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O problema de Fleming sobre as marés e as conjecturas
de Galilei

The Fleming problem about tides and the Galilei conjectures

Resumos

O antigo problema das marés, fenômeno observado desde os primórdios da humanidade, ainda nos lega análises importantes. Nesse trabalho, a partir do estudo desse fenômeno, mas levando em conta a gravitação, determinamos características da Lua, tais como como a massa, volume e aspectos da composição química. Essa determinação é feita usando um tipo de método inverso, proposto por Henrique Fleming. Essa abordagem nos permite reexaminar a análise qualitativa de Galilei sobre o problema, partindo exclusivamente dos movimentos da Terra. Apontamos para a importância da formulação galileana, criticada em certos estudos.

Palavras-chave:
Marés e a Lua; Conjecturas de Galilei; Problema de Fleming


The ancient problem of tides, phenomena observed since the humanity early days, still today provides important analysis. In this work, starting with the study of tides, but considering the law gravity, we determine Moon’s characteristics, such as mass, volume, and some aspects of its chemical composition. This approach is carried out by using an inverse-like method, proposed by Henrique Fleming. The formulation provides a way to revisit the Galilei qualitative studies about tides, starting exclusively from the Earth motion. We point out the importance of galilean formulation, what is under criticism in some studies.

Keywords
Tides and Moon; Galilei Conjectures; Fleming Problem


1. Introdução

Este trabalho é dedicado ao Professor Henrique Fleming por ocasião do seu aniversário de 85 anos. Fleming nasceu em Itajaí, SC, em 26 de outubro de 1938. Fez a graduação na Universidade de São Paulo (USP), na qual foi um dos fundadores do CEFISMA (acrônimo original de Centro de Estudos em Física e Matemática), na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Atualmente o CEFISMA é o Centro Acadêmico do Instituto de Física da USP (IFUSP). No doutorado trabalhou com o Professor Enrico Pedrazzi, da Universidade de Turim, Itália. Professor do Departamento de Física Matemática, IFUSP, Fleming tem inspirado e formado por décadas gerações de estudantes em física1 1 Consultar as seguintes páginas: http://www.hfleming.com/, acessado em: 01/12/2023; https://portal.if.usp.br/ifusp/pt-br/users/fleming, acessado em: 01/12/2023. . O presente trabalho teve como motivação central um problema apresentado à turma de estudantes de Pós-graduação na década de 1980, quando ministrou a disciplina Gravitação e Cosmologia. Seguimos, como texto de referência, suas notas de aula redigidas à mão [1[1] H. Fleming, Gravitação e Cosmologia: Notas de Aula e Exercícios (São Paulo, IFUSP, 1985).]. A Figura 1 mostra a capa da encadernação daquelas notas, que contém as listas de exercícios e as soluções; a Figura 2 é a foto da primeira página; e a Figura 3 traz uma das listas de exercício. Muitos daquelas turmas haviam seguido também com o Professor Fleming as disciplinas Mecânica Quântica I e II, tendo como livro de referência adotado o da coleção Landau e Lifshitz [2[2] L.D. Landau e E.M. Lifshitz, Quantum Mechanics: Non-relativistic Theory (Pergamon Press, New York, 1965).].

Figura 1
Capa da encadernação das notas de aula do Professor Henrique Fleming, na disciplina Gravitação e Cosmologia, ministrada no IFUSP em 1985.
Figura 2
Primeira página das notas de aula do Professor Henrique Fleming, na disciplina Gravitação e Cosmologia, ministrada no IFUSP em 1985.
Figura 3
Página da quinta lista de exercícios das notas de aula do Professor Henrique Fleming, na disciplina Gravitação e Cosmologia, ministrada no IFUSP em 1985.

No início da disciplina Gravitação e Cosmologia, no seu estilo encantador a refletir seu intelecto refinado e sua preocupação com a formação dos estudantes, o Professor Fleming entregou uma lista de exercícios sobre gravitação Newtoniana. O objetivo era que nos inteirássemos com mais acurácia sobre a natureza da gravitação. O terceiro problema, objeto deste trabalho, era o seguinte:

“Use o fenômeno da marés para estimar o quanto você puder sobre a Lua (distância, massa, período, etc). Ignore os efeitos so Sol.”

Este problema possui, ao ser resolvido, três desdobramentos de interesse. Primeiro, importante a ser destacado, é o estudo das marés em si, que continua atual principalmente quanto a sua associação com a medida do tempo, o impacto na biologia marinha, questões climáticas, e processos astrofísicas [3[3] P.L. Woodworth, J.A.M. Green, R.D. Ray e J.M. Huthnance, Ocean Sci. 17, 809 (2021).,4[4] D.C. Agnew, Hist. Geo Space. Sci. 11, 215 (2020).,5[5] V.Y. Petrusevich, I.A. Dmitrenko, A. Niemi, S.A. Kirillov, C.M. Kamula, Z.Z.A. Kuzyk, D.G. Barber e J.K. Ehn, Ocean Sci. 16, 337 (2020).,6[6] M.M. Woolfson, Q. Jl. R. Astr. Soc. 19, 167 (1978).,7[7] M.C. Costa, O Impacto da Maré Barotrópica Global em Escalas Climáticas. Tese de Doutorado, Instituto nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), São José dos Campos (2017).]. Sobre esse conteúdo, vale consultar as publicações do centenário Liverpool Tidal Institute [8[8] A. Carlsson-Hyslop, Hist. Geo Space. Sci. 11, 139 (2020).]. Outro aspecto de contexto atual é de natureza metodológica. Ou seja, o problema de Fleming é típico da teoria do problema inverso, que possui relevância em praticamente todas as áreas da física, como em física de partículas e gravitação, tomografia, teoria cinética e física matemática [9[9] A. Tarantola, Inverse Problem Theory and Methods for Model Parameter Estimation (SIAM, Philadelphia, 2005).]. Essa natureza metodológica, possui um segundo conteúdo: o pedagógico. Neste caso, o problema de Fleming se mostra interessante para se decodificar pedagogicamente, por exemplo, o imenso esforço de Le Verrier ao propor e resolver a existência de Netuno, num trabalho de muitos anos [10[10] L.A.C. Malbouisson e A.E. Santana, Ciência e Sociedade 2, 8 (2014).]. De fato, o problema de Le Verrier é da mesma natureza que o de Fleming, se este for reescrito como: “considerando as marés, provar a existência da Lua”. Ainda é preciso destacar a importância das marés para a história e a filosofia da ciência [11[11] K. Walsh, Natural Histories and Newton’s Theory of the Tides, disponível em: https://blogs.otago.ac.nz/emxphi/natural-histories-and-newtons-theory-of-the-tides/, acessado em: 08/12/2023.
https://blogs.otago.ac.nz/emxphi/natural...
,12[12] R. Gigli, Galileo’s Theory of the Tides, disponível em: http://galileo.rice.edu/sci/observations/tides.html, acessado em: 08/12/2023
http://galileo.rice.edu/sci/observations...
,13[13] M.A. Finocchiaro, The Galileo Affair: A Documentary History (University of California Press, Berkeley, 1989), v.1.]. Há uma bibliografia extensa tratando desse tema, e aqui o propósito é apenas destacar alguns desses elementos.

Na perspectiva histórica, desde a remota antiguidade, a maré desperta o interesse dos grupos humanos vivendo nas costas oceânicas. Há registros de tentativas de descrição das marés desde o século V AEC, com os hindus [11[11] K. Walsh, Natural Histories and Newton’s Theory of the Tides, disponível em: https://blogs.otago.ac.nz/emxphi/natural-histories-and-newtons-theory-of-the-tides/, acessado em: 08/12/2023.
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13[13] M.A. Finocchiaro, The Galileo Affair: A Documentary History (University of California Press, Berkeley, 1989), v.1.]. Com os gregos, esse fenômeno era abordado, em parte, a partir de forças ocultas ou divinas, mesmo quando considerada a influência da Lua, embora tenha havido estudos preliminares, já no período clássico, examinando a tese da influência da Lua, sem o apelo a essas forças. Aristóteles, em sua obra “On the Universe” (pp. 396a31), afirma que “muitas marés são ditas acompanhar os períodos da Lua em intervalos fixos” [14[14] J. Barnes (ed.), Complet Works of Aristotle (Princeton University Press, Princeton, 1991), v.1.]. No período helênico, Seleuco de Selêucia (século II, AEC), adotando o modelo heliocêntrico de Aristarco, havia proposto que as marés seriam causadas pelos movimentos da Terra, antecipando, assim, a perspectiva galileana. Mas, Seleuco vai além e chega a supor uma relação com a posição da Lua no zodíaco e as marés [15[15] T. Heath, Aristarchus of Samos: The Ancient Copernicus (Dover, New York, 2004).]. É também interessante observar que Beda, no século VIII, defende uma possível influência da Lua nesse fenômeno [16[16] T. Click, S.J. Livesey e F. Wallis (ed.), Medieval Science, Technology, and Medicine: An Encyclopedia (Routledge, London, 2005).].

A complexidade das marés envolve a atração gravitacional da Lua, do Sol e os movimentos da Terra em sua órbita em torno do Sol e em torno de seu próprio eixo. Nesse sentido, Galilei2 2 Galieu Galilei. Em física é costume usar o sobrenome de Galieu, “Galilei”, e assim também em denominações como: “grupo de Galilei”, “transformadas de Galilei”. Em áreas como a filosofia se utiliza o nome: “Galileu”. Na famosa peça de B. Brecht, “A vida de Galileu”, é o nome que é grafado. Em Brecht, e talvez pelo mesmo motivo na filosofia, o uso do nome “Galieu” guarda uma certa intimidade com o personagem, na defesa intransigente de seus pontos de vista renascentistas. é o primeiro a fazer um estudo qualitativo, mas detalhado, levando em conta apenas esses movimentos, ou seja, a cinemática do movimento da Terra no zodíaco. Na Quarta Jornada do “Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo – ptolomaico e copernicano”, vê-se uma hesitação de Galilei sobre esse fenômeno [17[17] G. Galilei, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems—Ptolemaic and Copernican (University of California Press, Berkeley, 1967).]. Logo no início dessa Jornada, admite, na figura de Salviati, que a Lua e o Sol possam, “secundariamente, (…) exercerem sua ação com as suas alterações mensais e anuais”. No entanto, como ele mesmo afirma logo adiante, “somente uma é a causa primária e verdadeira” das marés. Também no final dessa mesma Jornada, faz uma crítica respeitosa a Kepler, por defender o “predomínio da Lua sobre a água, a propriedades ocultas e a semelhantes infantilidades” [17[17] G. Galilei, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems—Ptolemaic and Copernican (University of California Press, Berkeley, 1967).]. Ou seja, Galilei, tendo como fundamento o modelo copernicano, busca uma abordagem estritamente cinemática, ressaltando, assim, um dos aspectos do fenômeno.

Desde então, as conjecturas de Galilei vem sendo perscrutadas sob diferentes pontos de vista. Um é o embate de Galilei, na sua posição renascentista, perante a Igreja. Este aspecto não é a preocupação principal aqui, mas associado a isto, um outro tipo de análise na história e filosofia da ciência conduziu a uma controvésia persistente e atual acerca o trabalho de Galilei sobre as marés. Vários estudos avaliam o acerto e o erro, tendo em vista a história das relações de Galilei com a Igreja e a solução de Newton, considerado como quem primeiro construiu um modelo bem sucedido para as marés [18[18] J. Büttner, Defeated by the Tides: The Copernican Worldview Has Prevailed - not, However, Galileo’s Theory of the Tides, disponível em: https://www.mpg.de/7915566/galileo-tide-theory, acessado em: 01/12/2023.
https://www.mpg.de/7915566/galileo-tide-...
, 19[19] P. Palmieri, Arch. Hist. Exact Sci. 53, 223 (1998).]. Um objetivo do presente trabalho é mostrar que a solução do problema de Fleming, além dos interesses pedagógico e de atualidade, permite trazer elementos inéditos e sólidos no contexto da mencionada controvérsia sobre Galilei.

O trabalho está organizado da seguinte forma. Na seção 2 2. Elementos das Marés Chama-se maré a variação regular do nível da água observado nas orlas marítimas. Em média essa variação ocorre em intervalos de aproximadamente de 12 h e 25 min; ou seja a maré ocorre duas vezes por dia. A diferença entre o nível mais alto e mais baixo chama-se faixa de maré que se modifica com os dias e é diferente para diversas regiões do globo. Associado à maré, verifica-se alternância na correnteza do mar, que muda de direção em um intervalo médio de aproximadamente 6h e 12 min. A faixa de maré e a alternância da corrente sofrem influência da formação da costa marítima a ser analisada. Considerando um ponto na superfície da Terra, após 24 h, acontece a última maré alta, denominada de “preamar” (do latin, plenus mare), com um atraso de aproximadamente 45 minutos. Ou seja, em 28 dias, esse atraso é de quase 24 h. Desde longa data, se percebia o efeito da Lua e do Sol sobre a altura das marés. Um resumo com detalhe fora apresentado por Galilei que fez a primeira abordagem metodologicamente científica sobre as marés [17–21], sem ainda dispor da lei da gravitação. Newton apresenta a primeira modelagem bem sucedida do efeito da Lua sobre as marés; Laplace, usando as equações da continuidade, descreve um oceano cobrindo a Terra com ampla generalidade. Basicamente, o efeito das forças gravitacionais sobre a altura da maré nos pontos das costas depende: a) da extensão, forma e profundidade do mar. b) da latitude do ponto na superfície da Terra. c) da estação do ano. De fato, a Lua segue a posição do Sol, que varia de aproximadamente de 23, 50 do equador, sendo a órbita lunar inclinada de 50, 6ʺ contra a elíptica. d) da configuração da costa e do ângulo que forma com o meridiano. e) da direção e velocidade dos ventos. f) da natureza das correntes marítimas na região. Este conjunto de informações permite a proposição um modelo de oceano para estudar as marés, a partir do efeito gravitacional Terra-Lua. Aqui, a “Lua” será inicialmente um ponto material com massa e distância da Terra, ambas desconhecidas, estabelecendo o sistema gravitacional binário (ou seja, descrito pela gravitação Newtoniana) Terra-Lua. Como hipótese, os elementos básicos da maré deverão prover as características do astro que está sendo denominado “Lua”. , estão apresentados aspectos gerais quanto a natureza das marés. Nas seções 3 3. O Modelo de Oceano para o Problema de Fleming Para resolver o problema de Fleming, primeiro é necessário construi a modelagem do sistema. A suposição é que a Lua, a ser tratada inicialmente como um ponto material, de massa mL, exerce atração gravitacional sobre a Terra. A atração gravitacionaçional mútua do sistema Terra-Lua será considerada a causa básica das duas marés observadas diariamente. Se esta hipótese for verdadeira, as características físicas da Lua devem ser obtidas a partir das marés. Para provar isso, a próxima etapa é a construção consistente de um modelo de oceano. Aqui, seguiremos próximo a Newton e Laplace. A Terra, girando em torno de seu próprio eixo, será considerada uma esfera sólida coberta, na parte mais externa, por uma camada de água: o oceano. Neste caso, é preciso analisar o efeito dessa rotação sobre o oceano. O giro da Terra, sem considerar qualque efeito da Lua, provoca uma deformação do oceano, levando a uma forma elipsoidal. Vamos mostrar, então, que esta forma elipsoidal não é significativa, e portanto podemos considerar a Terra ainda como uma esfera. A intensidade da força de atração gravitacional no polo e no equador, para uma mesma distância, é a mesma. Entretanto, no equador, existe uma força centrífuga como resultado do movimento de rotação da Terra. A força resultante no equador por unidade de massa, FR, é dada por (1) F R = F p + ω 2 r , onde Fp é a força por unidade de massa no polo, e r é uma distância do centro da Terra no equador. Em termos de energia potencial, U, por unidade de massa, no equador, temos (2) U R = U p r + 1 2 ω 2 r 2 , tal que (3) U r = G m T r . Comparando a forma elipsoidal, devido ao giro em torno do eixo, com a forma esférica, caso a Terra estivesse parada, vemos que há um acréscimo de água no equador, correspondendo a uma altura d1. Nos polos, ocorre uma achatamento, com relação a forma esférica. Este achatamente, um desnível do oceano no polo, corresponde a uma distância d2. Considerando as deformações d1 e d12, podemos fazer uma estimativa da diferença, d2−d1. Sem deformações, as energias no polo e no equador são as mesmas. Disto segue que (4) U p R T + d 2 = U e q u R T + d 1 . Usando as expressões acima, até primeira ordem, temos que (5) g d 1 − d 2 = 1 2 ω 2 R T 2 , onde g=GmTRT. Isto conduz a (6) d 1 − d 2 ≃ 11 , 1 Km , que é da ordem de grandeza de 21 Km, o valor estimado para d1 − d2 a partir da diferença do raio polar e equatorial, de acordo com a Tabela 1. Esses números, da ordem de 101 Km, são grandes quando comparados com a as faixas de marés, que são da ordem de 101 m. Entretanto, são valores pequenos quando comparados com as dimensões do globo, que são da ordem de 105 Km. Tabela 1 Características do globo terrestre [20]. Raio equatorial 6378.388 Km Raio polar (distância do centro ao polo) 6356.911 Km Raio médio (RT) 6371 Km Diferença entre diametro polar e equatorial ≃ 43 Km Massa da Terra (mT) 5.972 × 1024 Kg Dia sideral 86164 s Dia solar 86400 s Em conclusão, numa primeira aproximação, podemos descartar a forma elipsoidal formada pelo oceano devido ao giro da Terra. A Terra então será considerada como uma esfera maciça, com uma camada externa uniforme de água. Esta Terra está ligada gravitacionalmente à Lua, estabelecendo o sistema Terra-Lua, girando em torno de um centro gravitacional. A forma elipsoidal surgirá devido ao giro em tormo do eixo. Esse eixo passará pelo centro da Terra, como se esta fosse ainda uma esfera. O giro em torno do centro de gravidade comum é resultado da atração gravitacional e se combinará com o giro da Terra em torno do eixo que passa pelo centro. De um ponto de vista cinemático, em um dado instante, um determinado ponto na superfície da Terra sofrerá um movimento que é a combinação do giro da terra, impondo uma velocidade angular, com a velocidade de deslocamento no espaço devido ao giro do sistema Terra-Lua. De um ponto de vista dinâmico, a combinação de forças centrípetas, devido ao giro da Terra em torno do eixo, com a força de atração da Lua sobre os oceanos, estabelecerá as duas preamares diárias. 6 6. Volume e Densidade da Lua Por fim, vamos estimar o volume e a densidade da Lua. Iniciamos estimar o diâmetro Lua. Admitimos no modelo do sistema Terra-Lua, que a Lua é um ponto material com uma massa mL. A forma da maré no globo terrestre é que justifica esta hipótese, pois desprezamos as dimensões da Lua (equivalentemente, podemos utilizar o teorema de Gauss). Isto significa que o valor de α na Figura 6 deve ser pequeno. A questão passa a ser a estimativa desse valor. Podemos proceder por avaliar a ordem de grandeza de α e condições de plausibilidade para o diâmetro e densidade da Lua. Se α pode ser considerado pequeno, a partir da Figura 6 temos, Figura 6 Representação esquemática do modelo Terra-Lua com dTL a distância do centro da Terra ao centro da Lua. O ângulo α (em rad) é utilizado para se estimar o volume e a densidade da Lua. RT é o raio da Terra e RL é o raio da Lua. tan α = R L d T L . Desse modo, o raio (que leva ao volume) e a densidade, ρL, da Lua podem ser analisados. Algumas valores estão a seguir (i) α = 10−3. Isto leva a RL = 384 Km, ρL = 3.1 × 102 g/cm3 (ii) α = 10−2. Isto leva a RL = 3840 Km, ρL = 0.31 g/cm3 (iii) α = 10−1. Isto leva a RL = 38400 Km, ρL = 0.031 g/cm3 A estimativa para α = 10−3 fornece uma densidade para a Lua elevada, ρL = 3.1 × 102 g/cm3, mas não descartável de imediato. Podemos comparar com a densidade da Terra, que é ρT = 5.46 g/cm3. Enquanto que o material pedregoso da Terra possui a densidade média de ρT = 3.0 g/cm3, e nas camadas mais profundas chega a ρT = 3.6 g/cm3 (indicativo da presença de metal). Ainda assim, a densidade ρL = 3.1 × 102 g/cm3x é extremamente alta e não seria metálica. A estimativa para α = 10−2 fornece uma densidade baixa para a Lua de ρL = 0.31 g/cm3. Ou seja, a Lua seria uma massa gasosa. Além disso, nesse caso, o volume da Terra, VT, seria de apenas cinco vezes o volume da Lua, VL, isto é, V ≃ 5VL. A estimativa para α = 10−3 leva a uma massa gasosa ainda mais diluida, e já tocando a terra. Neste caso, as marés não poderiam ser como se apresentam. Neste ponto, podemos continuar a estimar a densidade da Lua no intervalo 100 ≤ ρL ≤ 101 g/cm3. Para ρL = 1 g/cm3, encontramos, VT ≃ 10VL. Para ρL = 10 g/cm3, encontramos, VT ≃ 100VL. Se escolhermos o valor intermediário, ρL = 3,3g/cm3, correspondente ao valor da densidade média de toda a crosta terrestre, encontramos, VT ≃ 49VL. Este é o mais plausível dos valores, considerando que a Lua tenha uma constituição material próxima a da Terra. Neste caso, é de se esperar que o material pedregoso da Lua contenha metais, um aspecto de interesse atual [22]. Este resultado é confirmado experimentalmente através da medida direta dos volumes. , a solução do problema de Fleming será apresentada, sem referência antecipada a dados sobre a Lua. Na seção 7 7. Galilei e o Problema de Fleming A tentativa de Galilei em tratar o problema das marés guarda importância significativa para a história e a filosofia da ciência, menos por apresentar um modelo preciso. De fato, Galilei representa um dos marcos iniciais do realismo científico no século XVII. No caso em questão, esse realismo é aplicado ao problema das marés, visto que se fundamenta no modelo copernicano, considerado o sistema de mundo, para utilizar os termos do próprio Pisano. Até então, esse fenômeno era abordado, em parte, a partir de forças ocultas ou míticas, mesmo quando considerada a influência da Lua, embora tenha havido estudos preliminares, já no período clássico, examinando a tese da influência da Lua, sem o apelo a essas forças, como em Seleuco de Selêucia [16], como vimos anteriormente. Galilei foi o primeiro a tratar as marés a partir da noção de movimento, exclusivamente, e formulou o problema observando o movimento da Terra, enquanto um planeta girando em torno de seu eixo e também em torno do Sol. Sabia e descreveu os efeitos da Lua sobre as faixas de marés, mas descartou, por não ter como ferramenta a lei da gravitação, a possibilidade de ter a Lua como possível causa principal para as marés ao dia. O método de Galilei está expresso em uma carta escrita em 1616, de natureza particular e endereçada ao Cardeal A. Orsini, na disputa para sustentar o modelo de mundo Copernicano. Na comunicação, Galilei escreveu o “Discorso sul flusso e il reflusso del mare” [21]. No “Dialogo”, Galilei produziu uma análise detalhada do que se conhecia sobre as marés em seu tempo: as duas preamares diárias nas costas oceânicas de mar aberto, a questão das costas, a falta de maré no Mar Vermelho, as variações de corrente, a dependência das marés com a latitude. Ainda descreveu a água no globo, sem levar em conta aquelas diversas variantes [17, 21]. Sabia, Galilei, do movimento de rotação da Terra em torno do eixo. O que daria a forma elipsoidal. Também considerou que a Terra se movia pela elíptica. A ideia de Galilei está representada na Figura 7. No ponto D o movimento é contrário ao efeito do movimento pela elíptica da Terra em torno do Sol. E assim a água em D possui a mínima velocidade. Por outro lado, em B a água possui a máxima velocidade. O que é significativo é que ocorre em um dia um processo de aceleração na região BCD e desaceleração na região DLB. Nas palavras de Galilei, na tradução para o inglês de Finocchiaro [13, 17]: Figura 7 Esquema original de Galilei para a combinação do movimento da terra em torno do eixo e do movimento da Terra em torno da elíptica. O círculo grande representa a órbita da Terra. O círculo menor representa o movimento da Terra em torno do eixo, arrastando o oceano. Os movimentos estão indicados pela setas. As componentes tangentes do movimento são máximas nas regiões de B, e mínimas na região de D. Isto produz um fluxo e refluxo, devido a aceleração e desaceleração, combinadas com inércia. Este processo leva pontos de preamares diurnais no globo. A modelagem dinâmica específica, baseadas nas forças que geram esses movimentos acelerados, conduzirá a tipos de preamares. Este aspecto foi abordado por Galilei qualitativamente, considerando sua experiência com fluídos acelerados. “while the parts near C go down, the opposite ones near L go up; and while the parts near B move toward the left, the part on the opposite side near D move toward the right. Thus,in a complete rotation the point marked B first moves down and toward the left; when it is near C, it descends the most and begins to move toward the right; at D it no longer goes down, but moves most toward the right and begins to go up; and at L it ascends the most, begins to move slowly toward the left, and goes up till B. Now let us combine the specific motions of the parts of the earth with the general movement by the whole globe through the circumference [passing by A]. We shall find that the absolute motion of the upper part (near B) is always fastest, resulting from the composition of the annual motion along the [bigger] circumference and the specific motion of the part B, which two motions reinforce each other and add up toward the left; on the other hand, the absolute motion of the lower parts near D is always slowest, since the specific motion of D, which here is fastest toward the right, must be subtracted from the annual motion along the [bigger] circumference, which is toward the left.” Essa análise de Galilei vem sendo tratada no âmbito da história e filosofia da ciência sob diversas perspectivas. E é quase uma lugar comum a afirmativa de que Galilei “estava errado” [18], embora mais recentemente esse aspecto tenha sido detalhado com refinado critério por Palmiere [19]. Aqui é possível reconsiderar, mesmo que inicialmente, a abordagem de Galilei a partir do problema de Fleming. Como apontado acima, Galilei não dispunha, obviamente, da lei da gravitação Newtoriana nem tampouco do cálculo vetorial para analisar a superposição de velocidades matematicamente [19]. Mas era um exímio observador do movimento dos corpos e em particular dos fluídos, como bem evidencia o seu capítulo “Quarta Jornada do Diálogo”. Explicitamente, Galilei, com sua análise das marés, mostra que para existir preamares diárias, são necessários um movimento de rotação da Terra em torno do eixo polar e um movimento translacional, ambos em combinação. Este outro movimento seria imposto por algum astro. Galiei não poderia ir além disso, nos seus dias, em particular porque considerava que o centro da Terra era o ponto que definia a elíptica. O efeito da Lua, seria apenas alterar a faixa de marés, como já era conhecido. Essas são as conjecturas de Galilei para uma explicação das marés. Galilei, entretanto, arrisca por inferência os nomes para esses movimentos, pois eram os únicos efeitos conhecidos a seu tempo. Considera, então, que o movimento de rotação da Terra desse origem a um movimento de rotação das águas oceânicas. Em adição, assume o movimento da Terra pela elíptica. Em combinação, esses movimentos levam a aceleração e desaceleração do movimento das águas oceânicas, de modo cíclico, tendo como consequência as marés [19]. É significativo ressaltar aqui que, do ponto de vista do movimento, Galilei não faz conjectura alguma sobre as causas dinâmicas do movimento dos oceanos. Apenas o movimento é analisado, o que equivale a uma descrição cinemática das marés. Portanto, qualquer modelagem dinâmica envolvendo forças gravitacionais a conduzir às máres, terá de ser compátivel com esse resultado. Tendo em vista as conjecturas de Galilei, como vimos com o problema de Fleming, o movimento da Terra em torno do eixo é fundamental para o movimento das águas, o que corrobora com Galilei. Considerando então a existência de um corpo celeste (sem nomear, a priori) que exerça atração gravitacional sobre a Terra, basicamente o que se tem é o problema de Fleming. Ou seja, a Figura 7 seria reescrita como a Figura 4. Em outras palavras, a Figura 7 apresenta a descrição cinemática do movimento característico das marés, enquanto a Figura 4 é a sua descrição dinâmica, e ambas precisam ser compatíveis. Neste caso, as características do desconhecido corpo celeste seriam as da Lua, e não as do Sol, em primeira aproximação. Em outras palavras, as conjecturas de Galilei, sem as inferências quanto às nominações, levam à Lua, como o astro principal a produzir as preamares diurnais. Contudo, também o Sol produz um resultado dessa mesma natureza, mas em ordem de grandeza inferior, como é conhecido. Essa análise evidencia e separa todos os elementos da formulação de Galilei, quanto ao aspecto cinemático e dinâmico das marés, recolocando suas conjecturas sob um ponto de vista ainda não explorado. Nesta sentido, a tão criticada afirmativa de Galilei, de que as marés resultam única e esclusivamente do movimento da Terra, mostra-se completamente consistente, uma vez que esta sua análise é de natureza cinemática. Além da sua importância para a história e filosofia da ciência, a formulação de Galilei sobre as marés, se adequadamente apresentada, provê um ótimo modelo de transposição didática para abordar o fascinante problema das marés, considerando apenas aspectos básicos sobre o movimento de fluidos e movimentos astronômicos. , as conjecturas de Galilei são analisadas a partir da perspectiva do problema de Fleming. Os comentários finais estão na seção 8 8. Conclusões Finais Neste trabalho mostramos como obter várias informações sobre a constituição física da Lua, isto é, período de rotação em torno da Terra, distância Terra-Lua, massa, volume, e estrutura química (rochas e metais, um outro aspecto também de interesse atual [22]), a partir do efeito das marés, resolvendo assim o problema de Fleming. Este pressupõe, sem nenhum conhecimento prévio, a existência de um astro que define as marés. Ou seja, associa-se diretamente o problema de Fleming com as conjecturas de Galilei sobre as marés. Essas conjecturas são formuladas numa perspectiva cinemática do movimento da Terra, enquanto o problema de Fleming trata da natureza dinâmica daquele movimento. O resultado das duas abordagens são consistentes e se encontram nas marés. Na perspectiva cinemática de Galilei, o movimento da Terra é composto de uma rotação em torno do próprio eixo e de um segundo movimento de deslocamento no espaço. Esse segundo movimento foi atribuido como sendo aquele da elíptica da Terra em torno do Sol. Galilei, ao seu tempo, não possuia uma outra alternativa, e portanto fez a inferência do movimento elíptico solar; descartando a Lua, como principal responsável pelas marés. Embora limitada, a abordagem galileana se mostra consistente com seus pressupostos, e aponta para uma análise física aprofundada do fenômeno das marés, levando em conta a atração gravitacional entre os corpos (ou seja os aspectos dinâmicos), o que será esboçado por Descartes e Kepler, no mesmo período, e consolidado matematicamente por Newton, aproximadamente cinquenta anos depois. Ao se considerar a análise dinâmica, a partir da lei da gravitação Newtoniana, e apenas as conjecturas de Galilei (separando-as da inferência dos nomes, elíptica e Lua), o problema de Fleming leva a demonstração de que o principal astro responsável pelas marés é a Lua. E o segundo movimento, que Galilei atribuiu à eliptica solar, é o movimento de rotação do sistema Terra-Lua, cujo centro de gravidade é fora do centro da Terra. Esse é um resultado que lança interessantes e inéditas perspectivas na discussão que vem atravessando os séculos sobre o erro ou acerto acerca do problema das marés como formulado por Galilei. Ademais, o que se revela aqui é que a análise de Galilei sobre oceanos com as preamares obtidas como combinações de movimentos de um fluido, não só estava correta, como se mostra extremamente pedagógica para a abordagem do problema das marés. Esses aspectos serão apresentados com mais detalhes em outro lugar. .

2. Elementos das Marés

Chama-se maré a variação regular do nível da água observado nas orlas marítimas. Em média essa variação ocorre em intervalos de aproximadamente de 12 h e 25 min; ou seja a maré ocorre duas vezes por dia. A diferença entre o nível mais alto e mais baixo chama-se faixa de maré que se modifica com os dias e é diferente para diversas regiões do globo.

Associado à maré, verifica-se alternância na correnteza do mar, que muda de direção em um intervalo médio de aproximadamente 6h e 12 min. A faixa de maré e a alternância da corrente sofrem influência da formação da costa marítima a ser analisada. Considerando um ponto na superfície da Terra, após 24 h, acontece a última maré alta, denominada de “preamar” (do latin, plenus mare), com um atraso de aproximadamente 45 minutos. Ou seja, em 28 dias, esse atraso é de quase 24 h.

Desde longa data, se percebia o efeito da Lua e do Sol sobre a altura das marés. Um resumo com detalhe fora apresentado por Galilei que fez a primeira abordagem metodologicamente científica sobre as marés [17[17] G. Galilei, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems—Ptolemaic and Copernican (University of California Press, Berkeley, 1967).21[21] G. Galilei, em: Le opere di Galileo Galilei, (Tipografia di G. Barbèra, Firenze, 1895), v. V, disponível em: https://it.wikisource.org/wiki/Le_opere_di_Galileo_Galilei_-_Vol._V/Discorso_del_flusso_e_reflusso_del_mare, acesado em: 01/12/2023.
https://it.wikisource.org/wiki/Le_opere_...
], sem ainda dispor da lei da gravitação. Newton apresenta a primeira modelagem bem sucedida do efeito da Lua sobre as marés; Laplace, usando as equações da continuidade, descreve um oceano cobrindo a Terra com ampla generalidade. Basicamente, o efeito das forças gravitacionais sobre a altura da maré nos pontos das costas depende:

  • a)

    da extensão, forma e profundidade do mar.

  • b)

    da latitude do ponto na superfície da Terra.

  • c)

    da estação do ano. De fato, a Lua segue a posição do Sol, que varia de aproximadamente de 23, 50 do equador, sendo a órbita lunar inclinada de 50, 6ʺ contra a elíptica.

  • d)

    da configuração da costa e do ângulo que forma com o meridiano.

  • e)

    da direção e velocidade dos ventos.

  • f)

    da natureza das correntes marítimas na região.

Este conjunto de informações permite a proposição um modelo de oceano para estudar as marés, a partir do efeito gravitacional Terra-Lua. Aqui, a “Lua” será inicialmente um ponto material com massa e distância da Terra, ambas desconhecidas, estabelecendo o sistema gravitacional binário (ou seja, descrito pela gravitação Newtoniana) Terra-Lua. Como hipótese, os elementos básicos da maré deverão prover as características do astro que está sendo denominado “Lua”.

3. O Modelo de Oceano para o Problema de Fleming

Para resolver o problema de Fleming, primeiro é necessário construi a modelagem do sistema. A suposição é que a Lua, a ser tratada inicialmente como um ponto material, de massa mL, exerce atração gravitacional sobre a Terra. A atração gravitacionaçional mútua do sistema Terra-Lua será considerada a causa básica das duas marés observadas diariamente. Se esta hipótese for verdadeira, as características físicas da Lua devem ser obtidas a partir das marés. Para provar isso, a próxima etapa é a construção consistente de um modelo de oceano. Aqui, seguiremos próximo a Newton e Laplace.

A Terra, girando em torno de seu próprio eixo, será considerada uma esfera sólida coberta, na parte mais externa, por uma camada de água: o oceano. Neste caso, é preciso analisar o efeito dessa rotação sobre o oceano. O giro da Terra, sem considerar qualque efeito da Lua, provoca uma deformação do oceano, levando a uma forma elipsoidal. Vamos mostrar, então, que esta forma elipsoidal não é significativa, e portanto podemos considerar a Terra ainda como uma esfera.

A intensidade da força de atração gravitacional no polo e no equador, para uma mesma distância, é a mesma. Entretanto, no equador, existe uma força centrífuga como resultado do movimento de rotação da Terra. A força resultante no equador por unidade de massa, FR, é dada por

(1) F R = F p + ω 2 r ,

onde Fp é a força por unidade de massa no polo, e r é uma distância do centro da Terra no equador. Em termos de energia potencial, U, por unidade de massa, no equador, temos

(2) U R = U p r + 1 2 ω 2 r 2 ,

tal que

(3) U r = G m T r .

Comparando a forma elipsoidal, devido ao giro em torno do eixo, com a forma esférica, caso a Terra estivesse parada, vemos que há um acréscimo de água no equador, correspondendo a uma altura d1. Nos polos, ocorre uma achatamento, com relação a forma esférica. Este achatamente, um desnível do oceano no polo, corresponde a uma distância d2. Considerando as deformações d1 e d12, podemos fazer uma estimativa da diferença, d2d1. Sem deformações, as energias no polo e no equador são as mesmas. Disto segue que

(4) U p R T + d 2 = U e q u R T + d 1 .

Usando as expressões acima, até primeira ordem, temos que

(5) g d 1 d 2 = 1 2 ω 2 R T 2 ,

onde g=GmTRT. Isto conduz a

(6) d 1 d 2 11 , 1 Km ,

que é da ordem de grandeza de 21 Km, o valor estimado para d1d2 a partir da diferença do raio polar e equatorial, de acordo com a Tabela 1. Esses números, da ordem de 101 Km, são grandes quando comparados com a as faixas de marés, que são da ordem de 101 m. Entretanto, são valores pequenos quando comparados com as dimensões do globo, que são da ordem de 105 Km.

Tabela 1
Características do globo terrestre [20[20] R. Colin (ed.), The Golden Book of Astronomy (Golden Press/Western Publishing Company, New York/Racine, 1984).].

Em conclusão, numa primeira aproximação, podemos descartar a forma elipsoidal formada pelo oceano devido ao giro da Terra. A Terra então será considerada como uma esfera maciça, com uma camada externa uniforme de água. Esta Terra está ligada gravitacionalmente à Lua, estabelecendo o sistema Terra-Lua, girando em torno de um centro gravitacional. A forma elipsoidal surgirá devido ao giro em tormo do eixo. Esse eixo passará pelo centro da Terra, como se esta fosse ainda uma esfera. O giro em torno do centro de gravidade comum é resultado da atração gravitacional e se combinará com o giro da Terra em torno do eixo que passa pelo centro. De um ponto de vista cinemático, em um dado instante, um determinado ponto na superfície da Terra sofrerá um movimento que é a combinação do giro da terra, impondo uma velocidade angular, com a velocidade de deslocamento no espaço devido ao giro do sistema Terra-Lua. De um ponto de vista dinâmico, a combinação de forças centrípetas, devido ao giro da Terra em torno do eixo, com a força de atração da Lua sobre os oceanos, estabelecerá as duas preamares diárias.

4. O Sistema Terra-Lua

Nesta seção, a principal tarefa será apresentar o modelo Terra-Lua, com destaque para a estimativa experimental do centro de gravidade comum a partir das marés.

4.1. Representação do modelo e coordenadas

Na Figura 4, está esquematizado o conjunto de forças atuando sobre o oceano do modelo aqui proposto. A força centrífuga aparece devido ao giro da Terra em torno do eixo, que passa pelo ponto ponto CT. A distância de Cg ao centro da Lua assim como ao centro da Terra restam por ser determinadas. Observe que o centro de gravidade que percorre elíptica em torno do Sol, Cg, faz com que o centro da Terra mude de um lado para o outro dessa trajetória.

Figura 4
Representação esquemática do modelo Terra-Lua girando em torno do centro de gravidade, Cg, deslocado do centro da Terra, ponto CT, mas ainda assim no interior do planeta. Estão indicadas as forças centrípetas FAc e FBc, assim como as forças de atração gravitacional da Lua, FAL e FBL, nos pontos A e B, respetivamente. Neste esquema, não faz diferença se o ponto Cg é colocado no interior da Terra, ou fora. A distância de CT a Cg, dCgT, será calculada a partir dados das marés; do mesmo modo que a distância, dCgL, do centro de gravidade Cg ao centro da Lua.

O esquema da Figura 4 provê um modelo para o escoamento das águas sobre a parte sólida, que gira em torno do centro com um período de 24 h. Portanto, cada ponto da Terra passa, por esse modelo, duas vezes ao dia por uma região de preamar. Tomando como dado experimental que a diferença de maré nos pontos A e B é desprezível, podemos escrever

(7) F A L F A c = F B L F B c ,

com

(8) F A L = G M L d L A 2
(9) F B L = G M L d L B 2
(10) F A c = v A 2 d C g T + R T
(11) F B c = v B 2 R T d C g T ,

onde dLA é a distância do centro da Lua ao ponto A e dLB é a distância do centro da Lua ao ponto B. Note que dLA = dLB + 2RT, sendo RT o raio médio da Terra (ver a Tabela 1).

4.2. Experimento para a determinação do centro de gravidade com as marés

Algumas grandezas que aparecem na Eq. (7) podem ser estimadas utilizando as marés. A distância do centro da Terra ao centro de gravidade comum, dCgT, é conhecida. Entretanto, o experimento que a determina utiliza a Lua, o que não pode ocorrer aqui. Podemos, todavia, propor um experimento similar ao usual, mas utilizado as marés.

O avanço e o atraso da Terra, com relação a elíptica, é marcado pelos ângulos δ1 e δ3, que são funções dos ângulos α1, α2 e α3, como representados na Figura 5. O ângulo α1 usualmente é medido em Lua crescente; α2 é medido em Lua cheia; e α3 é medido em Lua minguante. Estas mesmas medidas, porém, podem ser realizadas substituindo a observação da Lua pela maré. Faz-se, assim, a medida de α1 na maré alta. Depois de 14 marés altas, faz-se a medida de α2; e depois, do mesmo modo, mede-se α3.

Figura 5
Representação esquemática do modelo Terra-Lua com centro de gravidade, Cg, se deslocando pela elíptica. O ponto E descreve uma estrela fixa, a definir os ângulos αi, i=1,2,3. As medidas são tomadas nas preamares de um local escolhido no globo. O esquema evidencia então o avanço e o recuo da Terra na medida em que Cg avança pela elipse em torno do Sol.

Essas medidas devem ser realizadas em mar aberto, onde se obtém uma precisão maior das marés, compatível com o modelo adotado, pois os efeitos das costas marítimas podem ser desprezados. Um aspecto importante é desconsiderar, como já mencionamos, o atraso de 3/4 h em 24 h de duas preamares. Este atraso acontece devido à inércia da água em seguir a atração gravitacional da Lua que se movimenta, de acordo com o sistema Terra-Lua. Além disso, há de se considerar o atrito. Ao estabelecermos o modelo, era de se esperar este fato. O resultado é aproximadamente o valor usual experimental, isto é

d C g T 4662 K m ,

que é menor que o raio da Terra. Logo, o centro de gravidade fica, de fato, no interior da Terra, como indicado na Figura 4.

4.3. Período de rotação da Lua em torno da Terra

O período de rotação da Lua em torno da Terra fica determinado também pelo experimento esquematizado na Figura 4. Basta observar o tempo para que uma das situações se repita, por exemplo, o ângulo α1. Para isso, é necessário considerar dois elementos. Primeiro é que somente a Lua seja responsável pelo movimento do ponto Cg; isto é, subtraimos qualquer influência do Sol. Um segundo aspecto é o atraso da maré.

Neste caso, após um dia sideral (≃ 23 h, 56 min, 4.1 s), deveríamos encontrar a mesma altura de maré para um mesmo ponto de referência. Isto não ocorre e pode ser justificado com a hipótese de a Lua causar esse atraso. Como já apontamos, esse atraso é mensurável e vale 34 h por dia. Isto equivale a 14 h entre um fluxo e refluxo. Facilmente se localiza o meridiano correspondente ao atraso. E assim, se conhece o ângulo entre o ponto de referência, o centro da Terra e o meridiano do atraso. Portanto, podemos conhecer o quanto a Lua se desloca no espaço ao redor da Terra, dado que medimos: o ângulo entre os dois meridianos; o tempo de atraso; o período sideral da Lua. O dia sideral é definido como o tempo de duas culminações de um ponto da Terra com uma estrela, ao girar em volta de si mesma. Esse dia (sideral) corresponde a 86164.1 s. O dia solar é maior, e vale 86400 s.

5. Distância Terra-Lua e Massa da Lua

Considerando toda a massa da Terra no centro, isto é, ponto CT na Figura 4, a distância do centro da Terra ao centro da Lua, dTL é dada por dTL=dCgT+dCgL, onde dCgT é, de acordo com a Figura 4, a distância do centro da Terra ao ponto Cg e dCgL é a distância do centro da Lua ao ponto Cg. Em termos da coordenada do centro de massa, RCM, podemos escrever, tomando como sistema de referência o centro da Terra, o ponto CT,

(12) R C M = d C g T = m L d C g L m T + m L

Usando a Eq. (7), obtemos

(13) G m L d A L 2 v A 2 d C g T + R T = G m L d B L 2 + v B 2 R T d C g T ,

onde vA e vB são as velocidades de um ponto de unidade de massa em A e em B, respectivamente, devido ao giro do sistema Terra-Lua em torno de Cg por um período de cerca de 28 dias (período TL) como vimos. Isto conduz a

(14) v A = 2 π d C g T + R T T L
(15) v B = 2 π R T d c T T L .

Assim, da Eq. (13), encontramos

(16) G m L d T L 2 = 4 π 2 d c T + R T 2 T L 2 + G m L d T L d c T + 4 π 2 R d c T 2 T L 2 .

A solução dessas equações para dTL e mL levam aos seguintes valores desses parâmetros,

m L 7.35 × 10 25 g d T L 3.84 × 10 5 Km .

Com este valor de dTL, podemos calcular a velocidade média da Lua. De fato, usando vL=2πdTLTL, obtemos

v L 1.023 Km / s .

É importante ressaltar que no decorrer do mês ocorre uma mudança regular na faixa de maré. Isto é indicativo de que a velocidade da Lua no giro em torno da terra muda. Considerando a conservação do momento angular, essa mudança pode ser resultado de um movimento elíptico da Lua em torno da Terra. Podemos, então, estimar a distância máxima e mínima de aproximação da Terra.

Vamos encontrar a razão entre essas distãncias, medindo o atraso de maré em uma época do mês em que a faixa é máxima, o que equivale a uma distãncia mínima, dTLmin, entre a Terra e a Lua. Medimos também o atraso para a faixa mínima, o que equivale a uma distãncia máxima, dTLmax, entre a Terra e a Lua. Como antes, basta computar a velocidade angular nas duas épocas do mês. Utilizando a segunda Lei de Kepler, que é equivalente a conservação do momento angular, escrevemos, ω1dTLmax = ω2dTLmin, isto leva a

d T L m a x d T L m i n = ω 2 ω 1 1.1.

Por outro lado, como temos estimado a distãncia média da Terra-Lua, dTL, podemos escrever

1 2 d T L m a x + d T L m i n = d T L 38000 Km .

Estas duas últumas equações fornecem

d T L m i n 365714 Km d T L m a x 402285 Km .

Os valores observados por métodos astronômicos são os seguintes

d T L m i n 356000 Km d T L m a x 407000 Km .

Um resultado esperado é que a Lua se afaste da Terra com o tempo, devido a não conservação de momento algular como consequência do atrito das águas oceânicas com a Terra. Essa afirmativa, contudo, não pode ser estimada aqui, devido a simplicidade do modelo.

6. Volume e Densidade da Lua

Por fim, vamos estimar o volume e a densidade da Lua. Iniciamos estimar o diâmetro Lua. Admitimos no modelo do sistema Terra-Lua, que a Lua é um ponto material com uma massa mL. A forma da maré no globo terrestre é que justifica esta hipótese, pois desprezamos as dimensões da Lua (equivalentemente, podemos utilizar o teorema de Gauss). Isto significa que o valor de α na Figura 6 deve ser pequeno. A questão passa a ser a estimativa desse valor. Podemos proceder por avaliar a ordem de grandeza de α e condições de plausibilidade para o diâmetro e densidade da Lua. Se α pode ser considerado pequeno, a partir da Figura 6 temos,

Figura 6
Representação esquemática do modelo Terra-Lua com dTL a distância do centro da Terra ao centro da Lua. O ângulo α (em rad) é utilizado para se estimar o volume e a densidade da Lua. RT é o raio da Terra e RL é o raio da Lua.
tan α = R L d T L .

Desse modo, o raio (que leva ao volume) e a densidade, ρL, da Lua podem ser analisados. Algumas valores estão a seguir

  • (i)

    α = 10−3. Isto leva a RL = 384 Km, ρL = 3.1 × 102 g/cm3

  • (ii)

    α = 10−2. Isto leva a RL = 3840 Km, ρL = 0.31 g/cm3

  • (iii)

    α = 10−1. Isto leva a RL = 38400 Km, ρL = 0.031 g/cm3

A estimativa para α = 10−3 fornece uma densidade para a Lua elevada, ρL = 3.1 × 102 g/cm3, mas não descartável de imediato. Podemos comparar com a densidade da Terra, que é ρT = 5.46 g/cm3. Enquanto que o material pedregoso da Terra possui a densidade média de ρT = 3.0 g/cm3, e nas camadas mais profundas chega a ρT = 3.6 g/cm3 (indicativo da presença de metal). Ainda assim, a densidade ρL = 3.1 × 102 g/cm3x é extremamente alta e não seria metálica. A estimativa para α = 10−2 fornece uma densidade baixa para a Lua de ρL = 0.31 g/cm3. Ou seja, a Lua seria uma massa gasosa. Além disso, nesse caso, o volume da Terra, VT, seria de apenas cinco vezes o volume da Lua, VL, isto é, V ≃ 5VL. A estimativa para α = 10−3 leva a uma massa gasosa ainda mais diluida, e já tocando a terra. Neste caso, as marés não poderiam ser como se apresentam. Neste ponto, podemos continuar a estimar a densidade da Lua no intervalo 100ρL ≤ 101 g/cm3.

Para ρL = 1 g/cm3, encontramos, VT ≃ 10VL. Para ρL = 10 g/cm3, encontramos, VT ≃ 100VL. Se escolhermos o valor intermediário, ρL = 3,3g/cm3, correspondente ao valor da densidade média de toda a crosta terrestre, encontramos, VT ≃ 49VL. Este é o mais plausível dos valores, considerando que a Lua tenha uma constituição material próxima a da Terra. Neste caso, é de se esperar que o material pedregoso da Lua contenha metais, um aspecto de interesse atual [22[22] J. Rehm, Radar Points to Moon Being More Metallic Than Researchers Thought, disponível em: https://www.nasa.gov/missions/radar-points-to-moon-being-more-metallic-than-researchers-thought/, acessado em: 01/12/2023.
https://www.nasa.gov/missions/radar-poin...
]. Este resultado é confirmado experimentalmente através da medida direta dos volumes.

7. Galilei e o Problema de Fleming

A tentativa de Galilei em tratar o problema das marés guarda importância significativa para a história e a filosofia da ciência, menos por apresentar um modelo preciso. De fato, Galilei representa um dos marcos iniciais do realismo científico no século XVII. No caso em questão, esse realismo é aplicado ao problema das marés, visto que se fundamenta no modelo copernicano, considerado o sistema de mundo, para utilizar os termos do próprio Pisano. Até então, esse fenômeno era abordado, em parte, a partir de forças ocultas ou míticas, mesmo quando considerada a influência da Lua, embora tenha havido estudos preliminares, já no período clássico, examinando a tese da influência da Lua, sem o apelo a essas forças, como em Seleuco de Selêucia [16[16] T. Click, S.J. Livesey e F. Wallis (ed.), Medieval Science, Technology, and Medicine: An Encyclopedia (Routledge, London, 2005).], como vimos anteriormente. Galilei foi o primeiro a tratar as marés a partir da noção de movimento, exclusivamente, e formulou o problema observando o movimento da Terra, enquanto um planeta girando em torno de seu eixo e também em torno do Sol. Sabia e descreveu os efeitos da Lua sobre as faixas de marés, mas descartou, por não ter como ferramenta a lei da gravitação, a possibilidade de ter a Lua como possível causa principal para as marés ao dia.

O método de Galilei está expresso em uma carta escrita em 1616, de natureza particular e endereçada ao Cardeal A. Orsini, na disputa para sustentar o modelo de mundo Copernicano. Na comunicação, Galilei escreveu o “Discorso sul flusso e il reflusso del mare” [21[21] G. Galilei, em: Le opere di Galileo Galilei, (Tipografia di G. Barbèra, Firenze, 1895), v. V, disponível em: https://it.wikisource.org/wiki/Le_opere_di_Galileo_Galilei_-_Vol._V/Discorso_del_flusso_e_reflusso_del_mare, acesado em: 01/12/2023.
https://it.wikisource.org/wiki/Le_opere_...
]. No “Dialogo”, Galilei produziu uma análise detalhada do que se conhecia sobre as marés em seu tempo: as duas preamares diárias nas costas oceânicas de mar aberto, a questão das costas, a falta de maré no Mar Vermelho, as variações de corrente, a dependência das marés com a latitude. Ainda descreveu a água no globo, sem levar em conta aquelas diversas variantes [17[17] G. Galilei, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems—Ptolemaic and Copernican (University of California Press, Berkeley, 1967)., 21[21] G. Galilei, em: Le opere di Galileo Galilei, (Tipografia di G. Barbèra, Firenze, 1895), v. V, disponível em: https://it.wikisource.org/wiki/Le_opere_di_Galileo_Galilei_-_Vol._V/Discorso_del_flusso_e_reflusso_del_mare, acesado em: 01/12/2023.
https://it.wikisource.org/wiki/Le_opere_...
]. Sabia, Galilei, do movimento de rotação da Terra em torno do eixo. O que daria a forma elipsoidal. Também considerou que a Terra se movia pela elíptica. A ideia de Galilei está representada na Figura 7. No ponto D o movimento é contrário ao efeito do movimento pela elíptica da Terra em torno do Sol. E assim a água em D possui a mínima velocidade. Por outro lado, em B a água possui a máxima velocidade. O que é significativo é que ocorre em um dia um processo de aceleração na região BCD e desaceleração na região DLB. Nas palavras de Galilei, na tradução para o inglês de Finocchiaro [13[13] M.A. Finocchiaro, The Galileo Affair: A Documentary History (University of California Press, Berkeley, 1989), v.1., 17[17] G. Galilei, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems—Ptolemaic and Copernican (University of California Press, Berkeley, 1967).]:

Figura 7
Esquema original de Galilei para a combinação do movimento da terra em torno do eixo e do movimento da Terra em torno da elíptica. O círculo grande representa a órbita da Terra. O círculo menor representa o movimento da Terra em torno do eixo, arrastando o oceano. Os movimentos estão indicados pela setas. As componentes tangentes do movimento são máximas nas regiões de B, e mínimas na região de D. Isto produz um fluxo e refluxo, devido a aceleração e desaceleração, combinadas com inércia. Este processo leva pontos de preamares diurnais no globo. A modelagem dinâmica específica, baseadas nas forças que geram esses movimentos acelerados, conduzirá a tipos de preamares. Este aspecto foi abordado por Galilei qualitativamente, considerando sua experiência com fluídos acelerados.

while the parts near C go down, the opposite ones near L go up; and while the parts near B move toward the left, the part on the opposite side near D move toward the right. Thus,in a complete rotation the point marked B first moves down and toward the left; when it is near C, it descends the most and begins to move toward the right; at D it no longer goes down, but moves most toward the right and begins to go up; and at L it ascends the most, begins to move slowly toward the left, and goes up till B. Now let us combine the specific motions of the parts of the earth with the general movement by the whole globe through the circumference [passing by A]. We shall find that the absolute motion of the upper part (near B) is always fastest, resulting from the composition of the annual motion along the [bigger] circumference and the specific motion of the part B, which two motions reinforce each other and add up toward the left; on the other hand, the absolute motion of the lower parts near D is always slowest, since the specific motion of D, which here is fastest toward the right, must be subtracted from the annual motion along the [bigger] circumference, which is toward the left.

Essa análise de Galilei vem sendo tratada no âmbito da história e filosofia da ciência sob diversas perspectivas. E é quase uma lugar comum a afirmativa de que Galilei “estava errado” [18[18] J. Büttner, Defeated by the Tides: The Copernican Worldview Has Prevailed - not, However, Galileo’s Theory of the Tides, disponível em: https://www.mpg.de/7915566/galileo-tide-theory, acessado em: 01/12/2023.
https://www.mpg.de/7915566/galileo-tide-...
], embora mais recentemente esse aspecto tenha sido detalhado com refinado critério por Palmiere [19[19] P. Palmieri, Arch. Hist. Exact Sci. 53, 223 (1998).]. Aqui é possível reconsiderar, mesmo que inicialmente, a abordagem de Galilei a partir do problema de Fleming.

Como apontado acima, Galilei não dispunha, obviamente, da lei da gravitação Newtoriana nem tampouco do cálculo vetorial para analisar a superposição de velocidades matematicamente [19[19] P. Palmieri, Arch. Hist. Exact Sci. 53, 223 (1998).]. Mas era um exímio observador do movimento dos corpos e em particular dos fluídos, como bem evidencia o seu capítulo “Quarta Jornada do Diálogo”. Explicitamente, Galilei, com sua análise das marés, mostra que para existir preamares diárias, são necessários um movimento de rotação da Terra em torno do eixo polar e um movimento translacional, ambos em combinação. Este outro movimento seria imposto por algum astro. Galiei não poderia ir além disso, nos seus dias, em particular porque considerava que o centro da Terra era o ponto que definia a elíptica. O efeito da Lua, seria apenas alterar a faixa de marés, como já era conhecido. Essas são as conjecturas de Galilei para uma explicação das marés. Galilei, entretanto, arrisca por inferência os nomes para esses movimentos, pois eram os únicos efeitos conhecidos a seu tempo. Considera, então, que o movimento de rotação da Terra desse origem a um movimento de rotação das águas oceânicas. Em adição, assume o movimento da Terra pela elíptica. Em combinação, esses movimentos levam a aceleração e desaceleração do movimento das águas oceânicas, de modo cíclico, tendo como consequência as marés [19[19] P. Palmieri, Arch. Hist. Exact Sci. 53, 223 (1998).].

É significativo ressaltar aqui que, do ponto de vista do movimento, Galilei não faz conjectura alguma sobre as causas dinâmicas do movimento dos oceanos. Apenas o movimento é analisado, o que equivale a uma descrição cinemática das marés. Portanto, qualquer modelagem dinâmica envolvendo forças gravitacionais a conduzir às máres, terá de ser compátivel com esse resultado.

Tendo em vista as conjecturas de Galilei, como vimos com o problema de Fleming, o movimento da Terra em torno do eixo é fundamental para o movimento das águas, o que corrobora com Galilei. Considerando então a existência de um corpo celeste (sem nomear, a priori) que exerça atração gravitacional sobre a Terra, basicamente o que se tem é o problema de Fleming. Ou seja, a Figura 7 seria reescrita como a Figura 4. Em outras palavras, a Figura 7 apresenta a descrição cinemática do movimento característico das marés, enquanto a Figura 4 é a sua descrição dinâmica, e ambas precisam ser compatíveis. Neste caso, as características do desconhecido corpo celeste seriam as da Lua, e não as do Sol, em primeira aproximação. Em outras palavras, as conjecturas de Galilei, sem as inferências quanto às nominações, levam à Lua, como o astro principal a produzir as preamares diurnais. Contudo, também o Sol produz um resultado dessa mesma natureza, mas em ordem de grandeza inferior, como é conhecido.

Essa análise evidencia e separa todos os elementos da formulação de Galilei, quanto ao aspecto cinemático e dinâmico das marés, recolocando suas conjecturas sob um ponto de vista ainda não explorado. Nesta sentido, a tão criticada afirmativa de Galilei, de que as marés resultam única e esclusivamente do movimento da Terra, mostra-se completamente consistente, uma vez que esta sua análise é de natureza cinemática.

Além da sua importância para a história e filosofia da ciência, a formulação de Galilei sobre as marés, se adequadamente apresentada, provê um ótimo modelo de transposição didática para abordar o fascinante problema das marés, considerando apenas aspectos básicos sobre o movimento de fluidos e movimentos astronômicos.

8. Conclusões Finais

Neste trabalho mostramos como obter várias informações sobre a constituição física da Lua, isto é, período de rotação em torno da Terra, distância Terra-Lua, massa, volume, e estrutura química (rochas e metais, um outro aspecto também de interesse atual [22[22] J. Rehm, Radar Points to Moon Being More Metallic Than Researchers Thought, disponível em: https://www.nasa.gov/missions/radar-points-to-moon-being-more-metallic-than-researchers-thought/, acessado em: 01/12/2023.
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]), a partir do efeito das marés, resolvendo assim o problema de Fleming. Este pressupõe, sem nenhum conhecimento prévio, a existência de um astro que define as marés. Ou seja, associa-se diretamente o problema de Fleming com as conjecturas de Galilei sobre as marés. Essas conjecturas são formuladas numa perspectiva cinemática do movimento da Terra, enquanto o problema de Fleming trata da natureza dinâmica daquele movimento. O resultado das duas abordagens são consistentes e se encontram nas marés.

Na perspectiva cinemática de Galilei, o movimento da Terra é composto de uma rotação em torno do próprio eixo e de um segundo movimento de deslocamento no espaço. Esse segundo movimento foi atribuido como sendo aquele da elíptica da Terra em torno do Sol. Galilei, ao seu tempo, não possuia uma outra alternativa, e portanto fez a inferência do movimento elíptico solar; descartando a Lua, como principal responsável pelas marés. Embora limitada, a abordagem galileana se mostra consistente com seus pressupostos, e aponta para uma análise física aprofundada do fenômeno das marés, levando em conta a atração gravitacional entre os corpos (ou seja os aspectos dinâmicos), o que será esboçado por Descartes e Kepler, no mesmo período, e consolidado matematicamente por Newton, aproximadamente cinquenta anos depois.

Ao se considerar a análise dinâmica, a partir da lei da gravitação Newtoniana, e apenas as conjecturas de Galilei (separando-as da inferência dos nomes, elíptica e Lua), o problema de Fleming leva a demonstração de que o principal astro responsável pelas marés é a Lua. E o segundo movimento, que Galilei atribuiu à eliptica solar, é o movimento de rotação do sistema Terra-Lua, cujo centro de gravidade é fora do centro da Terra. Esse é um resultado que lança interessantes e inéditas perspectivas na discussão que vem atravessando os séculos sobre o erro ou acerto acerca do problema das marés como formulado por Galilei. Ademais, o que se revela aqui é que a análise de Galilei sobre oceanos com as preamares obtidas como combinações de movimentos de um fluido, não só estava correta, como se mostra extremamente pedagógica para a abordagem do problema das marés. Esses aspectos serão apresentados com mais detalhes em outro lugar.

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    Consultar as seguintes páginas: http://www.hfleming.com/, acessado em: 01/12/2023; https://portal.if.usp.br/ifusp/pt-br/users/fleming, acessado em: 01/12/2023.
  • 2
    Galieu Galilei. Em física é costume usar o sobrenome de Galieu, “Galilei”, e assim também em denominações como: “grupo de Galilei”, “transformadas de Galilei”. Em áreas como a filosofia se utiliza o nome: “Galileu”. Na famosa peça de B. Brecht, “A vida de Galileu”, é o nome que é grafado. Em Brecht, e talvez pelo mesmo motivo na filosofia, o uso do nome “Galieu” guarda uma certa intimidade com o personagem, na defesa intransigente de seus pontos de vista renascentistas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2023
  • Aceito
    23 Nov 2023
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