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A força eletromotriz de movimento e os fundamentos da teoria eletromagnética clássica

Motional electromotive forces and the foundations of the classical electromagnetic theory

Resumos

Discute-se, aqui, uma questão relevante acerca da explicação de certos fenômenos, quais sejam aqueles em que surge uma força eletromotriz de movimento em situações tais que a lei de Faraday não se aplica. Na esteira desta discussão, comentam-se outras questões a respeito da teoria eletromagnética clássica, como a sua estrutura axiomática e sua relação com a teoria da relatividade.

força eletromotriz de movimento; lei de Faraday; equações de Maxwell; teoria da relatividade


We discuss here an important question concerning the explanation of some phenomena in which a motional electromotive force appears, by using Faraday's law under conditions where it does not apply. In addition, this discussion gives rise to comments on subjects such as the axiomatic structure of the classical electromagnetic theory and its relation with relativity.

motional electromotive force; Faraday's law; Maxwell equations; relativity


ARTIGOS GERAIS

A força eletromotriz de movimento e os fundamentos da teoria eletromagnética clássica

Motional electromotive forces and the foundations of the classical electromagnetic theory

Paulo Henrique Dionisio1 1 E-mail: paulohdionisio@gmail.com.

Instituto de Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

RESUMO

Discute-se, aqui, uma questão relevante acerca da explicação de certos fenômenos, quais sejam aqueles em que surge uma força eletromotriz de movimento em situações tais que a lei de Faraday não se aplica. Na esteira desta discussão, comentam-se outras questões a respeito da teoria eletromagnética clássica, como a sua estrutura axiomática e sua relação com a teoria da relatividade.

Palavras-chave: força eletromotriz de movimento, lei de Faraday, equações de Maxwell, teoria da relatividade.

ABSTRACT

We discuss here an important question concerning the explanation of some phenomena in which a motional electromotive force appears, by using Faraday's law under conditions where it does not apply. In addition, this discussion gives rise to comments on subjects such as the axiomatic structure of the classical electromagnetic theory and its relation with relativity.

Keywords: motional electromotive force, Faraday's law, Maxwell equations, relativity.

Para a Lígia, minha aluna de teoria eletromagnética

"O meu dever cultural é pensar por mim, sem obediência a outrem - nullius addictur jurare in verba magistri; o meu dever cultural é registrar pela palavra escrita, grafando como entendo que devo, o que pensei. Assim se cria a cultura e portanto a civilização."

Fernando Pessoa

1. Introdução

Propomos discutir, neste artigo, uma abordagem frequentemente utilizada em textos de física básica para cursos universitários, ao tratarem de determinada classe de fenômenos relacionados com a indução eletromagnética. Os fenômenos a que nos referimos são aqueles em que se induz uma força eletromotriz (abreviadamente, fem) em um objeto metálico que se move sujeito a um campo magnético uniforme e estacionário.2 2 Um campo vetorial é dito uniforme quando, a qualquer instante, possui mesmo módulo, mesma direção e mesmo sentido em todos os pontos da região considerada. É dito estacionário quando, em qualquer ponto do espaço, não se altera com o passar do tempo. Como exemplos, temos os seguintes casos: um bastão ou haste metálica que se move perpendicularmente a si próprio e ao campo magnético (Fig. 1a), uma haste metálica que gira sobre um plano perpendicular ao campo magnético presa por uma das extremidades (Fig. 2a) e o dínamo de disco de Faraday, também conhecido como gerador homopolar (Fig. 2b). A abordagem em discussão consiste em explicar tais fenômenos com base na lei de Faraday. Esta lei, como se sabe, estabelece que a fem induzida em um circuito fechado3 3 Neste trabalho, tratamos apenas de objetos metálicos filamentares: fios que percorrem uma única trajetória de uma extremidade a outra, sem se entrecruzarem ou se superporem, aos quais nos referimos genericamente como "circuitos". Tais circuitos podem ser fechados ou abertos, conforme suas extremidades se unam ou não. A única exceção será o dínamo de disco de Faraday. Tendo em vista nossos objetivos, isto não implica perda de generalidade. vale a variação temporal do fluxo magnético através da área por ele delimitada



onde ε é a fem induzida no circuito, A é a área por ele delimitada, B é a indução magnética ou densidade de fluxo magnético, Φ é o fluxo magnético através da área A e o sinal tem a ver com o sentido da corrente elétrica induzida. Ora, nos casos mencionados acima, não se configura a existência de um circuito fechado e, portanto, não há uma área através da qual se possa calcular o fluxo. Mesmo assim, alguns autores calculam a fem induzida usando a lei de Faraday, mediante o emprego de artifícios tais como importar indevidamente resultados de situações onde a lei se aplica ou introduzir elementos estranhos ao seu conteúdo original, como "circuitos imaginários" e "áreas varridas".4 4 O autor deste texto relata ver-se frequentemente envolvido em discussões com colegas sobre o assunto proposto. Curiosamente, tais discussões só ocorrem no estrito círculo em que se decide a publicação de um artigo, estando ele às vezes na posição de autor, instado a defender seu ponto de vista frente aos árbitros, outras vezes na posição de árbitro, cioso de convencer os autores de sua posição. Como tais discussões às vezes adquirem contornos ideológicos, parece-lhe oportuno esclarecer o assunto à luz do dia.

A abordagem alternativa ao uso da lei de Faraday nessas situações consiste em considerar a força eletromotriz sob o ponto de vista microscópico. O clássico de Slater e Frank [1, p. 79] estabelece com precisão:

By definition, the emf around a circuit equals the total work done, both by electric and magnetic forces and by any other sort of forces, such as those concerned in chemical processes, per unit charge, in carrying a charge around the circuit.

Assim,

Nas situações abrangidas pela lei de Faraday, a força eletromotriz é dita induzida. Nos casos em que se trata de fem de movimento, os portadores de carga elétrica dentro do objeto metálico, com ele arrastados no campo magnético, sofrem uma força magnética FM=qv×B que os desloca ao longo do circuito [2, p. 16-2; 3, p. 349-350], de modo que

Nas situações que propomos discutir, como não há circuito fechado, a força magnética faz com que os portadores de carga se acumulem em determinadas regiões, ficando o objeto polarizado. As Eqs. (2) e (3) podem ser usadas calculando-se a integral ao longo de um percurso que conecta as regiões onde se acumulam as cargas de sinais contrários [4, p. 143, 283]

Nas seções seguintes, confrontaremos essas duas abordagens, mostrando como se relacionam e discutindo a sua validade. Embora sem a intenção de aprofundar a discussão a respeito de aspectos epistemológicos relacionados à construção e à estrutura das teorias físicas, procuraremos caracterizar o posicionamento das abordagens em confronto frente à estrutura axiomática da teoria eletromagnética clássica. Comentaremos também, brevemente, a relação entre esta teoria e a teoria da relatividade. Evitaremos o uso do cálculo vetorial e de recursos matemáticos mais elaborados, de modo a manter o texto compatível com o tratamento usualmente dado ao assunto nos livros de física universitária básica.

Como exemplo de texto didático que privilegia o cálculo da fem de movimento pela lei de Faraday, pode-se mencionar o popular livro de David Halliday e Robert Resnick, ao longo de suas sucessivas edições [5]. Como exemplo de texto que enfatiza o papel da força magnética, temos o clássico Sears e Zemansky. Em edições mais antigas [6, p. 689], estes autores iniciavam o estudo da indução eletromagnética pela análise da situação da Fig. 1a, que de imediato resolviam seguindo os passos da Eq. (3a). Em edições mais recentes [4, cap. 30], adotam a sequência de tópicos mais frequentemente usada, qual seja iniciar o assunto apresentando as experiências de Faraday e a Eq (1), mas mantêm a discussão da situação da Fig. 1a e sua solução pela Eq. (3a). O livro de A.S. Chaves [7, seção 23.7] pode ser citado como um texto que trata o assunto com objetividade e precisão.

2. As duas abordagens

A primeira abordagem a ser discutida consiste em usar a lei de Faraday para calcular a fem de movimento em casos como os mencionados na Introdução. Vejamos os artifícios frequentemente utilizados para este fim.

Um primeiro artifício consiste em importar resultados de situações onde a lei de Faraday se aplica. Em geral, os textos didáticos destinados a cursos universitários de física básica iniciam a exposição do assunto "indução eletromagnética" pela apresentação das leis de Faraday e Lenz, Eq. (1), exemplificando sua aplicação com casos como o ilustrado pela Fig. 1b: uma haste metálica de comprimento l desliza sobre trilhos metálicos em forma de U, com os quais está em contato, constituindo o conjunto um circuito retangular de área variável, sujeito a um campo magnético perpendicular ao seu plano (B é a indução magnética). Da lei de Faraday resulta que a fem induzida no circuito vale ε = Blv. Mais adiante, ao apresentarem a situação da Fig. 1a, alguns textos argumentam que, na Fig. 1b, a causa da indução é o movimento da haste e que, portanto, nela reside a fem induzida. Argumentam também que, sendo a haste o sujeito e o objeto da fem induzida, o fenômeno da indução ocorrerá mesmo na ausência das demais partes do circuito, de modo a concluírem que a haste, mesmo isolada como na Fig. 1a, fica sujeita a uma fem induzida

Ora, a lei de Faraday descreve o sistema sob um ponto de vista macroscópico. Isto significa, considerando-se o caso específico da Fig. 1b, que surge uma fem induzida ε = Blv no circuito como um todo, sendo que, no cálculo, l representa a largura do retângulo e não o comprimento de um de seus lados em particular. Não se pode, apenas com base nessa lei, estabelecer que fração da fem induzida cabe a qual parte do circuito. Também não se pode atribuir função específica a qualquer parte do circuito, sendo impossível afirmar que esta ou aquela parte seja dispensável no processo. Assim, a simples transposição do resultado da situação da Fig. 1b para a situação da Fig. 1a resulta indevida.

O segundo artifício é um passo adiante do primeiro. Uma vez que o resto do circuito não influencia nem o processo nem o resultado, ele não precisa existir de fato, basta imaginá-lo. Na situação da Fig. 2a, por exemplo, pode-se considerar que o arco ab e o raio ac componham com a haste móvel bc um circuito fechado imaginário. Como a área do setor circular abc vale Al2/2, a aplicação da lei de Faraday resulta em (sem levar em conta o sinal)

Os mesmos argumentos anteriores são então usados para dispensar o circuito auxiliar e atribuir essa fem induzida à haste girante, mesmo isolada. As mesmas objeções anteriores invalidam também este artifício.

Recorre-se às vezes ao artifício de calcular o fluxo magnético através da área varrida pela haste. Este procedimento decorre da constatação de serem os circuitos imaginários estabelecidos de forma arbitrária. No caso da Fig. 2a, por exemplo, podemos criar uma infinidade de circuitos imaginários simplesmente mudando a posição do ponto a, mas a aplicação da lei de Faraday dará sempre o mesmo resultado, pois a variação temporal do fluxo não depende da área do circuito em si, mas apenas de sua variação. Dito de outro modo, o que importa é a variação do fluxo através da "área varrida" pela haste em seu movimento. Assim, se ela leva um certo tempo t para varrer o setor circular de abertura angular θ, o fluxo através dessa área varrida valerá Φ = Bωtl2/2, cuja variação temporal repete o resultado da Eq. (5).

Apesar da identidade formal entre o uso da área varrida e o cálculo pela lei de Faraday, há uma diferença essencial: a lei de Faraday aplica-se a um ente físico concreto, qual seja um circuito real; já a área varrida é um ente hipotético, abstrato. A discussão, na próxima seção, do caso ilustrado pela Fig. 5a esclarecerá esta diferença.


Outro procedimento, que não é propriamente um artifício, consiste em elevar a expressão ε = Blv, que expressa a fem de movimento na situação da Fig. 1a, à condição de "fórmula feita". Na Fig. 2a, por exemplo, a haste girante pode ser subdividida em hastes de comprimento infinitesimal dl, cabendo a cada uma, de acordo com a "fórmula", uma fem induzida ε=Bvdl. Fazendo vr, onde r é a distância de um elemento genérico ao ponto central C e integrando ao longo do comprimento da haste, obtém-se o mesmo resultado da Eq. (5). Este procedimento é correto, mas, caso a "fórmula" não haja sido previamente obtida de maneira adequada, transforma-se em um artifício para contornar a ausência de uma explicação física consistente para o fenômeno.

Em oposição a essa primeira abordagem, que analisa o sistema sob um ponto de vista macroscópico, pode-se considerar a origem da fem de movimento sob um ponto de vista microscópico. Esta será a nossa segunda abordagem. Tomemos como exemplo o dínamo de disco de Faraday. Seja l o seu raio. A Fig. 3a mostra um portador de carga elétrica positiva dentro do disco, sendo com ele arrastado em uma trajetória circular, animado portanto de uma velocidade tangencial v e sujeito a uma força magnética radial F=qv×B . De acordo com a Eq. (3a)


Comparando com a Eq. (5), vê-se que as fem de movimento induzidas na haste e no disco são de igual valor, se l e ω e B forem os mesmos.

A Fig. 3b mostra o dínamo de disco em funcionamento. Um resistor R tem suas extremidades conectadas por meio de escovas ao centro e à borda do disco, de modo que o conjunto forma um circuito fechado. O resistor fica sujeito a uma fem dada pela Eq. 6, de modo que, desprezando-se a resistência elétrica dos demais componentes do conjunto, a corrente elétrica i que o percorre vale Bωl2/2R. Em suma, o disco girante faz o mesmo papel que faria uma pilha ou bateria de igual "voltagem". Note-se que não há variação de fluxo magnético através do circuito e portanto, pela descrição macroscópica do fenômeno, a fem induzida deveria ser nula. Temos aí uma situação em que a lei de Faraday é violada [2, seção 17-2; 7, p. 140].

É forçoso reconhecer que, nas situações aqui estudadas, o cálculo da fem induzida via força magnética sobre os portadores de carga (segunda abordagem) é direto, de fácil compreensão e pleno de significado físico, pois reflete o caráter magnetostático do fenômeno. Já a descrição macroscópica via lei de Faraday (primeira abordagem) recorre a argumentos desnecessariamente sofisticados e inadequados e não esclarece a origem física do fenômeno [8, seção IV]. No caso do dínamo de disco, nem mesmo o recurso a um circuito imaginário ou a uma área varrida parece ser possível. De fato, textos que apresentam a primeira abordagem muita vezes recorrem à comparação com os resultados da segunda abordagem como argumento para validar seus procedimentos.

3. A questão da área varrida

Pode-se mostrar que, no caso de um circuito fechado que se move em um campo magnético estacionário (mas não necessariamente uniforme), a variação do fluxo magnético através da área varrida pelo circuito é igual à variação do fluxo magnético através da área delimitada pelo circuito, com o sinal trocado. Na Fig. 4a, um circuito fechado desloca-se a partir de uma certa posição inicial C0, atingindo sucessivamente as posições C1 e C2, nas quais delimita as áreas A1 e A2, respectivamente. Este deslocamento pode envolver translação, rotação e deformação do circuito. Ao atingir C1 e C2, o circuito terá varrido as áreas laterais AV1 e AV2, respectivamente, sendo ΔAV = AV2 - AV1. Sejam ΦA1,ΦA2, ΦAV1 e ΦAV2 os fluxos magnéticos através das respectivas áreas, conforme indicadas pelos subscritos. Mostra-se facilmente que ΦΔAV, o fluxo através da área ΔAV, vale ΦAV2- ΦAV1. Como o campo magnético não se altera durante o deslocamento, pode-se considerar que as superfícies A1, A2 e ΔAV constituem, em um dado instante, uma superfície fechada imersa nele. Pela lei de Gauss do magnetismo, o fluxo magnético através de uma superfície fechada é nulo. O fluxo magnético através da área A1 tem sinal contrário ao convencionado para uma superfície fechada e deve ser tomado com sinal negativo (observem-se na figura os vetores dA1, dA'1 e dA2). Assim,


ou ainda (como queríamos demonstrar)

Seja ΦA2 - ΦA1 = ΔΦ. Dividindo-se a Eq. (7) por Δt, o tempo transcorrido durante o deslocamento de C1 até C2 e tomando o limite para Δt→0, obtém-se

Tendo em vista a lei de Faraday, Eq. (1),

Vê-se, assim, que a fem induzida no circuito que se move pode ser calculada pela variação temporal do fluxo tanto através da área por ele delimitada, quanto através da área por ele varrida. Duas considerações, no entanto, se fazem necessárias a respeito deste segundo procedimento. Em primeiro lugar, ele só se aplica a circuitos fechados, pois, para justificá-lo, recorreu-se à lei de Gauss do magnetismo, que requer um volume fechado. Situações como as das Figs. 1a e 2a não são contempladas. Em segundo lugar, ao usá-lo não estamos usando a lei de Faraday, cujo enunciado, consubstanciado na Eq. (1) e na frase que a antecede, refere-se especificamente à área delimitada pelo circuito. Assim, a Eq. (9) deve ser vista como um corolário da lei de Faraday, jamais como uma formulação alternativa para ela.

Como exemplo, vejamos a situação mostrada na Fig. 5a. Uma espira retangular de lados l e L move-se sobre o plano XY com velocidade v=v0i em uma região do espaço onde a indução magnética é dada por B=B0xk (B0 é uma constante com dimensões de indução magnética por comprimento). No instante t = 0, o lado esquerdo da espira coincide com o eixo Y. Em um instante t qualquer, a espira andou uma distância x=vt. Apliquemos a lei de Faraday. No instante t, o fluxo magnético através da área A delimitada pela espira vale

de modo que a fem induzida instantânea valerá

O sinal negativo significa que a fem induzida é no sentido anti-horário para quem olha ao longo do eixo Z, ou seja, é no sentido horário na figura.

Usemos agora a Eq. (9). Como a espira se movimenta sobre o plano XY, a área varrida por ela é achatada neste plano e compreende dois retângulos de altura l e largura x, um entre as abscissas 0 e x e o outro entre as abscissas L e L + x. Note-se que o fluxo através do segundo destes retângulos deverá ser tomado com sinal negativo, devido à já mencionada convenção de sinal para a orientação de superfícies fechadas.5 5 Suponha que a velocidade da espira fosse dada por v=ν0(i+k). Em sua translação, seguiria uma trajetória a 45° com o plano XY, de modo o volume fechado varrido por ela seria um paralelepípedo oblíquo, com o fluxo magnético entrando pela face inferior e pela face inclinada da direita e saindo pela face superior e pela face inclinada da esquerda. O fluxo através dessa área varrida AV será, pois

que repete a Eq (10), como era de se esperar. Apesar da semelhança dos procedimentos e da identidade dos resultados, apenas o cálculo que considera a área delimitada pelo circuito, jamais o que considera a área que ele deixa para trás ao movimentar-se, corresponde ao uso da lei de Faraday.

Pode-se mostrar também que o valor da fem de movimento calculado usando-se a área varrida é compatível com o valor calculado pela interpretação microscópica do fenômeno. Na Fig. 4b, as posições C1 e C2 são infinitesimalmente próximas e os vetores dl, vdt e d2AV representam, respectivamente, um elemento de comprimento do circuito, um deslocamento infinitesimal deste elemento e uma área varrida elementar. Note-se que dAV é um infinitésimo de primeira ordem, já que possui uma só dimensão infinitesimal (vdt), enquanto d2 2 Um campo vetorial é dito uniforme quando, a qualquer instante, possui mesmo módulo, mesma direção e mesmo sentido em todos os pontos da região considerada. É dito estacionário quando, em qualquer ponto do espaço, não se altera com o passar do tempo. AV é um infinitésimo de segunda ordem, pois possui uma segunda dimensão infinitesimal (dl). O fluxo magnético dΦAV através da área varrida dAV vale

Assim,

E, tendo em vista a Eq> (3),

Até aqui, assumimos sem provar a equivalência das expressões macroscópica, Eq.(1), e microscópica, Eq. (3) para o cálculo da fem de movimento. Ao obtermos as Eqs. (9) e (9a), de fato produzimos tal prova. Mais explicitamente, unindo-se as Eqs. (8) e (11), escreve-se

O artifício da área varrida estabelece, pois, uma ponte entre as explicações macroscópica e microscópica da fem de movimento e garante a equivalência entre elas.

O estudo da situação mostrada na Fig. 5a completa-se com a obtenção da Eq. (10) diretamente a partir da Eq. (3), que deixamos de apresentar por ser trivial.

O artifício da área varrida pode ser estendido ao cálculo da fem de movimento em circuitos abertos. A Fig. 5b mostra um condutor filamentar de comprimento l que efetua um deslocamento infinitesimal em uma região do espaço onde atua um campo magnético estacionário (não mostrado na figura). Basta repetir o argumento que leva à Eq. (11) e, levando em conta a Eq. (3a), trocar as integrais fechadas por outras abertas, calculadas ao longo do comprimento do condutor. Fica, assim, validado o uso do artifício da área varrida em situações como as das Figs. 1a e 2a. Ressalte-se, porém, que tal validade decorre da descrição microscópica do fenômeno via força magnética e não da sua interpretação macroscópica via lei de Faraday.

Por tudo o que se disse até aqui, vê se que o cálculo da fem de movimento pelo artifício da área varrida, no caso de campos magnéticos estacionários, é lícito, útil e mais abrangente do que a própria lei de Faraday, pois aplica-se também a circuitos abertos.

4. A lei de Faraday (ou, mais propriamente, a regra do fluxo)

Consideremos, agora, a lei de Faraday em toda a sua generalidade. Variações do fluxo ocorrem porque o campo magnético varia com o tempo, ou porque o circuito se move, alterando assim sua relação espacial com o campo magnético, ou pela combinação destes dois fatores. Deformações do circuito também acarretam variação do fluxo, mas podem ser descritas como devidas ao movimento desigual de partes do mesmo. Assim, na Eq. (1), a derivada completa do fluxo magnético através da área do circuito pode ser expressa em termos de suas derivadas parciais a B constante (estacionário) e A constante (todas as partes do circuito em repouso):6 6 Conforme notação adotada pela Ref. [8, p. 337].

Nesta equação, a segunda parcela descreve a contribuição da presença de um campo magnético não estacionário para a fem induzida em um circuito fechado

O subscrito transf refere-se ao fato de que este é o princípio de funcionamento dos transformadores. Usando as definições de força eletromotriz, Eq. (2) e de campo elétrico,

Assim, εtransf é interpretada como o resultado da ação sobre os portadores de carga de um campo elétrico Eind, induzido pelo campo magnético não estacionário. Comparando as Eqs. (14) e (15),

É útil considerar-se a Eq.(16) também sob sua forma diferencial, a qual se obtém mediante o uso do teorema de Stokes (ver, por exemplo, [3 , p. 68]):

As Eqs. (16) e (17) continuam válidas mesmo na eventual presença de um campo eletrostático, pois, sendo este conservativo (irrotacional), não contribui para o lado direto delas. O subscrito ind pode, então, ser dispensado e é sem ele que essas equações integram o quadro das equações de Maxwell (EM3 na Tabela 1).

Já a primeira parcela da Eq. (13) descreve a fem de movimento induzida em um circuito fechado em razão de ele mover-se ou deformar-se sob a ação de um campo magnético:

Os mesmos argumentos que levam às Eqs. (8) e (11) aplicam-se também na presença de um campo magnético não estacionário, desde que, na primeira delas, considere-se apenas a derivada parcial do fluxo a B estacionário,7 7 Ver, por exemplo, a Ref. [8, apêndice]. de modo que permanece a ponte entre as visões macro e microscópica da fem de movimento

Assim, no caso geral de um circuito fechado que se move em um campo magnético não estacionário, a Eq. (13) resulta em

ou (usando a Eq. (16))

Em resumo, o procedimento matemático de desdobrar a derivada total do fluxo magnético em suas derivadas parciais corresponde ao procedimento físico de considerar a fem induzida em um circuito que se move em um campo magnético não estacionário como a superposição dos efeitos, sobre os portadores de carga, do próprio campo magnético e de um campo elétrico por ele induzido.

Ao final da seção anterior, foi dito que, no caso de campos magnéticos estacionários, o cálculo da fem de movimento via fluxo magnético através da área varrida é mais abrangente do que via fluxo magnético através da área do circuito, pois aplica-se também a circuitos abertos. Agora, em um contexto mais amplo, vemos que tanto εtransf., Eq. (14) quanto εmov., Eq. (18) são parcelas desdobradas da Eq. (1) e que, portanto, deve-se usar para ambas o mesmo domínio de integração, qual seja a área delimitada pelo circuito. Esta é uma razão matemática pela qual o artifício da área varrida não pode substituir a lei de Faraday no contexto da teoria.

As Eqs. (20) e (21) podem ser vistas como uma forma estendida ou desdobrada da lei de Faraday. Vale a pena transcrever aqui partes do texto em que Richard Feynman expressa em palavras, de maneira simples e clara, o conteúdo das Eqs. (1), (13), (20) e (21) [2, p. 17-2):

Deste modo a 'regra do fluxo' - de que a fem em um circuito é igual à taxa de variação do fluxo magnético através do circuito - vale se o fluxo varia tendo como causa a variação do campo, ou porque o circuito se move, ou ambos. As duas possibilidades - 'o circuito se move' ou 'o campo varia' - são indistinguíveis no enunciado da regra. Ainda assim, usamos duas leis diferentes para explicar os dois casos - v×B para o caso em que 'o circuito se move' e ∇ × E = -∂B/∂t para o caso em que 'o campo varia'.

Devemos entender a regra do fluxo da seguinte maneira. No caso mais geral, a força por unidade de carga é F/q=E+v×B. Nos fios em movimento, existe a força do segundo termo. Além disso, existe um campo E se um campo magnético estiver variando. Estes efeitos são independentes, mas a fem ao longo do circuito é sempre igual à taxa de variação do fluxo magnético através dele.

Já foi mencionado que a Eq. (16), bem como sua forma diferencial, Eq. (17), integra o quadro das equações de Maxwell, onde figura com o nome de lei de Faraday. Por esta razão, para evitar ambiguidades, Feynman refere-se a nossa Eq. (1) simplesmente como a regra do fluxo. A. Macedo [3] prefere chamar as Eqs. (16) e (17) de leis de Faraday da indução e a Eq. (1) de lei de Faraday ampliada. Adotaremos, a partir de agora, a nomenclatura de Feynman.

Na presença de um campo magnético não estacionário, haverá sempre um campo elétrico induzido, mesmo na ausência de qualquer objeto material. A lei de Faraday, Eqs. (16) e (17), permite calculá-lo. Se houver suficiente simetria (na mesma acepção em que se requer simetria para o uso da lei de Gauss na forma integral), o circuito fechado requerido pela Eq. (16) será representado por uma curva fechada imaginária, auxiliar, tal como as superfícies gaussianas. Caso contrário, a Eq. (17), acrescida da especificação de condições de contorno adequadas, fornecerá o resultado desejado para E. Se um circuito estiver em movimento nessa região, a Eq. (21) permitirá o cálculo da fem induzida nele, mesmo que seja aberto, como na Fig. 5b. Nesta última condição, a superposição do efeito da eventual presença de um campo eletrostático permitirá descrever completamente a separação de cargas no condutor. Considerando-se ainda que, de acordo com a definição de Slater&Frank antes transcrita, pode-se incluir sob a forma de campos elétricos não-eletrostáticos o efeito de "any other sort of forces, such as those concerned in chemical processes", a Eq. (21), ou sua contrapartida diferencial, assume o papel de ser de fato a representação formal mais geral e abrangente e o instrumento mais completo para o cálculo da força eletromotriz em um circuito, seja aberto ou fechado.

5. Quem vem antes: a regra do fluxo ou a força de Lorentz?

A ponte entre as descrições macro e microscópica da fem de movimento, Eq. (19), pode ser percorrida nos dois sentidos. Galili e cols. [8] vão no sentido macro-micro e relatam obter a expressão para a força magnética sobre uma carga em movimento (que eles chamam de força de Lorentz) a partir da regra do fluxo. Seus passos são semelhantes aos que seguimos nas seções anteriores. Primeiro, desdobram a derivada total do fluxo magnético em suas derivadas parciais como na Eq (13), cuja primeira parcela identificam como a que descreve a fem de movimento, como na Eq. (18). Em seguida, tal como fizemos na seção 3 para obter as Eqs. (8) e (11), estudam situações como as das Figs. 4a e 4b para demonstrar as igualdades das Eqs (19). Assim, esses autores deduzem a Eq. (εmov= Φ (v×B) . dl) usando apenas a própria regra do fluxo, o seu desdobramento nas derivadas parciais, a lei de Gauss do magnetismo e argumentos geométricos, sem recorrer a qualquer consideração acerca da natureza física do fenômeno. A velocidade do portador de carga entrou nesta expressão por via da definição geométrica da área d2 2 Um campo vetorial é dito uniforme quando, a qualquer instante, possui mesmo módulo, mesma direção e mesmo sentido em todos os pontos da região considerada. É dito estacionário quando, em qualquer ponto do espaço, não se altera com o passar do tempo. AV=dl×vdt (ver Fig. 4a). É lícito, pois, considerando a definição de força eletromotriz (Eq. (2)), identificarem o produto v×B como a força magnética por unidade de carga

Thus, the Lorentz force naturally follows from the definition of the rate of flux change dΦ/dt as a complete derivative (and from the Maxwell equation B . dA=0),

concluem os autores. Ao que devemos acrescentar: tendo em vista, também, a definição de força eletromotriz.

Já Macedo [3] apresenta uma inusitada dedução da regra do fluxo, usualmente "obtida" como uma generalização das experiências de Faraday. Parte da expressão da força de Lorentz F/q = E + v × B e da definição de força eletromotriz, que, combinadas, resultam na Eq. (21), a qual desdobra em duas parcelas

Usando o teorema de Stokes e a lei de Faraday na forma diferencial (Eq. (17)), transforma a primeira parcela acima na Eq. (14). Para transformar a segunda parcela na Eq. (18), percorre a ponte representada pela Eq. (19), agora no sentido micro-macro. Depois, mediante simples superposição das Eqs. (14) e (18), obtém a Eq. (13). Assim, deduz a regra do fluxo a partir da força de Lorentz.

Façamos um parêntesis para comentar outro parágrafo de efeito de Feynman sobre a regra do fluxo [2, p. 17-2]:

Não conhecemos nenhum outro lugar na física, onde um princípio geral tão simples e tão acurado precise ser analisado em termos de dois fenômenos diferentes8 8 Grifado no original. para ser compreendido. Normalmente uma generalização assim surge de um único princípio mais profundo. Mesmo assim, neste caso não parece haver uma implicação mais profunda. É necessário entender a 'regra (do fluxo)' como a ação combinada dos efeitos de dois fenômenos bastante distintos.

Se atentarmos para a definição de Slater e Frank [1], vemos que as fem's decorrem da ação de qualquer tipo de força sobre os portadores de carga elétrica em um metal. Seja na visão de Galili e cols., seja na visão de A. Macedo, as fem's induzidas decorrem da ação de uma única categoria de agentes físicos: os campos magnéticos, que agem sobre os portadores de carga segundo dois mecanismos diferentes, conforme sejam estacionários ou não estacionários. Na Eq. (23), cada um desses mecanismos aparece descrito com uma integral de linha ao longo do circuito fechado e não é surpreendente que ambas possam ser transformadas em uma integral de superfície sobre a área delimitada pelo circuito. Os dois fenômenos diferentes não são, afinal, tão distintos assim...

Voltemos aos procedimentos de Galili e cols. e A. Macedo, acima relatados. Qual o correto: deduzir a regra do fluxo a partir da força de Lorentz, ou vice versa? Qual destas duas relações entre grandezas precede a outra, na formulação da teoria eletromagnética clássica (TEMC)? De fato, o que está mostrado acima é que a regra do fluxo e a força de Lorentz são proposições equivalentes e que não existe uma única maneira de organizar hierarquicamente os elementos de uma teoria. Para Galili e cols., a regra do fluxo é uma lei, um princípio fundamental do qual decorre, entre outras consequências, a expressão da força de Lorentz. Tanto quanto transparece de seu texto, eles concebem a TEMC como fundamentada sobre quatro leis ou princípios gerais, que seriam a lei de Gauss, a lei de Gauss do magnetismo, a regra do fluxo e a lei de Ampère-Maxwell (ver Tabela 1). Uma análise mais apurada da estrutura lógica assim construída talvez recomendasse guindar a definição de campo elétrico à condição de uma quinta lei, de modo a poder-se deduzir também a primeira parcela da Eq. (23). Já para A. Macedo, é a expressão da força de Lorentz que assume o status de equação fundamental, da qual se deduz a regra do fluxo, sendo cinco as equações básicas da TEMC: as quatro equações de Maxwell e a expressão da força de Lorentz, conforme listadas na Tabela 1.

Chamemos de estrutura axiomática de uma teoria a uma particular organização do seu conteúdo, com cada um de seus elementos básicos cumprindo uma função bem definida: os conceitos, definições, convenções, princípios ou leis organizados hierarquicamente de modo que deles se possam extrair por dedução as consequências da teoria e assim descrever o comportamento dos sistemas físicos a que se refere. A validade da teoria é estabelecida pela coincidência entre a descrição dos fenômenos físicos que dela decorre e os fatos observados. Já a conveniência ou a aceitação de uma dada formulação axiomática advém de considerações tais como: economia (o uso de um menor número possível de princípios básicos), simplicidade (permitir a obtenção de resultados de forma simples, direta), abrangência (conduzir à descrição de uma maior variedade se situações físicas) etc. Pode-se, em princípio, recorrer a mais de uma formulação axiomática, por mera conveniência. Nos textos de mecânica clássica, por exemplo, encontra-se o problema do oscilador harmônico simples resolvido usando qualquer uma das formulações newtoniana, lagrangiana ou hamiltoniana. O importante é que o usuário da teoria tenha consciência de qual formulação está usando, pois a hibridização de formulações pode levar a descrições ambíguas ou interpretações equivocadas.

Mas a construção de uma teoria pressupõe a existência de um modelo. O modelo é uma concepção idealizada, um conjunto de hipóteses sobre o sistema físico, sua constituição, suas partes, suas relações e suas funções. O modelo serve de arcabouço para a teoria, de modo que esta reflete a visão e a percepção do seu autor sobre o sistema físico em questão. No caso dos fenômenos eletromagnéticos, os construtores da TEMC adotaram um modelo que os levou a estabelecerem as cinco relações matemáticas relacionadas na Tabela 1 como as leis básicas do eletromagnetismo. Talvez seja apropriado referirmo-nos a esta formulação como a TEMC vigente. O termo vigente reflete a dupla condição de que ela não é a única possível, mas é a que desfruta de aceitação universal.

6. A teoria eletromagnética clássica vigente

Na concepção de Maxwell e seus colaboradores, os fenômenos eletromagnéticos resultam da ação e da interação de um único ente físico fundamental: a carga elétrica. Ainda de acordo com a concepção por eles adotada, objetos dotados de carga elétrica não interagem diretamente, mas a interação é mediada pelo campo eletromagnético. A teoria que eles construíram para a descrição dos fenômenos eletromagnéticos possui uma estrutura formal e uma lógica intrínseca que privilegiam essa noção de campos como mediadores das interações. Primeiro, na presença de cargas elétricas, surgem os campos. Depois, os campos encarregam-se de agir sobre outras cargas elétricas. Então, primeiro necessitamos de equações que, dadas as fontes (cargas elétricas em repouso ou em movimento), permitam obter os campos. Este é o papel das equações de Maxwell (EM). Depois precisamos saber como agem os campos sobre as cargas elétricas. Isto é dito pela equação da força de Lorentz (FLZ). São cinco, então, as equações fundamentais da TEMC: as quatro EM e a FLZ. Esta é tão importante quanto as quatro outras juntas, pois descreve sozinha a segunda etapa do processo de interação.

Escritas como na Tabela 1, as EM especificam, à esquerda das igualdades, os campos e à direita, suas respectivas fontes. Há duas equações com campo elétrico à esquerda. Na lei de Gauss da eletricidade, o lado direito contém a carga elétrica. Na lei de Faraday, à direita está a variação temporal de um campo magnético. Isto significa que há, na natureza, duas classes de campos elétricos, correspondendo cada uma a um tipo diferente de fonte: os campos eletrostáticos, que surgem na simples presença de cargas elétricas, e os campos elétricos induzidos por campos magnéticos não estacionários. Há também duas equações com campo magnético à esquerda. Na lei de Gauss do magnetismo, temos zero à direita, o que nos informa a inexistência de carga magnética e, consequentemente, de um campo magnetostático de origem e propriedades análogas às do campo eletrostático. Em compensação, na lei de Ampère e Maxwell há duas parcelas à direita, significando que há também dois tipos de fontes e portanto duas classes de campos magnéticos: os magnetostáticos, devidos à presença de cargas elétricas em movimento (correntes elétricas), e os induzidos por campos elétricos não estacionários.9 9 Comparando-se a lei de Faraday com a lei de Ampére-Maxwell, parece faltar àquela uma segunda parcela à direita da igualdade. A inexistência dessa parcela "virtual" é coerente com o zero à direita na lei de Gauss do magnetismo: se, segundo esta, não existem cargas magnéticas, não existem também correntes magnéticas análogas às correntes elétricas para figurarem naquela.

A regra do fluxo não é uma das equações básicas da TEMC. Não possui a necessária generalidade, pois seu enunciado refere-se a uma situação particular, qual seja a presença de um circuito fechado; e não reflete o modelo de interação entre cargas elétricas mediada por campos, pois descreve o fenômeno da indução sob um ponto de vista macroscópico. De fato, ela se enquadra em um contexto histórico anterior ao pleno desenvolvimento da TEMC e corresponde a um nível conceitual hierarquicamente inferior. Assim, ela foi preterida pela expressão da força de Lorentz, que, conforme já se demonstrou, lhe é equivalente. No entanto, sua importância histórica, seu denso conteúdo físico e sua praticidade no cálculo das fem's induzidas nas várias situações em que se aplica fazem com que continue sendo um elemento de grande importância no conjunto da teoria.

7. A teoria eletromagnética clássica e a teoria da relatividade

Os idealizadores da TEMC logo se aperceberam de que ela não era invariante frente às transformações de Galileu. Albert Einstein, no primeiro parágrafo de seu artigo "Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento", no qual apresenta aquela que hoje conhecemos como a teoria da relatividade especial ou relatividade restrita (TR), assim descreve essa dificuldade [9, p. 143]:

Considere-se, por exemplo, a interação eletrodinâmica entre um ímã e um condutor. O fenômeno observável, aqui, depende apenas do movimento relativo entre o condutor e o ímã, ao passo que o ponto de vista usual faz uma distinção clara entre os dois casos, nos quais um ou outro dos dois corpos está em movimento. Pois se o ímã está em movimento e o condutor está em repouso, surge, nas vizinhanças do ímã, um campo elétrico com um valor definido de energia que produz uma corrente onde quer que estejam localizadas partes do condutor. Se o ímã, contudo, estiver em repouso, enquanto o condutor se move, não surge qualquer campo elétrico na vizinhança do ímã, mas, sim, uma força eletromotriz no condutor, que não corresponde a nenhuma energia per se, mas que, supondo-se uma igualdade do movimento relativo, nos dois casos, dá origem a correntes elétricas de mesma magnitude e sentido que as produzidas, no primeiro caso, pelas forças elétricas.

Resolver esse tipo de impasse foi, de fato, a motivação histórica para o surgimento da TR. Foge ao contexto deste artigo detalhar os passos de seu desenvolvimento. Primeiro, mostrou-se que as equações da eletrodinâmica são covariantes frente às transformações de Lorentz. O postulado a respeito da constância da velocidade da luz foi o recurso encontrado por Einstein para dar fundamento e estrutura à teoria. Mas a adoção das transformações de Lorentz, em substituição às de Galileu, exigiu a revisão dos conceitos clássicos de espaço e tempo absolutos. O resultado disto foi o desenvolvimento de uma nova mecânica, que engloba a mecânica newtoniana como limite no caso de baixas velocidades (v << c). No que diz respeito à TEMC, interessa-nos constatar que, assim como as dimensões e a massa dos objetos e a duração dos eventos, também o campo eletromagnético deve ser transformado quando mudamos de referencial.

Consideremos o caso de dois referenciais inerciais S e S' tais que suas respectivas origens e eixos se superpõem no instante t=t' = 0 e S' move-se com velocidade v ao longo do eixo X de S (ou seja, v=vi). A Tabela 2 apresenta as relações de transformação do campo eletromagnético quando se passa de S para S'. Por simples inspeção, vê se que o que é um campo elétrico ou magnético puro em um referencial pode transformar-se em uma mistura de campos elétrico e magnético em outro referencial. Reforça-se, assim, a noção de que o campo eletromagnético é um ente uno, já que identificá-lo como elétrico, magnético ou uma mistura de ambos depende apenas do referencial em que se situa o observador.

Vejamos como se interpreta a fem de movimento, à luz da TR. Tomemos como exemplo a situação da Fig. 1a, repetida na Fig. 6. O referencial S, representado pelos eixos XYZ, é fixo no laboratório. O referencial S', representado pelos eixos X'Y'Z', é fixo na haste metálica. No laboratório, atua um campo magnético uniforme e estacionário B=Bk e o campo elétrico é nulo. Conforme vimos, a força magnética sobre os portadores de carga dentro da haste é a responsável por polarização e pela fem induzida. Sob o ponto de vista de um observador em S', contudo, a haste e os portadores de carga encontram-se em repouso em um campo magnético uniforme e estacionário, de modo que não há como explicar, com base na TEMC, nem a separação das cargas nem a fem induzida. Apliquemos, então, as relações de transformação da Tabela 1, das quais resultam


Vê-se, assim, que, para o observador em S', o campo magnético continua uniforme, estacionário e orientado segundo o eixo Z, mas surge um campo elétrico E', conforme mostrado na figura. Este campo elétrico agirá sobre os portadores de carga e provocará a polarização da haste. Usando-se a Eq. (4), calcula-se a fem induzida10 10 Note-se que o comprimento da haste não se altera, pois só há contração na direção do movimento no referencial S'

Em 1952, refletindo sobre as origens dos estudos que o levaram ao desenvolvimento da TR, Einstein escreveu [9, p. 129]:

Meu caminho direto para a teoria da relatividade especial foi determinado principalmente pela convicção de que a força eletromotriz induzida em um condutor que se move em um campo magnético nada mais é do que um campo elétrico.

Como se vê, sua intuição foi plenamente confirmada. Fica claro que, em se tratando de fenômenos eletromagnéticos, não se pode raciocinar à moda Galileu. Não basta, por exemplo, cogitar sobre como seriam as linhas de campo de um ímã, conforme vistas por um observador em movimento em relação a ele. É necessário recorrer sempre às relações de transformação.

Note-se que a fem de movimento não é a mesma nos dois referenciais. A Eq. (26) somente se reduz à Eq. (4) para pequenas velocidades (v << c). De fato, as forças eletromotrizes, como as diferenças de potencial, não são invariantes frente a mudanças de referencial. Na linguagem da TR, o potencial elétrico V compõe com o vetor potencial magnético A um quadrivetor cujo módulo, este sim, é um invariante relativístico [10, p. 269].

8. Comentários finais

A regra do fluxo, Eq. (1), não é uma das equações de Maxwell. Constitui-se, no entanto, em um elemento fundamental da TEMC. Primeiro, por sua importância histórica: "This law of electromagnetic induction, which bears Faraday's name, is the foundation of the study of electromagnetic theory", afirmam Slater e Frank [1, p. 78]. Segundo, por sua praticidade. Com efeito, permite calcular com simplicidade fem's induzidas em circuitos fechados em uma grande variedade de situações, quer sejam tais fem's devidas à presença de um campo magnético não-estacionário, quer sejam fem's de movimento, ou ainda uma combinação de ambos os tipos. É usada também com sucesso na explicação de fenômenos tais como as correntes de Foucault e o funcionamento dos freios magnéticos.

Na sala de aula, demonstrar a regra do fluxo é a maneira mais frequente de iniciar o estudo da indução eletromagnética, pois basta um ímã, uma bobina e um galvanômetro para fazer saltar aos olhos a realidade do fenômeno. No entanto, o que há de concreto ali são apenas esses objetos. O campo e o fluxo magnético, bem como a força eletromotriz, são elementos abstratos, são conceitos que elaboramos com a finalidade de descrever, de compreender o que se passa. Tais conceitos só adquirem pleno significado quando imersos em um contexto teórico amplo, ancorado em uma estrutura axiomática consistente. Assim, o procedimento de A. Macedo (ver seção 5) de deduzir a regra do fluxo a partir dos princípios fundamentais da TEMC, embora surpreendente por raro, é pertinente e necessário. O primeiro contato com o fenômeno e sua interpretação em termos de campos, fluxo e fem induzida constituem, de fato, o início da aprendizagem e contribuem para a formação da estrutura conceitual na mente do estudante. Para muitas aplicações, até mesmo em escala industrial, esse conhecimento básico é suficiente. Mas, no contexto da TEMC vigente, a regra do fluxo deixa de ser uma evidência experimental e adquire a condição de previsão teórica. A admirável coincidência entre a previsão e os fatos chancela a correção, a adequação e a utilidade da teoria.

A insistência de alguns autores e professores em estender a validade da regra do fluxo à fem de movimento em circuitos abertos não se justifica. Tendo em vista o modelo, os fundamentos, a estrutura formal e a lógica intrínseca da TEMC vigente, a explicação ortodoxa para a fem de movimento é a ação da força magnética sobre as cargas livres no interior do condutor que se move em um campo magnético externo, conforma Eqs. (3) e (3a). A razão de tal insistência talvez seja uma percepção equivocada sobre a formulação axiomática da TEMC, provavelmente gerada pela circunstância de se usar a denominação lei de Faraday tanto para a Eq. (1) como para a equação EM3 na Tabela 1.

O artifício da área varrida merece de fato mais atenção do que tem recebido. Como vimos, ele também permite calcular a fem de movimento de maneira simples em muitas situações. Mas, antes de ser usado, deve ser justificado e sua justificativa, no caso de circuitos abertos, só é possível com base na ação da força de Lorentz. Qualquer tentativa de se obter tal justificativa com base na regra do fluxo incorre, de imediato, em um erro de princípio, pois a regra refere-se explicitamente a circuitos fechados. Via de regra, tais tentativas passam também por uma utilização indevida da lei de Gauss do magnetismo. O artifício da área varrida cumpre também uma função importante na teoria, pois representa a ponte entre as versões macroscópica e microscópica da fem de movimento, conforme Eqs. (1), (3) e (12), demonstrando a equivalência entre elas.

Encerremos transcrevendo um trecho do prefácio de Anita Macedo ao seu livro Eletromagnetismo [3]. As mesmas palavras aplicam-se, de certa forma, também ao presente artigo:

O objetivo fundamental deste texto é contribuir para isso: evidenciar a beleza lógica e formal de uma teoria física coerentemente unificada. Consequência desse objetivo é a abordagem axiomática com que este livro apresenta o eletromagnetismo clássico. Ele toma as equações de Maxwell e a lei da força de Lorentz como postulados básicos e trata a eletrostática, a magnetostática e a quase-estática como elas são: casos particulares da eletrodinâmica.

Recebido em 19/12/2009; Aceito em 10/3/2010; Publicado em 25/2/2011

  • [1] J.C. Slater and N.H. Frank, Electromagnetism (McGraw Hill, New York and London, 1947).
  • [2] R.P. Feynman, R.B. Leighton e M Sands, Lições de Física de Feynman (Bookman, Porto Alegre, 2008), v. 2.
  • [3] A. Macedo, Eletromagnetismo (Ed. Guanabara, Rio de Janeiro, 1988).
  • [4] H.D. Young e R.A. Freedman, Sears e Zemansky Física III: Eletromagnetismo (Addison Wesley, São Paulo, 2004).
  • [5] P.H. Dionisio, Revista Brasileira de Ensino de Física 29, 309 (2007).
  • [6] F. Sears, M.W. Zemansky e H.D. Young, Física 3: Eletricidade e Magnetismo (LTC, Rio de Janeiro, 1984).
  • [7] A.S. Chaves, Física: Eletromagnetismo (Reichmann & Afonso, Rio de Janeiro, 2001).
  • [8] I. Galili, D. Kaplan e Y. Lehavi, Am. J. Phys. 74, 337 (2006).
  • [9] A. Einstein. O Ano Miraculoso de Einstein: Cinco Artigos que Mudaram a Face da Física (Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 2001).
  • [10] P. Lorrain e D.R. Corson, Eletromagnetic Fields and Waves (Freeman, San Francisco, 1970), p. 276.
  • 1
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  • 2
    Um campo vetorial é dito uniforme quando, a qualquer instante, possui mesmo módulo, mesma direção e mesmo sentido em todos os pontos da região considerada. É dito estacionário quando, em qualquer ponto do espaço, não se altera com o passar do tempo.
  • 3
    Neste trabalho, tratamos apenas de objetos metálicos filamentares: fios que percorrem uma única trajetória de uma extremidade a outra, sem se entrecruzarem ou se superporem, aos quais nos referimos genericamente como "circuitos". Tais circuitos podem ser fechados ou abertos, conforme suas extremidades se unam ou não. A única exceção será o dínamo de disco de Faraday. Tendo em vista nossos objetivos, isto não implica perda de generalidade.
  • 4
    O autor deste texto relata ver-se frequentemente envolvido em discussões com colegas sobre o assunto proposto. Curiosamente, tais discussões só ocorrem no estrito círculo em que se decide a publicação de um artigo, estando ele às vezes na posição de autor, instado a defender seu ponto de vista frente aos árbitros, outras vezes na posição de árbitro, cioso de convencer os autores de sua posição. Como tais discussões às vezes adquirem contornos ideológicos, parece-lhe oportuno esclarecer o assunto à luz do dia.
  • 5
    Suponha que a velocidade da espira fosse dada por v=ν0(i+k). Em sua translação, seguiria uma trajetória a 45° com o plano XY, de modo o volume fechado varrido por ela seria um paralelepípedo oblíquo, com o fluxo magnético entrando pela face inferior e pela face inclinada da direita e saindo pela face superior e pela face inclinada da esquerda.
  • 6
    Conforme notação adotada pela Ref. [8, p. 337].
  • 7
    Ver, por exemplo, a Ref. [8, apêndice].
  • 8
    Grifado no original.
  • 9
    Comparando-se a lei de Faraday com a lei de Ampére-Maxwell, parece faltar àquela uma segunda parcela à direita da igualdade. A inexistência dessa parcela "virtual" é coerente com o zero à direita na lei de Gauss do magnetismo: se, segundo esta, não existem cargas magnéticas, não existem também correntes magnéticas análogas às correntes elétricas para figurarem naquela.
  • 10
    Note-se que o comprimento da haste não se altera, pois só há contração na direção do movimento
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      19 Dez 2009
    • Aceito
      10 Mar 2010
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