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Generalização para o desvio angular em um prisma de base triangular em meios externos distintos

Generalization for the angular deviation of a prism with a triangular base in different external media

Resumos

Neste artigo, nos propomos a estabelecer uma função generalizadapara o desvio angular em um prisma de base triangular imerso em meios externos distintos. Após a obtenção de tal função, faremos a demonstração das condições de desvio mínimo. Além disso, faremos uma análise detalhada da função, inclusive das condições necessárias para que não haja reflexão total nas interfaces; condições essas que se relacionam ao domínio de tal função. Destaquemos que certos aspectos de simetria existentes no caso particular de meios externos idênticos não são verdadeiros para o caso geral; aspectos estes que, combinando o princípio físico da reversibilidade e princípio matemático de não-contradição, permitem a obtenção dos ângulos relacionados ao desvio mínimo sem o uso de cálculo diferencial.

Palavras-chave:
Desvio angular; prisma; base


In this paper, we propose to establish a generalized function for the angular deviation in a prism with a triangular base immersed in different external media. After obtaining such a function, we demonstrate the minimum deviation conditions. In addition, we make a detailed analysis of the function, including the necessary conditions so that there is no total reflection in the interfaces, these conditions that relate to the domain of such a function. In addition, we point out that certain aspects of symmetry existing in the particular case of identical external means are not true for the general case; aspects that, combining the physical principle of reversibility and the mathematical principle of non-contradiction, allow obtaining the angles related to the minimum deviation without the use of differential calculus.

Keywords:
Angular deviation; prism; base


1. Introdução

No artigo intitulado “Demonstração algébrica das condições de ocorrência do desvio mínimo em um prisma de base triangular ” [1[1] J.L.P. Ribeiro, Rev. Bras. Ensino Fís. 35 , 4309 (2013).] é relatada uma lacuna de tal demonstração, tanto em livros-textos de física voltados ao ensino médio quanto aos destinados à graduação. No que tange à parte experimental, de modo geral temos um único meio externo circundante-menos refringente que o prisma, corriqueiramente, o ar atmosférico [2[2] N. Farkas, P.N. Henriksen and R.D. Ramsier, Phys. Educ. 41 , 69 (2006)., 3[3] F. El-Ghussein, J.M. Wrobel and M.B. Kruger, Am. J. of Phys. 74 , 888 (2006)., 4[4] B.P. Chandra and S.C. Bhaiya, Am. J. of Phys. 51 , 160 (1983).]; e é sob tal condição especial que é desenvolvida a teoria e são propostos os exercícios nos livros-textos, sendo também, nesta particularidade, que foi feita a demonstração no artigo [1[1] J.L.P. Ribeiro, Rev. Bras. Ensino Fís. 35 , 4309 (2013).] anteriormente citado.

Do ponto de vista experimental e teórico (principalmente), o prisma estar envolvido em um meio material único é um caso especial. Podemos considerar que o caso mais geral – os meios de incidência na primeira interface, o meio de emergência na segunda interface e o material do prisma possuírem índices de refração diferentes entre si-foi abordado na questão a seguir, proposta no vestibular do renomado Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) [5[5] https://www.vestibular.ita.br/, acessado em 31/05/2023.
https://www.vestibular.ita.br/...
] (Fig.1):

Figura 1
Raio de luz incidindo sobre um volume contendo um líquido em contato com um prisma. Fonte: Vestibular do Instituto Tecnológica de Aeronáutica, Concurso de Admissão de 1996.

Um prisma de vidro, de índice de refraçãon=2, tem por seção normal um triângulo retângulo isósceles ABC no plano vertical. O volume de seção transversal ABD é mantido cheio de um líquido de índice de refraçãon=3. Um raio incide normalmente à face transparente da parede vertical BD e atravessa o líquido .

Considere as seguintes afirmações:

  • I.

    O raio luminoso não penetrará no prisma.

  • II.

    O ângulo de refração na face AB é de 45.

  • III.

    O raio emerge do prisma pela face AC com ângulo de refração de 45.

  • IV.

    O raio emergente definitivo é paralelo ao raio incidente em BD.

Das afirmativas mencionadas, é (são) correta(s):

a) apenas I. b) apenas I e IV. c) apenas II e III. d) apenas III e IV.e) II, III e IV. ”

Neste artigo, nos propomos a estabelecer uma função generalizada para o desvio angular em um prisma de base triangular. No contexto da óptica citamos, a título de exemplo, o caso das lentes esféricas como “equações” generalizadas semelhantes a esta que propomos no presente artigo.

Após a obtenção de tal função, faremos a demonstração das condições de desvio mínimo utilizando cálculo diferencial, acessível aos alunos de graduação. Além disso, faremos uma análise detalhada da função, inclusive das condições necessárias para que não haja reflexão total nas interfaces; condições essas que se relacionam ao domínio de tal função.

Destaquemos que certos aspectos de simetria existentes no caso particular de meios externos idênticos não são verdadeiros para o caso geral; aspectos estes que, combinando o princípio físico da reversibilidade e princípio matemático de não-contradição (demonstração por absurdo), permitem a obtenção dos ângulos relacionados ao desvio mínimo (em módulo) sem o uso de cálculo diferencial.

Uma vez que a análise da situação geral, conforme propomos neste artigo, não se dá de forma imediata a partir do caso particular – demandando certo trabalho no uso de cálculo diferencial, álgebra e trigonometria –, cremos que o presente artigo pode ser de grande valia a professores e estudantes que, porventura, necessitem realizar tal investigação. Com o intuito de simplificar a consulta, estabeleceremos no corpo do artigo as principais equações e resultados, deixando as demonstrações detalhadas das relações que julgamos mais importantes para o apêndice.

2. Argumentação Teórica

2.1. Principais relações (equações/funções) geométricas e físicas

Consideremos o prisma de base triangular e ângulo de abertura A, conforme a Fig.2.

Figura 2
Esquema dos desvios nas faces adjacentes de um prisma de base triangular. Vide texto para detalhes. Na figura, N12 representa a normal entre os meios 1 e 2, N23 representa a normal entre os meios 2 e 3, i12 o ângulo de incidência no meio 1, r12 o ângulo de refração no meio 2, r23 o ângulo de incidência no meio 2 e i23, o ângulo de refração no meio 3, D12 o desvio na interface dos meios 1 e 2, D23 o desvio na interface dos meios 2 e 3 e D o desvio total.

Conside ni(i=1,2,3), os índices de refração dos meios 1, 2 e 3, respectivamente, conforme ilustrado na Fig.2. Na condição particular citada anteriormente (n1=n3<n2). de acordo com a Fig.2 é possível verificarmos que temos sempre um desvio angular no sentido horário, sendo então, nos livros textos, analisado o valor desse ângulo. Porém, no caso geral, o desvio angular em cada interface e o desvio total podem se dar tanto no sentido horário quanto no anti-horário. sendo assim, buscaremos as expressões algébricas dos desvios, para que a interpretação dos valores obtidos se dê de acordo com a convenção estabelecida.

Geometricamente é possível verificar que o desvio total sofrido pela luz ao atravessar o prisma é igual à soma algébrica (levando-se em conta tanto os valores dos ângulos quanto o sentido horário ou anti-horário, aos quais convencionamos sinais positivos ou negativos) dos desvios parciais sofridos em cada interface. Assim sendo, analisamos o desvio parcial em cada interface, para então obtermos a expressão do desvio total. Tomando o sentido anti-horário como positivo, vem:

GEOMÉTRICAS

(1) Desvio na interface 1 - 2 : D 12 = r 12 - i 12
(2) Desvio na interface 2 - 3 : D 23 = r 23 - i 23
(3) A = r 12 + r 23
(4) Desvio Total: D = A - ( i 12 + i 23 )

FÍSICAS

(5) 1 - 2 : n 1 sen i 12 = n 2 sen r 12
(6) 2 - 3 : n 2 sen r 23 = n 3 sen i 23

A título de exemplificação, utilizaremos os dados numéricos da questão do ITA, anteriormente citada: n1=3, n2=2, n3=1 (aproximadamente); A=90, i12=45.

INTERFACE 1–2

Da lei de Snell aplicada à refração 1–2: 3 sen 45=2 sen r12r12=60.

O desvio na interface 1–2 vale D12=r12-i12=60-45D12=+15. (ou seja, de 15 graus no sentido anti-horário.).

INTERFACE 2–3

Para o cálculo do ângulo de incidência r23, utilizaremos a relação A=r12+r23. No caso, 90=60+r23r23=30.

Da lei de Snell aplicada à refração 2–3: 2 sen 30=1. sen i23i23=45

O desvio na interface 2–3 vale D23=r23-i23=30-45D12=-15 (ou seja, de 15 graus no sentido horário.).

DESVIO TOTAL

D = D 12 + D 23 = ( + 15 ) + ( - 15 ) d = 0

2.2. Funções do desvio angular

2.2.1. Estudo analítico do desvio total (d) em função do ângulo de incidência (i12)

Essa função é a mais “natural”, uma vez que experimentalmente o que se controla é o “ângulo de entrada” i12.

(7) D = A - i 12 - arc sen { n 23 sen [ A - arc sen ( n 12 sen i 12 ) ] }

Notemos que a função é algebricamente bastante complicada, envolvendo funções compostas/trigonométricas inversas.

Se tivermos interessados somente no módulo do desvio angular, toma-se então o módulo da função descrita pela equação (7).

3. Análise do Domínio da Função

Para que não ocorra reflexão total numa dada interface, devem ser obedecidas as seguintes condições:

(8) Interface 1 - 2 : i 12 < arc sen ( n 21 ) ( caso n 1 > n 2 )
(9) Interface 2 - 3 : i 12 > arc sen { n 21 [ sen [ A - arc sen ( n 32 ) ] ] } ( caso n 2 > n 3 )

Exemplificação, com a questão do ITA anteriormente citada:

Da equação VIII: i12<55 (aprox.).

Da equação IX: i12>35 (aprox).

O domínio então é: 35<i12<55 ou 0,61 rad <i12<0,96 rad.

3.1. Estudo analítico do desvio total (d) em função do ângulo de emergência (r12)

(10) D = A - arc sen ( n 21 sen r 12 ) - arc sen [ n 23 sen ( A - r 21 ) ]

Notemos que a função do desvio angular em termos de r12 é algebricamente mais simples que em termos dei12!

Derivando tal expressão e igualando a zero para a pesquisa de minimantes ou maximantes, r12:

(11) d D d r 12 = 0 - n 21 cos r 12 1 - n 21 2 sen 2 r 12 + n 23 cos ( A - r 12 ) 1 - n 23 2 sen 2 ( A - r 12 ) = 0 n 21 cos r 12 1 - n 21 2 sen 2 r 12 = n 23 cos ( A - r 12 ) 1 - n 23 2 sen 2 ( A - r 12 )

Resolvendo a equação trigonométrica:

(12) r 12 = arc tg ( 1 - α cos A α sen A )
(13) onde α = n 1 2 - n 2 2 n 3 2 - n 2 2

Caso n1=n3=nexterno (meios externos idênticos), α=1 e tgr12=1-cosA sen A.

Da trigonometria sabemos que tg (A/2)=1-cosA sen A. logo, r12=A/2. O que nos leva (Eq. 3) a r23=A/2 e i12=i23=arc sen [nprisma/nexterno sen (A/2)]. Fica assim demonstrado, então, o caso particular!

O valor (real) de α, e consequentemente um valor de mínimo ou máximo local só existem se os meios externos forem simultaneamente mais refringentes ou menos refringentes que o prisma. Há três situações possíveis: i) meios externos mais refringentes que o prisma. ii) meios externos menos refringentes que o prisma. iii) o índice de refração do prisma tem valor intermediário em relação aos índices dos meios externos.

Uma vez que o índice de refração n1 aparece no numerador da fração e o do meio 3 no denominador na expressão de α, os valores dos ângulos de incidência (i12) e emergência (r12) que tornam o desvio mínimo dependem da interface do prisma que o raio incidiu; o que não ocorre no caso particular de meios externos idênticos (n1=n3; α=1).

3.2. Análise gráfica do desvio total (d) em função do ângulo de incidência (i12)

Analisaremos duas situações citadas anteriormente:

3.2.1. O índice de refração do prisma tem valor intermediário em relação aos índices dos meios externos

Exemplificando novamente com a questão do ITA: n1=3, n2=2, n3=1, A=90. O gráfico do desvio D (Eq. 10) em função do ângulo de incidência i12 é mostrado na Fig.3 e o módulo de D na Fig.4. O foco da análise gráfica é qualitativo. Uma vez que α<0, analiticamente a função D(i12) não possui um ponto de mínimo (a 1a. derivada não se anula). Pela Fig.3, entre i12=0,61 rad (35) a i12=0,79 rad (45) a função possui valor negativo, o que indica um desvio no sentido horário. De i12=0,79 rad (45) a i12=0,96 rad (55) a função assume um valor positivo, indicando um desvio anti-horário. Os maiores valores dos módulos dos desvios (Fig.4) se dão nos extremos do domínio, sendo o módulo reduzido a zero em i12=0,79 rad (45).

Figura 3
Desvio D em função do ângulo de incidência entre as interfaces 1 e 2 (i12). Veja texto para detalhes.
Figura 4
Módulo do desvio D em (vide Fig.3) função do ângulo de incidência entre as interfaces 1 e 2 (i12).

3.2.2. Meios externos menos refringentes que o prisma

Consideremos, a título de exemplo, um prisma feito de diamante n2=2,4, imerso na água n1=1,3 (n12=n1/n2=0,54) e na glicerina n3=1,5 (n23=n2/n2=1,60) – valores aproximados. Com ângulo de abertura A=45=π/4=0,79 rad. Seguindo raciocínio idêntico ao aplicado ao caso anterior: O domínio então é: 12<i12<90 ou 0,21 rad <i12<1,57 rad., α=1,08, r12maximante=17,2=0,30 rad. As Figs.5 e6 mostram o desvio D e o módulo de D, respectivamente, em função do ângulo de incidência. Note que, como os índices de refração dos meios externos possuem valores relativamente próximos – que implica em α próximo de 1 – o valor de r12,minimante=17,2 está próximo da metade do ângulo de abertura do prisma (A/2=22,5), conforme seria de se esperar. O valor r12,minimante=17,2=0,30 rad nos leva a: i12,maximante=33,1=0,58 rad; Dmá ximo=-36,4=-0,63 rad. Tomando o limite de D quando i12 tende a 12: D=-51,5=-0,90 rad. Tomando o limite de D quando i12 tende a 90: D=-64,8=-1,13 rad.

Figura 5
Desvio D em função do ângulo de incidência entre as interfaces 1 e 2 (i12), para n12=0,54 ; n23=1,60 e A=0,79 rad.
Figura 6
Módulo do desvio D em (vide Fig.5) função do ângulo de incidência entre as interfaces 1 e 2 (i12).

4. Conclusão

Notemos que o gráfico D×i12 do desvio em função do ângulo de incidência pode ser obtido teoricamente e não somente experimentalmente; embora a elaboração do gráfico sem o uso de programas computacionais seja uma tarefa uma tanto árdua, devido à complexidade analítica de tal função. Nesse sentido, é mais simples a pesquisa do valor do valor de r12 que torna o desvio máximo ou mínimo (algebricamente), recaindo em uma equação trigonométrica que, diferente do caso particular de meios externos idênticos, não é possível sua resolução por simples inspeção.

Reforçando alguns aspectos já ditos ao longo do texto, mas que merece ser chamada atenção é que, diferentemente do caso particular: a) o desvio pode se dar tanto no sentido horário quanto no anti-horário (Fig.6); b) certos aspectos de simetria existentes no caso particular de meios externos idênticos não são verdadeiros para o caso geral; aspectos estes que, combinando o princípio físico da reversibilidade e princípio matemático de não-contradição (demonstração por absurdo), permitem a obtenção dos ângulos relacionados ao desvio mínimo (em módulo) sem o uso de cálculo diferencial.

Referências

  • [1]
    J.L.P. Ribeiro, Rev. Bras. Ensino Fís. 35 , 4309 (2013).
  • [2]
    N. Farkas, P.N. Henriksen and R.D. Ramsier, Phys. Educ. 41 , 69 (2006).
  • [3]
    F. El-Ghussein, J.M. Wrobel and M.B. Kruger, Am. J. of Phys. 74 , 888 (2006).
  • [4]
    B.P. Chandra and S.C. Bhaiya, Am. J. of Phys. 51 , 160 (1983).
  • [5]
    https://www.vestibular.ita.br/, acessado em 31/05/2023.
    » https://www.vestibular.ita.br/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2023
  • Aceito
    29 Maio 2023
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