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Escalas e simplificações: exemplos em sistemas físicos e biológicos

Scaling and simplification: biological and physical system examples

Resumos

Neste artigo são apresentados exemplos onde podem ser usadas simplificações matemáticas e adimensionalizações em sistemas físicos e biológicos. A importância destes procedimentos é discutida de forma didática. É feita uma rápida dedução de como este procedimento auxilia na resolução de um problema de mecânica clássica simples e posteriormente comparado com um sistema predador-presa em ecologia.

escalas; métodos matemáticos aplicados à física e biologia


In this article some examples are given where one can make use of mathematical simplification and adimensionalization procedures in physical and biological systems. The importance of this procedure is discussed in a didactic way. A simple deduction of the procedure is made in a classical mechanical system and applied aftewards to the predato-prey system.

scales; mathematical methods applied in physics and biology


ARTIGOS GERAIS

Escalas e simplificações: exemplos em sistemas físicos e biológicos

Scaling and simplification: biological and physical system examples

Vicente Pereira de Barros1 1 E-mail: vpbarros2007@gmail.com

Instituto de Ciências Ambientais e Desenvolvimento Sustentável, Universidade Federal da Bahia, Barreiras, BA, Brasil

RESUMO

Neste artigo são apresentados exemplos onde podem ser usadas simplificações matemáticas e adimensionalizações em sistemas físicos e biológicos. A importância destes procedimentos é discutida de forma didática. É feita uma rápida dedução de como este procedimento auxilia na resolução de um problema de mecânica clássica simples e posteriormente comparado com um sistema predador-presa em ecologia.

Palavras-chave: escalas, métodos matemáticos aplicados à física e biologia.

ABSTRACT

In this article some examples are given where one can make use of mathematical simplification and adimensionalization procedures in physical and biological systems. The importance of this procedure is discussed in a didactic way. A simple deduction of the procedure is made in a classical mechanical system and applied aftewards to the predato-prey system.

Keywords: scales, mathematical methods applied in physics and biology.

1. Introdução

Durante a graduação de física ou biologia o estudante precisa se habituar a usar algumas ferramentas para resolução e compreensão de fenômenos naturais. Este processo está inserindo dentro do domínio do saber sábio e do saber a ser apreendido [1], e nem sempre é um processo claro.

Na pesquisa em Ciências que utilizam métodos matemáticos um procedimento que é sempre importante é a determinação das variáveis relevantes do problema estudado. Muitas vezes a modelagem de um dado fenômeno leva em conta o comportamento deste através de variáveis mensuráveis. No entanto, a construção do modelo implica em simplificações, e muitos parâmetros que estão presentes na medida devem ser reinterpretados [2] .

Uma ferramenta para a melhor compreensão das variáveis significativas do problema é a adimensionalização das equações que descrevem o modelo. Como exemplo, em física atômica e molecular a modelagem do condensado de Bose-Einstein pode ser feita através de uma aproximação de campo médio representada pela equação de Gross-Pitaevskii, que é uma equação diferencial não-linear de segunda ordem tridimensional. No entanto, para a modelagem de estruturas típicas de fenômenos ondulatórios como sólitons [3, 4] ou mesmo para o estudo de superfluidez através de vórtices e das limitações da aproximação de campo médio [5] é utilizada uma adimensionalização que consiste em reescrever a equação em termos de um oscilador harmônico com a frequência igual a frequência da armadilha magneto-óptica (MOT) e procurar reduzir a dimensão da equação de três dimensões para uma dimensão levando-se em conta a assimetria da armadilha [6].

O mesmo procedimento é utilizado em biologia de populações para reescrever as equações de modelos como o modelo logístico, tanto para o estudo de competição entre espécies como para sistemas predador-presa [7].

Podemos notar algo interessante, mesmo sendo equações que utilizam variáveis totalmente distintas como número de indivíduos, taxas de natalidade, comprimento de espalhamento de um átomo, etc, podemos adimensionalizar as equações. No entanto, as adimensionalizações são válidas para certa faixa de valores. O que o estudante sempre se questiona ao encontrar um novo problema é: "Qual o parâmetro que eu devo utilizar para adimensionalizar a minha equação?" "Devo utilizar o raio de Bohr ou o comprimento de espalhamento para a adimensionalizar uma variável espacial em um modelo atômico-molecular?" "Já que os dois parâmetros possuem dimensão de comprimento!"

Questões como esta são interessantes principalmente porque em nossos cursos não estamos preparados a tratar questões operacionais de forma sistemática e muitas vezes o desenvolvimento da habilidade de escrever o sistema na melhor forma adimensional é feito empiricamente ou por tentativa e erro.

A análise dimensional é muito útil em várias áreas. Recentemente o estudo de sistemas biológicos usando escalas através de uma análise dimensional apresentou um didático e interessante trabalho aqui na Revista Brasileira de Ensino de Física [8].

Desta forma, pensar em tentativas de organizar de forma mais sistemática os procedimentos para adimensionalização e escalonamento de problemas na natureza é uma tarefa muito interessante. Segel [9] procura fazer este procedimento sob o olhar de matemáticos aplicados sem uma preocupação de estabelecer paralelos entre ciências distintas.

Neste trabalho eu apresentarei uma pequena coleção de problemas em que a adimensionalização é uma ferramenta interessante e farei uma discussão sobre a maneira de se escolher as variáveis para facilitar a análise do problema. Primeiramente explorarei um pouco mais profundamente um dos problemas apresentados por Segel que é o lançamento de um corpo sob a ação da gravidade terrestre. Neste exemplo mostrarei a importância da escolha apropriada da variável para a análise dimensional

Depois procurarei formalizar os procedimentos utilizando a discussão de Segel e introduzirei a proposta apresentada por Desloge [10, 11] que apresenta um procedimento mais sistemático, com um formalismo matemático mais apurado e usarei um exemplo de Desloge para ilustrar o procedimento.

Posteriormente "construirei" um sistema predador-presa com a presa apresentando um crescimento logístico e adimensionarei-o. Uma discussão sobre o significado da escolha dos parâmetros neste modelo será feita e mostrarei o porquê muitos procedimentos de adimensionalização em física devem ser usados com parcimonia para modelos em ecologia que foram construídos heurísticamente.

Na última seção resumirei os principais pontos encontrados nestes exemplos, suas semelhanças e diferenças e farei uma rápida discussão sobre como podemos ter um "método" para adimensionalisação.

2. Um corpo saindo da superfície da Terra

Vamos considerar um corpo de massa m que possui velocidade inicial V e é projetado radialmente da superfície da Terra. Digamos que R seja o raio da Terra e x() é a posição do corpo no instante , negligenciando a resistência do ar e a variação da aceleração da gravidade com o aumento da distância do corpo a Terra, a equação de movimento deste corpo será dada por

Vamos considerar que o corpo sai exatamente da superfície da Terra, com isto teremos duas condições iniciais = V e x(0) = 0.

Em algum instante podemos considerar o deslocamento x pequeno se comparado a R e a velocidade V tambem pequena. Então podemos aproximar a Eq. (1) como sendo

Com as mesmas condições iniciais obteremos a solução = V-g e x() = V- . No tempo = o corpo atingirá a sua altitude máxima dada por xmax = . Assim temos uma grandeza espacial de interesse (xmax) e uma grandeza temporal de interesse .

Lembrando que para adimensionalizar devemos pensar em termos de grandezas que possuem as mesmas dimensões, podemos tabelar os parâmetros presentes na Eq. (1) e suas dimensões em termos de comprimento (L) e tempo (T) e teremos

As quantidades R e R/V são escolhas apropriadas para um comprimento e tempo intrínsecos. Aqui uma grandeza intrínseca significa uma medida padrão adimensional com relação a um conjunto de parâmetros importantes do problema. Assim podemos reescrever as grandezas e por y e τ respectivamente, através das seguintes transformações

Usando a Eq. (3) na Eq. (1) obtemos a sequinte equação

onde = V2/(gR)

As variáveis y e na Eq. (6) são adimensionais, ou seja, independem das unidades usadas no processo. O parâmetro e também é adimensional.

Se nós notarmos a dependência explícita dos parâmetros da Eq. (1), a solução que obteremos será da forma

enquanto que a solução da Eq. (6) pode ser escrita como

A solução (7) depende de três parâmetros g, R e V, mas a Eq. (8) depende apenas do parâmetro adimensional .

Como uma alternativa para a Eq. (3) podemos escrever nosso tempo em termos da aceleração g, de tal forma que

substituindo na Eq. (1) obtemos

e esperamos uma solução na forma de

Existem inúmeros tempos de referências escritos com h()RV-1 com h sendo uma função qualquer que serviriam para este problema. Qual das escolhas é a melhor? Isto depende do quê estamos observando no problema. Com as variáveis escolhidas nas Eqs. (8) e (13) obtivemos uma distância adimensional dependente apenas da constante e e do tempo adimensional.

Este procedimento é interessante para compararmos dois fenômenos com relação à um outro mais significativo, como por exemplo comparar o comprimento ganho com a dilatação de uma barra com o comprimento total da barra. Outra vantagem neste processo é que diminuimos a quantidade de parâmetros que existem na solução encontrada, isto não quer dizer que os parâmetros do problema adimensional deixaram de existir, mas que na verdade eles foram agrupados por uma certa combinação, esta combinação é denominada de grupo adimensional [9].

Agora a pergunta mais pertinente é: "Tudo bem! Com duas funções diferentes eu diminui a quantidade de parâmetros para o mesmo número de parâmetros significativos, então qual a vantagem de escolher um e outro?"

Aqui surge a necessidade de verificar o quão "significativo" é para o nosso problema o novo parâmetro que surgiu. O aluno dos cursos de graduação em ciências exatas normalmente aprende a manipular o conceito de ordem de grandeza para se estimar a solução de um dado problema. Um bom exemplo é a série de Taylor que aproxima uma função muito complicada em uma soma de polinômios mais simples.

Para ser mais pragmático podemos observar o coeficiente e de nosso problema que é um parâmetro pequeno se afirmarmos que ≈ 0 teremos uma equação y0 para a Eq. (6) que é

no entanto, este problema não tem solução. Usando a Eq. (12) e fazendo a mesma aproximação

A solução neste problema é negativa e somente é valida sob a superfície da Terra.

Voltemos agora a discussão que iniciou esta sessão. Poderemos pensar em termos dos tamanhos relativos dos fenômenos. Se a distância , ou seja o deslocamento do projétil com relação à Terra, é muito pequena comparada ao raio da Terra, então não faz sentido um tempo absoluto em termos do raio da Terra. Podemos pensar novamente em uma distância máxima, por meras conjecturas podemos imaginar que com o deslocamento pequeno a aceleração da gravidade permanece a mesma então o corpo sairá da velocidade inicial V e chegará no repouso, como o corpo perde velocidade a uma taxa g o tempo necessário será V/g.

A grosso modo poderemos afirmar que a distância percorrida neste intervalo seja a velocidade multiplicada por este tempo logo V2/g. Um leitor curioso poderia perguntar: "mas, em um movimento uniformemente desacelerado a distância não seria multiplicada por um fator !?" No entanto, se pensarmos nas várias aproximações que admitimos este fator é uma precisão em demasiado super- estimada. Então podemos redefinir x a distância adimensional em termos de e a distância máxima

Para continuar a idéia de que estamos fazendo várias estimativas em termos de uma escala apropriada podemos afirmar que procuramos uma escala T para obtermos um variável t adimensional

substituindo a Eq. (21) na Eq. (1) teremos a relação entre a aceleração no sistema e em x,

a aceleração em é g enquanto que em x não há dimensão, fazendo a associação encontramos que T = , voila! Encontramos uma expressão usando apenas inferências que coincide com o tempo máximo, pode parecer um processo viciado já que impusemos a distância máxima como fator de escala no tempo, mas note que não chegamos a resolver a equação diferencial propriamente dita.

De posse das expressão (20) e (22) podemos encontrar a nova equação diferencial que resultará em

Nesta expressão poderemos tratar as aproximações para a solução do problema. Digamos que é muito menor do que a unidade, então a solução de mais baixa ordem em e denotaremos por x(0)(t), e obteremos da Eq. (25)

Assim,

x(0) = t-t2 e 0 < x(0)< para 0 < t < 1.

Os resultados errôneos obtidos anteriormente em nossas soluções quando

< 1 podem ser atribuídos ao fato de que ambas as aproximações não estavam de acordo com uma escala apropriada para observar o problema.

Este exemplo bem simples mostra a importância de sabermos em que faixa de parâmetros os nossos eventos devem ser observados, na proxima seção procuraremos formalizar um pouco este procedimento.

3. Um pouco de generalizações

Nesta seção irei usar algumas das definições de Segel [9] e Desloge [10] para sistemas lineares para posteriormente aplicá-las em outros problemas.

Para determinarmos a escala mais interessante de nosso problema vamos considerar primeiramente um fenômeno governado por uma equação simples de primeira ordem com uma variável independente da forma

Suponhamos que é restrita em um intervalo I. Por conveniência nos referiremos a como uma velocidade e como a variável espacial, embora a discussão se aplique a qualquer dimensão dependente ou independente das variáveis e .

Vamos re-escalonar por L a escala de comprimento e U a escala de velocidade, então

nós teremos

Se U e L são verdadeiramente escalas apropriadas, então a combinação de U e L as quais aparecem no lado direito da equação poderão ser estimativas razoáveis para os valores máximos dos termos que se encontram no lado esquerdo. Para a escala correta teremos

e

Da Eq. (30) e usando a Eq. (31), teremos

As Eqs. (30) e (32) fornecem expressões explícitas da velocidade e da escala de comprimento do problema governado pela Eq. (27).

Agora pensemos que o problema é governado pela seguinte equação

que nada mais é do que a generalização da Eq. (27) para qualquer ordem de diferenciação (note que não colocamos nenhum não-linearidade em F). A Eq. (30) ainda é uma boa definição da escala da velocidade U, mas na escolha da escala do comprimento L devemos levar em conta cada derivada

Devemos escolher L de tal forma que

Para que tenhamos uma estimativa mais realista possível devemos selecionar o maior valor de L tal que a Eq. (35) seja satisfeita. Isto levando em conta que L é a maior constante tal que L >

Usemos um simples exemplo, tomemos a equação do oscilador harmônico dada por

com as seguintes condições iniciais x(0) = 0 (oscilador em repouso) = A (com velocidade inicial) teremos a seguinte solução x(t) = sin(λt). É claro que poderíamos ter uma evolução espacial ao invés de temporal com u() = sin(λ) que seria intrisecamente o mesmo problema, como podemos ver em várias analogias na física [12].

Neste caso (que é o exemplificado por Segel) é fácil ver que U = A e |d/d|max = Aλ, então L = λ. Esta escala seria a apropriada para a análise de qualquer alteração realizada na Eq. (36). Ou seja, a frequência fundamental λ é a escala apropriada para verificar alterações no comportamento temporal do oscilador.

No entanto, ainda não comentamos nada sobre como um conjunto de constantes descrito em um sistema de coordenadas se transforma em outro conjunto no novo sistema. Quais são as relações entre as novas e antigas constantes? Edward Desloge em dois trabalhos formaliza um procedimento sobre adimensionalização de equações em física [10] e apresenta uma seleção didática de exemplos onde este procedimento é interessante [11].

Usarei este procedimento desenvolvido por Desloge. Para isto, algumas propriedades das equações precisam ser definidas, dentre as quais: independência dimensional, medida e homogeneidade dimensional de uma função. Cada uma destas propriedades são pertinentes às dimensões escolhidas como base do problema em consideração. Assim, um particular conjunto de n dimensões L, M, N,...., tendo sido escolhido como base dimensional, todas estas propriedades são relativas a este conjunto de dimensões.

Agora especifiquemos um pouco mais, uma dado conjunto de m constantes a, b, c,..., onde m < n é dito como dimensionalmente independente se e somente se não existe um conjunto de números α, β,γ,... além do conjunto 0, 0, 0,... tal que o produto aαbβcγ... é adimensional.

Para toda a quantidade dimensional q e todo conjunto de m constantes dimensionais positivas a, b, c,... existe um único conjunto de números α, β, γ,... tal que a quantidade

é adimensional. A medida adimensional é chamada de medida de q com respeito ao dado conjunto de constantes.

Uma função Φ(x,y,z,...,A,B,C,...) onde x,y,z,... são variáveis e A,B,C,... são constantes é dita como homogeneamente dimensional se, e apenas se

onde o lado esquerdo da Eq. (38) é a função que é obtida quando todas as quantidades da função Φ são reescritas na forma de suas medidas definidas pelo conjunto de m constantes positivas dimensionalmente independentes e k é algum produto de constantes que possue a mesma dimensão de Φ.

Alguns conselhos práticos podem ser encontrados se utilizarmos este procedimento em algum exemplo, mostrarei em um usado por Desloge [10].

3.1. Partícula suspensa por uma mola

Uma partícula de massa m é suspensa por uma mola de constante elástica k e comprimento não estendido a sob ação do campo gravitacional. A partícula encontra-se em repouso quando a mola não está estendida. Vamos determinar o comprimento x da mola como funçaõ do tempo.

A equação de movimento do sistema em questão pode ser escrita como

As condições inciais são x(t = 0) = a, = 0. Neste caso temos três dimensões envolvidas no problema, a massa, o espaço e o tempo (M,L e T) e duas constantes significativas ω2 = k/m e g. Para verificar se w e g são dimensionalmente independentes, precisamos saber o conjunto de números que as descrevem em termos das dimensões M,L e T, a saber [ω] = M0L0T-1 e [g] = M0L1T-2 que formarão uma matriz Â, cujo o determinante indicará se ω e g são dimensionalmente independentes ou não

Como o determinante de  é não nulo, esta é a condição para que ω e g sejam dimensionalmente independentes [10]. Como w e g são dimensionalmente independentes podemos encontrar as medidas unitárias e que gerarão a nova equação dada por

com condições iniciais ( = 0) = = 0. Como e são unitários ficamos finalmente com

Usando as condições iniciais encontramos a seguinte solução

Agora, podemos desejar retornar aos parâmetros originais do problema, isto não representa dificuldade pois a inversa da matriz (40) nos fornece a relação de L, M e T que gerou o par e . Assim, temos

Levando-se em conta que , e são medidas de espaço e tempo respectivamente podemos reobter as variáveis.

Que leva finalmente a nossa solução desejada

O leitor pode notar que a afirmação feita no início desta seção após a Eq. (36) informando que a melhor maneira de analisar um oscilador harmônico seria usar a escala da frequência natural (ω) do mesmo é reenfatizada e descrita "naturalmente" através das expressões (47-49). Usamos procedimentos bem claros (inverter matrizes, definir medidas básicas) ao invés de simplesmente procurar uma forma de criar as medidas adimensionais. As três constantes iniciais mostradas na Eq. (39) deram lugar a apenas uma constante na Eq. (42).

Algo que deve ser enfatizado é que não há perda de informação com o procedimento de adimensionalização nestes exemplos que utilizamos. As variáveis significativas do problema mostram quais são os parâmetros verdadeiramente relevantes para a resolução da questão.

Agora, lançaremos nosso olhar para outros sistemas, aqueles que procuram definir modelos de dinâmicas de populações construídos utilizando analogias com física para verificarmos se os mesmos procedimentos valem e até quando podemos usar estas analogias.

4. O sistema predador-presa

Antes de citarmos o problema de duas espécies interagentes pensemos em alguns modelos simples de populações. Primeiramente temos o modelo Malthusiano que imagina uma população que cresce exponencialmente [13]. Se possuímos uma população com tamanho N (número de indivíduos) em um tempo t e a população cresce a uma taxa per capita r (que pode ser interpretado como a diferença entre a taxa de natalidade e mortalidade), a dinâmica da população será dada por

No entanto, é fácil notar que esta equação não é realista, pois a população cresce indefinidamente em um tempo finito. Então, Verhulst propos um outro modelo onde existiria um termo de contenção, este é conhecido como o modelo logístico [7], com a equação dada por

onde K é interpretado como uma capacidade suporte do meio.

Neste modelo a população, em um tempo finito, chega em um tamanho definido e se estabiliza. Note que aqui podemos escrever uma equação adimensional, usando

assim, teremos uma equação dada por:

Veja que na Eq. (54) não temos parâmetros independentes, no entanto, usemos a definição da seção anterior. Pensemos em dN/dt o seu valor máximo será no início da evolução temporal, ou seja, na condição inicial N(0) = N0, enquanto isto o valor máximo da N(t) será K. Assim, usando (30) U = K e L = .

Usando esta escala para reescever a Eq. (52) encontraremos a variável n = N/U e t = /L que é diferente da transformação que realizamos anteriormente na Eq. (53), finalmente chegaremos em

Temos uma equação adimensional, no entanto, com dois parâmetros como no início, apenas alteramos de (r,K) para (N0,K). Podemos explorar algumas situações interessantes como a situação que a população inicial é muito menor que a capacidade suporte, de tal forma que podemos desprezar o termo quadrático e teríamos a razão como uma espécie de fator absoluto da variação da dinâmica do problema. No entanto, para o sentido prático de nosso trabalho de notar generalização de procedimentos de adimensionalização em sistemas na natureza estas aproximações não são muito úteis.

A resposta à questão da razão da diferença entre as duas adimensionalizações reside no fato de que a seção anterior se baseou totalmente em um sistema onde a equação diferencial é linear e no caso que acabamos de ver a equação não é linear (é muito raro em uma equação não linear encontrar uma solução analítica simples, o melhor é resolver numericamente). Para completar podemos verificar se as grandezas são dimensionalmente dependentes usando o critério de Desloge. Temos duas dimensões o número de indivíduos (N), adimensional, e o tempo t com dimensão T, temos duas constantes r (T-1) e a capacidade suporte K adimensional se montarmos a matriz  encontramos um determinante nulo, ou seja, K e r não são grandezas dimensionalmente dependentes.

Antes do leitor se sentir ludibriado após tantos cálculos, posso afirmar que devemos continuar a usar parte do procedimento anterior.

Muitas particularidades das equações diferenciais podem ser reinterpretadas com procedimentos matemáticos como o usado para obter a Eq. (54) um exemplo disto é que na Eq. (52) poderiamos entender que a taxa de natalidade poderia ser negativa, no entanto, para uma população inicial acima da capacidade suporte K teríamos um aumento exponencial do número de indivíduos, o que é um contra-senso. Este problema é conhecido por muitos autores como o paradoxo de Levin [14] e para contornar este problema ou se limita a validade da Eq. (52) apenas para r positivo ou há a necessidade de se reestruturar o modelo [7]. No entanto, na Eq. (54) não existe qualquer problema com este parâmetro (evidentemente porque o mesmo não aparece na equação), no entanto, o problema do modelo permanece.

Para sistemas como o ilustrado acima ou sistemas de física atômica e molecular como o condensado de Bose-Einstein onde a equação é não linear devemos ter o cuidado de tratar com muita atenção os parâmetros pois não existe uma forma fechada para a redução dos parâmetros e adimensionalização da equação. Tomemos outro exemplo em ecologia.

Duas espécies de animais interagem em um meio, sendo que o número de predadores pode ser representado pela variável P e o número de presas pode ser representado pela variável V. Na ausência de presa a população de predadores cai a uma taxa a enquanto que a presença da presa causa um aumento na taxa de crescimento dos predadores b. Enquanto isto, a presa cresce intrisecamente a uma taxa c e diminui com a presença dos predadores a uma taxa d. Então temos o seguinte sistema de equações diferenciais

Poderíamos interpretar de uma forma mais "física" que os parâmetros b e d representam as taxas de conversão de energia do sistema.

No gráfico ilustrado na Fig. 1 temos a evolução temporal do número de indivíduos das populações de predadores e presas obtidos pela resolução numérica do sistema (56) através do método de Runge-Kutta de ordem quatro em um compilador fortran. A resolução numérica do sistema é necessária pois ao contrário da equação não linear (52) este sistema de equações não lineares não possui uma solução analítica [7]. Os parâmetros usados no gráfico são similares a valores encontrados para a taxa de crescimento de populações de cães na Argentina no período de 1986/1990 [15]. O leitor crítico pode argumentar: "Qual o animal que possui relação de predação com cães em ambientes urbanos?" Mas, na verdade usei este valor apenas para ilustrar como muitas vezes tomar dados na literatura não é uma tarefa simples como veremos a seguir.


No entanto, observando o gráfico da Fig. 4 notamos que em alguns momentos as populações aparentemente tendem a desaparecer, efeito que sabemos não ser real. O gráfico da Fig. 4 é bem diferente do ilustrado em livros texto [7]. Vamos agora continuar usando o procedimento descrito nos livros textos. Vamos adimensionalizar o sistema (56) para encontrarmos as variáveis relevantes do problema.




Podemos usar um dos dois procedimentos de mudança de adimensionalização

ou

Em ambos poderemos usar um tempo próprio na escala de tempo do predador τ = at e encontramos usando o procedimento da Eq. (57)

e usando a Eq. (58) encontramos

É um tanto evidente que o sistema (60) é bem mais simples do que a Eq. (59) e é o usado nos livros textos [7]. Na Fig. 2 vemos claramente o comportamento oscilatório característico deste tipo de sistema. Mas, procuremos entender um pouco melhor a escolha do procedimento da Eq. (58) em detrimento ao da Eq. (57).

Quando usamos a Eq. (58) estamos adimensionando a quantidade de predadores em termos da razão entre o dano da predação na presa e a taxa de crescimento da mesma, na mesma direção adimensionamos a quantidade de presas em termos da razão entre a eficiência da predação para o predador e a taxa de mortalidade do predador. Assim, criamos um par de variáveis interligadas que simplifica o problema. E neste novo problema o parâmetro mais importante é a razão entre a taxa de crescimento da presa e taxa de mortalidade do predador.

Neste mesmo problema é notório que um dos presupostos básicos de Desloge é quebrado [10], a quantidade de constantes (m = 4) é maior do que a quantidade de dimensões (n = 3).

Poderíamos pensar, na verdade, que queremos apenas uma transformação matemática que diminua o tamanho do conjunto de parâmetros do sistema de equações diferenciais. Pois, encontrar uma analogia simples entre os parâmetros com os termos ecológicos do problema fundamental nem sempre é uma tarefa trivial.

Digamos agora que a presa possui uma limitação em sua população, não podendo crescer indefinidamente (crescimento logístico com capacidade suporte KV) e o predador crescimento Malthusiano. O sistema de equações que rege a dinâmica do número de indivíduos das populações de presa e predador é dado por

No sistema de equações em (61) os parâmetros a e b possuem o mesmo significado que na Eq. (56). O parâmetro r é a taxa de crescimento logística da população de presas e c é a sensibilidade da presa a presença do predador. Uma forma digamos mais "física" de se entender o problema é afirmar que o termo quadrático que indica ecologicamente que a população possui um limite de crescimento, pode ser entendido como uma analogia a um corpo em deslocamento em um fluído onde teremos o termo quadrático na velocidade, assim, o termo 1/Kv indicaria uma analogia com atrito viscoso em um fluido.

Agora poderíamos pensar em termos dos parâmetros para simplificarmos o problema que até o momento possui 5 parâmetros. Usando novamente uma tabela para indentificarmos as unidades das grandezas, o número de indivíduos será representado por #.

Poderemos encontrar varios arranjos entre estes 5 parâmetros, nos quais são obtidos sistemas de equações adimensionais. Mas, é interessante obter novos parâmetros que nos forneçam informações da relação entre as variáveis. Neste momento podemos ficar seguros de que sempre teremos neste tipo de problema novos parâmetros (sempre em menor quantidade do que o número original) que serão mais simples do que os originais.

Um conjunto de parâmetros seria

Note que tinhamos 5 parâmetros e temos agora "apenas" 3, o que é um enorme passo para entender melhor o problema. A equação agora é da forma

onde µ = , v = e τ = rt

O parâmetro ρ está associado à um termo de crescimento do predador em função da caça, o termo δ seria um termo de "simbiose" da presa com relação ao predador, na verdade, mede as condições da co-existência de caça e predador enquanto que ε seria um termo de mortalidade efetiva do predador levando-se em conta a capacidade suporte da presa.

Podemos usar o procedimento para encontrar os pontos fixos do sistema (66), ou seja, os pontos onde não existe variação dos valores absolutos do problema [7]. Os pontos são (0,0) e (v*,µ*), onde µ* = e v* = ε. Foi realizado um cálculo numérico para resolver o sistema de equações usando o método de Runge-Kutta de quarta ordem. A Fig. 3 ilustra a evolução temporal da solução µ e v quando deslocada do ponto fixo. Enquanto que o gráfico da Fig. 4 ilustra o diagrama de fase do problema. Notamos que as condições iniciais diferentes do ponto fixo não trivial causa pequenas variação ao redor do mesmo.

Após esta apresentação que procura sintetizar o comportamento do sistema predador-presa usando as Eqs. (56) e (61), poderíamos ilustrar um pequeno procedimento para tratar estes problemas não lineares. A ideia consiste em:

  • Verificar se os parâmetros possuem relações entre si. Representam características semelhantes do problema.

  • Agrupar os parâmetros que possuem a mesma unidade.

  • Estabelecer relação entre os parâmetros do mesmo grupo, criando assim novos parâmetros.

  • Com os novos parâmetros reescrever a equação diferencial.

  • Verificar se a nova equação diferencial possui relação com a original e acima de tudo se é mais simples.

  • Se a resposta do item anterior é não procurar novo arranjo entre os parâmetros dentro de um dado grupo.

O problema reescrito muitas vezes pode apresentar sutilezas que não percebíamos na equação original. Podemos ampliar um pouco esta discussão sobre como construir modelos, Mario Bunge [18] ao tratar de desideratos da Teoria Científica (ou sintomas de realidade como o autor escreveu) argumenta que uma teoria científica que propões muitos parâmetros perde em comprobabilidade, já que podemos manipular muitos destes parâmetros para explicar os dados empíricos. Em ecologia sempre nos confrontamos com isto, ainda mais quando extendermos nossa modelagem para sistemas maiores, onde corremos o risco de tentar explicar muitos fenômenos da natureza, e novamente citando Bunge, podemos nesta situação tentar construir modelos irrefutáveis o que se torna indesejável.

Note que o problema pragmático de adimensionalizar parâmetros e constantes em modelos em ecologia podem nos remeter a questões sobre a própria essência da linguaguem matemática em representar a realidade e de suas limitações em transmitir as principais informações precisas deste mundo sensível que nos cerca.

5. Conclusões

Apresentei a importância no processo de entendimento de problemas da natureza a adimensionalização e o escalonamento das equações diferenciais que descrevem o problema.

Foi sumarizado o trabalho de Segel [9] que estabelece uma procedimento de escalonamento e adimensionalização de equações diferenciais de primeira ordem e realizei uma demonstração da dificuldade de se usar tal procedimento para problemas não lineares. Também foi apresentado de forma resumida o procedimento desenvolvido por Desloge [10, 11] para adimensionalizar equações na física e mostrei a dificuldade de aplicar estes procedimentos em alguns modelos construídos heurísticamente.

Com o auxílio de exemplos usando um modelo predador-presa construi um procedimento mais genérico para reduzir a quantidade de parâmetros em modelos e encontrar as variáveis significativas do problema.

A despeito de muitas vezes a analogia entre um fenômeno, o físico com outro, biológico ou químico nos coloca muitas similitudes interessantes, dentro da epistemologia da linguaguem, reescrever nossos problemas físicos é uma forma de mimetizar o mundo que nos rodeia dentro daquilo que entendemos ser a realidade [16]. Mas, como qualquer similitude a analogia possue suas limitações.

Um procedimento interessante para o estudante que se inicia na pesquisa científica é fazer os dois caminhos da analogia físico-matemática. Ou seja, a partir de uma solução matemática procurar um problema análogo físico. Ou ainda, de um problema físico conhecido procurar análogos matemáticos (ou de qualquer outra ciência) que possam ter uma nova interpretação. Como já aconteceu com o tratamento matricial de Schrödinger na mecânica quântica [17].

Poderíamos procurar construir mais analogias entre as não linearidades encontradas em equações de estado em física atômica e Molecular [19] e outras áreas do conhecimento para procurar novas interpretações de termos complexos de serem entendidos como o potencial químico em gases atômicos diluídos. No entanto, estas analogias e a discussão epistemológica pode ser feita posteriormente com ou sem longos cálculos.

Agradecimentos

O autor é particularmente grato a Arnaldo Gammal, Roberto Kraenkel e Marcos Amaku pelos vários ensinamentos sobre física e métodos matemáticos em biologia das populações e ao parecerista da RBEF pelas sugestões durante o processo de julgamento deste trabalho. O autor também agradece profundamente aos participantes do curso de verão de Métodos Matemáticos em Biologia das Populações pelas valiosas discussões e Samara Belchior pela revisão.

Recebido em 24/4/2009; Revisado em 23/8/2009; Aceito em 25/8/2009; Publicado em 26/3/2010

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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Aceito
      25 Ago 2009
    • Revisado
      23 Ago 2009
    • Recebido
      24 Abr 2009
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