Acessibilidade / Reportar erro

Possibilidades da Tutoria de Pares para Estudantes com Deficiência Visual no Ensino Técnico e Superior

Possibilities of Peer Tutoring for Students with Visual Impairment in Technical and Higher Education

Resumos

a inclusão escolar pode trazer benefícios incontestáveis para o desenvolvimento da pessoa com deficiência, desde que sejam realizadas adequações e adaptações na dinâmica escolar e nas propostas pedagógicas a fim de atender as necessidades educacionais dos mesmos. Estudos sobre teorias e práticas que contribuam para uma educação inclusiva e de maior qualidade passaram a ser o desafio dos pesquisadores e profissionais da área. Desse modo, esse estudo objetivou analisar e descrever a percepção de estudantes com deficiência visual e sem deficiência (tutores) sobre a atividade de tutoria de pares. A pesquisa ocorreu em um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do interior do Nordeste Brasileiro. Participaram do estudo sete estudantes com deficiência visual na condição de tutorados, seis na função de tutores e a coordenadora responsável pelas tutorias. Para a coleta de dados foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada, versões para tutor, tutorado e coordenação. Os dados foram analisados por meio da categorização temática da análise de conteúdo com a utilização do software Atlas-Ti. Os resultados mostraram que as díades tutor-tutorado, na condição de colegas de mesma classe, apresentaram um maior grau de satisfação com relação à tutoria, tanto na visão dos tutorados, quanto na concepção dos próprios tutores. Concluiu-se, de acordo com os resultados, que a tutoria de pares se configura como uma estratégia promissora para dar apoio a inclusão de estudantes com deficiência visual no ensino técnico e superior.

Educação Especial; Ensino por Tutoria; Deficiência Visual; Ensino Técnico; Ensino Superior


School inclusion can bring indisputable benefits for the development of people with disability, provided that adjustments and adaptations are conducted in the school dynamics and pedagogical proposals to meet their educational needs. Researchers and practitioners in the field are facing the challenge of studying theories and practices that contribute to inclusive education and that aim to improve the quality of such education. Thus, this study aimed to analyze and describe the perception of students with visual disabilities and without disabilities (tutors) regarding the activities carried out as mentoring pairs. The study took place in a Federal Institute of Education, Science and Technology in the interior of Northeastern Brazil. Participants were seven students with visual impairments who were to be tutored, six in the role of tutors and the supervisor responsible for tutoring. For data collection, a semi-structured interview was used, with versions for the persons being tutored, the tutors and the supervisor. Data were analyzed using thematic categorization of content analysis using the software Atlas-Ti. The results showed that the tutor - tutored dyads who were classmates presented the highest degree of satisfaction regarding the mentoring relationship, both in view of those being tutored and those doing the tutoring. According to the results, we concluded that peer tutoring pairs can be a promising strategy for providing support for including students with visual impairments in technical and higher education.

Special Education; Teaching byTutors; Visual Impairment; Technical Education; HigherEducation


1 Introdução

A partir da década de 1990, por meio da Declaração Mundial de Educação para todos (1990) e da Declaração de Salamanca (1994), a inclusão escolar de estudantes com deficiência3 3 Este trabalho optou por utilizar a terminologia "estudantes com deficiência", considerando-se que o foco desse estudo incide sobre uma deficiência sensorial específica. Contudo, vale ressaltar que, quando se trata de inclusão do público alvo da Educação Especial, sabe-se que a população alvo engloba pessoas com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades, de acordo com a definição da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva do ano de 2008 (BRASIL, 2008). e de outros grupos marginalizados no ensino regular passou a ser destaque no meio internacional, inclusive no Brasil. A partir de então, estudos sobre teorias e práticas que contribuam para uma educação inclusiva e de maior qualidade passaram a ser o desafio dos pesquisadores e profissionais da área.

Alguns autores (KARAGIANNIS; STAINBACK; STAINBACK, 1999KARAGIANNIS, A.; STAINBACK, S. B; STAINBACK, W. C. Fundamentos do ensino inclusivo. In: STAINBACK, S. B.; STAINBACK, W. C. (Org.). Inclusão: um guia para educadores. Trad. M. F. Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1999.; SILVEIRA; NEVES, 2006SILVEIRA, F. F.; NEVES, M. M. B. J. Inclusão escolar de crianças com deficiência múltipla: concepções de pais e professores. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, DF, v.22, n.1, 2006.) apontam que a inclusão escolar pode trazer benefícios incontestáveis para o desenvolvimento da pessoa com deficiência, desde que a escola regular se disponha a realizar um processo de ampla reestruturação. Nessa perspectiva, são necessárias adequações e adaptações na dinâmica escolar e nas propostas pedagógicas a fim de atender à diversidade das necessidades educacionais dos alunos sem discriminação (CARVALHO, 2008CARVALHO, R. E. Escola inclusiva: a reorganização do trabalho pedagógico. Porto Alegre: Editora Mediação, 2008.; MENDES, 2006MENDES, E. G. A radicalização debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.11, n.33, p.387-405, 2006.).

O modelo do coensino, o da consultoria colaborativa de profissionais especializados aos professores das classes comuns, a tutoria de pares aos estudantes com deficiência, dentre outros (MENDES; MALHEIRO, 2012, p. 361) são formas de adequações pedagógicas que têm sido realizadas. Esse estudo procurou se aprofundar sobre uma dessas alternativas, a tutoria de pares (PeerTutoring), considerada uma estratégia promissora da inclusão social e escolar de alunos com deficiência, no campo da mediação pedagógica.

Um estudo sobre o histórico do uso da tutoria realizado por Enright e Axelrod (1995)ENRIGHT, S.M.; AXELROD, S. Peer-tutoring: applied behavior analysis working in the classroom school. Psychology Quarterly, Washington, v.10, n.1, p.29-40, 1995. destacou que a tutoria não é algo novo. Aristóteles a utilizava para educar seus discípulos, os romanos a empregavam no ensino da leitura e da escrita, nos períodos Renascentista e da Reforma e, ainda, os jesuítas a usavam como uma maneira econômica de educar os meninos. Mais recentemente, os autores destacam que, nas décadas de 1960 e de 1970, a investigação sobre as várias formas de tutoria entre pares proliferou-se, muitas vezes, com foco em atividades de recuperação para os alunos atrasados ​​e com deficiência.

Conceitualmente, a tutoria de pares, em geral, pode ser pensada como um sistema de ensino em que os alunos ajudam-se mutuamente no processo de aprendizagem dos conteúdos acadêmicos (GOODLAD; HIRST, 1989GOODLAD, S., HIRST, B. Peer tutoring: a guide to learning by teaching. London: Kogan Page, 1989.). Bowman-Perrott et al. (2013)BOWMAN-PERROTT, L. et al. Academic bennefits of peer tutoring: a meta-analytic review of single-case reserarch. School Psychology Review, Bethesda, v.42, p.39-55, 2013. acrescentam que, na tutoria entre pares, os alunos auxiliam uns aos outros a aprender o conteúdo por meio da repetição de conceitos-chave. A tutoria de pares pode, ainda, ser definida como uma série de práticas e estratégias que colocam os pares executando o papel de 'professores' em uma relação do tipo face-a-face, para fornecer particularmente a instrução, a prática, a repetição e o esclarecimento dos conceitos (UTLEY; MORTWEET; GREENWOOD, 1997UTLEY, C. A.; MORTWEET, S. L.; GREENWOOD, C. R. Peer-mediated instruction and interventions. Focus on Exceptional Children, North Carolina, v.29, p.1-23, 1997.).

Colegas da mesma idade ou de idades diferentes podem estabelecer vínculos de aprendizagem dentro de uma mesma turma, entre turmas diferentes ou em toda a escola, sendo que pessoas com idades e habilidades distintas, podem aprender a função de tutores. Entre as vantagens do trabalho de tutoria entre pares, os alunos tutores podem ampliar o engajamento em atividades acadêmicas e melhorar as suas realizações em muitas áreas por meio de programas de tutoria de colegas (ENRIGHT; AXELROD, 1995). Somando-se a isso, Fulk e King (2001)FULK, B. M.; KING, K. Classwide peer tutoring at work. Teaching Exceptional Children, Florida, v.34, n.2, p.49-53, 2001. destacam que o papel desempenhado pelo tutor parece ser particularmente benéfico para melhorar a autoestima de alunos com baixo desempenho (social/acadêmico), além de a mesma apresentar baixo custo e ser de fácil utilização.

Portanto, é possível pensar em estratégias de aprendizagem utilizando a tutoria de pares para favorecer o desenvolvimento acadêmico e social de alunos com deficiência de modo geral e, no caso da deficiência visual, é interessante verificar em quais condições essa parceria pode beneficiar a ambos (tutor e tutorado). Alunos com deficiência visual apresentam características muito peculiares de aprendizagem, manifestando dificuldades para acompanhar as atividades acadêmicas na classe comum, especialmente na ausência de materiais adaptados e pela falta e/ou dificuldade de acesso aos estímulos visuais utilizados pelos professores ao ensinar os conteúdos do currículo (BRASIL, 2006BRASIL. MEC/SEESP. Saberes e práticas da inclusão: desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos cegos e de alunos com baixa visão. 2.ed. Brasília, DF: MEC, 2006.).

A deficiência visual apresenta uma pluralidade conceitual, mas, de modo geral, pode-se afirmar que é uma deficiência sensorial que consiste basicamente na perda total - cegueira ou parcial - baixa visão do sentido da visão (COSTA et al., 2009COSTA, C. S. L. et. al. Análise do conceito de deficiência visual: considerações para a prática de professores. In: COSTA, M. P. R. (Org.). Educação especial: aspectos conceituais e emergentes. São Carlos: EDUFSCar, 2009. p.47-62.).

Apesar de não ser o foco deste estudo aprofundar acerca das divergências na conceituação de cegueira e baixa visão, Costa et al. (2009), em um estudo de revisão, identificaram que, via de regra, os autores se utilizam basicamente de duas escalas oftalmológicas para definir tais conceitos, sendo a de acuidade e de campo visual. Adicionalmente, apontaram para a existência de diferentes definições dentro de três classificações principais, a saber: a classificação legal, a clínica e a educacional. A título de exemplo, na classificação educacional norte americana, define-se a cegueira como a completa perda do sentido da visão, e a necessidade de uso do Sistema Braille para a aprendizagem da leitura e da escrita. Quanto à baixa visão, é caracterizada como o nível de visão que, com a melhor correção, impede um indivíduo no planejamento ou execução de uma tarefa, mas que permite o uso e possibilita a melhoria da visão funcional por meio da utilização de recursos ópticos ou não ópticos, de modificações ambientais e técnicas (HALLAHAN; KAUFFMAN, 2009HALLAHAN, D. P; KAUFFMAN, J. M. Exceptional learners: an introduction to special education. New Jersey: Pearson education, 2009.; SMITH; TYLLER, 2010SMITH, D. D.; TYLER, N. C. Introduction to special education: making a difference.7.ed. New Jersey Columbus/Ohio: Merril, 2010.).

Apesar das divergências quanto às definições sobre deficiência visual, é fato a limitação de recebimento de informações via sentido da visão em pessoas que a possuem, contudo as consequências para o desenvolvimento e aprendizado das pessoas com deficiência visual dependem em grande parte do tipo de estimulação que recebem de seu entorno (CUNHA; ENUMO, 2003CUNHA, A. C. B; ENUMO, S. R. F. Desenvolvimento da criança com deficiência visual (DV) e interação mãe-criança: algumas considerações. Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, v.4, n.1, p.33-46, 2003.).

Considerando-se que a tutoria entre pares pode ser uma ferramenta eficaz com a rica função de estimulação do entorno e pode colaborar com o desempenho acadêmico e social de estudantes com deficiência visual, foi feita uma busca para identificar trabalhos nacionais que abordassem a temática da tutoria para estudantes com deficiência visual. A pesquisa foi feita nas bases do Scielo, periódicos Capes e ScholarGoogle, utilizando-se as seguintes palavras-chave: "tutoria de pares", "tutoria de colegas" e "colega tutor"; estas palavras foram cruzadas com as palavras deficiência visual e com a palavra deficiência. No Brasil, o tema da tutoria de pares para estudantes com deficiência, de modo geral, ainda é pouco estudado, apresentando baixo índice de publicações, dentre as quais destacam-se os estudos de Santos e Mendes (2008)SANTOS, T.; MENDES, E. G. O efeito da tutoria de colegas sobre o desempenho de alunos com deficiência em classes inclusivas. Revista Educação Especial, Santa Maria, n.32, p.211-224, 2008. sobre tutoria para alunos com deficiência intelectual e os de Raposo (2006)RAPOSO, P. N. O impacto do sistema de apoio da Universidade de Brasília na aprendizagem de universitários com deficiência visual. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2006. e Orlando (2010)ORLANDO, D. P. O colega tutor de alunos com deficiência visual nas aulas de Educação Física. 2010. 85f. Dissertação (Mestrado em Educação Especial) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2010. que tratam especificamente da tutoria de pares para alunos com deficiência visual. Considerando o foco do presente estudo, serão descritos apenas as pesquisas cuja temática da tutoria se associa à deficiência visual.

No intuito de compreender o impacto do sistema de apoio da Universidade de Brasília (UNB) na aprendizagem de universitários com deficiência visual, Raposo (2006) realizou um estudo de caso, utilizando como procedimentos para a coleta dedados: entrevista, técnicas de completar frases, redação, observação e análise documental. Participaram da pesquisa três alunos com deficiência visual, seis alunos tutores e sete professores dos cursos de Pedagogia e de Ciências Contábeis. Os resultados apontaram que a disponibilização dos recursos técnicos e tecnológicos proporcionou a acessibilidade dos universitários com deficiência visual à informação. Destacou-se a importância do papel instrumental do aluno / tutor nas diferentes ações de apoio desenvolvidas, dentro e fora da sala de aula.

Com o objetivo de verificar junto a um grupo de alunos do ensino comum, como desempenhariam a função de colega tutor de alunos com deficiência, matriculados no ensino regular, Orlando (2010) realizou um estudo com cinco alunos da 7ª série do ensino fundamental, da rede pública, sem deficiência, na qualidade de tutores, e duas alunas com deficiência visual, também da 7ª série e um professor de Educação Física da rede estadual de ensino. Os dados analisados apontaram que houve uma aplicação por parte dos colegas tutores das instruções oferecidas no Treinamento para Colegas Tutores e isso propiciou uma melhora na participação das alunas com deficiência visual nas aulas de Educação Física.

Considerando-se a escassez de estudos nacionais sobre a temática da tutoria entre pares de estudantes com e sem deficiência e as contribuições que a tutoria de pares pode propiciar ao processo de inclusão social e escolar de estudantes com deficiência, inseridos no ensino regular, algumas questões nortearam a realização desse estudo: quais as características da prática de tutoria de pares videntes e tutorados com deficiência visual em um instituto federal de ensino técnico e superior? Quais as diferenças entre a tutoria de pares de estudantes (colegas) de mesma classe e estudantes de outro curso? Quais as diferenças quanto à tutoria na visão de tutores e tutorados?

Procurando responder tais questões, o presente estudo teve como objetivo analisar e descrever a percepção de estudantes com deficiência visual (tutorados) e sem deficiência (tutores) sobre a atividade de tutoria. Vale destacar que a pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos, processo número CAEE: 20841113.2.0000.5504.

2 Método

2.1 Participantes

Participaram do estudo sete estudantes com deficiência visual (tutorados) e seis sem deficiência, denominados tutores. O Quadro 1apresenta um detalhamento das características dos participantes. Os dados foram obtidos por meio de informações disponibilizadas no site institucional do Instituto Federal no qual se realizou a coleta de dados. Foram utilizados nomes fictícios, sendo que os iniciados com a letra "C" representam estudantes cegos, os iniciados com a letra "B" são alunos com baixa visão, e todos os outros iniciados com a letra "T" são estudantes sem deficiência na função de tutores.

Quadro 1
- Características dos estudantes participantes (tutorados e tutores). Fonte: elaboração própria. Legenda: ADS - Análise e Desenvolvimento de Sistemas; Informática - Técnico em Informática integrado ao Ensino Médio; Agroindústria - Tecnólogo em Agroindústria; Agronomia - Bacharelado em Agronomia; Química - Licenciatura em Química.

Os tutorados apresentaram uma idade média de 30,8 anos (DP= 8,98), enquanto os tutores de 25,1 anos (idade média - DP = 3,38). Entre os tutorados, três possuíam cegueira e quatro baixa visão. Com relação aos cursos, três alunos com deficiência visual cursavam o Técnico em informática integrado ao Ensino Médio (César, Bernardo e Camila) e os outros alunos estavam matriculados em cursos diferentes, sendo do total, cinco alunos inscritos em cursos técnicos e apenas dois alunos em curso de nível superior. Com relação aos tutores, um deles tutorava dois alunos com deficiência visual (Túlio) e três eram colegas de classe dos alunos com deficiência visual (Tiago, Tamires e Tomás).

2.2 Local

A pesquisa ocorreu em um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, em suas dependências, focado principalmente no Núcleo de Atendimento a Pessoas com Necessidades Específicas (Napne). Os Napnes são, em sua maioria, espaços físicos sob uma coordenação, que dão apoio aos estudantes público alvo da educação especial.

O Instituto Federal em destaque, localizado em uma cidade de aproximadamente 80 mil habitantes do interior do nordeste brasileiro, tem trabalhado há cinco anos com a estratégia de tutoria de pares. No primeiro ano, existia uma escolha voluntária para "tutor", mas com o aumento do número de estudantes com deficiência, nem sempre essa demanda era voluntariamente suprida. Constatou-se, então, a necessidade de induzir essa função com a oferta de bolsa (valor pago em dinheiro) para que os estudantes na função de tutor tivessem um incentivo material para a realização da atividade de tutoria.

Desde o ano de 2009, há uma seleção para tutores que é realizada por meio do lançamento de um edital, que estabelece o recebimento de uma bolsa para realizar atividades de tutoria a estudantes com deficiência. A carga horária de atividades é de 10 horas semanais e a vigência da bolsa é de um ano.

2.3 Materiais e instrumentos

Foram utilizados como materiais canetas, gravador em áudio formato mp3, folhas de papel sulfite A4 e computador com software específico. O instrumento utilizado foi um Roteiro de entrevista semiestruturado sobre a tutoria de pares para estudantes com deficiência visual, que contém três versões: 1) versão tutor, contendo 16 questões; versão tutorado, com 13 questões; e versão coordenação, contendo nove questões. Essas questões foram desenvolvidas pelo pesquisador, baseando-se na literatura da área (ENRIGHT; AXELROD, 1995; ORLANDO, 2010; SANTOS; MENDES, 2008). As questões envolviam temáticas como a caracterização e função da tutoria, formação inicial e continuada para a realização das atividades de tutoria, influência da tutoria no desempenho acadêmico dos tutorados, avaliação das atividades de tutoria, principais desafios, dentre outros.

2.4 Procedimento de Coleta de Dados

Inicialmente, foi realizado o contato com a Direção do Instituto Federal, no qual foi explicada a proposta de estudo, os aspectos éticos envolvidos e solicitada a autorização para pesquisa, que foi concedida por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido Institucional (TCLE). Posteriormente, foi realizado um contato com a coordenadora do setor responsável (Napne) em auxiliar os alunos com deficiência e com os estudantes que atuavam como tutores e tutorados. A forma de participação e os objetivos da pesquisa foram explicados individualmente. Após o aceite dos participantes, foi solicitada a autorização formal de participação por meio da leitura e assinatura do TCLE. Para a realização das entrevistas, foram agendados horários conforme a disponibilidade dos participantes.

As entrevistas foram realizadas em uma sala reservada do Instituto, tendo uma duração média de 30 minutos, tanto para os tutores quanto para os tutorados e coordenação. As entrevistas foram gravadas em áudio, com a permissão dos participantes.

2.3 Análise de dados

Este trabalho optou como análise de dados a categorização temática da análise de conteúdo proposta nos estudos de Franco (2012)FRANCO, M. L. P. B. Análise de Conteúdo. Brasília, DF: Liber Livro, 2012.. Para melhor organizar os dados, de maneira a gerar comparações e caminhar a uma interpretação mais clara e ampliada, os recentes programas computadorizados têm sido utilizados como auxílio para uma eficiente análise de conteúdo (FRANCO, 2012).

Por esta razão, este trabalho utilizou um software específico para a análise de conteúdo, denominado de Atlas.Ti, que segundo Queiroz e Cavalcante (2011)QUEIROZ, T. L. A.; CAVALCANTE, P. S. As contribuições do software atlas ti para a análise de relatos de experiência escritos. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - EDUCERE, 10., Curitiba, 2011. Anais... Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2011.:

[...] permite a descoberta de fenômenos complexos, os quais, possivelmente, não seriam detectáveis na simples leitura do texto, principalmente, em relação à técnica tradicional de tratamento dos dados manualmente, porque é possível integrar as unidades hermenêuticas (projetos primários) entre si.

Foram elaborados dois mapas conceituais (networks), sendo um relativo às concepções dos tutorados acerca da tutoria e outro à visão dos tutores. Para melhor compreensão dos mapas conceituais, é importante frisar que são apresentados em famílias (supercategorias) e categorias no entorno destas. Ao final do nome de cada uma delas é apresentado entre parênteses dois números, o primeiro representa a sua frequência e o segundo indica a quantidade de conexões (relações) com outras famílias ou categorias. Além das categorias identificadas com suas frequências, são apresentadas também trechos ilustrativos e seus autores, que podem ser identificados pelos símbolos indicativos, conforme o Quadro 2.

Quadro 2
- Símbolos para leitura dos mapas conceituais. Fonte: elaboração própria.

As categorias possuem ainda relacionamentos entre si, que podem ser do tipo "é parte de", que indica ser uma subcategoria. Para os outros tipos de relação, o significado é subtendido pelo nome da categoria: "está associada com", "influencia diretamente na", "contribui para" e "é diferente de".

3 Resultados e discussão

Os resultados foram organizados da seguinte forma: a) A visão dos tutores acerca da tutoria (Mapa Conceitual - Figura 1); b) A visão dos tutorados acerca da tutoria (Mapa Conceitual - Figura 2); c) Considerações entre a visão dos tutores e a dos tutorados, articulando-as com os dados apresentados pela coordenação.

Figura 1
- Mapa Conceitual sobre a visão do tutor acerca de alguns aspectos da atividade de tutoria. Fonte: elaboração própria.

Figura 2
- Mapa Conceitual sobre a visão do tutorado acerca de alguns aspectos da atividade de tutoria. Fonte: elaboração própria.

a) A visão dos tutores acerca da tutoria

Os dados apresentados e descritos a seguir podem ser verificados pelo Mapa Conceitual da figura 1 que traz a visão dos tutores acerca de alguns aspectos da atividade de tutoria.

A respeito da formação inicial e continuada para a atividade de tutoria, os tutores destacam que receberam uma formação por meio da leitura de textos, participação em palestras e minicursos. Todos (n=6) alegaram, ainda, que, quando têm dúvidas, procuram a coordenação do Napne. Observa-se, também, em termos de formação inicial e continuada, a troca de práticas entre tutores mais experientes e novatos (n=4). Porém, a maioria dos tutores (n=4) acredita que ainda necessita de mais formação específica para lidar melhor com as atividades de tutoria.

De acordo com a figura 1, a categoria sobre a formação associa-se às concepções dos tutores acerca de seu papel, como por exemplo o fato de um terço dos participantes (n=2) acreditar que a função do tutor é a de apenas adaptar material para os estudantes com deficiência visual. Vale destacar que esses tutores especificamente auxiliam estudantes com baixa visão, que por sua vez, apresentam alta demanda por tal atividade. Adicionalmente, como a maioria dos tutores aprendeu a função com outros tutores mais experientes, pressupõe-se que tal formação deve ter sido contingente ao tipo de aluno que seria tutorado (cego ou baixa visão) e com caráter mais prático do que teórico e abrangente.

Por outro lado, a maioria (n=4) observa que o tutor possui o papel de auxiliar (tirar dúvidas), além de também adaptar material. Os dados permitem inferir que este entendimento do tutor sobre seu papel (função da tutoria) está de acordo com as definições apresentadas na literatura (BOWMAN-PERROTT et al., 2013) e, ainda, esteve associado à concepção do tutor acerca do impacto de sua atuação no desempenho acadêmico do tutorado. A este respeito os tutores se dividem, sendo que alguns (n=2) entendem que sua atuação tem pouco impacto sobre o desempenho acadêmico do tutorado e que tais resultados dependem do estudante com deficiência. Em contrapartida, dois acreditam participar diretamente no desempenho acadêmico do tutorado e, outros (n=3) concebem uma participação indireta nos resultados acadêmicos de seus tutorados, ou seja, entendem que a adaptação de materiais realizada por eles pode beneficiar o estudante de modo a atingir melhores resultados.

Os tutores elencam como principais dificuldades relacionadas à tutoria o envio do material antecipadamente pelos professores (n=3) e a negociação com relação ao agendamento de horários com o tutorado (n=1). Os demais afirmam que não sentem dificuldades relacionadas à atividade da tutoria (n=3).

A respeito da necessidade de tempo extra dedicado à atividade da tutoria, a maioria (n= 4) traz alguma justificativa para não dedicar tempo complementar, como, por exemplo,o fato do tutor e do tutorado não frequentarem o mesmo curso, o que dificultaria dedicar mais tempo a atividade de tutoria além do tempo pré-determinado; os demais (n=2) destacam que sempre há a necessidade de uso de tempo complementar e que isso é feito de modo combinado entre as duas partes. Observa-se, pela fala dos participantes, que há uma demanda por maior tempo de dedicação do tutor às atividades de tutoria, sendo que alguns não se dispõem a usar uma carga horária superior a pré-estabelecida. Neste caso, haveria que averiguar a demanda de apoio concreta dos tutorados para que se possam rever as características de oferta da tutoria, como a quantidade de tempo dedicada à atividade ou a forma como o tutor administra e distribui o tempo dedicado ao estudante com deficiência visual.

Observou-se também que, de acordo com os tutores, todos os professores têm conhecimento da existência do tutor e que não existe planejamento em conjunto para as atividades de tutoria, fato este que contribui para que o tutor tenha dificuldades de exercer sua função.

Os dados presentes na Figura 1 permitem inferir que a formação inicial e continuada necessita de mais investimentos, há ainda a existência de concepções e práticas diferentes entre os tutores acerca da tutoria, que somadas a tipos distintos de envolvimento e sensibilidade do tutor em relação às necessidades do aluno com deficiência visual, caracteriza os pontos fortes e fracos desta estratégia.

b) A visão dos tutorados acerca da tutoria

Os dados apresentados e descritos a seguir podem ser observados no Mapa Conceitual da figura 2 que traz a visão dos tutorados acerca de aspectos da atividade de tutoria.

A respeito da concepção dos tutorado acerca do papel da tutoria, eles destacam principalmente o papel de auxiliar, adaptar materiais e esclarecer dúvidas, outras definições em minoria são as de ajudar em sala de aula, fornecer suporte e nivelar ("igualar") o acesso ao conhecimento.

Acerca da concepção que o tutorado tem sobre a relação entre o professor regente e o tutor, quase todos os alunos (n=6) acreditam que os professores regentes têm conhecimento sobre a existência do tutor, e três deles destacam que o relacionamento entre o professor e o tutor se dá apenas pelo o envio de material para adaptação e que não há planejamento conjunto (n=3).

Os tutorados apontam que, se não tivesse a tutoria, tentariam a ajuda de colegas de classe (n=7); alguns (n=3) afirmam que haveria mais dificuldade em realizar o curso e, ainda, um aluno afirmou que desistiria de estudar.

A respeito da influencia das atividades da tutoria no desempenho acadêmico dos alunos com deficiência visual, os tutorados entendem que a tutoria exerce uma influência positiva por meio da adaptação de material (n=3) e pela revisão de conteúdos (n=2); um afirma que o contato do tutor com o professor influencia positivamente seu desempenho acadêmico, intermediando o relacionamento, e outro afirma que, na prática, a tutoria contribui muito pouco (n=1).

Quanto à importância da tutoria, os tutorados se dividem, considerando-a como importante, porém apresentam uma ressalva afirmando que a tutoria pode ser melhor (n=2); outros a consideram importante, sem a qual seria mais difícil prosseguir a formação acadêmica (n=2); e dois a avaliaram como muito importante, sem a qual desistiria de estudar. Os dados mostram que parte desses alunos (n=4) credita à tutoria uma importância significativa para a manutenção e sucesso dos mesmos nos cursos técnicos e superior, e somente dois apontam críticas com relação à necessidade de aperfeiçoamento das atividades desenvolvidas atualmente. Esta visão remete de alguma maneira ao mito da caverna de Platão, em que fazendo uma analogia, a necessidade da inclusão escolar se faz tão eminente que os estudantes com deficiência, muitas vezes, se conformam com qualquer ação que contribua para seu efetivo acesso ao conhecimento.

Por outro lado, quando questionados sobre a avaliação das atividades de tutoria, os estudantes com deficiência visual ponderam as atividades entre pontos fortes e fracos. Com relação aos pontos fracos, apontaram a necessidade de agilidade na adaptação do material (n=1); necessidade de auxílio durante as aulas (n=2); de maior quantidade de tempo (n=6); necessidade de planejamento entre o professor, tutor e o Napne (n=1); de treinamento para o tutor (n=1) e; de mais cobrança junto aos tutores (n=2). Com relação aos aspectos positivos, indicaram a existência de tipos diferentes de recursos tecnológicos no Napne (n=1); o fato do tutor se disponibilizar em esclarecer dúvidas (n=2); a facilidade na negociação de horários com o tutor (n=2); a disponibilização de material adaptado pelo tutor (n=4); a atenção recebida do tutor (n=1) e; a crença no potencial da tutoria (n=2).

Os tutorados forneceram ricas informações acerca das características positivas e negativas da experiência vivida com a estratégia de tutoria por pares videntes. Tais contribuições indicam caminhos esperançosos para o aprimoramento da oferta de tais atividades, na própria instituição, como serve de alerta para outras iniciativas semelhantes em diferentes instituições. A título de exemplo, um dos alunos indicou que seria extremamente positivo se houvesse um planejamento entre o professor, tutor e o Napne (coordenação), o que por sua vez poderia sanar uma das queixas dos alunos, como a falta de agilidade na adaptação do material para os alunos com deficiência visual.

c) Considerações entre a visão dos tutores e a dos tutorados

Sabe-se que há um decréscimo significativo com relação à permanência e a continuidade de alunos público-alvo da educação especial, conforme avança-se nos níveis de escolarização (BUENO; MELETTI, 2012). A criação de estratégias que visem a promoção de um desempenho acadêmico satisfatório dos estudantes com deficiência visual, por exemplo, via o recebimento de apoio por meio das atividades de tutoria, é provavelmente um dos indícios de que a inclusão escolar está no caminho correto, uma vez que traz em seu bojo a essência mais próxima de uma verdadeira inclusão, que se configura pelo acesso ao conhecimento (DALL'AQUA, 2009).

No que se refere a esse aspecto, observou-se que, infelizmente, uma minoria de tutores acredita interferir diretamente no desempenho acadêmico de seus tutorados. Já, os alunos com deficiência visual entendem que o apoio recebido pelas atividades de tutoria é fundamental para que possam acompanhar o conteúdo do currículo, contudo assinalam a necessidade de aperfeiçoamento da oferta de tal atividade.

Embora não tenha sido alvo do presente estudo a avaliação da tutoria sobre o desempenho acadêmico dos alunos com deficiência visual, pesquisas mostram que a tutoria é uma estratégia eficaz, por exemplo, para aumentar o desempenho acadêmico e as interações sociais de alunos com autismo e seus pares sem deficiência (KAMPS et al., 1994KAMPS, D. M. et. al. Classwide peer tutoring: an integration strategy to improve reading skills and promote peer interactions among students with autism and general education peers. Journal of Applied Behavior Analysis, Florida, v.27, p.41-69, 1994.).

Com relação à formação, tanto os tutores quanto os tutorados, apontaram para uma necessidade de maior formação dos tutores para a realização de suas atividades. Sobre esse aspecto, Festas et al. (2011)FESTAS, C. et al. Tutoria de pares: um desafio à inclusão de crianças com perturbações do desenvolvimento e autismo na escola. In: FÓRUM DO CURSO DE MESTRADO EM ENFERMAGEM COM ESPECIALIZAÇÃO EM SAÚDE MENTAL E PSIQUIATRIA, 2., Porto. Anais... Universidade Católica Portuguesa, Porto, Portugal, 2011., em uma pesquisa sobre a promoção da integração de crianças com Perturbações do Desenvolvimento e Autismo, encontrou que o treinamento formal para o processo de tutoria pode contribuir para um comportamento de mais sensibilização, na tentativa de uma maior dedicação e compromisso do tutor para com seu tutorado.

Por meio da análise dos mapas conceituais foi possível analisar algumas relações/conexões presentes entre as categorias e os agentes (tutores e tutorados) com suas respectivas características (ex. se o aluno tutor era colega de mesma classe que o tutorado; se o tutorado apresentava baixa visão ou cegueira, etc). Nota-se que as tutorias com avaliações "mais positivas" estão relacionadas a algumas habilidades pessoais de interação social do tutor, como o conteúdo presente em uma das falas: "ele é atencioso"; a proximidade física e de interesses entre tutor e tutorado, quando são colegas de mesmo curso e classe, o que permite que estejam juntos uma maior quantidade de tempo, partilhando de temas e assuntos comuns; a dedicação pessoal do tutor, manifestada pela disponibilidade em esclarecer dúvidas, pela facilidade em negociar horários alternativos (extra classe), dentre outros.

A título de ilustração, comparando os mapas conceituais da Figura 1 e Figura 2, pode-se notar algumas características da relação estabelecida entre algumas díades tutor-tutorado. Considerando o caso de Carlos e Tiago, que são colegas de mesma classe, nota-se que, para Carlos, cego, a tutoria deve auxiliá-lo em suas atividades acadêmicas e prover esclarecimento de dúvidas. Por sua vez, Tiago destaca que seu papel é ajudar o seu aluno a ter um melhor desempenho nas matérias, fazendo o que estiver em seu alcance para que Carlos compreenda os conteúdos ministrados; além disso, afirma que sempre está disposto a ajudá-lo por meio do uso de tempo complementar. Carlos o avalia positivamente atribuindo-lhe o adjetivo 'atencioso' e destaca que, se não fosse auxiliado pela tutoria, preferiria desistir de estudar. Observa-se, nesse caso, o estabelecimento de uma parceria positiva entre tutor e tutorado que, de acordo com o aluno cego, influencia positivamente o seu desempenho acadêmico. Esses dados vão ao encontro do estudo de Orlando (2010), no qual as alunas com deficiência visual tiveram uma melhor participação nas aulas após receberem a tutoria de seus colegas sem deficiência.

Por outro lado, tendo como referencial a estudante Camila, cujo tutor é Túlio, observa-se a presença de afirmações que denotam certa insatisfação com o desempenho de seu tutor, como por exemplo: "se tivesse mais responsabilidade seria melhor"; "hoje fiz uma prova que ele adaptou o material hoje". No caso, da adaptação do conteúdo da prova no mesmo dia de sua realização, vê-se que esse procedimento pode gerar dúvidas com relação ao planejamento prévio para tal adaptação (feita com base em um estudo de possibilidades ou como fruto de improviso) e, até mesmo, sobre a expectativa de ter o material em mãos em tempo hábil para a realização da prova. A aluna menciona a necessidade de buscar ajuda em outros colegas de classe (Túlio e Camila não são colegas de classe, nem do mesmo curso). Túlio, por sua vez, se apóia em justificativas para não dedicar tempo extra a atividade de tutoria, afirmando que, como ele e Camila são de cursos diferentes, fica "complicado" dedicar mais tempo.

Contudo, Túlio é o único tutor que se dedica a dois alunos (Camila e Bernardo). Esse caso suscita questões ligadas à dinâmica da gestão da prática da tutoria nesta instituição como: o tutor recebe um valor de bolsa maior por isso? Como retira dez horas de atividades de tutoria para cada aluno com deficiência visual em sua carga horária semanal? A insatisfação de Camila pode estar relacionada com tais variáveis e, nessa direção, seria aconselhável uma revisão das normas para atividade de tutoria por parte do instituto, uma vez que a permanência de dois alunos com deficiência visual sob a responsabilidade de um tutor poderia sobrecarregá-lo, prejudicando-o em sua formação curricular e/ou diminuir a qualidade do trabalho prestado aos tutorados.

O caso de Beatriz e Tarcísio (tutor), também, exprime uma condição em que há uma insatisfação da aluna com relação ao atendimento recebido, ilustrada em algumas de suas falas: "Na prática pouco, na teoria muito" (sobre a influência da tutoria em seu desempenho acadêmico) e, "Meus colegas (de classe) me ajudam bastante" (sobre a estratégia utilizada na ausência da tutoria); já nas falas de Tarcísio: "O desempenho vai depender mais dela" (sobre sua percepção acerca da influência da tutoria no desempenho acadêmico de Beatriz), "Como ela é baixa visão, não dou ajuda no conteúdo" (sobre a função da tutoria), "se extrapolar, aí a gente ia ter que ver como fazer (necessidade de tempo adicional às atividades de tutoria).

É possível inferir, pelas falas de Tarcísio, que a concepção nutrida por ele a respeito da sua função enquanto tutor (apenas adaptar material) pode interferir negativamente em seu desempenho enquanto tutor na avaliação de Beatriz, que parece não sentir-se beneficiada, na prática, pela tutoria recebida. Sabe-se que identificar as percepções pessoais a respeito de determinado tema são importantes, uma vez que permitem caracterizar o significado que os sujeitos atribuem aos fenômenos avaliados (SILVEIRA; ENUMO; ROSA, 2012). No caso de Túlio, pela identificação de tais percepções torna-se possível uma análise da necessidade de se rever concepções, crenças e comportamentos acerca de sua função enquanto tutor.

Os dados de relato dos participantes nos permitem inferir que os estudantes de mesma classe apresentam um maior grau de satisfação com relação à tutoria, tanto na visão dos tutorados quanto na concepção dos próprios tutores. Algumas falas da coordenadora confirmam a observação de que as tutorias entre colegas de mesma classe são mais bem avaliadas pelos seus pares: quando eles são colegas fica mais fácil, existe um entrelace entre um e outro. Eles já estão nas mesmas aulas, já planejam quando vão estudar junto. Eles comentam que fica mais fácil (Coordenadora).

Algumas variáveis provavelmente contribuem para que essa configuração de tutoria seja mais promissora: cursar disciplinas comuns, o que colabora para que o tutor tenha um maior domínio do conteúdo e, consequentemente, tenha como produzir materiais adaptados mais adequados às necessidades do aluno com deficiência visual; a tarefa dos tutores de retirar dúvidas dos alunos acaba se configurando como uma forma de revisão de conteúdo; maior facilidade de encontrar horários para a revisão de conteúdos e o relacionamento mais próximo dos tutores com os professores regentes de sala.

Contudo, a coordenadora discorre sobre a dificuldade em encontrar um estudante pertencente a mesma sala que se interesse em participar da tutoria, embora tenha o incentivo da bolsa, que é, segundo os tutores, um dos principais motivos pela procura da tutoria: quando se vai à turma, ninguém tem interesse, por conta das ocupações deles. Opta-se por outro curso, mesmo sabendo que não terá um bom rendimento.

Nota-se, também, que parte da diferença existente na tutoria de um aluno com baixa-visão e de um cego está nas características específicas da demanda por auxílio que cada tipo de deficiência exige. Ficou evidente que os tutores de alunos cegos, em sua maioria, se preocupam em realizar o atendimento extraclasse, revisando o conteúdo e esclarecendo dúvidas. Em contrapartida, os tutores de alunos com baixa visão foram associados com maior frequência a demanda por adaptação de material, considerando esse tipo de atendimento extraclasse desnecessário.

Embora a tutoria tenha sido diferentemente avaliada entre os estudantes com deficiência visual, ou seja, há alunos que a avaliaram de forma positiva e outros de modo negativo, todos a consideraram de alguma maneira importante para o seu processo de escolarização. Mesmo os que a avaliaram negativamente, conseguiram distinguir a proposta da tutoria da experiência pessoal insatisfatória vivida naquele momento. Esta constatação é muito positiva, pois traduz esta estratégia pedagógica como uma alternativa viável para o processo de inclusão escolar de alunos com deficiência visual.

A este respeito a coordenação entende que, apesar de algumas dificuldades, o setor não funcionaria sem a prática da tutoria de pares: pela quantidade de alunos e de disciplinas, os monitores (tutores), bem ou mal, são peças fundamentais para o funcionamento. Eu não daria conta de ajudar todos, preparar material [...]. É uma estratégia que precisa de adaptações, mas funciona.

O reconhecimento da necessidade de adaptações e de reformulações na proposta da tutoria por pares, por parte da coordenadora, condiz com uma percepção pessoal da mesma de identificação de falhas e/ou pontos fracos. Nesse sentido, os dados do presente estudo apontam um direcionamento para reformulações na concepção e gestão da estratégia de tutoria de pares.

E, quando questionada se queria acrescentar algo em seu relato, desabafou: às vezes acabo me sentindo só diante da inclusão da escola. Às vezes vou procurar algumas pessoas e elas sempre dizem não, estão sempre dispostas a criticar e nunca a ajudar. Essa afirmação nos indica que os gestores de tais iniciativas que visam promover a inclusão educacional de alunos público-alvo da educação especial também têm necessitado de apoio.

4 Conclusão

A tutoria de pares se mostrou como uma importante ferramenta de apoio aos alunos com deficiência visual, em seu processo de inclusão no ensino técnico e superior, a despeito das diferenças de avaliação constatadas entre os usuários desses serviços.

Foi possível identificar que os aspectos positivos desta prática pedagógica que parecem superar os aspectos negativos. Contudo, considera-se necessária uma reformulação nas diretrizes e gestão de tal atividade no instituto pesquisado, seja no aspecto da formação dos tutores, da seleção dos tutores em termos de dar preferência ao perfil 'colegas de mesma classe', como nas características dos serviços prestados.

Assim, acredita-se que novas pesquisas podem aprimorar e conhecer mais possibilidades para a tutoria de pares direcionada a alunos com deficiência visual, no ensino técnico e superior, como por exemplo: verificar a existência de iniciativas semelhantes em universidades públicas e outros institutos federais, com uma amostra maior de participantes; avaliar os impactos da tutoria no desempenho acadêmico dos tutorados; elaborar e avaliar uma intervenção para sensibilizar alunos sem deficiência sobre a adesão para exercer a atividade de tutoria, no ensino superior; propor e avaliar uma intervenção com foco no treinamento para os tutores exercerem sua função de modo mais eficaz e condizente com as necessidades dos alunos com deficiência visual.

Apesar de não ser o foco de estudo deste trabalho, vale destacar a importância do uso de softwares de análise qualitativa para a ampliação e o aprimoramento das possibilidades de análise dos dados de pesquisas dessa natureza. O uso do software Atlas.Ti foi considerado válido enquanto uma ferramenta útil para expandir possibilidades de relações entre as variáveis estudadas.

Referências

  • BOWMAN-PERROTT, L. et al. Academic bennefits of peer tutoring: a meta-analytic review of single-case reserarch. School Psychology Review, Bethesda, v.42, p.39-55, 2013.
  • BRASIL. MEC/SEESP. Saberes e práticas da inclusão: desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos cegos e de alunos com baixa visão. 2.ed. Brasília, DF: MEC, 2006.
  • CARVALHO, R. E. Escola inclusiva: a reorganização do trabalho pedagógico. Porto Alegre: Editora Mediação, 2008.
  • COSTA, C. S. L. et. al. Análise do conceito de deficiência visual: considerações para a prática de professores. In: COSTA, M. P. R. (Org.). Educação especial: aspectos conceituais e emergentes. São Carlos: EDUFSCar, 2009. p.47-62.
  • CUNHA, A. C. B; ENUMO, S. R. F. Desenvolvimento da criança com deficiência visual (DV) e interação mãe-criança: algumas considerações. Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, v.4, n.1, p.33-46, 2003.
  • ENRIGHT, S.M.; AXELROD, S. Peer-tutoring: applied behavior analysis working in the classroom school. Psychology Quarterly, Washington, v.10, n.1, p.29-40, 1995.
  • FESTAS, C. et al. Tutoria de pares: um desafio à inclusão de crianças com perturbações do desenvolvimento e autismo na escola. In: FÓRUM DO CURSO DE MESTRADO EM ENFERMAGEM COM ESPECIALIZAÇÃO EM SAÚDE MENTAL E PSIQUIATRIA, 2., Porto. Anais... Universidade Católica Portuguesa, Porto, Portugal, 2011.
  • FRANCO, M. L. P. B. Análise de Conteúdo. Brasília, DF: Liber Livro, 2012.
  • FULK, B. M.; KING, K. Classwide peer tutoring at work. Teaching Exceptional Children, Florida, v.34, n.2, p.49-53, 2001.
  • GOODLAD, S., HIRST, B. Peer tutoring: a guide to learning by teaching. London: Kogan Page, 1989.
  • HALLAHAN, D. P; KAUFFMAN, J. M. Exceptional learners: an introduction to special education. New Jersey: Pearson education, 2009.
  • KAMPS, D. M. et. al. Classwide peer tutoring: an integration strategy to improve reading skills and promote peer interactions among students with autism and general education peers. Journal of Applied Behavior Analysis, Florida, v.27, p.41-69, 1994.
  • MENDES, E. G. A radicalização debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.11, n.33, p.387-405, 2006.
  • MENDES, E. G.; MALHEIRO, C. A. L. Salas de recursos multifuncionais: é possível um serviço "tamanho único" de atendimento educacional especializado? In: MIRANDA, T. G.; FILHO, T. A. G. (Org.). O professor e a educação inclusiva: formação, práticas e lugares. EDUFBA: Salvador, 2012.
  • ORLANDO, D. P. O colega tutor de alunos com deficiência visual nas aulas de Educação Física. 2010. 85f. Dissertação (Mestrado em Educação Especial) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2010.
  • QUEIROZ, T. L. A.; CAVALCANTE, P. S. As contribuições do software atlas ti para a análise de relatos de experiência escritos. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - EDUCERE, 10., Curitiba, 2011. Anais... Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2011.
  • RAPOSO, P. N. O impacto do sistema de apoio da Universidade de Brasília na aprendizagem de universitários com deficiência visual. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2006.
  • SANTOS, T.; MENDES, E. G. O efeito da tutoria de colegas sobre o desempenho de alunos com deficiência em classes inclusivas. Revista Educação Especial, Santa Maria, n.32, p.211-224, 2008.
  • SILVEIRA, F. F.; NEVES, M. M. B. J. Inclusão escolar de crianças com deficiência múltipla: concepções de pais e professores. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, DF, v.22, n.1, 2006.
  • SILVEIRA, K.; ENUMO, S.; ROSA, E. Concepções de professores sobre inclusão escolar e interações em ambiente inclusivo: uma revisão da literatura. Rev. Bras. Ed. Esp., Marília, v.18, n.4, p.695-708, 2012.
  • SMITH, D. D.; TYLER, N. C. Introduction to special education: making a difference.7.ed. New Jersey Columbus/Ohio: Merril, 2010.
  • KARAGIANNIS, A.; STAINBACK, S. B; STAINBACK, W. C. Fundamentos do ensino inclusivo. In: STAINBACK, S. B.; STAINBACK, W. C. (Org.). Inclusão: um guia para educadores. Trad. M. F. Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1999.
  • UTLEY, C. A.; MORTWEET, S. L.; GREENWOOD, C. R. Peer-mediated instruction and interventions. Focus on Exceptional Children, North Carolina, v.29, p.1-23, 1997.
  • 3
    Este trabalho optou por utilizar a terminologia "estudantes com deficiência", considerando-se que o foco desse estudo incide sobre uma deficiência sensorial específica. Contudo, vale ressaltar que, quando se trata de inclusão do público alvo da Educação Especial, sabe-se que a população alvo engloba pessoas com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades, de acordo com a definição da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva do ano de 2008 (BRASIL, 2008).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2014
  • Revisado
    12 Jan 2015
  • Aceito
    13 Jan 2015
Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial - ABPEE Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 Vargem Limpa, CEP: 17033-360 - Bauru, SP, Tel.: 14 - 3402-1366 - Bauru - SP - Brazil
E-mail: revista.rbee@gmail.com