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O demônio de Maxwell e os motores moleculares

The Maxwell demon and the molecular motors

Resumos

O transporte ativo nas células é efetuado por certas proteínas, ou motores moleculares como são conhecidas na literatura, capazes de realizar trabalho mecânico em um meio onde predominam forças viscosas. Os mecanismos físicos que regem o movimento dos motores moleculares se inserem no contexto dos processos estocásticos. O modelo padrão introduzido nos anos 90 por Adjari e Prost e por Magnasco para descrever movimento direcionado nesta situação é revisto de maneira pedagógica. Um dos objetivos consiste em mostrar as diferenças entre os elementos que tomam parte na descrição das máquinas macroscópicas, a exemplo das máquinas térmicas, e aqueles que descrevem motores que devem operar em escala nanoscópica. As restrições impostas pela segunda lei da termodinâmica são enfatizadas nesta construção.

motores moleculares; demônio de Maxwell; transporte celular


Active transport in cells is carried out by certain proteins, or molecular motors as referred in the literature, that are able to perform mechanical work within a medium where viscous forces are predominant. The underlying mechanisms that regulate the movement of molecular motors are inserted in the context of stochastic processes. The standard model introduced in the 90' by Adjari and Prost and by Magnasco to describe the directed movement in these conditions is revisited with a pedagogical character to clarify and compare the descriptions of macroscopic thermal machines with that of motors operating at nanoscale. The restrictions imposed by the second law of thermodynamics are emphasized.

molecular motors; Maxwell demon; cellular transport


ARTIGOS GERAIS

O demônio de Maxwell e os motores moleculares

The Maxwell demon and the molecular motors

Carla Goldman1 1 E-mail: carla@if.usp.br.

Departamento de Física Geral, Instituto de Física, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

O transporte ativo nas células é efetuado por certas proteínas, ou motores moleculares como são conhecidas na literatura, capazes de realizar trabalho mecânico em um meio onde predominam forças viscosas. Os mecanismos físicos que regem o movimento dos motores moleculares se inserem no contexto dos processos estocásticos. O modelo padrão introduzido nos anos 90 por Adjari e Prost e por Magnasco para descrever movimento direcionado nesta situação é revisto de maneira pedagógica. Um dos objetivos consiste em mostrar as diferenças entre os elementos que tomam parte na descrição das máquinas macroscópicas, a exemplo das máquinas térmicas, e aqueles que descrevem motores que devem operar em escala nanoscópica. As restrições impostas pela segunda lei da termodinâmica são enfatizadas nesta construção.

Palavras-chave: motores moleculares, demônio de Maxwell, transporte celular.

ABSTRACT

Active transport in cells is carried out by certain proteins, or molecular motors as referred in the literature, that are able to perform mechanical work within a medium where viscous forces are predominant. The underlying mechanisms that regulate the movement of molecular motors are inserted in the context of stochastic processes. The standard model introduced in the 90' by Adjari and Prost and by Magnasco to describe the directed movement in these conditions is revisited with a pedagogical character to clarify and compare the descriptions of macroscopic thermal machines with that of motors operating at nanoscale. The restrictions imposed by the second law of thermodynamics are emphasized.

Keywords: molecular motors, Maxwell demon, cellular transport.

1. Introdução

Os motores moleculares são proteínas que atuam no interior das células. Entre suas muitas funções, são responsáveis pelo transporte ativo de partículas, ou cargos como referidas na literatura, que incluem nutrientes de modo geral, organelas, vesículas, entre outras. O movimento ocorre ao longo dos microtúbulos do citoesqueleto das células, em ambos sentidos - para dentro, em direção ao núcleo ou, quando necessário, para fora, em direção ao meio externo [1]. Em parte, o mecanismo de penetração dos vírus nas células deve-se à utilização deste tipo de transporte. Interesses práticos do estudo dos motores moleculares são, portanto, dirigidos tanto à pesquisa de mecanismos que poderiam restringir a entrada dos vírus desta forma [2] como voltados para a possibilidade de utilizar proteínas motoras justamente com objetivo oposto, para direcionar o transporte de drogas específicas para o interior das células [3].

Os mecanismos físicos que regem o movimento dos motores moleculares são relativamente bem conhecidos e se inserem no contexto dos processos estocásticos. No entanto, questões sobre os detalhes de como ocorre o transporte de cargos desta forma ainda motivam estudos e debates na literatura, frente à rica fenomenologia e enorme variedade de situações possíveis obtidas experimentalmente para mimetizar os sistemas reais, combinando-se quantidades e tipos diferentes de motores e cargos. O trabalho recente de Chowdhury [4] oferece uma revisão sobre o assunto.

No presente texto, pretendemos apresentar alguns aspectos das descrições teóricas relacionadas somente ao movimento próprio dos motores. Em particular, discutimos questões decorrentes da caracterização dos motores moleculares como partículas brownianas sujeitas a potenciais externos assimétricos e dependentes do tempo. O modelo "padrão" introduzido nos anos 90 por Adjari e Prost [5] e por Magnasco [6] para descrever movimento direcionado nesta situação é revisto aqui de maneira pedagógica, construtiva, com o intuito de enfatizar seus elementos fundamentais que são a assimetria do meio e a interação do sistema com uma fonte de energia externa. As restrições impostas pela segunda lei da termodinâmica são enfatizadas nesta construção.

Na seção 2 fazemos uma breve revisão sobre as características fundamentais de uma máquina térmica (macroscópica) para apontar as principais diferenças entre as situações nas quais operam os motores macroscópicos e aquelas nas quais operam os motores moleculares. Em seguida, na seção 3, passamos a discutir mecanismos que poderiam promover movimento direcionado de partículas em um meio dominado por forças de caráter aleatório. A participação do demônio de Maxwell é revista neste contexto. Com base nos trabalhos de Astumian [7], discutimos na seção 4 a construção de um processo cinético cíclico entre diferentes espécies ou " estados" das partículas motoras resultantes da interação com a fonte externa. Apresentamos de forma detalhada um possível mecanismo que ilustra como acoplar o movimento espacial destas partículas com os processos de transformação ao longo do referido ciclo, e fazemos uma estimativa da velocidade média dos motores no estado estacionário. A expressão obtida deixa claro e quantifica o efeito dos vínculos impostos pela segunda lei da termodinâmica ao movimento dos motores brownianos. Considerações finais são apresentadas na seção 5.

2. Escalas de tamanho

Para iniciar, iremos fazer uma discussão muito breve sobre os aspectos termodinâmicos de um motor mais conhecido, que opera em escala macroscópica - o motor térmico. A idéia é entender, deste ponto de vista, quais as diferenças fundamentais entre um motor térmico e os motores moleculares.

Os ingredientes básicos para a construção de um motor térmico são: 1) um agente (água), 2) um pistão que conecta o agente com a engrenagem, 3) um reservatório de calor a uma temperatura alta para vaporizar a água e 4) um outro reservatório de calor a uma temperatura mais baixa que a do primeiro.

O sistema remove uma quantidade de calor Qh do reservatório à temperatura alta Th e, necessariamente, como condição imposta pela segunda lei da Termodinâmica, devolve uma parte deste calor Qc≠0 para o reservatório à temperatura baixa Tc. Neste processo, a diferença de energia W=Qh-Qc é utilizada para fazer o motor funcionar. Desta forma, parte da energia térmica removida da fonte quente é transformada em energia mecânica. Dizemos que este motor térmico, opera entre estes dois reservatórios de temperatura. É importante notar que o vapor e a água entram em equilíbrio térmico, cada um com um dos reservatórios, o vapor com o reservatório à temperatura alta, e a água com o reservatório à temperatura baixa. No entanto, os dois reservatórios nunca entram, e nem poderiam entrar (!) em equilíbrio térmico com o motor como um todo, incluindo aí o pistão, o vapor e a água. Isto parece óbvio aqui, mas veremos que no caso dos motores moleculares este ponto é bastante sutil. Ao passar desapercebido, poderia sugerir que os mecanismos responsáveis pelo funcionamento dos motores moleculares não necessitam seguir os vínculos impostos pela segunda lei da termodinâmica.

A primeira lei da termodinâmica assegura que a energia total, incluindo a energia do sistema e a energia do meio, deve ser conservada. A segunda lei é equivalente ao princípio do aumento da entropia - a entropia total, incluindo a entropia do sistema considerado mais a entropia do meio com o qual o sistema permanece em contato, nunca diminui. Interpretando entropia como uma medida da desordem do sistema, a segunda lei é equivalente a dizer que a desordem total, que é a desordem contida no sistema adicionada à desordem do meio no qual está em contato, nunca diminui. A noção e a medida da desordem de um sistema dependem do sistema, o que não será discutido aqui.

Estas duas leis devem ser estritamente observadas ao tentar entender e construir modelos para descrever e estudar propriedades dos motores moleculares. Poderíamos perguntar então, se o funcionamento de um motor molecular não poderia ser descrito de forma análoga a um motor térmico, como acima. Para responder a essa pergunta, precisamos responder algumas outras antes dela:

O que são os motores moleculares? Como são?

E a pergunta mais relevante...Qual o tamanho deles?

Os motores moleculares são proteínas que apresentam uma conformação simétrica em torno de um eixo central. Motores das famílias das Kinesinas apresentam a forma representada esquematicamente na Fig. 1.


As Kinesinas e Dineinas que possuem geometria similar operam no transporte celular levando partículas para dentro e para fora da célula ao longo de microtúbulos do citoesqueleto, realizando trabalho mecânico desta forma. Os tamanhos típicos das proteínas motoras são da ordem de uma centena de nanômetros.

Seria, então, possível associar ou fazer uma analogia entre um motor molecular e uma miniatura de máquina térmica? (Fig. 2).


Neste caso, pouco ou nada teríamos a dizer além do que já foi dito e entendido ao longo dos muitos anos desde quando se iniciou o estudo da termodinâmica das máquinas térmicas, na primeira metade do Século XIX.

Ocorre que nada ou quase nada de uma máquina térmica se aplica ao funcionamento de um motor molecular, nem do ponto de vista da engenharia da sua concepção, muito menos do ponto de vista da física do seu funcionamento. Uma razão bem direta para isto é que o nosso corpo é mantido a uma temperatura praticamente constante. Mesmo pensando em flutuações locais de temperatura, as quais ocorrem de fato, seria muito difícil esperar que os motores moleculares, nesta situação e com suas diminutas dimensões, pudessem estar sujeitos a gradientes de temperatura que fossem suficientes para simular as duas (ou mais) fontes de calor mantidas a temperaturas distintas.

São estes os pontos realmente importantes - os motores moleculares são de fato muito pequenos e, portanto, no ambiente em que devem operar, sofrem enorme influência de forças "aleatórias" tanto em direção e sentido, como em intensidade, resultantes das colisões com as outras tantas partículas do meio onde estão inseridos. É isto mesmo: os motores moleculares são tão pequenos a ponto das colisões de caráter aleatório com as partículas (moléculas) que constituem o meio onde se encontram exercerem uma enorme influência sobre seu movimento. Por este motivo, muitas vezes os motores moleculares também são chamados de motores brownianos, em referência ao tipo de movimento dominante nestas situações. O movimento browniano é o movimento errático exibido por partículas ao sofrerem colisões com outras partículas ainda menores no meio onde se encontram, e cuja distribuição de velocidades segue a lei de Maxwell-Boltzmann. Este tipo de movimento foi observado pela primeira vez em 1827 pelo botânico inglês Robert Brown em experimentos com grãos de pólen em solução aquosa.

No entanto, apesar de seguir um movimento errático, os motores moleculares exibem um arrastamento ou deslocamento efetivo (drift) para um ou outro sentido dos microtúbulos ao longo dos quais ocorre o transporte de partículas. As Kinesinas exibem drift para um dos sentidos do microtúbulo - o sentido positivo " +", enquanto que as Dineínas exibem drift para o sentido oposto, denominado sentido negativo " - ".

3. Catracas e demônios...

Como é possível ocorrer um drift em uma situação dominada por forças que devem impor caráter aleatório ao movimento? Este é precisamente o ponto que pretendemos discutir aqui. Para tanto, utilizaremos alguns exemplos, sistemas modelo ou toy models, usando a expressão da língua inglesa, para ilustrar a conexão do problema com os vínculos impostos pela termodinâmica.

Inicialmente, consideramos uma caixa em equilíbrio com um banho (reservatório) térmico, à temperatura Th. Dentro da caixa há dois tipos de bolas, distinguíveis pelos seus tamanhos. As bolas pequenas, representam partículas do meio, em equilíbrio térmico com as grandes. As bolas grandes, representam as proteínas motoras. Podemos perguntar se seria possível observar uma configuração em que as bolas grandes, de forma espontânea, aparecessem segregadas das bolas pequenas, concentradas em uma parte pequena do volume da caixa, permanecendo assim por um tempo suficientemente longo para observação (ver a Fig. 3).


Neste caso, o sistema teria evoluído assim, espontaneamente, para uma situação em que seria mais fácil prever a posição de uma bola grande no volume da caixa, situação esta mais ordenada do que as muitas e muitas outras em que as bolas, grandes e pequenas, estivessem perfeitamente misturadas dentro da caixa. Assim, a resposta à pergunta inicial neste parágrafo sobre uma possível segregação das bolas grandes que ocorra de forma espontânea e seja de longa duração, é não, pois tal situação estaria em contradição com a segunda lei da termodinâmica.

Podemos tentar sofisticar este sistema. Dividimos o volume interno em dois compartimentos inserindo uma parede no meio da caixa. Nesta parede há uma porta que abre para um dos lados, somente para o lado direito no esquema da Fig. 4a, pois possui um dentinho para travá-la no seu suporte, impedindo sua abertura para o lado esquerdo. A idéia de utilizar uma catraca microscópica deste tipo para ilustrar conceitos estatísticos/probabilísticos relacionados, foi concebida inicialmente por Smoluchowski (1912) e revista por Feynman, no seu livro de fisica básica para ilustrar o significado da segunda lei da termodinâmica [8].


A motivação aqui é a mesma que no exemplo anterior: criar gradientes de concentração, separando as bolas grandes das pequenas. Passamos a discutir duas possibilidades.

3.1. Catracas

Antes de mais nada, devemos enfatizar que todo o conjunto, incluindo a portinha, os elementos que tomam parte nos mecanismos que controlam a sua abertura e o seu fechamento, bem como cada uma das bolas grandes identificadas como proteínas motoras, são partes integrantes do que chamamos um motor molecular. O objetivo (do motor) é dirigir as bolas grandes a um dos compartimentos da caixa fazendo com que permaneçam lá por um tempo muito longo.

Uma possibilidade consiste em considerar que a porta se abre somente ao sofrer colisões com partículas grandes (Fig. 4a). Este é exatamente o problema da catraca discutido no texto clássico de Feynman [8]. Por causa do dentinho, as colisões provenientes da parte da direita não provocam abertura da porta. Colisões provenientes do compartimento da esquerda resultam na abertura da porta que deve fechar após um intervalo de tempo pequeno, pois a mola que prende a porta na parte superior da caixa é amortecida. Antes de fechar, no entanto, ao menos uma bola grande, a que provocou a abertura como efeito da colisão, mas mesmo algumas outras bolas grandes que estavam próximas, conseguem passar para o compartimento da direita. Como de lá não saem por meio de colisões, por causa do dentinho, podemos pensar que após um tempo relativamente longo haveria um acúmulo e, portanto, a criação de um gradiente de bolas grandes dirigido para o lado direito da caixa. Aparentemente, esse mecanismo de separação, dependente somente da assimetria introduzida pelo dentinho funcionaria bem, mesmo estando em total contradição com a segunda lei da termodinâmica. A entropia do sistema (isolado) como um todo diminuiria ao final do processo, sem que tal diminuição fosse compensada por aumento de entropia em alguma outra parte do sistema.

Há algo errado neste raciocínio?

Sim. Como explicado por Feynman no texto citado acima, o ponto é que não levamos em conta o fato que a diminuta mola, após algumas colisões com as bolas, e abertura e fechamento da porta, acabaria se aquecendo e entrando em equilíbrio térmico com o resto do sistema mantido à temperatura Th. Nessas condições, à temperatura Th, a mola perderia sua função de amortecimento nesta escala deixando aberta a porta por um tempo arbitrariamente longo, após uma colisão com uma partícula qualquer. Com isto, parte das bolas grandes que inicialmente estariam acumuladas no lado direito acabariam voltando para o lado esquerdo da caixa, fazendo desaparecer o gradiente de concentração criado em um primeiro momento, enquanto o sistema porta-mola estava a uma temperatura mais baixa que o resto do sistema e, portanto, fora do equilíbrio térmico.

Assim, o nosso motor, construído em princípio para separar as bolas grandes das pequenas, funcionaria muito mal, somente por um curto período de tempo, o que obviamente não seria desejável ou esperado de um motor. Conclusão: na situação de equilíbrio o motor deixa de funcionar. O mecanismo funciona somente enquanto a mola é capaz de controlar o fechamento da porta e isso ocorre enquanto o sistema não atinge o equilíbrio.

3.2. Demônios

Outra possibilidade passa pela atuação do Demônio de Maxwell (DM). Concebido por Maxwell em 1867, o DM é um ser inteligente que, em princípio, seria capaz de violar a segunda lei da termodinâmica sem aparentemente tropeçar em contradições. Considere novamente o caso da construção de um motor para separar as bolas grandes das pequenas. É bom notar que todas elas são pequenas, muito pequenas, definidas na escala molecular, mas apesar disso é possível notar que algumas delas são maiores que outras. A situação é tal que o motor, incluindo todos seus elementos, deve operar em equilíbrio a uma temperatura fixa Th. Mesmo assim, e mesmo admitindo que o DM também estivesse em equilíbrio com o restante do sistema, ele seria capaz de criar gradientes de concentração, dirigindo as bolas grandes para um dos compartimentos da caixa e, portanto, para uma parte restrita do volume total. Como?

Primeiramente, note que, neste caso, não há necessidade do dentinho no suporte da porta e nem da mola, uma vez que o DM sabe para que lado ele deve abrir a porta, quando deve fazer isso, e também o instante exato em que deve fechá-la, de modo a deixar as bolas grandes passar uma a uma para o lado direito. É o DM quem controlaria a abertura e fechamento da porta, mesmo quando o sistema encontrar-se todo ele (bolas, portinha e o próprio DM) em equilíbrio térmico (Fig. 4b).

Será possível? Será que este ser inteligente, capaz de perceber detalhes sobre o movimento das bolas grandes pode separá-las das pequenas e deixá-las restritas em uma pequena parte do volume? O DM, que já se encontra em equilíbrio térmico com o sistema, diferentemente da mola que era nossa primeira opção, permaneceria eficiente no seu trabalho de separar as bolas, abrindo e fechando a portinha precisamente nos instantes certos.

Será?

Mais uma vez a resposta é não: o processo efetuado pelo DM não funcionaria desta forma, sem que a diminuição de entropia devido à reorganização espacial das bolas fosse compensada por um aumento de entropia em alguma outra parte do sistema. Mas onde?

Neste caso, entende-se que para realizar o processo de separação o DM necessitaria processar informação. No caso, a informação estaria relacionada com a posição e o momento de cada uma das bolas grandes no instante em que passam próximas à portinha. Somente mediante análise desta informação o DM poderia concluir se seria vantajoso abri-la e por quanto tempo deveria deixá-la aberta para maximizar o processo de separação. O fato é que informação neste contexto é entendida como uma fonte de entropia, a qual deve ser contabilizada ao longo do processo realizado pelo DM (Fig. 5).


O entendimento deste problema em termos de uma entropia informacional serviu como base de toda a teoria da informação iniciada com os trabalhos de Szilard (ver, por exemplo, a Ref. [9]). Neste trabalho, o autor elabora sobre uma variação positiva de entropia ΔSinf associada à aquisição da informação pelo DM. Assim, a variação total da entropia no sistema, o DM sendo parte integrante dele, nunca assumiria valores negativos, em total acordo com a segunda lei da termodinâmica. Anos mais tarde, Landauer [10] e Bennett [11], reviram estas questões e entenderam a variação de entropia no sistema de uma outra maneira, atribuindo um aumento da entropia ΔSinf não necessariamente ao processo de aquisição e processamento da informação, mas principalmente ao processo de remoção da informação (ou à limpeza da memória do DM) [12]. A observação feita por Bennett a esse respeito, que o levou a repensar sobre a produção de entropia no sistema na mesma direção daquela iniciada por Landauer, pode ser mencionada já em conexão com o exemplo de separação de bolas considerado aqui. Neste caso, para que o DM possa iniciar um novo ciclo no processo de separação de bolas, ele deve necessariamente voltar a uma condição idêntica àquela que possuía no início do ciclo anterior. Para isso, deve apagar de sua memória todos os dados (posições e velocidades) relativos às bolas já mensuradas e eventualmente selecionadas para passar para o outro compartimento, havendo produção de entropia neste processo.

Mais recentemente, surgiu na literatura uma proposta interessante, a de implementar estas idéias em sistemas moleculares reais para a construção de um "motor molecular informacional" por meio de uma molécula com propriedades óticas especiais. O projeto levado a cabo tanto teorica como experimentalmente está descrito na Ref. [13].

O ponto importante para nossa discussão é que, levando em conta a variação da entropia necessária para que o DM execute seu trabalho com sucesso, seja na aquisição ou na remoção da informação (ou em ambas! ), pode-se mostrar que a entropia do sistema como um todo de fato aumenta, apesar de haver diminuição da entropia do subsistema formado pelas bolas e pela porta. Ou seja, o ser inteligente concebido por Maxwell é de fato capaz de executar seu trabalho de separação das bolas e com isso criar gradientes de concentração. O que ele não faz, no entanto, é violar a segunda lei porquanto executa seu trabalho processando informação em perfeita harmonia com a termodinâmica, o que lhe rouba o título de demônio.

4. Um motor químico

A partir de agora, iremos definitivamente deixar o DM de lado. Para ilustrar as questões relacionadas à termodinâmica e às restrições impostas pela segunda lei, vamos insistir um pouco e voltar a pensar no sistema construído acima com a porta-catraca. Note que este sistema foi concebido para tratar questões sobre transporte de curto alcance que ocorre em uma região localizada do espaço. Poderia servir, por exemplo, como uma tentativa de entender o problema de uma proteína de membrana ou uma bomba de íons que serve para promover ativamente o "transporte local", a passagem de íons através da membrana celular para dentro ou para fora da célula, geralmente contra um gradiente de concentração. Em contraste, os motores moleculares devem ser entendidos como entidades que realizam trabalho mecânico, transportando organelas, nutrientes e outros cargos, através de grandes distâncias. Sendo assim, podemos pensar em um mecanismo análogo ao discutido anteriormente, mas que seja capaz de realizar transporte de longo alcance, ou seja, entre dois pontos do espaço bem distantes um do outro, e não apenas entre um compartimento e outro da "caixa".

Para isso, fazemos uma construção periódica, na qual consideramos um número muito grande de caixas idênticas entre si e idênticas àquela considerada acima, todas elas ligadas por portas-catraca, como mostrado na Fig. 6. A idéia é que, partindo de uma caixa em uma das extremidades do microtúbulo, as bolas possam passar de caixa em caixa, entre uma vizinha e outra, até atingirem a última caixa na extremidade oposta. Mas se admitirmos que as portinhas fecham-se somente sob efeito do amortecimento das molas não há escapatória - apesar do grande apelo introduzido pela idéia da catraca, da maneira como apresentado acima, o mecanismo não iria funcionar, ou funcionaria por um tempo muito limitado, somente até atingir o equilíbrio térmico. Poderíamos tentar deixar as molas fora de equilíbrio com o resto do sistema, mantendo-as resfriadas. De um ponto de vista prático, no entanto, isto seria inviável no caso dos motores moleculares pois, para isso, deveríamos poder dispor de outra fonte de calor, à temperatura mais baixa que a temperatura média Th do sistema (célula) e procurar mantê-la em contato somente com as pequenas molas. Ao que tudo indica, não é isto o que ocorre nas células. Vamos então passar a discutir um mecanismo alternativo ao oferecido pelo sistema de molas para controlar o fechamento e abertura das portas. Para isso, imaginamos que as portas-catraca encontram-se " grudadas" nos seus suportes. Como " cola", podemos pensar que elas sejam eletricamente carregadas, com carga negativa por exemplo, enquanto que os suportes (ou batentes das portas) sejam carregados com carga positiva. Assim, as portas permanecem fechadas por atração coulombiana com as cargas de sinais opostos nos seus suportes. Uma bola grande, se carregada negativamente, irá afastar-se das portas como efeito da repulsão eletrostática mas será, ao mesmo tempo, atraída pelas cargas positivas do suporte imóvel. O esquema na Fig. 6 sugere que a sequência de portas/suportes que se situa na horizontal, ao longo do eixo x, possa ser vista como uma sequência de dipolos elétricos, frequentemente utilizada para representar a estrutura molecular (dipolar) dos microtúbulos, ao longo dos quais se movem os motores moleculares. Por isso, vale o esquema superposto na figura mostrando um perfil "dente de serra" para representar, aproximadamente, o potencial eletrostático U(x) sentido por qualquer uma destas bolas carregadas negativamente, na presença desta sequência de dipolos.


Essa modelagem é bem esquemática no sentido de representar o potencial eletrostático original por uma sequência linear por partes, composta por duas seções com inclinações distintas, de extensões a e b como indicado. No entanto, para o propósito de mostrar os mecanismos que geram movimento unidirecional das bolas, a aproximação é excelente, pois preserva o caráter assimétrico do potencial desde que ab. É exatamente este o modelo introduzido por Adjari e Prost [5] e por Magnasco [6] para discutir movimento direcionado de partículas brownianas.

Note que os mínimos do potencial, para os quais atribuimos um valor E1<0 localizam-se nas posições dos pólos positivos dos dipolos (ou dos suportes das portas), que seriam as posições mais "confortáveis" para uma bola deste tipo possuindo carga elétrica negativa. Os máximos (picos de potencial) localizam-se nas posições dos pólos negativos (as portas). Estas posições de máximo, portanto, são mais difíceis de serem atingidas pelas bolas com carga negativa, cuja energia térmica kBTh é supostamente insuficiente para ultrapassar as barreiras de potencial, ou picos do potencial, todos eles de mesmo valor U0 em relação a um valor de referência, tal que U0>>kBTh.

Assim, mantendo-se eletricamente carregada, e com a mesma carga das portas, seria pouco provável que uma bola conseguisse colidir com uma porta e passar para o compartimento vizinho, muito menos alcançar um compartimento mais afastado. Nessa situação haveria pouca esperança de criar gradientes de concentração, a não ser que as bolas, ao menos por um certo tempo, pudessem ser neutralizadas. Esta situação poderia ser promovida, por exemplo, pela interação das bolas com íons positivos provenientes da dissociação de um composto externo, genericamente denominado AB, em suas componentes .

A reação de associação/dissociação

é reversível e deve ocorrer nas regiões próximas onde se encontram as bolas e as portas/suportes. Se as componentes forem pequenas comparadas com as bolas consideradas, elas devem distribuir-se rapidamente atingindo situações estáveis (situações de equilíbrio), quer bem próximas às portas (no caso, as componentes , atraídas pela carga negativa), quer próximas aos suportes (componentes , atraídas pela carga positiva), como sugerido na Fig. 6.

Assim, uma bola , originalmente carregada com carga negativa, teria maior chance de transformar-se em uma espécie neutra nas proximidades de uma porta (negativa), onde a concentração dos íons A+ é maior. O valor da energia potencial da bola ao tornar-se seria o mesmo para todos os valores de x. Como partícula neutra, a bola passaria a executar movimento difusivo devido tão somente às flutuações térmicas no meio, indiferente à presença dos dipolos (ou das portas). Esta situação se manteria até que eventualmente se ligasse a um íon pela afinidade com o íon já presente na espécie neutra. A partícula, ou estado , resultante desta ligação com e, portanto, carregada com carga elétrica negativa, passaria novamente a ser sensível à presença dos dipolos. Por isso, dizemos que o potencial é "ligado" (ou re-ligado) para a partícula neste estado e, da mesma forma como , deve ser atraída pela carga positiva do suporte onde a energia é a mínima possível. Na Fig. 6, representamos os valores de energia mencionados tendo como referência o potencial assimétrico do tipo dente de serra sentido pelas espécies carregadas .

Se tal ligação com ocorrer após um deslocamento d de tal que da, mas d<b, a partícula resultante poderia assim concluir seu movimento " escorregando" para o mínimo mais próximo da direita. Ou melhor, por interação eletrostática, a partícula seria atraída em direção ao pólo positivo seguinte, atingindo a posição do mínimo vizinho da direita, ficando assim "presa" nesta posição. Se esta sequência de eventos se repetir como em um processo cíclico, esperaríamos que, após algum tempo, fosse criado um gradiente de concentração de bolas grandes em direção ao compartimento da extremidade direita ou, equivalentemente, da extremidade positiva do microtúbulo.

Percebemos nesta argumentação o papel fundamental exercido pela assimetria do potencial. Como a<b, ao " ligar-se" o potencial tem-se como resultado o favorecimento do movimento das partículas para um determinado sentido do microtúbulo. Se, ao contrário, permanecessem sempre em movimento difusivo, teriam chances iguais de moverem em ambos sentidos. Por isso, podemos afirmar que, em princípio, a ação do potencial assimétrico associada à dependência do estado das partículas nos produtos iônicos de uma reação externa , modela o movimento difusivo dando origem a um drift para as partículas.

Há algo de errado no raciocínio desta vez?

Não errado, mas incompleto. E o ponto é o mesmo: se o sistema estiver em equilíbrio, a segunda lei da termodinâmica proibe transporte efetivo. Apesar de ser necessária, a assimetria do potencial não é condição suficiente para promover a separação das partículas. Note neste exemplo que todas as componentes do sistema encontram-se desde o início à mesma temperatura TABh. A condição de equilíbrio que será discutida a seguir refere-se ao equilíbrio entre as componentes da reação de associação/dissociação de AB e as bolas. Veremos que o controle do fluxo de bolas ao longo do microtúbulo pode ser efetuado apenas através do controle das densidades das componentes químicas desta reação. A argumentação a seguir foi inspirada nos trabalhos de Astumian, a exemplo da Ref. [7], e será apresentada já adaptada ao sistema considerado aqui.

4.1. Modelo cinético

Uma maneira de discutir a impossibilidade de transporte na situação de equilíbrio que permite uma análise mais quantitativa pode ser formulada usando um ponto de vista macroscópico. Para isso, iremos seguir as sugestões apontadas nos trabalhos de Astumian [7] e Bustamante [14] para o particular problema tratado aqui, e também o texto clássico de Hill [15] para considerações gerais. Utilizaremos uma abordagem que tem por base a teoria cinética das reações químicas. Para tanto, supomos que todas as espécies presentes na amostra estejam perfeitamente misturadas e que a presença de cada uma delas seja representada pela respectiva concentração.

As três espécies químicas que consideraremos são , e , respectivamente as partículas negativamente carregadas, as partículas ligadas a um íon e as partículas ligadas a uma molécula neutra AB. Lembramos que as espécies e são sensíveis à presença do potencial eletrostático oferecido pelos dipolos, enquanto que por ser neutra, pode difundir livremente ao longo do microtúbulo. As mudanças entre uma espécie e outra podem ser vistas em termos de processos químicos de transformação na presença dos íons , e de AB. A representação na Fig. 7 indica claramente que o processo como um todo é cíclico.


Cada uma destas transformações (ou sub-processos) entre pares é reversível, o que é indicado pela dupla seta. As setas curvas indicam as espécies iônicas externas e AB, provenientes da reação de associação/dissociação que, em cada passo, interagem com as espécies internas

Como mencionamos, a partir de agora nossa análise passa a expressar um ponto de vista mais macroscópico para o qual fazemos referência não a cada partícula (bola) individualmente, mas às concentrações de bolas de um tipo ou outro. Seguindo este esquema, podemos escrever um conjunto de equações que expressam variações dessas concentrações segundo a formulação da cinética química

Os parâmetros são as taxas, ou melhor, as respectivas probabilidades por unidade de tempo e por partícula, de ocorrer cada uma das transições, como indicado. A notação utilizada é tal que, por exemplo, [] indica a concentração da espécie e analogamente para as outras espécies. Os termos acima que dependem do produto de duas concentrações de espécies distintas, expressam a aproximação que usamos aqui segundo a qual a chance de encontro de partículas de diferentes espécies (reagentes) para que a reação (ou transformação) possa ocorrer é proporcional ao produto das respectivas concentrações.

Em princípio, cada uma destas concentrações varia no tempo, pois as espécies referidas encontram-se em constante transformação. Transformações entre espécies, por sua vez, estão ligadas ao movimento direcionado das partículas, de acordo com o modelo microscópico apresentado na seção anterior. A diferença entre o ponto de vista adotado aqui e aquele da seção anterior é que aqui estamos analisando um conjunto muito grande de partículas, cada uma em um destes estados, sensíveis ou não ao potencial dente de serra de acordo com a carga elétrica que possuem. Ao analisarmos o que ocorre com as concentrações destas partículas, simplesmente supomos a ocorrência dos processos microscópicos sem, no entanto, ter que nos referir explicitamente a eles. Os detalhes sobre o particular modelo microscópico que usamos para descrever o sistema estão embutidos nas taxas mencionadas acima. Deste ponto de vista, as perguntas que podem ser formuladas sobre o sistema não mais dizem respeito ao comportamento de uma ou outra bola em particular, mas ao comportamento médio do conjunto de bolas. Variações nas concentrações das espécies já fornecem as informações necessárias para entender se é possível ocorrer acúmulo de partículas em uma das extremidades do microtúbulo. Por exemplo, [] aumenta com o tempo se uma componente da espécie ligar-se a uma molécula resultando ou se uma componente perder um íon . Um aumento de [] indica que há um maior número de partículas difundindo no sistema. Estas duas possibilidades estão contempladas, respectivamente, pelo primeiro e pelo segundo termo do lado direito da primeira das equações em (3), também representadas pelas setas entrando no vértice do esquema gráfico. Por outro lado, se um perder o , ou se ganhar um , ambos eventos contribuem para diminuir []. Estas duas possibilidades são contempladas pelo terceiro termo do lado direito da primeira das Eqs. (3), ou representadas pelas setas saindo do vértice . O balanço destas quatro possibilidades determina o sinal e a magnitude de d[]/dt a cada instante. A propriedade de reversibilidade destes processos é expressa pela possibilidade de ocorrer o par de eventos "opostos". Por exemplo, o evento " liga-se a uma molécula e transforma-se em " é oposto ao evento " perde e transforma-se em ". Da mesma forma, os eventos citados envolvendo também são opostos nesse sentido. Os pares de eventos opostos podem ser identificados em todas as três equações acima.

Lembre-se que para criar gradientes de concentração, as partículas devem desenvolver uma velocidade de arrastamento (drift). Para isso, a idéia é manter o motor funcionando indefinidamente através das transformações ao longo do processo cíclico, quando passam alternadamente de um estado em que são neutras, quando então difundem, para um outro em que são carregadas, quando "escorregam" para um mínimo do potencial. Passado um tempo longo o suficiente após o início desses processos de transformação, é possível que o sistema evolua para uma situação, ou um estado, em que a concentração de cada espécie atinja cada uma delas um determinado valor e permaneça indefinidamente com este valor constante. Neste caso, tem-se que

Este estado do sistema é denominado estado estacionário (indicado por est) e os valores das concentrações correspondentes, referidas daqui em diante como são obtidos como soluções das Eqs. (3), tomando-se o lado esquerdo de cada uma delas igual a zero. No estado estacionário, as transformações entre espécies continuam ocorrendo, mas de forma a manter constantes as concentrações de cada uma. Ou seja, o sistema atinge uma situação em que é estabelecido um balanço entre as quatro transformações indicadas em cada uma das Eqs. (3). Tomando como exemplo a primeira dessas equações, um aumento de devido à ligação de em ou devido à perda de por seria compensado (balanceado) pelos dois processos opostos mencionados que contribuiriam para uma diminuição de []. O mesmo vale para as outras duas equações.

Em particular, pode ocorrer que os processos sejam balanceados pelos seus pares opostos. No exemplo acima, isto ocorre se um aumento de [] pela aquisição de por M for compensado pela diminuição de [] devida à perda de por . Neste caso, o estado do sistema é denominado estado de equilíbrio e os valores das concentrações correspondentes que são constantes, independentes do tempo, são denominadas concentrações de equilíbrio. Elas correspondem às soluções da Eq. (3) tomando-se o lado esquerdo de cada uma delas igual a zero, como no caso estacionário, mas com a condição adicional de anular os fluxos parciais.

Por exemplo, se reescrevermos a primeira das equações na Eq. (3) na forma

identificamos os fluxos parciais

Entendemos que as soluções estacionárias são tais que com enquanto que as soluções de equilíbrio são tais que e . Fazendo a mesma distinção para as outras duas equações na Eq. (3), concluimos que as soluções de equilíbrio para as concentrações satisfazem às condições conhecidas como condições de balanço detalhado,

resultando

Note que esta expressão, que exibe uma relação entre as taxas e as concentrações de equilíbrio, vale sempre, em situações de equilíbrio ou não [7, 15].

Podemos agora propor uma expressão aproximada para a velocidade média de arrastamento , ou seja o drift das partículas consideradas (das bolas), no estado estacionário, tendo em vista o fato delas se moverem apenas quando ligadas a um íon , na forma formando um complexo neutro. É somente assim, como espécie que se difundem ao longo do microtúbulo. Neste caso, devemos considerar que em um processo difusivo que ocorre na reta a probabilidade de atingir uma posição x qualquer, em um instante de tempo t, partindo da origem no instante inicial t0=0, é proporcional a que, a menos da normalização, corresponde à distribuição gaussiana, sendo D o coeficiente de difusão característico do processo. Então, a probabilidade de uma partícula em movimento difusivo atingir uma posição x no intervalo a<x<b, a partir da origem na posição de um mínimo local do potencial , é proporcional à integral . Na eventualidade de ligar-se a um íon B após o tempo t e daí novamente tornar-se sensível ao potencial assimétrico, a partícula poderá ser aprisionada no mínimo mais próximo da direita, o qual define uma nova condição inicial. Note que para valores de x pequenos em relação ao denominador no argumento da exponencial, esta integral pode ser aproximada pela diferença (b-a), a menos de um fator multiplicativo.

Além da assimetria do potencial que pode ser controlada pela diferença entre a e b, valores não nulos de devem necessariamente estar relacionados a fluxos parciais não nulos. No esquema seguinte, estão representados os fluxos para o conjunto das reações acima, comparando-se os estados de equilíbrio e estacionário. Usamos os tamanhos das setas para indicar os fluxos de reagentes e produtos nas transformações entre espécies de vértices vizinhos. Nos dois casos, não há mudanças nas concentrações de cada espécie. No equilíbrio, as setas que entram e que saem de um determinado vértice, tanto no sentido horário como no anti-horário, possuem tamanhos iguais, indicando que os fluxos parciais são nulos no estado de equilíbrio.

No estado estacionário, o tamanho da seta que entra em qualquer um dos vértices num determinado sentido (por exemplo, no sentido anti-horário), deve necessariamente ser igual ao tamanho da seta que sai deste mesmo vértice no mesmo sentido, isto para que não haja acúmulo da espécie do vértice. O mesmo deve ocorrer no outro sentido e em todos os vértices. Entretanto, o tamanho das setas em um sentido é distinto daquele no sentido oposto. Isto indica que há uma diferença entre a quantidade que entra em qualquer um dos vértices por uma determinada aresta e a que sai na mesma aresta no sentido oposto. Esta diferença é proporcional ao fluxo parcial associado à espécie no vértice considerado. Resulta disso um fluxo efetivo para o ciclo como um todo que, no caso do exemplo da Fig. 8, ocorre no sentido anti-horário favorecendo a sequência de eventos em relação à sequência oposta .


Em outras palavras, estabelece-se desta forma um processo cíclico no estado estacionário com um sentido preferencial bem definido. Note que se houvesse apenas duas espécies no sistema, uma carregada e outra neutra, por exemplo a situação estacionária coincidiria com a situação de equilíbrio, o que significa que não poderia haver fluxos efetivos neste caso [15].

É importante perceber que ao longo das transformações no sentido anti-horário, há favorecimento da espécie AB. Isto é, a sequência de transformações que eventualmente leva ao movimento de arrastamento das partículas de acordo com a presente construção tem como sub-produto a produção de moléculas neutras AB. Se houvesse favorecimento dos eventos no sentido oposto, ou ambos, como no caso do equilíbrio, ocorreria um maior consumo de AB com produção ou liberação das espécies iônicas , que causariam blindagem das cargas das portas e suportes, anulando desta forma o efeito catraca. De fato, de acordo com as premissas do nosso modelo, o fechamento das portas em seus suportes depende de serem ambos carregados com cargas de sinais opostos. Assim, o fato do sistema permitir favorecimento do sentido anti-horário na sequência de transformações acima, é que mantém o motor funcionando. Em vista destas considerações é razoável pensar que a velocidade média dos motores possa ser estimada, no estado estacionário, a partir da expressão

a menos de um possível fator numérico. O primeiro fator na expressão acima leva em conta a assimetria do potencial, como mencionamos. O segundo fator, que corresponde ao fluxo parcial da espécie MA no estado estacionário, faz a conexão com a cinética química e define a escala para o intervalo de tempo proporcional ao inverso das taxas .

Usando as Eqs. (3) para as concentrações no estado estacionário, isto é, sob as condições (3), podemos expressar somente em termos de e das correspondentes concentrações das componentes e AB . Usando ainda a relação (7), obtemos

Este resultado deixa claro que se as espécies externas, oriundas da reação de associação/dissociação considerada, encontrarem-se em equilíbrio com as demais, então a velocidade de arrastamento Vm das partículas seria nula. A expressão acima explicita este resultado de forma mais quantitativa, o que permite entender que é a condição sobre a reação externa, o controle sobre as densidades relativas das componentes desta reação ao longo do microtúbulo, é o que regula o fluxo das espécies internas. Concluímos assim que o movimento aleatório executado pelas partículas brownianas pode sim ser direcionado pela presença de um potencial assimétrico variável, como esperávamos, mas desde que tal variação esteja vinculada a um mecanismo externo mantido fora do equilíbrio com o sistema.

Nas células, os motores moleculares têm como fonte de energia a hidrólise de moléculas de ATP que têm papel análogo às nossas moléculas AB. Por este motivo (não somente este, mas também por este! ), as concentrações de ATP e ADP nas células são mantidas em níveis diferentes daqueles que teriam se estivessem em equilíbrio.

5. Conclusões

Os mecanismos que regem a dinâmica dos motores moleculares e possíveis usos em aplicações práticas têm sido, ao menos ao longo dos últimos vinte anos, assunto de grande interesse dos físicos. Estes mecanismos ilustram a realização de trabalho mecânico em sistemas microscópicos, para os quais as forças de caráter aleatório são preponderantes, caracterizando a natureza do problema como intrinsecamente estocástica.

Utilizamos diferentes pontos de vista para discutir alguns dos mecanismos que levam ao entendimento do movimento direcionado exibido nestas condições. O ponto principal que queríamos deixar claro tem relação com o fato que os motores moleculares devem operar, necessariamente, em uma situação afastada do equilíbrio termodinâmico. Qualquer tentativa de explicar o fenômeno do movimento direcionado destes sistemas em uma situação de equilíbrio levaria a contradições decorrentes da não observância da segunda lei da termodinâmica.

Os estudos mais atuais na literatura a esse respeito têm sido motivados por questões sobre o transporte de cargos efetuado por estes motores. Afinal, as funções principais de duas das três grandes famílias de motores moleculares, a família das Kinesinas e a das Dineínas, são relacionadas ao transporte ativo nas células. Uma dessas questões tem conexão com o fato do movimento das partículas transportadas desta forma ser caracterizado frequentemente como bidirecional, embora não-difusivo. Os cargos observados em uma série de situações, tanto in vivo como in vitro, podem percorrer grandes distâncias para um ou outro sentido dos microtúbulos. As questões discutidas sobre o assunto, em geral, versam sobre a natureza estratégica deste tipo de movimento e sobre suas origens físicas. Por exemplo, o possível envolvimento de dois tipos de motores, um deles possuindo um drift para um determinado sentido e outro para o sentido oposto, tem sido usado como protótipo para as tentativas de descrever as características do movimento bidirecional deste tipo. Estas tentativas são ainda motivo de discussões na literatura e caracterizam um problema aberto nessa área. Para uma revisão sobre este assunto ver, por exemplo, a Ref. [16].

Ao longo dos últimos anos temos elaborado alternativas para descrever o movimento dos cargos [17-19]. Assumindo o mecanismo de base descrito aqui para o movimento dos motores conseguimos prever o movimento bidirecional dos cargos na presença de um único tipo de motor. Aparentemente, este tipo de descrição resolveria algumas contradições intrínsecas às descrições mais conservadoras com base na atuação de motores de tipos diferentes, em particular, aquelas relacionadas ao tráfego de motores nos microtúbulos e à eficiência do processo de transporte [20].

Agradecimentos

Os inúmeros comentários, críticas e excelentes sugestões dos professores Silvio R.A. Salinas e Domingos H.U. Marchetti contribuiram de forma crucial para a versão final deste texto. Agradeço também o apoio financeiro da FAPESP no âmbito do Projeto IRTG 1740 / TRP 2011/50151-0, DFG / FAPESP.

Referências

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Recebido em 04/1/14

Aceito em 31/3/14

Publicado em 31/7/2014

  • [1] M.A. Welte, S.P. Gross, M. Postner, S.M. Block and E.F. Wieschaus, Cell 92, 547 (1998).
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      04 Jan 2014
    • Revisado
      31 Mar 2014
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