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Efeito de Lente Térmica: uma demonstração de baixo custo para laboratórios de ensino sobre a capacidade da luz em modificar o índice de refração de um meio

Thermal Lens effect: a low-cost demonstration in educational laboratory of the light's capability to modify the refractive index of a medium

Resumos

O ensino da Óptica nos cursos de graduação que têm nos programas de ensino a Física Geral, usualmente apresentam tópicos básicos da óptica geométrica e da óptica ondulatória, deixando de lado aspectos atuais deste ramo da física. Desse modo, não são discutidos assuntos importantes do ponto de vísta da ciência básica bem como de aplicações tecnológicas. Um desses assuntos é o da Óptica Não Linear. O presente artigo aborda a proposta de realização de um experimento de baixo custo para a constatação experimental de que a luz pode modificar as propriedades ópticas de um meio. O experimento baseia-se na geração de uma lente térmica no material por efeito da absorção óptica seguida de um processo de relaxão não radiativa. Como amostra é proposta a utilização de um fluido de simples obtenção e baixo custo, o molho a base de soja (molho shoyu).

Palavras-chave:
óptica; lente térmica; óptica no linear


The teaching of Optics in the undergraduate courses that have General Physics in their syllabi, usually focus on elementary topics of geometrical and wave optics, put aside actual subjects of this field. So usually are not discussed importants topics from both, basic reaserch and technological applications. One of this topics is nonlinear optics. This paper presents a proposal of a low-cost experiment for demonstrating that the light can modify the optical properties of a medium. The experiment is founded in the induction of a lens in a medium due to optical absorption followed by a nonradiative relaxation. The sample used in this experiment is a fluid of easy obtainment, soy sauce.

Keywords:
thermal lens; refractive index; nonlinear optics


1. Introdução

Nos cursos de Licenciatura e Bacharelado que possuem a disciplina de Física Geral no currículo, em geral o estudo da Óptica possui pouca ênfase e limita-se a tópicos da óptica geométrica (reflexão e refração da luz e formação de imagens por lentes e espelhos) e de óptica ondulatória (interferência e difração por fendas). Assim são deixados completamente de lado aspectos mais atuais da óptica, os quais têm importantes aplicações tecnológicas. Um desses aspectos é a denominada Óptica Não Linear, a qual estuda as modificações das propriedades ópticas da matéria pela luz incidente e que portanto alteram a propagação da luz [1[1] S.C. Zilio, Óptica Moderna-Fundamentos e Aplicações (Compacta, São Carlos, 2009).]. Nesse contexto, nos cursos de graduação é assumido que as propriedades ópticas da matéria, representadas maioritariamente pelo índice de refração n, não são modificadas pela própria luz. Assim, é importante que o aluno compreenda que esse não é o caso. O estudo da Óptica Não Linear surgiu quase que imediatamente após a invenção do laser. Os efeitos ópticos não lineares, que pode apresentar um determinado material, dependem tanto da composição e estrutura desse, assim como das características da luz, como por exemplo, a intensidade e o comprimento de onda. Estes processos ópticos não lineares podem acontecer em diferentes escalas temporais que vão da ordem de segundos (s) a femtossegundos (fs), e para sua observação exige a utilização de diversos tipos de lasers, como pulsados ou contínuos. Algumas aplicações da Óptica Não Linear são: limitadores ópticos, chaves ópticas e guias de onda. Um dos fenômenos ópticos não lineares de mais fácil visualização é o denominado Lente Térmica. Este efeito é produzido pela incidência de um feixe com um perfil gaussiano de intensidade sobre um meio que absorva a luz e que relaxe liberando calor. O índice de refração de um material em geral é função do comprimento de onda da luz e da temperatura, entre outros. Assim, a incidência sobre um material absorvedor de um feixe de luz de comprimento de onda adequado e com perfil espacial gaussiano leva à formação de uma lente sobre o material, a qual pode ser do tipo convergente ou divergente. Do ponto de vista didático, a observação da indução de uma lente térmica num material absorvedor pela incidência de luz é ideal para a apresentação de um tópico de Óptica Não Linear, por ser de fácil planejamento e execução em laboratórios didáticos de instituições de ensino superior públicas ou privadas. Um trabalho anterior mostrou a observação do efeito de lente térmica num material utilizando a técnica de Varredura-z, a qual precisa de uma série de equipamentos que não são comuns num laboratório didático [2[2] C.R. Mendonça, L. Misoguti, F.F. Dall'Agnol e S.C. Zilio, Revista Brasileira de Ensino de Física 21, 272 (1999).]. Assim, resulta importante desenhar um experimento que permita visualizar de uma forma simples e direta um efeito óptico não-linear. O objetivo dessa comunicação é a de propor uma montagem experimental muito simples que permita observar a simples vista um efeito óptico não-linear. Na Seção II faremos uma apresentação dos fundamentos da formação de uma lente térmica e na Seção III apresentaremos uma montagem experimental simples para a observação da formação de uma lente térmica utilizando como amostra um molho de uso comercial.

2. Lente térmica

O índice de refração de um material (n) é inversamente proporcional à velocidade de propagação da onda nesse meio e em geral depende da frequência ω da onda, dando origem à dispersão, e da temperatura T do meio. Assim, se diversas partes de uma mesma frente de onda atravessassem um meio por regiões de espessuras diferentes, em geral emergeriam do mesmo em instantes de tempo diferentes. O mesmo ocorreria se diversas partes de uma dada frente de onda incidissem simultâneamente em diferentes meios (índices de refração diferentes) mas todos com a mesma espessura. Em ambos os casos a frente de onda que emergisse não teria a mesma forma da onda incidente. Uma lente delgada é um elemento óptico que modifica uma frente de onda incidente devido ao fato de diferentes partes da frente de onda, em geral, percorrem distâncias diferentes, ou em termos mais precisos, as diversas partes da frente de onda percorrem caminhos ópticos Γ = nol diferentes, onde l é a espessura do meio e onde no é o índice de refração do material. Na aproximação paraxial para os feixes incidentes (a suposição de que o feixe não se afasta muito do eixo óptico), a espessura da lente, e portanto o caminho óptico de um feixe que incide sobre a lente esférica, é quadrático na distância radial r em relação ao eixo de propagação do feixe [3[3] J.W. Goodman, Introduction to Fourier Optics (McGraw-Hill, New York, 1996), 2ª ed.]. Por outro lado, a dependência do índice de refração de um material em relação à temperatura pode ser escrita como:

(1)
onde no (T) é o índice de refração linear correspondente à temperatura T, coeficiente termoóptico e ΔT representa a variação de temperatura do meio em relação à temperatura T. O índice de refração linear no à temperatura ambiente é o valor normalmente tabelado nos livros de Física Geral. No caso de um meio que tem a capacidade de absorver luz, parte desta é transformada em calor, levando a um aquecimento do meio. Podemos supor inicialmente que o aquecimento experimentado pelo meio é proporcional à intensidade I da luz incidente sobre ele (ΔTI). Por outro lado, o feixe de luz de um laser, como por exemplo o laser de HeNe, em geral tem um perfil denominado Gaussiano. Esse feixe possui uma intensidade I não uniforme sobre um plano perpendicular à sua direção de propagação. Em termos da distância radial r a intensidade é dada por [4[4] E. Hecht, Óptica (Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002), 2ª ed.]:
(2)
onde Io é a intensidade do feixe ao longo do eixe de propagação e w é a largura do feixe. é o denominado

A Fig. 1 apresenta um esquema de um feixe gaussiano. A Fig. 1a mostra um corte transversal da luz emitida pelo laser de HeNe. O eixo perpendicular ao plano do desenho é o da progação do feixe. A Fig. 1b mostra um mapa em relevo 3D da intensidade do feixe gaussiano, em escala arbitrária. No caso de um meio absorvedor, a absorção da luz com o perfil radial descrito pela Eq. 2, leva a um aquecimento não uniforme do meio mas com simetria radial, ou seja ΔT = ΔT (r). Dentro da aproximação da óptica paraxial, podemos desenvolver a gaussiana da Eq. 2 numa série de potências de r (série de Taylor) em torno de r = 0. Pode-se comprovar facilmente que o primeiro termo da série dependente da coordenada radial é quadrático em r. Assim, o acréscimo de temperatura ΔT e o índice de refração n serão funções quadráticas em r. Portanto, se um feixe gaussiano incidir sobre um material de espessura uniforme e que, por efeito do aquecimento, seu índice de refração seja aproximadamente uma função quadrática de r, o caminho óptico do feixe no interior da amostra também será uma função quadrática em r. Neste caso, a amostra se comporta como uma lente, a denominada Lente Térmica. Dependendo do sinal do coeficiente termoóptico, a lente térmica induzida no meio pode ser convergente se Fig. 2). > 0 ou divergente para < 0 (

Figura 1
(a) Representação sobre um plano transversal à sua direção de propagação (eixo z) de um feixe gaussiano. r é a distância radial ao eixo z. (b) Representação 3D da distribuição de intensidade de um feixe gaussiano.
Figura 2
Esquema sobre a formação de uma lente térmica. Dependendo do sinal do coeficiente termoóptico, a lente formada pode ser do tipo convergente ou divergente.

3. Montagem e procedimento experimental

Para a observação de uma lente térmica utilizaremos como meio absorvedor um fluido de fácil obtenção: molho shoyu, um molho a base de soja, e como material de controle será utilizada água pura. O molho shoyu comercial é um fluido de cor escura intensa, ou seja possui uma grande absorção da luz visível, característica essa essencial para a formação da lente térmica. Para fins didáticos, qualquer marca de molho shoyu pode ser utilizado.

A montagem experimental para a observação da lente térmica emprega os seguintes elementos:

  • Laser com feixe gaussiano.

  • Lente convergente.

  • Amostra.

  • Anteparo.

A Fig. 3 apresenta uma imagem da montagem para a observação da lente térmica. A lente convergente é usada para aumentar a intensidade do feixe, ao concentrar a energia numa área menor, o qual facilita a observação do efeito termoóptico se o laser não for muito intenso. Em relação à distância focal da lente convergente, quanto menor for, melhor é a visualização.

Figura 3
Arranjo experimental: (L) laser, () lente, (A) amostra, (T) trilho, (f) distância focal de , (a) anteparo.

3.1. Preparação da amostra

O molho e a água pura serão acondicionados em diferentes porta-amostras fabricados com lâminas de vidro para microscópio. Os elementos necessários para produzir os porta-amostras são: duas lâminas de microcópio, cortador de vidro, plástico de garrafa pet, tessoura, 2 prendedores de papel, 2 pipetas pasteur e cola de secagem rápida. O procedimento é o seguinte: com o cortador de vidro, que pode ser obtido numa loja de ferramentas, cortamos as lâminas de vidro de microscopia em retângulos de aproximadamente 2cm de largura. Em seguida, cortamos o plástico de garrafa pet em forma de U com o tamanho dos retângulos de vidro. Após nos assegurarmos que os retângulos de vidro estejam limpos e secos (estes podem ser limpos usando detergente de louça neutro e água destilada) colocamos dois dos retângulos de vidro separados por uma lâmina de plástico pet em forma de U (Figs. 4a e 4b). A camada de plástico pet em forma de U tem a função de separar as lâminas de vidro, determinando a “espessura” da amostra. A seguir prendemos o conjunto com os prendedores de papel, e iniciamos a colagem das bordas do conjunto exceto aquele que corresponde à parte superior do U, o qual deve ser deixado desobstruido para o preenchimento com o fluido. Depois da completa secagem dos porta-amostras, iniciamos o preenchimento desses, um com água e outro com molho shoyu, usando as pipetas pasteur. Depois de completamente preenchido podemos fechá-los colocando uma tampinha, também fabricada com plástico pet, que será mantida no lugar com cola, para evitar evaporação.

Figura 4
(a) Representação esquemática da montagem do porta-amostra. (b) Imagem de um porta-amostra finalizado.

3.2. Procedimento experimental e interpretação dos resultados

No arranjo da Fig. 2 posicionamos inicialmente o porta-amostra contendo água pura e posicionamos o anteparo a uma distância de aproximadamente 1m da lente. Podemos comprovar a ausência da formação de uma lente térmica no porta-amostra com água, posicionando este pouco antes e pouco depois do foco da lente. Observando o diâmetro do feixe de luz sobre o anteparo, comprovamos que em qualquer posição que colocarmos o porta-amostra com água, o diâmetro do feixe de luz laser sobre o anteparo será o mesmo. Na sequência repetimos o procedimeno anterior com o porta-amostra com molho shoyu. Inicialmente posicionamos a amostra longe do foco da lente. Se a distância ao foco da lente for muito grande (~ 50cm), a intensidade do feixe não será suficiente para induzir a formação de uma lente térmica. Dessa forma, teremos uma referência para comparar quando da formação da lente térmica. A continuação, posicionamos a amostra um pouco antes do foco da lente. Veremos que isso leva a uma diminuição do diâmetro do feixe sobre o anteparo. Se por outro lado posicionamos a amostra depois do foco, o diâmetro do feixe experimenta um aumento. A Fig. 5 mostra imagens obtidas sobre o anteparo para as amostras de água e molho shoyu com um laser de HeNe de 30mW. Na Fig. 5, as imagens a), b) e c) correspondem a amostra de água pura em três posições diferentes, longe do foco da lente, onde a intensdade é baixa, pouco depois do foco e pouco antes do foco. Como pode ser visto, o diâmetro do feixe sobre o anteparo não muda. Como a água pura apresenta absorção desprezível no comprimento de onda do laser, a lente térmica não é formada. Por outro lado, as imagens d), e) e f) correspondem as imagens do feixe sobre o anteparo quando posicionada a amostra de shoyu no caminho do feixe. A Fig. 5d) corresponde à amostra longe do foco onde a intensidade é baixa e a lente induzida é relativamente pequena. Por outro lado as imagens 5e) e 5f) correspondem à amostra pouco depois do foco e pouco antes do foco. Nessas posições a intensidade do feixe leva à formação da lente térmica. Como referência, nas imagens 5d) e 5f) é mostrado em linha traçejada o diâmetro do feixe obtido com a amostra pouco depois do foco.

Figura 5
Imagens do feixe de luz sobre o anteparo. (a), (b) e (c) são imagens do feixe de luz posicionando a amostra de água pura longe do foco, pouco depois do foco e pouco antes do foco, respectivamente. (d), (e) e (f) são as imagens posicionando a amostra de molho shoyu longe do foco, pouco depois do foco e pouco antes do foco respectivamente. A linha branca de traços indica o tamanho do feixe quando a amostra está pouco depois do foco.

O efeito observado com a amostra de molho shoyu é equivalente a interposição no caminho do feixe, entre a lente de vidro e o anteparo, de uma lente do tipo divergente. Quando posicionada a amostra antes do foco da lente, foco F, o feixe de luz é focalizado pelo conjunto (lente mais amostra) depois da posição de F, e portanto mais próximo do anteparo. Assim, o feixe diverge menos do que faria sem a amostra. Nesse caso, veremos sobre o anteparo um feixe com um diâmetro ligeiramente menor. Por outro lado, com a amostra posicionada após o foco F, aumenta a divergência do feixe. Assim, no anteparo veremos um feixe com um diâmetro ligeiramente maior. A Fig. 6 apresenta um esquema sobre a interpretação dos resultados. No caso de uma amostra com comportamento de uma lente convergente (Fig. 6: posicionando a amostra entre a lente e o foco dela, levaria a um aumento do diâmetro do feixe sobre o anteparo e posicionando-a após o foco, levaria a uma diminuição do diâmetro do feixe sobre o anteparo. > 0) teríamos o comportamento contrário ao mostrado na

Figura 6
Em linha contínua, o percurso do feixe com a amostra representada por uma lente do tipo divergente, e em linha traçejada o percurso sem a amostra interposta, (a) antes do foco e, (b) depois do foco. f é a distância focal

Coeficientes termoópticos de sinal positivo foram observados com cristais líquidos, fluidos constituídos por moléculas anisotrópicas, sob determinadas configurações experimentais.

4. Conclusões

O presente artigo apresentou um montagem experimental simples como introdução para a discussão de tópicos atuais de óptica como forma de quebrar o paradigma do ensino desta nas disciplinas de Física Geral nos cursos de Licenciatura e Bacharelado do Brasil. A proposta formalizada neste artigo está baseada na observação da formação de uma lente térmica num fluido de fácil obtenção, o molho shoyu, utilizando um laser de HeNe , o qual é normalmente encontrado nos laboratórios didáticos das nossas universidades. Assim, acreditamos estar contribuindo para uma formação mais atual dos alunos não só nas áreas das ciências básicas, mas também das áreas de Tecnologia e Engenharia, como Engenharia Eletrônica e Engenheira de Computação.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao CNPq, Fundação Araucária, Universidade Estadual de Ponta Grossa e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Fluidos Complexos (INCT-FCx) pelo apoio financeiro. Um agradecimento especial para o Prof. Dr. Gelson Biscaia de Souza (UEPG) pela obtenção das imagens.

Referências

  • [1]
    S.C. Zilio, Óptica Moderna-Fundamentos e Aplicações (Compacta, São Carlos, 2009).
  • [2]
    C.R. Mendonça, L. Misoguti, F.F. Dall'Agnol e S.C. Zilio, Revista Brasileira de Ensino de Física 21, 272 (1999).
  • [3]
    J.W. Goodman, Introduction to Fourier Optics (McGraw-Hill, New York, 1996), 2ª ed.
  • [4]
    E. Hecht, Óptica (Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002), 2ª ed.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2016

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2016
  • Aceito
    28 Mar 2016
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