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Ensinando a natureza estatística da segunda lei da termodinâmica no ensino médio

Teaching the statistical nature of the second law of thermodynamics in high school

Resumos

Apresentamos uma proposta de ensino da estatística da segunda lei para uso no Ensino Médio. Essa proposta adapta uma idéia de Martin Sussman para representar estados, usando uma garrafa PET, bolas de gude e uma mangueira de ar refrigerado. Criamos, ainda, um aplicativo de simulação de contagem de estados, de fácil uso, e que reproduz a distribuição de bolas na mangueira (gaussiana).

segunda lei; termodinâmica; fsica estatística


This paper proposes to teach the statistical nature of the second law of thermodynamics in High School. We adapt a former idea by Martin Sussman to represent microstates, using materials, such as a PET bottle, marbles, and a plastic hose. We present a program to simulate the counting of states, which reproduces the distribution of marbles in the hose (Gaussian)

seconmd law; thermodynamics; statistical physics


DESENVOLVIMENTO EM ENISNO DE FÍSICA

Ensinando a natureza estatística da segunda lei da termodinâmica no Ensino Médio

Teaching the statistical nature of the second law of thermodynamics in High School

Paulo Victor S. SouzaI, 11 E-mail: paulo.victor@ifrj.edu.br. ; Penha M. Cardozo DiasII; Filipe M.P. dos SantosI

IInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Campus Nilópolis, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

IIInstituto de Fsica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

ABSTRACT

Apresentamos uma proposta de ensino da estatística da segunda lei para uso no Ensino Médio. Essa proposta adapta uma idéia de Martin Sussman para representar estados, usando uma garrafa PET, bolas de gude e uma mangueira de ar refrigerado. Criamos, ainda, um aplicativo de simulação de contagem de estados, de fácil uso, e que reproduz a distribuição de bolas na mangueira (gaussiana).

Palavras-chave: segunda lei, termodinâmica, fsica estatística.

ABSTRACT

This paper proposes to teach the statistical nature of the second law of thermodynamics in High School. We adapt a former idea by Martin Sussman to represent microstates, using materials, such as a PET bottle, marbles, and a plastic hose. We present a program to simulate the counting of states, which reproduces the distribution of marbles in the hose (Gaussian)

Keywords: seconmd law, thermodynamics, statistical physics.

1. Introdução

A segunda lei da termodinâmica é, em geral, tratada superficialmente, nos textos de Ensino Médio. Frequentemente, a lei é apresentada como uma fórmula que fornece o rendimento de máquinas térmicas; mas essa fórmula é apenas uma consequência, a lei significa muito mais [1]. Em particular, o aspecto microscópico da lei é ignorado. Ora, ignorar esse aspecto é ignorar o caráter estatístico da lei e seu significado. Propomos, então, uma abordagem para a segunda lei da termodinâmica que introduz seus aspectos estatísticos e que é accessível ao aluno do Ensino Médio.22 Propostas semelhantes estão presentes na literatura [11-14] mas, como verá o leitor, consideramos nossa contribuição relevante pois enfoca o carater estatístico da segunda lei e o discute de um modo acessível ao aluno de Ensino Médio.

Este artigo é inspirado em um artigo de Martin V. Sussman [2] e em um artigo de Tim Harman [3]. Sussman constrói um aparelho capaz de, entre outras coisas, "invocar o demônio de Maxwell''. Segundo o autor, com o aparato criado por ele, pode-se ilustrar: (1) o caráter estatístico da lei; (2) os níveis de energia microscópicos e (3) a ação do Demônio de Maxwell. Embora sua ideia seja interessante, o autor não constrói a estatística dos níveis e nem elabora uma proposta concreta de ensino (o que se justifica, pois a elaboração de uma proposta de ensino escapa ao escopo do artigo). Em um trabalho posterior, Harman exemplifica o caráter probabilístico da lei, pela ação de uma espécie de "Demônio de Maxwell'' [3].

No presente trabalho, o aparelho construído por Sussman é modificado, de modo a torná-lo mais prático para uso em sala de aula e de construção trivial e barata. O aparelho que propomos é composto de uma garrafa PET, uma mangueira de plástico flexível, como as usadas em ar condicionado para retirada da água de condensação, e bolas de gude. Adaptamos o experimento, de modo a mostrar o aspecto estatístico, contando "estados'' (possibilidades de disposição das bolas dentro da mangueira); com isso, ilustramos, também, a explicação estatística de Harman. Outro resultado do artigo é um aplicativo para simular a contagem de "estados'', de fácil uso em sala de aula.

O presente artigo está esquematizado da seguinte forma: na seção 2, apresentamos um breve histórico do caráter estatístico da lei. Na seção 3, descrevemos os trabalhos de Sussman e de Harman. Na seção 4, apresentamos a proposta de ensino da estatística da segunda lei e o aplicativo de simulação de contagem de estados. Na seção 5, descrevemos como a proposta foi à sala de aula originalmente. Na última seção, tecemos alguns comentários finais que julgamos relevantes.

2. Um breve histórico da segunda lei

Em 1824, Sadi Carnot enunciou um princípio, segundo o qual o funcionamento de uma máquina térmica consiste no transporte de calórico de uma fonte quente para uma fria; nesse processo, trabalho é produzido pela expansão de um gás e calórico é conservado [4]. Em 1850, Rudolf Julius Emmanuel Clausius, depois dos resultados de James Prescott Joule (1843), entende que calor (não mais calórico) não pode ser conservado: Parte do calor é transformada em trabalho e parte, transferida para a fonte fria. Para demonstrar que duas máquinas operando entre duas temperaturas respectivamente iguais, mas usando diferente substâncias, produzem a mesma quantidade de trabalho --- um teorema anteriormente proposto por Carnot - Clausius introduz o axioma de que a tendência do calor é de equalizar temperaturas, logo flui do corpo quente para o frio, de modo espontâneo [1]. Em 1854, Clausius deu outra grande contribuição à Teoria do Calor: ele explora a idéia original de Carnot de que "algo'' deve ser conservado ao fechar um ciclo, se for para reiniciar um novo ciclo da máquina [1, 5]. Clausius constrói a ideia de "cancelamento de operações'' ao fechar o ciclo. "Cancelamento'', na linguagem de Clausius, significa que as duas operações que ele distingue na máquina se cancelam após um ciclo fechado; as operações são: transporte de calor (de uma fonte quente para uma fria) e produção de trabalho; para fazer algebricamente o "cancelamento'', ele atribui uma função da temperatura a cada operação.33 A escolha da função não é trivial e foge ao escopo deste breve histórico [1,5]. Ele aplica o conceito a duas máquinas acopladas, uma operando no sentido direto (de realizar trabalho a partir do calor) e outra, no inverso (de usar trabalho para transferir calor de uma fonte fria para uma quente); após longo cálculo, chega ao resultado de que "cancelamento'' traduz-se na expressão , onde S, Q, T são, respectivamente, entropia, calor transferido (recebido ou cedido pela máquina) e a temperatura em que a transferência de calor se dá[1,5]. Em 1865, Clausius cria a expressão entropia, um nome que, segundo ele, lembra "energia'' e a palavra grega para "transformação'' ().

Em meados do século XIX, James Clerk Maxwell [6] argumentou que a segunda lei é estatística. No argumento original de Maxwell, um gás a uma temperatura dada preenche dois compartimentos de um mesmo recipiente; de acordo com a segunda lei, do ponto de vista macroscópico, uma vez atingido o equilíbrio de temperatura, esse equilíbrio deve permanecer. O argumento de Maxwell consiste em mostrar que isso não é inteiramente verdadeiro, pois um ser que seja capaz de interagir com as moléculas de um gás pode reverter a segunda lei, esquentando o gás em um dos compartimentos e o esfriando no outro compartimento. Maxwell imaginou que uma portinhola entre os dois compartimentos pudesse ser operada por um "ser'' (ou alguma coisa) muito pequeno, que enxergasse as moléculas. Esse ser abre a portinhola, quando moléculas "velozes'' se aproximam, e a fecha, quando moléculas "vagarosas'' se aproximam;44 Veloz pode ser definido como e vagaroso, como , onde é a média dos quadrados das velocidades das moléculas. o resultado é que, depois de certo tempo, um compartimento contém moléculas "velozes'', o que aumenta a temperatura do gás nele contido, enquanto o outro compartimento contém moléculas "vagarosas'', diminuindo a temperatura do gás nele contido. Desde então, a natureza desse "ser'' tem sido discutida [7]. Em 1923, Leo Szilard [8] o transformou em algo capaz de tomar decisões: Szilard argumentou que, para agir, o Demônio precisa obter informação sobre a posição das moléculas e, para obter essa informação, ele "gasta'' mais entropia do que "economiza'', separando as moléculas. Nas mãos de Brillouin [9], a discussão passou a ser "por que um Demônio, que pode ser construído, não pode operar?''

No final do século XIX, Ludwig Boltzmann propôs e demonstrou o teorema-H, segundo o qual um gás inicialmente fora do equilíbrio termodinâmico atinge o equilíbrio após algum tempo, como consequência das múltiplas colisões entre suas moléculas; o estado do gás é matematicamente descrito por uma distribuição de velocidades das moléculas e, em particular, o estado de equilíbrio é descrito pela distribuição de Maxwell-Boltzmann. Esse processo é irreversível e a irreversibilidade é descrita pela existência de uma função H, o negativo da entropia, que decresce. O teorema é estatístico, mas isso não ficou imediatamente claro na demonstração, que parece ser mecânica e não estatística; isso suscitou um debate, em 1894, sobre qual seria a hipótese estatística do teorema-H [10]. Além disso, em duas outras ocasiões diferentes, o teorema recebeu graves críticas. Josef Loschmidt argumenta que não pode existir uma H monotonicamente decrescente, pois as leis da mecânica são reversíveis e, revertendo simultaneamente as velocidades de todas moléculas do gás, ele deve retornar à sua condição inicial; então, para estados que levam à diminuição de H, há outros que levam a seu aumento. Em 1896, Ernst Zermelo utiliza um teorema demonstrado por Henri Poincaré para afirmar que, em algum momento, qualquer sistema fechado retorna às condições iniciais, de modo que não pode haver uma função dos estados que sempre decresça. Boltzmann responde que seu teorema é estatístico e representa o comportamento "mais provável'' do gás.55 Em resposta a Zermelo, Boltzmann argumenta que, para um gás de alguns centímetros cúbicos, o tempo necessário para que o sistema retorne às condições iniciais é muitas ordens de grandeza maior do que a idade do Universo e, por isso, a crítica, embora fundamentada, não é aplicável [15]. No teorema-H, onde p é a distribuição de velocidades (probabilidade de um estado de velocidade) e dV é o elemento de volume no espaço de velocidades. Após as críticas, Boltzmann desenvolve uma expressão para a segunda lei, obtida por contagem de microestados (Ω) das moléculas de um gás

onde S é a entropia e k, a constante de Bolztmann.

3. Observando moléculas: Sussman e Harman

O aparato construído por Sussman é apresentado na Fig. 1A. O aparato é composto de um recipiente de vidro com um gargalo comprido, onde são inseridas 10 bolas (cinco pretas e cinco brancas). As bolas brancas são maciças; as pretas são ocas, mas contêm, dentro, uma outra bola menor, de aço. As bolas podem se movimentar livremente dentro do recipiente.



Figura 1 - (A) O aparato montado por Sussmann; (B) manipulação da ordem das bolas. As figuras foram copiadas da Ref.[2].

Para discutir níveis de energia de um sistema, Sussman atribui a cada bolinha, preta ou branca, um número, que corresponde à sua posição no gargalo, contado a partir da boca do gargalo (Fig. 1A). As bolas pretas representam moléculas, possuem massa e podem realizar trabalho; as bolas brancas representam espaços vazios, sem massa, e não podem realizar trabalho; assim, só as bolas pretas contribuem para o nível de energia. O nível de energia de uma dada bola preta é dado por sua posição no gargalo: conta-se quantas bolas pretas e brancas estão abaixo dela e esse número é sua "energia''. Por exemplo: a máxima energia de uma bola preta ocorre, quando ela está na posição mais distante do gargalo, ou seja, com as outras nove bolas debaixo dela; nesse caso, sua energia é 9 unidades. A menor energia de uma bola preta ocorre, por outro lado, quando ela se encontra na boca do gargalo, com as outras nove bolas acima dela; nesse caso sua energia é 0. A "energia total'' do "sistema'' é a soma das "energias'' das bolas pretas; assim, a energia do sistema varia de 10 (todas as bolas pretas embaixo das brancas) a 35 unidades (todas as bolas pretas acima das brancas). O efeito do aumento da energia das moléculas pela adição de calor ao sistema pode ser simulado pela alteração da ordem de moléculas no gargalo; uma dada ordem é chamada "configuração''. Para isso, basta que se adicionem ou se removam bolas brancas do gargalo. Ademais, a adição de bolas brancas ao sistema aumenta não só o número de níveis accessíveis, como aumenta o número de possibilidades de colocação de uma bola preta no gargalo.

O demônio manipula a ordem das bolas no gargalo, impedindo que as configurações sejam aleatórias. Girando o recipiente, as bolas também giram (Fig. 1B). As bolas pretas dissipam energia em forma de calor, devido às colisões das bolas menores que estão dentro dela e, na medida em que giram cada vez mais lentamente, elas escorregam e entram no gargalo, antes das brancas. Assim, um resultado que deveria ser aleatório é, agora, controlado pela ação de girar o recipiente e o resultado obtido é sempre o mesmo - bolas brancas sobre as pretas - o que coloca o sistema no nível baixo de "energia''.

Harman [3] explora mais de perto, o argumento original de Maxwell: A entropia pode diminuir, embora a probabilidade de que isso aconteça seja pequena. Harman apresenta o seguinte exemplo: considere dois recipientes A e B, que estão conectados. Dentro desses recipientes, existem dois tipos de moléculas, rápidas e lentas. Além disso, em B há mais moléculas rápidas do que lentas; em A, o contrário ocorre. Assim, B está a uma temperatura maior do que A, ou, se se preferir, B tem energia interna maior do que A.

Quatro eventos podem ocorrer:

1 Uma molécula rápida passar de A para B

2 Uma molécula lenta passar de A para B

3 Uma molécula rápida passar de B para A

4 Uma molécula lenta passar de B para A

Esses eventos têm a mesma probabilidade de ocorrer? Não, responde Harman. Embora todos sejam possíveis, os eventos 2 e 3 são mais prováveis, tendo em vista as características moleculares dos sistemas. Naturalmente, embora B possa ficar cada vez mais quente e A, cada vez mais frio, isso é muito improvável. Para um litro de gás à pressão atmosférica ( de 1 mol, i.e., cerca de 2,5 X 1022 moléculas), considerando que todas as moléculas se movem independentemente, esta probabilidade, isto é, a probabilidade de B ficar mais quente enquanto A fica mais frio, ascende a 1 em 107,6X1021 tentativas. É estatisticamente impossível que "bolas de neve surjam no inferno'', como ironiza o autor.

Os autores gostariam de enfatizar a importância desses trabalhos na motivação de um problema e construção da proposta deste artigo, descrita a seguir.

4. Uma ilustração da estatística da segunda lei da termodinâmica

4.1 O experimento

O aparato que construímos (Fig. 2) é uma variação do aparato de Sussmann. Utilizamos uma garrafa PET, um mangueira de borracha transparente, de diâmetro comparável ao diâmetro do gargalo da garrafa, de modo que possa ser inserida no gargalo, e dez bolas de gude, cinco pretas e cinco transparentes. Esses materiais são baratos, de fácil acesso, de modo que o aparato pode ser construído por professores, em qualquer unidade escolar; de fato, o ideal é que cada aluno construa o seu. O comprimento da mangueira deve ser suficiente para conter as 10 bolas de gude.

Figura 2
- (A) O aparato e (B) seus componentes.

As bolas podem se mover livremente dentro da garrafa e o experimento consiste em trazer as bolas, pretas e transparentes, para dentro da mangueira, sacudindo a garrafa. Então, a ordem das bolas é observada. No experimento, deve ser suposto que:

1. Bolas de gude pretas representam moléculas do gás e bolas de gude transparentes, espaços vazios entre moléculas.

2. Bolas de uma mesma cor são consideradas indistinguíveis entre elas. A distinção é, pois, apenas, entre bolas pretas e transparentes.

3. O sistema está, inicialmente, disposto de forma que as 5 bolas pretas estão em cima, na mangueira, e as 5 transparentes, abaixo delas (Fig. 3A). Essa disposição vai ser chamada de "disposição padrão''.66 Essa disposição corresponde a concentrar o gás numa região pequena do recipiente, a saber 5 volumes moleculares na parte superior da mangueira. Se houvesse bolas transparentes entre as pretas, as bolas pretas estariam mais espalhadas na mangueira (Fig. 3B); na analogia, o gás (bolas pretas) ocuparia mais regiões dentro da mangueira (mais volume do recipiente). Se todas bolas pretas estivessem em baixo e todas as transparentes, em cima, as bolas pretas estariam concentradas em uma região, também, de apenas 5 volumes moleculares; uma diferença entre essa disposição e a disposição padrão será feita na próxima subseção, introduzindo a idéia de macroestado.

Figura 3
- (A) Disposição padrão. O gás ocupa um volume de (B) bolas, na parte superior da mangueira e (B) uma possível disposição.

4. A passagem do tempo é representada pelo ato de retornar as bolas à garrafa, sacudi-las e voltar com elas à mangueira. Assim, depois de algum tempo, o gás pode ser encontrado em qualquer configuração, como, por exemplo, na Fig. 3B.

4.2. Construindo os conceitos de microestado e macroestado

A partir de agora, o termo "disposição'' vai ser substituído pelo termo técnico configuração. Cada configuração é um possível microestado do gás. Usando a letra M para denotar uma bola preta (molécula) e a letra V para denotar uma bola transparente (espaço vazio), então MMMVVMMVVV e MVVVVMMVMM representam microestados diferentes do gás.77 Neste texto utilizaremos a seguinte notação: as configurações são lidas da esquerda para a direita. Como bolas de uma mesma cor são indistinguíveis entre elas, é impossível saber a diferença entre duas disposições que diferem somente pela permutação de bolas pretas entre elas; igualmente para as bolas transparentes.

Macroestados, por sua vez, são grandezas macroscópicas que refletem os microestados de modo que, a cada microestado corresponda um único macroestado, embora a recíproca não precise ser verdadeira, como se verá, abaixo. No caso do gás hipotético deste trabalho, o macroestado será representado por um número atribuído a cada configuração; esse número será chamado macrovalor. Os macrovalores são comparados a estados macroscópicos de um gás, por exemplo, à energia correspondente a cada microestado molecular. Diferentes microestados podem estar associados a um mesmo macrovalor e, consequentemente, representar o mesmo macroestado.

O macrovalor é definido da seguinte maneira: A cada bola preta atribui-se 1 ponto multiplicado pela posição que a bola ocupa em relação à boca da mangueira; espaços vazios (bolas transparentes) não contribuem para o macrovalor. Assim, o macrovalor é a soma do número atribuído à posição de cada bola preta; por exemplo, o macrovalor do microestado MVVVVVMMMM é 10+4+3+2+1=20. A configuração padrão (pode-se, agora, usar a locução configuração, em vez de disposição) tem macrovalor 10+9+8+7+6=40; não é difícil concluir que esse é o maior possível macrovalor, pois é aquele em que as bolas pretas têm o maior número devido à posição delas no tubo.

Suponha, agora, que, a partir da configuração padrão o gás evolva para outro estado qualquer. Pergunta-se: Qual a probabilidade de que retorne à configuração padrão, aquela que maximiza o macrovalor? Para responder a esta pergunta, estudaremos a estatística dos micro e macroestados de nosso gás.

O número total de microestados é

onde o denominador é o número de permutações de 10 posições e o denominador é o número de permutações de 5 bolas pretas; o denominador é introduzido, pois as bolas pretas podem ser permutadas entre elas sem mudar o microestado e o macrovalor; analogamente para as transparentes. Se os microestados forem todos igualmente prováveis, a probabilidade de que o gás retorne ao microestado estado inicial será

bem como será essa a probabilidade de ocorrer qualquer outro microestado, por exemplo, o microestado MMVVVVMMVM, que corresponde ao macrovalor 10+9+4+3+1=27.

Porém, pode haver muitos microestados correspondendo ao mesmo macrovalor. Por exemplo, há 17 microestados com o macrovalor 27, enquanto só existe 1 microestado com o macrovalor 40. A Tabela 1 lista os microestados associados a alguns macrovalores.

Tabela 1 - Apresentação de apenas alguns dos microestados possíveis.

Como os microestados são considerados igualmente prováveis, a probabilidade de que se encontre o sistema no macroestado de macrovalor 27 é

enquanto o macroestado correspondente ao macrovalor 40, associado à configuração inicial tem apenas 0,39% de ocorrer.

Fazendo um gráfico em que a abcissa é o macrovalor e a ordenada, o número de microestados correspondendo ao macrovalor, obtém-se o gráfico da função gaussiana, curva que tem como assinatura o fato dos eventos (microestados) serem estatisticamente independentes; pode-se "normalizar'' os valores da ordenada, dividindo-os pelo mesmo número (252), de modo que a ordenada é, também, a probabilidade de cada macrovalor.

O que ocorre, aumentando o volume do gás? No modelo, isso significa aumentar o número de bolas transparentes. Considere, por exemplo, o gás com cinco moléculas e seis espaços vazios. Então, há

configurações possíveis para o sistema. A configuração que maximiza o macrovalor (configuração padrão) será MMMMMVVVVVV, que corresponde ao macrovalor 45. A probabilidade da configuração padrão (ou qualquer outra configuração) ser encontrada é

Note que o acréscimo no volume do sistema aumenta o número de níveis de energia disponíveis para serem ocupados (número de microestados), o que acarreta a diminuição da probabilidade de se recuperar a configuração padrão, depois do gás se difundir. O macrovalor 27 será, agora, partilhado por 29 microestados: Os 10 da Tabela 1 e mais outros 10, a saber:

Tabela 2 - Apresentação dos microestados adicionais associados ao macrovalor 27.

Assim, a probabilidade de se encontrar o macrovalor 27 é

logo é 29 vezes mais provável encontrar o macrovalor 27 do que o macrovalor 45. Veja a Fig. 4. Conforme o volume for aumentado, recuperar a configuração padrão torna-se cada vez mais improvável, de modo que sistemas reais formados por cerca de 1023 moléculas são dominados por macroestados que correspondem ao maior número de microestados e recuperar a configuração padrão é extremamente improvável, embora possível.


Figura 4 - Gráfico do macroestado versus probabilidade de ocorrência para o gás composto de (vermelho) cinco moléculas e cinco espaços vazios e (azul) cinco moléculas e seis espaços vazios.

É conveniente atribuir uma grandeza que meça o número de microestados em cada macrovalor. Essa grandeza é chamada entropia e deve ser proporcional ao número de microestados com um único macrovalor. Por (importantes) razões técnicas (para que a entropia seja aditiva), introduz-se a função logaritmo e define-se

onde Ω é o número de microestados com um dado macrovalor; claramente, macroestados com maior número de microestados maximizam o valor de S. Sistemas físicos caminham espontaneamente para macroestados representados pelo maior número de microestados, maximizando S.

4.3. Simulando contagem de estados

Na medida em que se aumenta o volume do gás, torna-se computacionalmente inviável estudá-lo "na mão''. Então, desenvolvemos um aplicativo que, dados o número de moléculas e de espaços vazios, gera a frequencia de ocorrência dos macrovalores, isto é, o número de microestados correspondendo ao macrovalor. Descrevemos como o aplicativo pode ser utilizado e onde está disponível.

O aplicativo, cujo nome é combinação, foi escrito na linguagem C e está disponível para "download'' no endereço www.if.ufrj.br/pef/producao_academica/artigos/2012_pvictor_2/combinacao.rar

O arquivo para "download'', combinacao.rar, depois de descompactado, dá origem a dois arquivos, o combina.exe e o info.in. Esse último é um arquivo de texto e, por isso, no Windows©, deve ser aberto com o bloco de notas.

O aplicativo funciona do seguinte modo:

1. Executar o arquivo info.in. Aparecerá, na tela, um texto (Fig. 5A). O primeiro número (5, no exemplo) refere-se à quantidade de moléculas (bolas pretas), e o segundo número (6, no exemplo) refere-se à quantidade de espaços vazios (bolas transparentes). Pode-se modificar este número da forma como se desejar.88 Há, naturalmente, limites computacionais para a utilização do aplicativo. A escolha de números com mais de 4 algarismos, além de implicar num processamento muito demorado, pode apresentar resultados inesperados, dependendo do computador em que é executado.


Figura 5 - (A) Aspecto do arquivo info.in; (B) Aspecto do arquivo saida_M=5_V=6_.dat

2. Salvar as alterações e executar o arquivo combina.exe.

O combina.exe, quando executado, faz a combinação e cria um arquivo de texto com os resultados. Por exemplo, se o valor escolhido para as variáveis for 5 e 6, a execução do arquivo combina.exe resultará na criação do arquivo saida_M=5_V=6_.dat. O arquivo será criado no mesmo diretório onde estão localizados os arquivos combina.exe e o info.in. A frequência de ocorrência associada a cada macrovalor aparece no arquivo, como mostra a Fig. 5B.

3. Essas informações podem ser aplicadas em qualquer aplicativo capaz de gerar gráficos, tais como Excel© ou Gnuplot©. As Figs. 6A e 6B exibem gráficos gerados, a partir dos dados obtidos com nosso aplicativo, com o Gnuplot©.



Figura 6 - (A) Gráfico do macroestado versus probabilidade de ocorrência para o gás composto de cinco moléculas e cem espaços vazios e (B) Gráfico do macroestado versus probabilidade de ocorrência para o gás composto de cinco moléculas e espços vazios que variam de 1000 a 2500.

5. Levando a contagem estatística de microestados à sala de aula

O que se descreve a seguir é a experiência de um dos autores em sala de aula, na rede pública estadual do Rio de Janeiro. Uma aplicação de um piloto da proposta foi feita, a qual, dentro das devidas proporções e peculiaridades, se mostrou eficaz.99 Não foi feito um levantamento estatístico de quão eficaz foi a proposta, pois, na época, não havia o objetivo de uma avaliação do aprendizado; era, tão somente, uma tentativa de estender aos alunos a oportunidade de conhecer a formulação estatística da segunda lei da termodinâmica. As atividades foram propostas para serem realizadas pelos próprios alunos, como estratégia de investigação de um problema concreto. Ressalta-se um aspecto fundamental dessa proposta: O aprendiz é o protagonista de seu aprendizado.

Após terem estudado a segunda lei, como geralmente é apresentada nos livros didáticos do Ensino Médio, incluindo máquinas térmicas, foi apresentado aos alunos um texto em prosa cujo título é: Cecília, o perfume e a segunda lei da termodinâmica. O texto descreve as peripécias de Cecília, uma adolescente que vive mexendo nas coisas de sua mãe, até o dia em que entorna, sobre a cama, o frasco do perfume preferido de sua mãe. Apavorada, pois sabia que sua mãe ficaria zangada e lhe passaria um pito, Cecília escondeu o frasco vazio, mas o cheiro do perfume persistiu no quarto e na coberta da cama. Para ajudar Cecília a esconder sua "arte'', foi feita uma pergunta: uma vez espalhado, há alguma possibilidade do cheiro voltar a concentrar-se dentro do frasco, como de início? Ou, mais precisamente, pode um gás difundido retornar espontaneamente às condições iniciais?

Para discutir a questão, foi sugerida a construção do aparato experimental descrito neste artigo e foi proposto o estudo estatístico das moléculas de um gás composto por apenas 5 moléculas (representadas pelas bolas de gude pretas), livres para se mover num ambiente fechado (representado pela garrafa PET). Com este "aparato'', os conceitos descritos na seção anterior são discutidos. Os alunos foram estimulados a construir seus próprios aparatos em casa, calcular o macrovalor, construir tabelas análogas à Tabela 1 deste texto e a construir, a partir dos dados da tabela, gráficos tais como os representados na Fig. 4. Como exemplo, foi solicitado aos alunos que estimassem, para o sistema M = 5 e V = 5, o macrovalor das configurações obtidas em 25, 50 e 100 aferições aleatórias e sucessivas, construissem uma tabela e, subsequentemente, um gráfico e que comparassem seu gráfico com o gráfico apresentado na Fig. 4A. O exercício foi repetido para o sistema composto por M = 5 e V = 6. Em seguida, foi utilizado o aplicativo acima descrito para construir o gráfico macroestado x número de microestados para diferentes números de bolas pretas, verificando que sempre se obtém a gaussiana e que pode ser mais ou menos estreita, dependendo do número do número de moléculas e do volume.

Por fim, foi discutida a validade e as implicações dos resultados obtidos, em especial, dos gráficos que indicam que um gás, uma vez espalhado, tem probabilidade remota de retornar às suas condições iniciais. Assim, à luz da versão estatística de Boltzmann para a segunda lei, a jovem Cecília não escapará das consequências. A discussão foi sumarizada por meio da produção de um texto, por parte dos alunos, cujo objetivo foi descrever com argumentos qualitativos por que a traquinagem de Cecília não passaria despercebida.

6. Comentários finais

Sistemas aos quais se aplicam métodos estatísticos são mais variados do que o gás ideal considerado neste artigo; por exemplo, a chamada mecânica estatística é aplicada à radiação eletromagnética, à magnetização de uma substância em um campo magnético externo, a propriedades dos sólidos, ao spalhamento da luz, à transição de fase, etc. A distribuição de bolas (simbolizando indivíduos que têm alguma propriedade) em caixas (simbolizando a propriedade) é um modo muito usado nos livros de mecânica estatística para ilustrar contagem de estados e serve a sistemas estatísticos em geral, pois as bolas apenas representam "indivíduos'' que possuem tal ou qual propriedade; a propriedade a ser distribuída pode ser estado de spin (up ou down), moléculas sem spin mas distinguíveis, frequência de vibração de moléculas e da luz, etc. O aspecto mais importante na contagem dos modos de distribuição da propriedade entre os indivíduos, o qual é fácil de explicar com bolas de gude, é que a contagem depende de uma "regra a-priori de seleção'', a saber, se os indivíduos são distinguíveis, indistinguíveis e, neste caso, quantos indivíduos podem ser colocados juntos na mesma "caixa''. Neste artigo somente foi considerado o gás clássico de Boltzmann, em que as moléculas são distinguíveis. O artigo é direcionado ao Ensino Médio e partiu do que foi feito em sala de aula por um dos autores.

Quando da aplicação piloto, percebemos que os alunos ficaram menos resistentes ao conteúdo, pois: (1) Toda discussão foi realizada dentro de um contexto que lhes é familiar, como o texto sobre Cecília; (2) eles se envolveram ativamente, quando precisaram, por conta própria, construir o aparato e utilizá-lo para fazer medições e estimativas.

Acreditamos que o principal dividendo de nossa proposta é a clara relação que se estabelece entre a construção de modelos em física e a solução de problemas concretos. Outro aspecto que merece menção é a exaltação da matemática como linguagem ideal para expressão de discussão de problemas físicos. Sem combinação, tabelas e gráficos, não seria possível afirmar se Cecília pagaria ou não o preço da bagunça. A importância da utilização do computador na solução de problemas complexos em física, o que é uma realidade absoluta,1010 Veja, por exemplo, a Ref. [16]. também é enfatizada, o que dá aos alunos uma noção mais clara das limitações dos físicos e das potencialidades enormes que surgiram com o advento do computador. Por fim, destacamos que a participação ativa dos alunos é um aspecto fundamental para o sucesso da proposta e também uma consequência da forma como foi pensada. De fato, nossa proposta teve o objetivo de estimular a participação e o que observamos foi justamente isso.

Recebido em 30/6/2012

Aceito em 19/12/2012

Publicado em 24/4/2013

  • [1] Penha M. Cardozo Dias, Revista Brasileira de Ensino de Física 23, 226 (2001).
  • [2] Martin V. Sussman, Scientific American 228, 114 (1973).
  • [3] Tim Harman, Physics Education 32, 66 (1997).
  • [4] Penha M. Cardozo Dias, in: Logic and Philosophy of Science in Uppsala, editeb by Dag Prawitz and Dag Westerst (Kluwer, London, 1994).
  • [5] Penha M. Cardozo Dias, Archive for History of Exact Sciences 49, 135 (1995).
  • [6] James Clerk Maxwell, Theory of Heat (Longmans, Green, and Co., London, 1871), cap. 12.
  • [7] Harvey S. Leff and Andrew F. Rex, American Journal of Physics 58, 201 (1990).
  • [8] Leo Szilard, in: Maxwell's Demon: Entropy, Information, Computing, H. Leff and A. Rex (eds) (Adam-Hilger, Bristol, 1990) originalmente publicado em Zeitschrift f`ur Physik 53, 840 (1929).
  • [9] Leon Brillouin, Journal of Applied Physics 22, 334 (1951).
  • [10] Penha M. Cardozo Dias, Archive for History of Exact Sciences 46, 341 (1994).
  • [11] Silvia Cristina T. Covolan, O Conceito de Entropia Num Curso Destinado ao Ensino Médio a Partir de Concepções Prévias dos Estudantes e da História da Ciência Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2004.
  • [12] Daniel C. Schopf, American Journal of Physics 70, 128 (2002).
  • [13] Koo-Chul Lee, American Journal of Physics 69, 68 (2001).
  • [14] Matthew J. Cochran and Paula R.L. Heron, American Journal of Physics 74, 734 (2006).
  • [15] Ludwig E. Boltzmann, in: Kinetic Theory, edited by S.G. Brush (Pergamon Press, New York, 1966), v. 2, pp. 218-227. Originalmente publicado em Annalen der Physik 57, 773 (1896).
  • [16] P.M.C. de Oliveira e S.M Moss de Oliveira, Física em Computadores (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2010).
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Propostas semelhantes estão presentes na literatura [11-14] mas, como verá o leitor, consideramos nossa contribuição relevante pois enfoca o carater estatístico da segunda lei e o discute de um modo acessível ao aluno de Ensino Médio.
  • 3
    A escolha da função não é trivial e foge ao escopo deste breve histórico [1,5].
  • 4
    Veloz pode ser definido como
    e vagaroso, como
    , onde
    é a média dos quadrados das velocidades das moléculas.
  • 5
    Em resposta a Zermelo, Boltzmann argumenta que, para um gás de alguns centímetros cúbicos, o tempo necessário para que o sistema retorne às condições iniciais é muitas ordens de grandeza maior do que a idade do Universo e, por isso, a crítica, embora fundamentada, não é aplicável [15].
  • 6
    Essa disposição corresponde a concentrar o gás numa região pequena do recipiente, a saber 5 volumes moleculares na parte superior da mangueira. Se houvesse bolas transparentes entre as pretas, as bolas pretas estariam mais espalhadas na mangueira (
    Fig. 3B); na analogia, o gás (bolas pretas) ocuparia mais regiões dentro da mangueira (mais volume do recipiente). Se todas bolas pretas estivessem em baixo e todas as transparentes, em cima, as bolas pretas estariam concentradas em uma região, também, de apenas 5 volumes moleculares; uma diferença entre essa disposição e a disposição padrão será feita na próxima subseção, introduzindo a idéia de macroestado.
  • 7
    Neste texto utilizaremos a seguinte notação: as configurações são lidas da esquerda para a direita.
  • 8
    Há, naturalmente, limites computacionais para a utilização do aplicativo. A escolha de números com mais de 4 algarismos, além de implicar num processamento muito demorado, pode apresentar resultados inesperados, dependendo do computador em que é executado.
  • 9
    Não foi feito um levantamento estatístico de quão eficaz foi a proposta, pois, na época, não havia o objetivo de uma avaliação do aprendizado; era, tão somente, uma tentativa de estender aos alunos a oportunidade de conhecer a formulação estatística da segunda lei da termodinâmica.
  • 10
    Veja, por exemplo, a Ref. [16].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      30 Jun 2012
    • Aceito
      19 Dez 2012
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