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A teoria analítica do calor de Joseph Fourier: uma análise das bases conceituais e epistemológicas

The analytical theory of heat of Joseph Fourier: an analysis of the conceptual and epistemological foundations

Resumos

Em um ambiente marcado pelo paradigma newtoniano, Fourier estabeleceu sua teoria da propagação do calor em corpos sólidos mantendo a mesma tradição da mecânica racional, a qual reduzia os fenômenos naturais à análise matemática. Contudo, ele rompeu com a abordagem tradicional ao ignorar as hipóteses sobre a natureza do calor e criar um modelo físico no qual as leis da mecânica não se aplicam aos fenômenos do calor. Os trabalhos em história da ciência, que abordam as obras de Fourier, são massivamente direcionados à matemática e muito pouco é explorado do ponto de vista da física. Neste trabalho pretendemos promover esse enfoque com uma análise das bases conceituais e epistemológicas envolvidas na construção da teoria da condução do calor de Fourier, além de demonstrar que seu trabalho nessa área emerge como uma abordagem autônoma. Quanto ao ensino de física, o resultado dessa pesquisa pode contribuir para uma visão mais clara da natureza da ciência através de seus procedimentos, seu alcance e suas limitações.

Joseph Fourier; história da ciência; condução do calor


In an environment ruled by the Newtonian paradigm, Fourier established his theory of heat propagation in solids focused on the same traditional conception from rational mechanics, which reduced the natural phenomena to the mathematical analysis. However, he challenged that principle by ignoring the hypotheses about the nature of heat and creating a physical model in which the laws of mechanics do not apply to the phenomena of heat. The most of the studies on Fourier’s works in the field of the history of sciences are based on mathematics, and a very few of them are on physics. This study aims to add that missing approach with an analysis of the conceptual and epistemological bases involved in the formulation of the Fourier’s theory of heat propagation; it also intends to show that his work emerged as a unique approach. About the area of the teaching of physics, the results here obtained can contribute to a clearer view of the nature of science through its procedures, scope, and limitations.

Joseph Fourier; history of science; conduction of heat


1.

Introdução

No século XVIII, a mecânica teve seu ápice moldado pelo paradigma newtoniano e o formalismo matemático desenvolvido por Euler, Lagrange e Laplace. A construção de máquinas térmicas e o aperfeiçoamento dos termômetros chamaram a atenção para os fenômenos relacionados ao calor. Duas teorias sobre a natureza do calor destacaram-se nesse período: a teoria mecânica, que concebia o calor como o movimento de partículas de matéria, e a teoria do calórico, que sustentava a ideia de que o calor era um fluido. Na busca de uma nova síntese que pudesse explicar esse novo quadro científico e em um ambiente profundamente influenciado pelas ideias newtonianas, é que surgiu o chamado projeto laplaciano. Nesse projeto, Laplace e alguns de seus seguidores defenderam uma “nova” física universal, baseada na hipótese de movimentos moleculares e forças a eles associadas, e que fosse aplicada à óptica e aos fenômenos térmicos e elétricos. Essas forças atrativas eram exercidas pelas partículas de matéria da mesma forma que na lei da gravitação universal de Newton [1[1] Pierre S. Laplace, Exposition du Systéme du Monde (Courcier, Paris, 1813). Disponível em https://archive.org/details/expositiondusys06laplgoog. Acesso em: nov. 2014.
https://archive.org/details/expositiondu...
, 2[2] John T. Merz, A History of European Thought in the Nineteenth Century (William Blackwood, Edinburgh, 1904).].

É nesse cenário que Jean Baptiste Joseph Fourier (1768–1830) começa seus estudos sobre a condução do calor. A correta formulação da lei de propagação do calor foi apresentada em 1807 em um trabalho intitulado Mémoire sur la propagation de la chaleur.2 2 Sob forma de manuscrito, este trabalho encontra-se no acervo da Biblioteca da Ecole Nationale des Ponts et Chaussées: MS 1851 Mémoire sur la propagation de la chaleur, 1807. Este manuscrito foi editado e publicado por Grattan-Guiness e Ravetz [7]. Nesse trabalho, Fourier rompeu com o esquema laplaciano, ignorou a natureza do calor e ampliou as aplicações do cálculo diferencial. Contudo, sua publicação só aconteceu em 1822 em uma versão revisada e ampliada sob o título Théorie analytique de la chaleur [3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
]. Nesse trabalho, Fourier deduziu a equação da condução do calor por meio de equações diferenciais parciais e desenvolveu a solução através de séries trigonométricas. E embora tenha ignorado qualquer hipótese acerca da natureza do calor, Fourier descreveu um modelo físico para explicar o mecanismo de propagação do calor.

O estudo do desenvolvimento da teoria do calor de Fourier em seu contexto histórico permite explorar o caráter não apenas criativo do cientista, mas também o processo gradual de construção do conhecimento. Esse aspecto da história da ciência, como afirma Martins [4[4] Roberto A. Martins, In: Estudos de História e Filosofia das Ciências: Subsídios Para Aplicação no Ensino, editado por Cibelle S. Celestino (Livraria da Física, São Paulo, 2006), p. 21.], pode ensinar mais sobre o real processo científico do que qualquer manual de metodologia. Essas características apontam o potencial do presente trabalho como um elemento substancial no ensino de física.

A contribuição de Fourier para a matemática é bastante conhecida. As séries de Fourier estão presentes nos livros de Cálculo e são vastamente estudadas em física matemática. Há inúmeros trabalhos em história da matemática sobre o tema, contudo, em história da ciência, muito pouco é conhecido do ponto de vista da física. Com o objetivo de preencher essa lacuna, analisaremos as bases conceituais e epistemológicas envolvidas na construção da teoria da condução do calor de Fourier. Veremos que, não somente sua articulação com a física matemática, mas também os argumentos físicos que são por ele admitidos caracterizam sua metodologia dentro de uma abordagem autônoma no estudo da propagação do calor.

2.

Primeiras tentativas de Fourier na formulação de uma teoria para a condução do calor

Antes de chegar à lei que descrevesse a propagação do calor, Fourier admitiu diferentes concepções e conjecturas, as quais foram sendo modificadas gradualmente.

A primeira investigação de Fourier na tentativa de formular uma teoria para explicar a propagação do calor em corpos sólidos foi feita entre 1802 e 1803. Em sua primeira abordagem teórica, ele considerou a propagação do calor entre um número finito de corpos discretos arranjados em linha reta [5[5] John Herivel, Joseph Fourier, The Man and the Physicist(Clarendon Oxford, London, 1975).]. O problema consistia em obter uma lei matemática que pudesse mostrar como as temperaturas eram distribuídas, em função do tempo, em um corpo sólido inicialmente aquecido em uma determinada região. Para abordar tal problema, Fourier adotou uma técnica que já fora usada no século XVIII na teoria das cordas vibrantes. Ela consistia em considerar um modelo contendo n corpos discretos, e então obter sua solução correspondente a um corpo contínuo, fazendo o número n de corpos tender ao infinito. Fourier não conseguiu obter a solução desejada e abandonou a ideia até que, influenciado por uma publicação de 1804 de Biot [6[6] Jean B. Biot, Bibliothèque Brittannique 27, 310 (1804). Disponível em: http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=umn.319510009686531. Acesso em: nov. 2014.
http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=um...
], retomou suas investigações [7[7] Ivor Grattan-Guinness and Jerome R. Ravetz, Joseph Fourier, 1768-1830: A Survey of His Life and Work (MIT, Cambridge, 1972).].

O trabalho de Biot tratava da determinação experimental da lei de distribuição de temperaturas em uma barra de ferro. A barra era aquecida em uma de suas extremidades e podia dissipar calor para o meio externo. Para fundamentar sua teoria, Biot recorreu à lei do resfriamento de Newton, segundo a qual, o calor dissipado por um corpo para o meio externo é proporcional à diferença entre suas temperaturas. A ideia de Biot foi adaptar essa lei aos pontos situados no interior de um corpo. Assim, cada ponto no interior da barra deveria receber calor do ponto vizinho que o precede e transferi-lo para outro ponto que o sucede, sendo que a quantidade de calor transferido deveria ser proporcional à diferença de temperatura entre os pontos. Biot descreveu textualmente a equação que representa as temperaturas na barra, mas não conseguiu deduzi-la a partir de argumentos físicos. Essa equação deveria conter dois diferentes coeficientes de condutividade, um para o calor que se propagava no interior da barra e o outro, para o calor cedido ao ambiente. O obstáculo que o impediu de obter a equação de propagação do calor deveu-se à sua abordagem, a qual assumia que a transferência de calor deveria ocorrer entre “pontos” na barra. Sem recorrer à noção de fluxo ou mesmo levar em consideração a distância entre os pontos, Biot deixou de incorporar a decisiva ideia de gradiente de temperatura. Segundo Grattan-Guinness e Ravetz [7[7] Ivor Grattan-Guinness and Jerome R. Ravetz, Joseph Fourier, 1768-1830: A Survey of His Life and Work (MIT, Cambridge, 1972).] esse obstáculo seria decorrente de sua visão filosófica da física, fortemente influenciada por Laplace, de que todos os fenômenos físicos eram produtos da ação newtoniana entre partículas.3 3 Biot tinha Laplace como seu mentor e compartilhava das ideias que compunham o programa laplaciano. Assim, as forças de repulsão entre as partículas que compunham o calor (ou calórico) eram explicadas à semelhança das forças centrais da gravitação newtoniana.

Como Biot, Fourier tratou de encontrar a distribuição de temperaturas em uma barra quando aquecida em uma das extremidades,4 4 Essa nova abordagem para tratar do problema da propagação do calor, juntamente com a primeira, estão preservadas em uma coletânea de manuscritos e pertencem ao acervo da Bibliothèque Nationale: catalogue général des manuscrits français (1898, Paris) sob onúmero BN MS. ff. 22525, 212 folio. baseou-se, para isso, na lei do resfriamento de Newton e na aplicação de diferentes coeficientes de condutividade para as propagações interna e externa do calor. Por outro lado, diferentemente de Biot, Fourier admitiu a troca de calor entre seções na barra, e não pontos. Cada seção (ou fatia) possuía largura dx e podia trocar calor tanto com as seções adjacentes quanto com o ambiente. O calor absorvido por uma seção era expresso por Kd2v, sendo Ko coeficiente de condutividade interna e dv a diferença de temperatura entre duas seções consecutivas. Cada seção dissipava uma quantidade de calor para o ambiente expressa por dxhv, em que h é a constante de condutividade externa e v é a diferença de temperatura entre a seção e o ambiente. Considerando a barra em estado estacionário, isto é, aquele em que a temperatura é função exclusivamente da posição na barra, a quantidade de calor recebida pela seção deveria ser balanceada pela quantidade de calor cedida para o ambiente, ou seja

(1)Kd2vdx=hv.

Entretanto, essa equação apresentava um sério problema, já que o diferencial da variável dependente era de segunda ordem, enquanto que o diferencial da variável independente era de primeira ordem. Fourier contornou essa dificuldade trocando K por Kdx no termo à esquerda da equação, sob a justificativa de que o calor flui internamente pelo corpo mais facilmente quanto menor é a largura dx da seção. Tal artifício permitiu a obtenção da equação, agora homogênea

(2) Kd2vdx2hv=0.

Essa equação representa a distribuição de temperatura em uma barra em estado estacionário. Ela foi obtida considerando-se o movimento unidirecional do calor ao longo da barra. Ao estender essa equação para o estado variável, isto é, aquele em que a temperatura é função não só da posição na barra, mas também do tempo, Fourier encontrou

(3) dvdt=Kd2vdx2hv.

A seguir aplicou o mesmo raciocínio para um sólido em três dimensões. Neste caso a equação diferencial parcial5 5 Fourier utilizou a notação d para o diferencial parcial. A notação atual ∂ ainda não era de uso comum nestaépoca [8, p. 220–238]. obtida foi

(4) dvdt=K(d2vdx2+d2vdy2+d2vdz2)hv.

Não obstante, essas equações estavam incorretas. Os equívocos são: a presença do termo hv, referente ao calor cedido para o ambiente, e a ausência do calor específico e da densidade da substância.

A propagação do calor no modelo da barra é essencialmente unidimensional. As moléculas exibem a capacidade de transmitir calor, tanto para as suas vizinhas no interior do corpo, quanto para o meio externo através da superfície. O termo hv refere-se a esse calor cedido ao meio. Entretanto, esse mesmo termo aparece na equação para a propagação do calor em um corpo bidimensional ou tridimensional. Dessa forma, teríamos que admitir que uma molécula, no interior de um sólido, também transmitiria calor para o ambiente da mesma maneira que no caso da barra.

O próprio Fourier não se mostrou muito satisfeito com sua dedução, manifestando-se, inclusive, sobre as suas incertezas [5[5] John Herivel, Joseph Fourier, The Man and the Physicist(Clarendon Oxford, London, 1975).].

Embora houvesse erros em suas considerações físicas, esse trabalho incorporou importantes ideias na articulação de problemas envolvendo a propagação do calor, como por exemplo, na consideração de troca de calor entre as seções na barra, ou ainda, na noção de balanço de calor no caso do estado estacionário. Entre os aspectos físicos que ainda não haviam amadurecido, estava a falta de conhecimento do fluxo de calor que atravessa um dado elemento de área. Será, contudo, em seu próximo trabalho que Fourier apresentará melhor compreensão do conceito de fluxo de calor, o que permitirá exprimi-lo em termos do gradiente de temperatura.

3.

A nova formulação da equação da condução do calor

Nos anos seguintes, Fourier passou a dedicar-se a um novo trabalho sobre a propagação do calor em corpos contínuos, o qual foi submetido à Academia francesa em 1807. Nesse trabalho Fourier idealizou um modelo em que uma barra era dividida em seções de espessuras infinitamente pequenas e o calor era comunicado de uma seção à outra devido à diferença de temperatura entre elas. A ideia da troca de calor entre as seções fora concebida em seu trabalho anterior, mas dessa vez, dois novos conceitos decisivos foram incorporados. O primeiro desses conceitos foi o de fluxo do calor. O segundo elemento novo na análise de Fourier foi o de considerar a diferença entre o calor que entra em uma seção e o calor que sai dela, como sendo a quantidade de calor absorvido responsável pela mudança de temperatura na seção. Tais considerações permitiram que Fourier obtivesse a nova equação geral de propagação do calor em corpos sólidos

(5) dvdt=Kcρ(d2vdx2+d2vdy2+d2vdz2).

Nessa equação a temperatura v é função do tempo t e das três coordenadas x, y, z, e K é a condutividade da substância. Diferentemente da equação obtida em seu trabalho anterior, aqui Fourier introduz corretamente o calor específico c e a densidade ρ da substância. A equação da difusão do calor para o ambiente foi formulada separadamente e o termo hv, que estava presente na equação do trabalho anterior, desapareceu.

O conceito de calor específico é essencial para entender o processo de propagação do calor em função do tempo. Ele permite a conversão da taxa de calor acumulado em um elemento de volume para uma equivalente mudança na temperatura. A condutividade térmica governa o transporte de calor no espaço. Juntos, esses dois parâmetros respondem às mudanças temporais do estado térmico do sólido.

Enfim, após controvérsias envolvendo o comitê examinador composto por Lagrange, Laplace, Lacroix e Monge, esse trabalho de Fourier não foi publicado. O que parece certo, segundo Herivel [5[5] John Herivel, Joseph Fourier, The Man and the Physicist(Clarendon Oxford, London, 1975).], é que os problemas apontados estavam relacionados à natureza puramente matemática, sobretudo ao uso de expansão trigonométrica na solução da equação do calor. Entretanto, motivos de natureza política também podem estar relacionados à rejeição deste trabalho. Uma versão revisada e estendida foi submetida à Academia em 1811 e, embora tenha vencido um prêmio oferecido pelo Institut de France, continuou sem publicação. Foi então que Fourier começou a preparação de uma terceira versão, a qual foi convertida em um livro sob o título Théorie analytique de la chaleur.

4.

Teoria analítica do calor

Publicado em 1822, em francês, o livro “Teoria analítica do calor” encerra pouco mais de 600 páginas organizadas em nove capítulos divididos em seções e subseções. Logo nas primeiras páginas de seu livro, Fourier apresenta ao leitor seu discurso preliminar que, como uma espécie de cartão de visitas muito apropriado, permite vislumbrar as principais motivações de sua obra, as linhas gerais de sua abordagem e as suas convicções a respeito da ciência bem como sua conexão com a sociedade.

O livro tem uma estrutura bem organizada e foi escrito com certa preocupação didática. Os primeiros capítulos têm caráter introdutório e preparam gradualmente o leitor para uma melhor compreensão da teoria que será apresentada. Nos capítulos seguintes, Fourier deduz a equação da propagação do calor, apresenta diversas aplicações da equação e introduz um extenso estudo das séries trigonométricas.

Fourier situa o estudo do calor no campo da filosofia natural e define os limites daquilo que está interessado em investigar. Segundo ele: “As causas primárias (do calor) nos são desconhecidas; mas estão sujeitas a leis simples e constantes que podem ser descobertas por observação; seu estudo é objeto da filosofia natural” [3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
, p. 1]. Assim, de forma a romper com o estudo tradicional deste campo, Fourier ignora a natureza do calor, e o estabelece no (então) fértil campo da física matemática. Este quadro não é novo e já fora estabelecido com o legado newtoniano, sobretudo nos trabalhos envolvendo a teoria da gravitação. Fourier reconhece que: “Os princípios da teoria são derivados, assim como aqueles da mecânica racional, a partir de um número muito pequeno de fatos primários, as causas dos quais não são consideradas pelos geômetras (...)” [3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
, p. 11]. Entretanto, para Fourier, um novo campo da ciência está sendo consolidado, pois: “(...) quaisquer que sejam as teorias mecânicas, elas não se aplicam aos efeitos do calor. Estes compõem uma ordem especial de fenômenos que não podem ser explicados pelos princípios do movimento e do equilíbrio” [3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
, p. 2].

Para Fourier, essa “nova” ciência do calor apresenta características específicas cuja metodologia é apoiada pela análise matemática. Essa metodologia está inserida em um ambiente científico marcado pelo otimismo na ciência e na matemática deste período. Fourier exalta esse aspecto ao afirmar que: “Não pode haver uma linguagem mais universal e mais simples, mais livre de erros e de obscuridades, ou seja, mais digna para expressar as relações invariáveis das coisas naturais” [3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
, p. 14]. Essa postura direcionará suas pesquisas e determinará seus objetivos.

4.1

Fundamentação física da “Teoria analítica do calor”

A descrição do movimento do calor em corpos sólidos é representada por uma lei matemática; ela está, contudo, vinculada a um fenômeno físico. Assim, Fourier inicialmente articula as noções físicas com o propósito de estabelecer sua teoria.

O domínio da teoria de Fourier excluía qualquer hipótese acerca da natureza do calor, entretanto, para ganhar consistência ela foi amparada por um modelo que pudesse explicar o seu mecanismo de propagação. E para isso, afirmou Fourier [3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
, p. 18]: “É necessário, então, estabelecer em primeiro lugar os resultados gerais da observação para dar as exatas definições de todos os elementos da análise e estabelecer os princípios sobre os quais essa análise deve ser fundada”.

Fourier teve de escolher um modelo que fosse capaz de explicar, não só a propagação do calor nos sólidos, mas também outras situações relacionadas, como o equilíbrio térmico e os estados estacionário e variável de distribuição de temperatura num corpo. Dessa forma, ele adotou o princípio das trocas de calor6 6 Nessa teoria, todos os corpos emitem e recebem calor radiante de todas as direções, independente de suas temperaturas relativas. Se dois corpos estiverem com temperaturas diferentes, durante a troca, o corpo mais frio receberá mais calor do que irá emitir, até que o equilíbrio térmico seja estabelecido. Neste estado de equilíbrio, os corpos continuam recebendo calor, mas na mesma taxa. de Pierre Prévost [9[9] Pierre Prévost, Observations Sur la Physique, Sur L'histoire Naturelle et Sur les Arts 38, 314 (1791). Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=7ZLOAAAAMAAJ{\&}dq. Acesso em: nov. 2014.
http://books.google.com.br/books?id=7ZLO...
] e adaptou-o a fim de explicar não só a propagação do calor radiante, mas também aquela que ocorre no interior dos corpos.

Em sua explicação, Fourier afirma que as moléculas que compõem um sólido enviam raios de calor em todas as direções ao mesmo tempo em que os recebem de suas vizinhas. Parte desses raios de calor pode escapar para o meio externo a partir das moléculas situadas nas proximidades da superfície do corpo. Fourier chama esses raios de “calor livre” e afirma que possuem propriedades semelhantes às da luz. Assim, o calor “(...) propaga-se sempre por radiação, mas seus efeitos sensíveis diferem de acordo com a natureza dos corpos” [3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
, p. 37, grifo nosso].

Diferentemente de Prévost e da maioria dos cientistas de sua época, Fourier rejeita a ideia do calor como um fluido elástico e repulsivo presente na matéria ordinária. Para ele, as forças repulsivas existem, mas como uma resposta ao efeito do calor. Essas forças repulsivas é que permitiriam o equilíbrio provocado pela atração molecular em um corpo. Isto é, a ação da radiação trocada entre as moléculas produz forças repulsivas que tendem a equilibrar as forças atrativas entre elas. Quanto maior é a temperatura do corpo, maior é a intensidade da força repulsiva e, dessa forma, seria explicada a dilatação dos corpos.

Entretanto, Fourier não explica como a radiação trocada entre as moléculas é capaz de produzir uma força repulsiva. Nesse ponto ele abstém-se e alega que esse assunto não pertence ao domínio de suas pesquisas sobre a propagação do calor, mas ao campo das teorias mecânicas.

Fourier não se compromete (e nem está interessado) em explicar o que é o calor. Ele afirma que as moléculas enviam raios de calor, mas qual a natureza desses raios? Ele apenas se limita a discutir os efeitos (repulsivos) provocados por esses raios. De fato, enquanto expõe sua teoria, Fourier determina os limites de sua investigação:

Investigações analíticas irão mostrar melhor como a força repulsiva do calor, oposta à atração das moléculas ou à pressão externa, ajuda na composição dos corpos sólidos ou líquidos, formados por um ou mais elementos e determina a propriedade elástica dos gases. Mas esses estudos não pertencem ao campo que estamos tratando, eles se encaixam em teorias dinâmicas

[3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
, p. 39].
Não obstante, as hipóteses consideradas por Fourier acerca do mecanismo de ação do calor, não exerceram papel preponderantemente para a dedução das leis de propagação. O trecho a seguir, mostra seu ponto de vista sobre isso e ainda revela que Fourier conhecia outras hipóteses que também poderiam explicar os fenômenos considerados por ele:

Essa hipótese (das trocas de calor) oferece explicações claras de todos os fenômenos conhecidos; ela é mais facilmente aplicada ao cálculo do que outras hipóteses. Parece-nos, portanto, mais útil escolhê-la, pois nos oferece vantagens para representar o modo de propagação de calor no interior dos corpos sólidos. Mas se as leis matemáticas a que os efeitos do calor obedecem são cuidadosamente analisadas, vemos que certamente elas não repousam sobre quaisquer hipóteses físicas

[10[10] Jean B.J. Fourier, In: Oeuvres de Fourier (G. Darboux, Paris, 1888-90), v. 2. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k33707.r=Oeuvres+de+Fourier. Acesso em: nov. 2014.
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k33...
, p. 30].

Fica claro, então, que para Fourier o princípio das trocas de calor é apenas uma hipótese e independente dela, as leis matemáticas são verificadas e representam a realidade física.

Com o propósito de reduzir as questões físicas a expressões analíticas, tal como era feito na mecânica racional, Fourier traduziu todo o mecanismo de ação do calor em uma linguagem matemática e anunciou o princípio da comunicação do calor. Segundo tal princípio, a quantidade de calor enviado entre duas moléculas extremamente próximas, no interior de um mesmo corpo, é diretamente proporcional às diferenças de temperatura (v′–v) entre elas, do intervalo de tempo dt e de uma função φ(p) a qual depende da natureza da substância do corpo e da distância p entre as moléculas, isto é, (v′–v)φ(p)dt. Nessa expressão, para os sólidos e líquidos, a função φ(p) é nula quando a distância p assume magnitude sensível. A partir do mesmo princípio, segundo Fourier, a quantidade de calor cedido pelo corpo, através de uma área de sua superfície, depende da diferença entre a temperatura v dessa superfície e da temperatura a do meio externo. Assim, o calor cedido para o meio, durante um intervalo de tempo dt é expresso por h(v–a)dt, sendo h a condutividade externa. A partir do princípio da comunicação do calor, Fourier deduziu a expressão para o fluxo de calor em uma direção

(6) F=KdvdxAdt.

Ela expressa a medida da quantidade de calor, que atravessa perpendicularmente um plano de área A de um corpo, durante um intervalo de tempo dt. Nessa espressão, v é a temperatura em uma dada posição x no corpo. Será através desse poderoso conceito que Fourier conseguirá extrair as equações da propagação do calor.

A dependência da diferença de temperatura presente no princípio da comunicação do calor é influência da lei do resfriamento de Newton, como o próprio Fourier declarou. No entanto, quando o livro “Teoria analítica do calor” foi publicado em 1822, alguns estudos já haviam questionado a validade dessa lei, inclusive as recentes pesquisas de Dulong e Petit [11[11] Louis P. Dulong and Alexis T. Petit, Annales de Chimie et de Physique 7, 113, 225, 337 (1817). Disponível em http://books.google.com.br/books?id=Upc5AAAAcAAJ{\&}dq. Acesso em: nov. 2014.
http://books.google.com.br/books?id=Upc5...
] realizadas em 1817, cujos estudos mostraram que a lei do resfriamento somente concordava para pequenas diferenças de temperatura entre o corpo e o meio. Ciente dessa discrepância Fourier fez algumas reservas em trechos de seu livro a fim de garantir a validade de sua teoria. Talvez essa atitude estivesse relacionada com a linearidade e, portanto, a simplicidade oferecida pela lei do resfriamento. Da mesma forma, o fato de considerar constantes a capacidade térmica e as condutividades externa e interna podem também indicar uma busca de Fourier pela simplicidade.

Outra característica que merece atenção na obra de Fourier é a noção de conservação de calor. A fim de derivar as expressões matemáticas da condução do calor, seja nos casos particulares ou gerais, Fourier sempre recorre à ideia de conservação do calor. Por exemplo, ao extrair a lei de distribuição de temperatura no estado estacionário, ele apontou que:

(...) é necessário que a quantidade de calor que, durante uma unidade de tempo, atravessa uma seção localizada a uma distância x da origem, deva balancear exatamente todo o calor que, durante o mesmo tempo, escapa pela parte externa da superfície do prisma

[3[3] Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706. Acesso em nov. 2014.
http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-...
, p. 61].

Mas o princípio da conservação do calor nunca é declarado explicitamente. Talvez Fourier tenha evitado essa discussão, já que os principais argumentos que levam ao princípio da conservação do calor estejam conectados com a natureza do calor. De qualquer modo, a ideia de uma conservação da natureza já era admitida filosoficamente e, no início do século XIX, já era praticada nas diferentes áreas das ciências. A formulação de um princípio de conservação de energia e o seu tratamento quantitativo somente surgiram na década de 1840.

4.2

Dedução da equação geral da propagação do calor

Para deduzir a equação geral da condução do calor, Fourier idealizou um problema que consistia em determinar a temperatura, em um dado ponto, de um sólido cúbico homogêneo durante o seu completo resfriamento. O centro desse cubo foi tomado como a origem de um sistema de coordenadas retangulares x, y, z. Descreveremos a seguir o mesmo procedimento utilizado por Fourier.7 7 No apêndice é apresentada a dedução da equação da condução do calor que é encontrada na maioria dos livros atuais de cálculo empregados em cursos superiores.

Denotaremos por v a temperatura em um ponto de coordenadas x, y, z em um instante t, após o início do resfriamento. Para encontrar a equação geral que a função v deve satisfazer, devemos determinar a mudança de temperatura que uma porção infinitamente pequena do sólido deve experimentar durante um intervalo de tempo dt. Consideremos então, uma molécula prismática, de formato cúbico, encerrada por seis planos em ângulos retos, como mostra o detalhe da Fig. 1; os três primeiros planos passam através de um ponto m cujas coordenadas são x, y, z e os três outros passam pelo ponto m′ cujas coordenadas são x+dx, y+dy, z+dz.

A partir do conceito de fluxo, a quantidade de calor que, durante um intervalo de tempo dt, é recebida pela molécula através da face dydz, perpendicular a x, é qx=Kdydzdvdxdt, e aquela que escapa da molécula, durante o mesmo intervalo de tempo, pela face oposta (detalhe da Fig. 1) é encontrada fazendo x+dx no lugar de x na expressão precedente, isto é, qx=KdydzdvdxdtKdydzd(dvdx)dt, sendo o diferencial apenas com relação a x. O mesmo raciocínio será utilizado para as outras faces.

A quantidade de calor que, durante um intervalo de tempo dt, entra na molécula através da face dxdz, perpendicular ao eixo y, é qy=Kdxdzdvdydt, e aquela que escapa da molécula durante o mesmo intervalo de tempo pela face oposta é qy=KdxdzdvdydtKdxdzd(dvdy)dt, sendo o diferencial tomado apenas com relação a y

A quantidade de calor que, durante um intervalo de tempo dt, entra na molécula através da face inferior dxdy, perpendicular ao eixo z, é qz=Kdxdydvdzdt, e aquela que escapa da molécula durante o mesmo intervalo de tempo pela face oposta é qz=KdxdydvdzdtKdxdyd(dvdz)dt, sendo o diferencial tomado com relação a z apenas.

A quantidade total de calor recebida pela molécula é obtida somando-se a quantidade de calor que entra por cada uma das três faces, ou seja, qx + qy + qz

(7) q=KdydzdvdxdtKdxdzdvdydtKdxdydvdzdt.

Por outro lado, a quantidade total de calor perdida pela molécula é encontrada somando-se a quantidade de calor que escapa por cada uma das três faces, ou seja, qx + qy + qz

(8)q=KdydzdvdxdtKdydzd(dvdx)dtKdxdzdvdydtKdxdzd(dvdy)dtKdxdydvdzdtKdxdyd(dvdz)dt.

Se subtrairmos a quantidade total de calor recebida pela molécula q daquela que é perdida q′, encontraremos a quantidade de calor absorvido ou acumulado pela molécula cujo efeito será a variação em sua temperatura. Assim

(9) Q=Kdxdydz(d2vdx2+d2vdy2+d2vdz2)dt.

Também devemos considerar que, se c é o calor específico, ρ a densidade da substância que constitui o sólido e dxdydz é o volume da molécula prismática, então o calor necessário para produzir mudança de uma unidade na temperatura da molécula é dado por C = cρdxdydx. Nos termos atuais, essa é a capacidade térmica. Então, dividindo-se o calor absorvido Q pela capacidade térmica C, a variação de temperatura será conhecida

(10) dvdt=Kcρ(d2vdx2+d2vdy2+d2vdz2).

Essa equação é apresentada por Fourier como a equação geral da propagação do calor nos sólidos.

Independente da equação geral, o sistema de temperaturas está sujeito a certas condições iniciais. Se a temperatura do corpo num certo instante é dada por uma função ϕ(x,y,z,t) e se a temperatura inicial do corpo é expressa por uma função conhecida f(x,y,z) então a equação ϕ(x,y,z, 0) = f(x, yz) satisfaz as condições para todos os valores das coordenadas x,y,z que pertencem a um ponto qualquer do sólido no instante inicial

Se o sólido dispersar calor para o ar que é mantido em uma temperatura constante, outra condição deve ser levada em conta além daquela que representa o estado inicial. Tomando uma das faces da molécula prismática considerada acima, vimos que o calor que entra na face de área dydz, perpendicular a x é qx=Kdydzdvdxdt. Mas, se esta face estiver situada na superfície do sólido, a quantidade de calor que a atravessa será igual àquela que escapa para o ar. Pelo princípio da comunicação do calor, a quantidade de calor dissipado para o ar através desse elemento de área dydz, é expresso por hvdydzdt, sendo h a constante de condutividade externa e v a diferença de temperatura entre a superfície do sólido e o ambiente. Enfim, igualando essas duas quantidades e aplicando o mesmo raciocínio às outras faces, nas direções y e z, obtém-se as equações de superfície

(11) Kdvdx+hv=0;Kdvdy+hv=0;Kdvdz+hv=0.

Após deduzir a equação geral da propagação do calor e a equação de superfície, Fourier prossegue aplicando-as para descrever a propagação do calor em sólidos de diferentes geometrias. A solução dessas equações resulta nas séries trigonométricas, hoje denominadas séries de Fourier.

5.

Conclusão

Fourier estabeleceu sua teoria da propagação do calor em corpos sólidos mantendo a mesma tradição da mecânica racional, a qual reduzia os fenômenos naturais à análise matemática. Contudo, é possível afirmar que um novo campo da ciência do calor foi estabelecido; isso pode ser verificado sob dois aspectos: o primeiro decorre do fato de que as leis da mecânica não se aplicam aos fenômenos do calor, apesar de toda a tradição metodológica da análise inserida nesse primeiro campo; e o segundo, do fato de que há uma ruptura na abordagem do estudo do calor, afastando-se da filosofia laplaciana, na qual as teorias elaboradas para a sua explicação estavam vinculadas à natureza do calor. Nesse sentido, pode-se afirmar que a teoria da propagação do calor proposta por Fourier não se origina da refutação de uma teoria anterior, nem da descoberta de novos fatos, ela apresenta-se como uma ciência autônoma, com características próprias.

O trabalho de Fourier contém o primeiro tratamento matemático da condução do calor, bem como a primeira grande matematização de um campo da física fora da mecânica. Nessa pesquisa, evidenciamos as bases conceituais que foram empregadas na construção de sua teoria, desde as suas primeiras concepções até o seu reconhecimento, por meio da obra “Teoria analítica do calor”. Consequentemente, foi possível perceber as mudanças ocorridas nos modelos de condução do calor, a fim de melhor explicar a teoria.

O estudo do desenvolvimento histórico da teoria da condução do calor de Fourier ilustra bem a natureza da ciência enquanto construção humana. Permite entender que os caminhos para alcançar a correta elaboração de uma teoria muitas vezes são tortuosos, com hipóteses confusas e frequentemente falhas. E ainda, que a criação de uma teoria está vinculada ao contexto histórico-filosófico. A reflexão acerca desses elementos, sobretudo no ensino de ciências, colabora com uma visão mais próxima da realidade, desmistificando a ideia de uma ciência pronta e acabada ou que é realizada apenas por figuras heroicas.

  • 2
    Sob forma de manuscrito, este trabalho encontra-se no acervo da Biblioteca da Ecole Nationale des Ponts et Chaussées: MS 1851 Mémoire sur la propagation de la chaleur, 1807. Este manuscrito foi editado e publicado por Grattan-Guiness e Ravetz [7[7] Ivor Grattan-Guinness and Jerome R. Ravetz, Joseph Fourier, 1768-1830: A Survey of His Life and Work (MIT, Cambridge, 1972).].
  • 3
    Biot tinha Laplace como seu mentor e compartilhava das ideias que compunham o programa laplaciano. Assim, as forças de repulsão entre as partículas que compunham o calor (ou calórico) eram explicadas à semelhança das forças centrais da gravitação newtoniana.
  • 4
    Essa nova abordagem para tratar do problema da propagação do calor, juntamente com a primeira, estão preservadas em uma coletânea de manuscritos e pertencem ao acervo da Bibliothèque Nationale: catalogue général des manuscrits français (1898, Paris) sob onúmero BN MS. ff. 22525, 212 folio.
  • 5
    Fourier utilizou a notação d para o diferencial parcial. A notação atual ainda não era de uso comum nestaépoca [8[8] Florian Cajori. History of Mathematical Notations (Open Court, Chicago, 1952), v. 2., p. 220–238].
  • 6
    Nessa teoria, todos os corpos emitem e recebem calor radiante de todas as direções, independente de suas temperaturas relativas. Se dois corpos estiverem com temperaturas diferentes, durante a troca, o corpo mais frio receberá mais calor do que irá emitir, até que o equilíbrio térmico seja estabelecido. Neste estado de equilíbrio, os corpos continuam recebendo calor, mas na mesma taxa.
  • 7
    No apêndice é apresentada a dedução da equação da condução do calor que é encontrada na maioria dos livros atuais de cálculo empregados em cursos superiores.

Apêndice

A seguir será mostrada a dedução da equação do calor que é encontrada na maioria dos atuais livros de cálculo. Como referência, usaremos a dedução apresentada no livro-texto Elementary Differential Equation [12[12] William E. Boyce and Richard C. DiPrima, Elementary Differential Equations and Boundary Value Problems (John Wiley & Sons, New York, 2009).].

Vamos considerar uma barra cilíndrica homogênea, de seção transversal de área A, cuja superfície lateral não troca calor com o meio externo (Fig. 2). Sejam T1 e T2 as temperaturas de duas seções transversais distantes Δx. A quantidade de calor, por unidade de tempo, que passa da seção mais quente para a seção mais fria é dada por

(12) Q=KA|T2T1|Δx,
em que K é a condutividade térmica. Esta expressão é frequentemente referida como lei de Fourier.

Vamos escolher um eixo x ao longo do eixo da barra. Sejam u(x,t) a temperatura de uma seção com abscissa x em um instante t e u(x + Δx, t) a temperatura de uma seção com abscissa x + Δx

A partir da Eq. (12), se Δx tende a zero, a quantidade de calor, por unidade de tempo, é dada por

(13) q(x,t)=KAu(x,t)x.

O sinal de menos indica que o fluxo de calor ocorre no sentido da diminuição das temperaturas.

A quantidade de calor que entra pela seção em x menos aquela que sai pela seção em xx corresponde ao calor absorvido por essa porção da barra, ou seja

(14) Q=q(x,t)q(x+Δx,t)=KA[u(x+Δx,t)xu(x,t)x],
e a quantidade de calor absorvido no intervalo de tempo Δt é
(15) QΔt=q(x,t)q(x+Δx,t)=KA[u(x+Δx,t)xu(x,t)x]Δt.

Por outro lado, se c é o calor específico do material da barra e ρ é a sua densidade, o calor absorvido pela barra entre x e x + Δx responsável pela mudança de temperatura é dado por Q = ρAΔxcΔu. A variação média de temperatura Δu no intervalo de tempo Δt é diretamente proporcional à quantidade de calor QΔt. Assim

(16) Δu=QΔtcρAΔx.

A Eq. (16) pode ser escrita como

(17) u(x+Δx,t+Δt)u(x+Δx,t)=QΔtcρAΔx,
ou
(18) QΔt=[u(x+Δx,t+Δt)u(x+Δx,t)]cρAΔx.

Igualando as Eqs. (15) e (18)

(19) cρA[u(x+Δx,t+Δx)u(x+Δx,t)]Δx=KA[u(x+Δx,t)xu(x,t)x]Δt.

Dividindo a Eq. (19) por ΔxΔt e tomando o limite quando Δx→0 e Δt→0 chegamos à equação da condução do calor

(20) ut=Kρc2ux2.

O mesmo raciocínio pode se aplicado para a propagação do calor em três dimensões

(21) ut=kρc[2ux2+2uy2+2uz2].

Referências

  • [1]
    Pierre S. Laplace, Exposition du Systéme du Monde (Courcier, Paris, 1813). Disponível em https://archive.org/details/expositiondusys06laplgoog Acesso em: nov. 2014.
    » https://archive.org/details/expositiondusys06laplgoog
  • [2]
    John T. Merz, A History of European Thought in the Nineteenth Century (William Blackwood, Edinburgh, 1904).
  • [3]
    Jean B.J. Fourier, Théorie Analytique de la Chaleur (Firmin Didot, Paris, 1822). Disponível em http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706 Acesso em nov. 2014.
    » http://www.e-rara.ch/doi/10.3931/e-rara-19706
  • [4]
    Roberto A. Martins, In: Estudos de História e Filosofia das Ciências: Subsídios Para Aplicação no Ensino, editado por Cibelle S. Celestino (Livraria da Física, São Paulo, 2006), p. 21.
  • [5]
    John Herivel, Joseph Fourier, The Man and the Physicist(Clarendon Oxford, London, 1975).
  • [6]
    Jean B. Biot, Bibliothèque Brittannique 27, 310 (1804). Disponível em: http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=umn.319510009686531 Acesso em: nov. 2014.
    » http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=umn.319510009686531
  • [7]
    Ivor Grattan-Guinness and Jerome R. Ravetz, Joseph Fourier, 1768-1830: A Survey of His Life and Work (MIT, Cambridge, 1972).
  • [8]
    Florian Cajori. History of Mathematical Notations (Open Court, Chicago, 1952), v. 2.
  • [9]
    Pierre Prévost, Observations Sur la Physique, Sur L'histoire Naturelle et Sur les Arts 38, 314 (1791). Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=7ZLOAAAAMAAJ{\&}dq Acesso em: nov. 2014.
    » http://books.google.com.br/books?id=7ZLOAAAAMAAJ{\&}dq
  • [10]
    Jean B.J. Fourier, In: Oeuvres de Fourier (G. Darboux, Paris, 1888-90), v. 2. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k33707.r=Oeuvres+de+Fourier Acesso em: nov. 2014.
    » http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k33707.r=Oeuvres+de+Fourier
  • [11]
    Louis P. Dulong and Alexis T. Petit, Annales de Chimie et de Physique 7, 113, 225, 337 (1817). Disponível em http://books.google.com.br/books?id=Upc5AAAAcAAJ{\&}dq Acesso em: nov. 2014.
    » http://books.google.com.br/books?id=Upc5AAAAcAAJ{\&}dq
  • [12]
    William E. Boyce and Richard C. DiPrima, Elementary Differential Equations and Boundary Value Problems (John Wiley & Sons, New York, 2009).

Figures

Figura 1
Um sólido cúbico é resfriado em uma corrente de ar à temperatura ambiente. O centro do cubo coincide com a origem das coordenadas retangulares. No detalhe é mostrada uma molécula prismática infinitesimal de lados dx, dy e dz.
Figura 2
Barra cilíndrica. O fluxo do calor ocorre na direção do eixo x

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2014
  • Aceito
    14 Nov 2014
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