escrito, fazendo com que se perca o significado daquilo que se pretende alcançar com a análise. Nesse sentido, “somente com um grande recorte abre-se a possibilidade de encontrar a significação necessária para responder ao objetivo ou pergunta ou hipóteses de estudo” (Manzini, 2020Manzini, E. J. (2020). Análise de entrevista. ABPEE., p. 211). Dessa maneira, as unidades temáticas foram as seguintes:

  • Conhecimentos prévios da professora sobre representação social.

  • Vivências da professora no contexto hospitalar e a relação com a representação social.

  • Planejamento colaborativo do plano de intervenção pedagógico.

  • Resultados da aplicação do plano de intervenção pedagógico.

  • Avaliação do planejamento colaborativo do plano de intervenção pedagógico.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Esta seção tem por finalidade detalhar os resultados obtidos na pesquisa, bem como discuti-los com a literatura. Para tanto, eles foram organizados por meio das unidades temáticas elencadas anteriormente.

3.1 CONHECIMENTOS PRéVIOS DA PROFESSORA SOBRE REPRESENTAÇÃO SOCIAL

Esta unidade temática buscou reunir as respostas da docente sobre o seu conceito atribuído à representação social. Nesse sentido, a participante descreveu:

A representação social seria a sociedade, eu acredito que é como você enxerga a sociedade na qual vivemos. A representação é qual é o seu papel, o que você representa na sociedade [...]. O papel do professor tem que ser aquele modelo inspirador. (PCH)

Para Moscovici (2003)Moscovici, S. (2003). Representações sociais: investigações em psicologia social. Vozes., a representação social é um fenômeno social que busca tornar o desconhecido algo familiar. Além disso, decorre-se das relações de interação e comunicação entre o individual e o coletivo, ou seja, entre a diversidade e a unidade. Mediante o exposto, apesar da fala da participante buscar relacionar o termo “representação social” com papel social, os quais são distintos, mas sua fala se aproxima com os argumentos do autor, visto que considera a sociedade, isto é, o coletivo, como um dos fatores determinantes para a construção dessa representação social.

3.2 VIVêNCIAS DA PROFESSORA NO CONTEXTO HOSPITALAR E A RELAÇÃO COM A REPRESENTAÇÃO SOCIAL

A presente unidade temática tem como objetivo principal apresentar a percepção da docente sobre o emprego da representação social no ambiente hospitalar. Nesse sentido, a participante narra que inicialmente as crianças entram com uma imagem negativa sobre o hospital, principalmente por ser desconhecido, bem como por serem submetidas a procedimentos invasivos:

A criança, quando entra no hospital [...], já sabe que é um lugar desconhecido, que ela tem um medo terrível. [...] muitas vezes tem criança que não consegue tomar os remédios pela via oral [...]. Então, pede para fazer uma... uma parte intravenosa! Aí o que acontece? A dor! O medo! O pânico de ver aquela agulha entrando, sangue saindo! Então, a criança fica com muito medo! Depois que a enfermeira entra e faz esse processo de colocar o medicamento na veia, toda a pessoa que entra dentro do quarto representa a mesma coisa! Toda pessoa que vai entrar lá vai fazer alguma coisa que vai machucar ela! (PCH)

Entretanto, a profissional descreve que, com o passar do tempo, essa interpretação dos sujeitos em relação ao hospital é modificada, principalmente em decorrência do serviço humanizador legitimado como política pública no espaço. Desse modo, suas experiências se aproximam das observações apontadas por Fonseca (2015)Fonseca, E. S. (2015). Classe Hospitalar e atendimento escolar domiciliar: direito de crianças e adolescentes doentes. Revista Educação e Políticas em Debate, 4(1), 12-28. https://doi.org/10.14393/REPOD-v4n1a2015-31308
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, visto que o ambiente considera a integridade do desenvolvimento da criança, para além da sua condição clínica.

O Hospital Universitário, à primeira vista, é um lugar como te comentei, hostil, mas é só à primeira vista, logo as crianças percebem que é o lugar onde elas podem ficar seguras. [...] o Hospital Universitário tem essa parte da humanização muito boa [...]. Ele encara a criança não como um paciente, mas como um ser humano! (PCH)

Paralelamente a isso, o estudo de Teibel (2017)Teibel, E. N. H. (2017). Narrativa como mediadora de vivências infantis no contexto hospitalar: as representações sociais sobre o cuidado em uma enfermaria pediátrica, segundo equipe de saúde e as significações infantis [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Mato Grosso]. Repositório Digital da UFMT. https://ri.ufmt.br/handle/1/1884
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teve como finalidade identificar as representações sociais do cuidado em uma Enfermaria Pediátrica sob a óptica da equipe de saúde e das crianças hospitalizadas. Diante disso, a autora classificou os resultados em dois grandes grupos. O primeiro refere-se às significações relacionadas à Medicina Flexneriana, em que o sujeito se considera passivo ao cuidado, não tendo consciência sobre o seu processo de hospitalização. Por outro lado, há representações permeadas pelos princípios da Política Nacional de Humanização (PNH), que dizem respeito às narrativas que destacam as interações horizontais estabelecidas entre o profissional de saúde e os sujeitos hospitalizados. Nesse cenário, as relações são caracterizadas pelos diálogos que favorecem a expressão e o entendimento da criança sobre sua condição de saúde, bem como ações de encorajamento ao autocuidado e ao “fortalecimento da significação de si como alguém capaz e competente” (Teibel, 2017Teibel, E. N. H. (2017). Narrativa como mediadora de vivências infantis no contexto hospitalar: as representações sociais sobre o cuidado em uma enfermaria pediátrica, segundo equipe de saúde e as significações infantis [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Mato Grosso]. Repositório Digital da UFMT. https://ri.ufmt.br/handle/1/1884
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, p. 219). Portanto, as alegações apresentadas pela PCH da presente pesquisa estão de encontro com o segundo grupo investigado por Teibel (2017)Teibel, E. N. H. (2017). Narrativa como mediadora de vivências infantis no contexto hospitalar: as representações sociais sobre o cuidado em uma enfermaria pediátrica, segundo equipe de saúde e as significações infantis [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Mato Grosso]. Repositório Digital da UFMT. https://ri.ufmt.br/handle/1/1884
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.

Além disso, a docente expôs que muitas crianças advêm de condições socioeconômicas muito baixas. Assim, recebem, no hospital, serviços que nunca presenciaram em suas rotinas, como, por exemplo, uma alimentação equilibrada e um ambiente higienizado. Diante desse contexto, as crianças se sentem acolhidas, não querendo até mesmo ir embora. Dessa maneira, esses fatores contribuem com a reconstrução da representação social do hospital, pois passam a caracterizá-lo como uma imagem positiva.

Muitas vezes as crianças vêm de lares onde não são oferecidos esses tipos de serviços! Como, por exemplo, uma cama com lençol limpo, uma toalha limpa para tomar banho, uma pessoa que vai entrar todo dia duas vezes para limpar o quarto... então, são experiências também novas, mas que são agradáveis para ele! A alimentação também, uma alimentação que vem já com uma receita fornecida por um nutricionista, levando em conta as necessidades da criança, daquilo que pode comer e o que não pode. Então, tudo isso colabora para que a criança tenha um bom olhar do hospital! (PCH)

3.3 PLANEJAMENTO COLABORATIVO DO PLANO DE INTERVENÇÃO PEDAGóGICO

A construção do plano de intervenção pedagógica ocorreu de forma colaborativa; desse modo, recorreram-se às experiências da docente para a sua estruturação. Dessa maneira, no terceiro encontro, quando se apresentaram as pesquisas científicas relacionadas à temática, ela descreveu: “Eu acho que eles gostam muito de desenhar, sabe? Eles desenham muito lá!” (PCH). Mediante o exposto, elencou-se coletivamente a técnica do “Desenho-Estória” como recurso para identificar as representações sociais do hospital sob a óptica das crianças hospitalizadas antes e após a aplicação das práticas pedagógicas rotineiras da professora. Com base no estudo de Russo et al. (2009)Russo, R. C. T., Couto, T. H. A. M., & Vaisberg, T. M. J. A. (2009). O imaginário coletivo de estudantes de educação física sobre pessoas com deficiência. Psicologia & Sociedade, 21(2), 250-255. https://doi.org/10.1590/S0102-71822009000200012
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, essa técnica “consiste na solicitação de um desenho especificado em termos temáticos e na escrita de uma história sobre a figura desenhada. O recurso apresentado também traz aos sujeitos pesquisados e ao pesquisador uma situação favorável de expressão emocional” (p. 251).

Ademais, a docente concordou com a proposta de serem crianças hospitalizadas por no mínimo dois dias, como se observa no seguinte excerto: “Eu acho que dois, três dias é o ideal, porque leva um tempo para compreender a rotina. Assim, a criança pode ter uma noção do que se trata o ambiente hospitalar e fazer essa representação no papel!” (PCH).

Vale salientar que a seleção das práticas pedagógicas foi de responsabilidade apenas da docente, pois as pesquisadoras não interviram nessa etapa do plano de intervenção, visto que o intuito era de fato averiguar se suas práticas influenciam na representação social do hospital para as crianças hospitalizadas. Também, em decorrência da pandemia da covid-19, a profissional foi a única que pode ter acesso aos participantes diretamente. Nesse cenário, a docente narrou que, para elaborar as atividades que compõem sua prática pedagógica, ela realizava uma sondagem e dialogava previamente com os sujeitos sobre suas experiências no ambiente escolar:

Pergunto se ele tem amigos na escola, qual o menino mais bagunceiro da sala, o que ele acha da professora, se a professora é legal... Coisas assim... coisas da vida... do mundo dele... que ele gosta de contar... qual a matéria mais difícil, qual ele mais gosta... (PCH)

3.4 RESULTADOS DA APLICAÇÃO DO PLANO DE INTERVENÇÃO PEDAGóGICO

Por meio de um encontro no Google Meet, a docente apresentou os resultados do plano de intervenção pedagógica, que dizem respeito aos desenhos das crianças antes e após o desenvolvimento de suas práticas pedagógicas rotineiras. Nesse sentido, a PCH e as duas pesquisadoras (P1 e P2) buscaram interpretar essas produções com base nas narrativas construídas pelas próprias crianças, as quais foram apresentadas pela profissional. A Figura 1 traz a maneira como C1 representou inicialmente o hospital.

Figura 1
Representação social do hospital antes das práticas pedagógicas para C1

Mediante essa produção, a P1 aborda o fato da participante se desenhar bem pequena no canto da cama. Em concordância com essa análise, a professora descreve que a criança vê o hospital como um lugar grande, no qual se sente sozinha, “embora a mãe está do lado, a mãe não está fazendo parte do que ela está vivenciando!” (PCH). Ademais, coloca que a estudante não gostava do hospital, visto que ela se desenha

na cama, com soro... ela coloca todas as coisas que fazem parte do quarto. Ela desenha a mãe também do lado acompanhando... o álcool em gel que tem no quarto [...]. O bracinho dela que foi colocado... aquele... aquele acesso para colocar o soro, o remédio, o antibiótico, porque tem muita criança não consegue por via oral! Tudo indica que era um lugar que ela não gostava! (PCH)

Posteriormente, a professora realizou uma sondagem com a participante, constatando que havia algumas dificuldades em leitura e interpretação de texto. Nesse sentido, elaborou e aplicou práticas pedagógicas por meio da utilização de livros de literatura infantil. Em seguida, um novo desenho foi solicitado para a criança, obtendo-se o resultado da Figura 2.

Figura 2
Representação social do hospital após as práticas pedagógicas para C1

P1 considera que o balão em formato do coração representa o próprio soro, atribuindo, assim, uma perspectiva positiva em relação a esse procedimento. Ademais, observa-se que a criança não se sente mais sozinha, visto que se coloca com a mãe e a professora.

o balão com esse coração representa inclusive o sorinho que ela está tomando! Mesmo ela estando num procedimento médico com a punção venosa, ela tem uma representação mais positiva, esse coração representando a vida! E agora com a mão entrelaçada com a mãe e com você! (P1)

Mediante o exposto, fica evidente, nos desenhos, a mudança de paradigma sobre o processo de hospitalização da criança, visto que, de um lugar solitário, modificou-se para um ambiente de apoio aos desafios vivenciados. Desse modo, é possível realizar uma convergência com o estudo de Santos (2018)Santos, L. F. (2018). Representação social da criança com câncer sobre o processo de adoecimento e tratamento [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pernambuco]. Repositório Digital da UFPE. https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/33088
https://repositorio.ufpe.br/handle/12345...
, o qual argumenta que “a forma que a criança representa a doença é influenciada pela maneira que a equipe de saúde, pessoas do convívio social e familiares são capazes de informá-la” (p. 63).

A segunda participante foi hospitalizada com crises fortes de asma e teve a representação social do hospital antes da aplicação das práticas pedagógicas da Figura 3.

Figura 3
Representação social do hospital antes das práticas pedagógicas para C2

Chama atenção, nesse desenho, a representação da cruz vermelha, mas não há esse objeto no quarto. Ademais, a professora disserta que a criança se desenhou deitada na cama com a mãe do lado falando no telefone, e a enfermeira entrando no leito. Nesse contexto, a professora narra que “o rosto dela é um rosto de dor, de medo, apavorada, visto que nunca tinha sido hospitalizada! A mãe também estava muito apreensiva, porque ela não sabia da gravidade da doença!” (PCH).

As práticas pedagógicas para essa participante também se pautaram em leitura e interpretação de texto. Além disso, a docente desenvolveu um jogo da memória com a criança e a sua acompanhante com a finalidade de criar um ambiente interativo e socializador. Nesse sentido, obteve-se um novo resultado sobre a representação social do hospital (Figura 4).

Figura 4
Representação social do hospital após as práticas pedagógicas para C2

Desse modo, P1 aponta que, apesar da criança não se desenhar, ela coloca elementos vivos, como, por exemplo, as árvores e as nuvens. Ademais, a participante utiliza diferentes cores na sua nova produção, pois, anteriormente, apenas a cruz foi pintada. Para a professora, a criança modificou sua representação social em relação ao ambiente, atribuindo-o significados positivos, pois o desenho da casa é colocado como o próprio hospital. Assim, ela descreve: “parece que ela aceitou o hospital e ela podia ter confiança no hospital, tanto que ela relacionou o hospital como se fosse parecido com a casa dela, porque ela desenhou o hospital, mas muito parecido com a casa dela” (PCH).

Ao longo da intervenção pedagógica, a professora desempenhou papel ativo na apreensão da história do estudante, acolhendo suas dificuldades e compreendendo suas inquietações em relação ao ambiente hospitalar. Essa ação educativa é conceituada por Ceccim e Carvalho (1997)Ceccim, R. B., & Carvalho, P. R. A. (1997). Criança hospitalizada: atenção integral como escuta à vida. Editora da UFGRS. como escuta pedagógica, pois,

enquanto a audição se refere à apreensão/compreensão de vozes e sons audíveis, a escuta se refere à apreensão/compreensão de expectativas e sentidos, ouvindo através das palavras as lacunas do que é dito e os silêncios, ouvindo expressões e gestos, condutas e posturas. (p. 31)

A última criança também foi hospitalizada com asma e nunca havia tido uma experiência de longa permanência no ambiente hospitalar. Ademais, a PCH apontou que a equipe de enfermagem e médica havia solicitado sua ajuda para com esse estudante, visto que se encontrava apavorado, correndo e gritando pelos corredores que iriam lhe matar. A Figura 5 mostra como C3 representou inicialmente o hospital.

Figura 5
Representação social do hospital antes das práticas pedagógicas para C3

Mediante essa produção, a professora discorre que o estudante possui uma representação social totalmente negativa do hospital, visto que se coloca fora da cama e com a expressão de assustado. Nesse sentido, ela argumenta: “ele coloca a palavra medo duas vezes! Medo em cima da cama, medo! Ele desenha a cama também como um lugar que ele não quer estar, por isso ele se desenha longe da cama!” (PCH). Em convergência com essa análise, P1 destaca o fato de se ter representado com os olhos grandes e com a mão na boca, como se estivesse espantado, querendo fugir.

As práticas pedagógicas para esse participante tiveram como referência as quatro operações matemáticas, bem como o jogo do banco imobiliário. Após esse momento, a criança realizou um novo desenho sobre o hospital, obtendo-se a exposição da Figura 6 a seguir.

Figura 6
Representação social do hospital após as práticas pedagógicas para C3

Nota-se que o participante expressou seu sentimento por meio da escrita das próprias palavras. Desse modo, no primeiro momento, é destacado o vocábulo “medo”, entretanto, após o desenvolvimento das práticas pedagógicas da PCH, a criança apresenta uma nova palavra: “feliz”. Assim, a professora destaca:

Ele se desenha com um rosto feliz, o irmãozinho que é autista e o pai dele, os três sentados! [...] isso representa a cama do hospital! Me dá a impressão de que, embora ele estivesse lá, ele se sentia mais tranquilo, mais confortável! E ele desenhou o irmãozinho, porque acredito que ele estava com saudade do irmão! Então, ele já estava se sentindo melhor, estava pensando melhor e já não estava mais histérico! (PCH)

Para P1, o fato de desenhar o irmão significa que o participante quer se recuperar logo para retornar a sua rotina fora do ambiente hospitalar; assim sendo, é necessário seguir todas as indicações médicas, em vez de resistir a elas. Mediante o exposto, nota-se uma mudança de comportamento da criança em relação ao seu processo de hospitalização. Em outras palavras, é possível observar a influência das práticas pedagógicas na reconstrução da representação social do hospital, quando negativa para o participante. Nesse sentido, Moscovici (2003)Moscovici, S. (2003). Representações sociais: investigações em psicologia social. Vozes. afirma que

o que é importante é a natureza da mudança, através da qual as representações sociais se tornam capazes de influenciar o comportamento do indivíduo participante de uma coletividade [...] pois é dessa maneira que o próprio processo coletivo penetra, como o fator determinante, dentro do pensamento individual. (p. 40)

3.5 AVALIAÇÃO DO PLANEJAMENTO COLABORATIVO DO PLANO DE INTERVENÇÃO PEDAGóGICO

A última unidade temática agrupou os depoimentos de avalição da docente em relação ao planejamento colaborativo do plano de intervenção pedagógica. Dessa maneira, a profissional destaca que esta pesquisa possibilitou a troca de informações com as pesquisadoras bem como ampliou seus conhecimentos sobre a técnica do “Desenho-Estória”. Ela descreveu:

Eu nunca tinha feito esse desenho antes da minha prática pedagógica e depois. Então, para mim, foi um aprendizado enorme, porque eu consegui visualizar o estado emocional real da criança através da representação gráfica dele! E eu nunca tinha pensado nisso! (PCH)

Ademais, por meio do planejamento colaborativo, a professora passou a reconhecer a influência positiva de suas práticas pedagógicas na representação social do hospital para as crianças hospitalizadas, visto que elas se sentem seguras e familiarizadas com essas atividades. Nesse sentido, a docente destaca que o planejamento colaborativo

é mais uma constatação da importância do papel do pedagogo hospitalar, porque, além de ajudar no reforço escolar, acalma a criança que se encontra apavorada, acalma essa tensão e relaxa! E no momento que ela relaxa, ela aceita o médico, aceita o remédio e sabe que ela logo vai sair, que ela já vai embora, que ela precisa estar pelo seu próprio bem e que as coisas também podem ser boas dentro do hospital, que não há por que ter esse medo! (PCH)

Paralelamente a isso, o estudo de Lucon (2010)Lucon, C. B. (2010). Representações sociais de adolescentes em tratamento do câncer sobre a prática pedagógica do professor de classe hospitalar [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia]. Repositório da UFBA. https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/11786
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evidencia que as práticas pedagógicas dos professores de Classe Hospitalares minimizam o estresse do tratamento e contribuem para sua recuperação, visto que esse profissional é interpretado pelas crianças como uma figura de apoio e confiança, bem como o serviço oferecido por ele é representado como um espaço de vida, em que as crianças podem esquecer os momentos ruins e se divertir.

4 CONCLUSÕES

A presente pesquisa teve como referência a seguinte indagação: Como as práticas pedagógicas desenvolvidas por uma professora de Classe Hospitalar podem influenciar na construção e reconstrução da representação social do hospital sob a óptica das crianças hospitalizadas? Nesse sentido, por meio de um planejamento colaborativo entre duas pesquisadoras e uma professora de Classe Hospitalar, foi construído um plano de intervenção pedagógico para identificar essas representações sociais antes e após a aplicação das rotineiras práticas pedagógicas desenvolvidas pela docente. Para tanto, adotou-se a técnica do “Desenho-Estória” para a coleta de dados.

Mediante o exposto dos resultados apresentados, o objetivo principal foi contemplado e a pergunta de pesquisa respondida. Diante disso, constatou-se que as três crianças possuíam inicialmente representações sociais negativas do hospital, visto que se desenharam deitadas na cama ou querendo fugir do quarto, com expressões faciais de medo e apavoradas. Entretanto, após a implementação das práticas pedagógicas rotineiras da PCH, os participantes modificaram suas representações sociais do espaço, assim como evidenciado por Moscovici (2003)Moscovici, S. (2003). Representações sociais: investigações em psicologia social. Vozes., o qual afirma o impacto da ação coletiva na mudança do comportamento individual do sujeito.

Ademais, é notória a influência das práticas pedagógicas na reconstrução das representações sociais do hospital sob a óptica das crianças, quando negativas, pois passaram a desenhar o espaço com cores vivas, bem como utilizaram expressões faciais de alegria e felicidade para expressar seus sentimentos. Em convergência com o estudo de Lucon (2010)Lucon, C. B. (2010). Representações sociais de adolescentes em tratamento do câncer sobre a prática pedagógica do professor de classe hospitalar [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia]. Repositório da UFBA. https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/11786
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, a presente pesquisa reafirma que as práticas pedagógicas auxiliam na recuperação da saúde e minimizam o estresse do tratamento.

Dessarte, esta investigação foi fundamental para expor a importância do professor no ambiente hospitalar, demonstrando que seu impacto ultrapassa as questões relacionadas à escolarização propriamente dita, visto que destaca a sua influência na mudança do comportamento da criança em relação ao processo de hospitalização. Além disso, o estudo evidenciou que o planejamento colaborativo foi de extrema importância para a construção de práticas pedagógicas inovadoras no contexto de uma Classe Hospitalar com a inserção da técnica “Desenho-Estória”.

  • 3
    Termo utilizado por Trinca (2003)Trinca, A. M. T. (2003). A intervenção terapêutica breve e a pré-cirúrgica infantil. Vetor..
  • 4
    Nossos agradecimentos ao Hospital Universitário de Universidade Federal de São Carlos-SP (HU-UFSCar), Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2023
  • Revisado
    19 Jun 2023
  • Aceito
    28 Jun 2023
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