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Como se formaram as galáxias?

How did galaxies form?

Resumos

Apresentamos aqui uma discussão pedagógica do processo de formação de estruturas (galáxias e além) no Universo, com um mínimo de formalismo e ênfase nas ideias físicas que colocam a instabilidade gravitacional como o principal agente do mesmo. O papel fundamental da matéria escura para a formação de estrutura é enfatizado e exemplificado. Finalmente, discutimos brevemente algumas observações recentes que desafiam o cenário aceito, o que mostra com clareza o caráter científico da Cosmologia atual.

Palavras-chave:
Formação de estrutura; galáxias; instabilidade gravitacional


We present here a pedagogical discussion of the process of structure formation (galaxies and beyond) in the Universe, with a minimal formalism and emphasis on the physical ideas that put the gravitational instability as the main agent. The key role of dark matter for the structure formation is stressed and exemplified. Finally, we briefly discuss some recent observations which defy the accepted scenario, and show clearly the scientific character of contemporary Cosmology.

Keywords:
Structure formation; galaxies; gravitational instability


1.

Os Problemas da Cosmologia na Sala de Aula

As primeiras décadas do século XX foram incrivelmente ricas para o desenvolvimento das Ciências físicas. É com frequência argumentado que “nunca os cientistas esclareceram tão rapidamente tantos assuntos” [1[1] B.L. Cline, Los creadores de la nueva física: los físicos y la teoria cuántica (Fondo de Cultura Económica, México, 1973).], afirmação muito pertinente se pensarmos o mundo “clássico” do século XIX e o contrastamos com a emergência da Relatividade e da Mecânica Quântica. Embora existem até hoje sequelas não resolvidas. Também à saga de cosmólogos que criaram os primeiros modelos “modernos”, devidos a Georges Lemaître (1894–1966), Alexander Friedmann (1888–1925), Willem de Sitter (1872–1934), Albert Einstein (1879–1955) e muitos outros. Estes modelos não teriam provavelmente ido além de curiosidades matemáticas/filosóficas sem o enorme impulso que os astrônomos deram para eles com as observações de um “novo Cosmos”, expandindo sua escala enormemente pela descoberta de existência dos “Universos-ilhas”1 1 A especulação de Kant consistiu em identificar as “neblichten Sterne” (estrelas nebulosas) como possíveis conjuntos de estrelas observadas a grande distância. Mais de um século depois o famoso debate entre Hebert Doust Curtis (1872–1942) e Harlow Shapley (1885–1972), realizado em Abril de 1920 [2], mostraria que Kant havia acertado em grande medida. Muitas “nebulosas” eram extragalécticas. de Immanuel Kant (1724–1804, quem fez a primeira especulação da presença de galáxias, estruturas que reunem enxames de bilhões de estrelas), e também com a chamada expansão de Hubble-Lemaître (atribuída a Edwin Hubble (1889–1953) e agora reconhecida como uma interpretação devida também a Lemaître) ou afastamento das galáxias [2[2] L. Paulucci, P.H.R.S. Moraes e J.E. Horvath, A Cosmologia na sala de aula (Livraria da Física, São Paulo, 2022).]. O elo das observações com os modelos cosmológicos levou à conclusão de que as galáxias se afastam umas de outras por causa da dinâmica própria do Universo, que não é estático como pensava Einstein, mas antes dinâmico como corresponde a alguns dos modelos de Friedmann-Lamaître-Robertson-Walker. A expansão do Universo desafia permanentemente a transposição didática para a sala de aula [3[3] J.E. Horvath, Revista Brasileira de Ensino de Física 42, e20200130 (2020).] e resulta um dos inúmeros problemas a ser resolvidos pelo professor para uma abordagem mínima no Ensino Médio.

Precisamente a ideia de que o Universo começou com uma tremenda expansão, num estado denso e quente que chamamos de Big Bang (onde as temperaturas podem ter atingido 1032K e as densidades estavam bem acima da densidade de saturação nuclear 2, 7×14gcm3), aparece como antagônico à ideia de vivermos hoje num Universo que mostra não somente galáxias, mas uma variedade de estuturas que devem ter aparecido quando o meio esfriou, permitindo o aglomeramento da matéria. Mas existe uma grande lacuna a ser preenchida para explicar e justificar este processo, suas causas físicas e como descreve o que observamos. Este é o problema da formação de estruturas, galáxias e além, que abordaremos aqui.

Levantamentos recentes mostraram que, embora tenha ocorrido uma notável atividade na produção de material didático para a sala de aula, existem temas que quase nem foram abordados no Brasil nos últimos 50 anos [4[4] P.C.S. Gonçalves, J.E. Horvath e P.S. Bretones, Ciência & Educação 28, e22044 (2022)., 5[5] P.C.S. Gonçalves, J.E. Horvath e P.S. Bretones, Revista Brasileira de Ensino de Física 44, e20210184 (2022).]. Este é o caso de vários processos importantes, tais como a geração da assimetria matéria-antimatéria (também denominada bariogênese), o confinamento dos quarks, a recombinação e a formação de estrutura entre outros. Sem uma cobertura adequada, resulta praticamente impossível introduzir estes assuntos na sala de aula além do nível superficial e discursivo. Esta carência motiva o presente trabalho, onde discutiremos o básico da formação de estrutura com um mínimo de formalismo, enfatizando a sequência do processo e seus fundamentos através principalmente de imagens e gráficos. Em resumo, o objetivo é o de embasar um conjunto de aulas que consiga colocar e justificar a passagem do Universo indiferenciado para o atual, visivelmente estruturado.

2.

Do Big Bang até o Começo da Formação de Estrutura

A construção científica de um quadro consistente para o Universo que observamos requer a identificação, elaboração teórica, observação e conferência dos processos propostos e suas consequências para levar ao que chamamos de “Ciência”, ou seja, conhecimento fundamentado e consensual, ao menos temporário e à procura de aperfeiçõamento e mudança quando necessário. No contexto contemporâneo existe uma tendência a eliminar a denominação de Ciências “duras” (Físicas) e “moles” (Biomédicas e Humanidades); mas no contexto que nos ocupa a diferença entre elas é importante: as Ciências “duras” se caracterizam por ter a Matemática como parte indissolúvel do logos, descrição e explanação lógica e quantitativa ao mesmo tempo. Assim, é importante notar que até o século XX a Cosmologia não estava nem de longe em condições de cumprir esta condição, característica das Ciências “duras”. De fato, ainda persiste uma imagem primitiva da Cosmologia como Ciência que pressupõe algo como uma especulação constante, baseada sim nos modelos matemáticos, mas com pouca “experimentação” ou verificação, quase a gosto do consumidor. Nada mais afastado da realidade atual, onde a Cosmologia está firmemente inserida no campo científico, sujeita a medidas e testes constantemente, embora é inegável o grau de contato com a Filosofia e outros ramos do pensamento humano, até pela natureza do próprio objeto de estudo.

Para vermos com maior clareza como isto funciona, começamos por observar que, com as evidências da expansão de Hubble-Lemaître, e “involuíndo” o Universo observado, chegamos fatalmente à ideia de que houve uma mudança radical do Universo primordial até o atual. Como mencinamos antes, temperaturas muitas ordens de grandeza maiores a qualquer sistema produzido em laboratório, e densidades extremas, muito maiores que as de um núcleo atômico, eram as características deste estado primordial do Universo. Não é este o lugar para discutir todos os eventos que pensamos aconteceram ao longo da história cósmica, mas um resumo gráfico de utilidade se mostra na Fig. 1 [2[2] L. Paulucci, P.H.R.S. Moraes e J.E. Horvath, A Cosmologia na sala de aula (Livraria da Física, São Paulo, 2022).]. Devemos notar que, em vez do tempo desde o Big Bang, os cosmólogos constumam utilizar uma variável denominada z (desvio para o vermelho ou redshift), nome que se refere a que a expansão de Hubble-Lemaître afasta as galáxias proporcionalmente à sua distância até nós, provocando o deslocamento das linas espectrais nesta interpretação. Como, por sua vez, o z é diretamente observável medindo as linhas dos espectros do hidrogênio, carbono etc. [2[2] L. Paulucci, P.H.R.S. Moraes e J.E. Horvath, A Cosmologia na sala de aula (Livraria da Física, São Paulo, 2022).], podemos dizer que cada galáxia leva um “cronômetro” que indica o tempo depois da origem onde se localiza. Por construção, a variável z é arbitrariamente grande próxima do Big Bang, e descresce até hoje onde temos z = 0 no entorno local.

Figura 1
A diferenciação no Universo aumenta com o tempo. O Universo atual é muito mais complexo e cheio de estrutura que o Universo primordial, que resultava quase totalmente homogêneo, e se assim não fosse nem poderiamos estar falando dele, já que nosso próprio ambiente é um mundo sólido dos quais deve haver trilhões. O cubo vermelho aponta para a época da formação de estrutura que discutiremos. O cubo branco seguinte se refere ao máximo observado na formação de quasares e galáxias normais, mas já sabemos que há estruturas jovens já em z = 15, muito cedo na história cósmica.

Esta passagem de um Universo homogêneo e indiferenciado para um muito estruturado nos ocupará no resto deste trabalho. Embora existam várias formas de começar a aglomeração de matéria que forma a estutura observada, o consenso entre os cosmólogos é que o ator fundamental é a própria gravitação, que atua amplificando as flutuações de densidade pré-existentes no Universo primordial. Estas flutuações na densidade são as sementes que permitem formar galáxias, aglomerados de galáxias e super-aglomerados de galáxias, além de vazios relativos na distribuição do Universo atual (Fig. 2). Deixando de lado a origem das flutuações-sementes, este quadro sugere que o processo de formação de estrutura pode ser integralmente calculado e conhecido, já que não há ingredientes físicos misteriosos na gravitação macroscópica. É verdade que o contexto é diferente, já que a matéria a se aglomerar localmente está, por sua vez, sujeita ao substrato que se expande (Hubble-Lemaître), mas isto não constitui um empecilho sério para estudar o processo.

Figura 2
Uma fatia do levantamento SDSS que contém 13 bilhões de galáxias [6[6] K. Abazajian, J.K. Adelman-McCarthy, M.A. Agüeros, S.S. Allam, K. Anderson, S.F. Anderson, J. Annis, N.A. Bahcall, I.K. Baldry, S. Bastian et al., Astron. Jour. 128, 502 (2004)., 7[7] J. Huchra, M. Davis, D. Latham e J. Tonry, Astrophys. Jour. 253, 423 (1982).], mostrando a distribuição das galáxias em larga escala, até z=0.4. Este gráfico representa as galáxias de todos os tipos, que se associam em aglomerados, super-aglomerados, vazios e filamentos, alguns visíveis a olho nu. O levantamento completo cobre uma fração aproximada de 1/20 do Universo observável.

Deste modo, somente é necessário supor que existiam as flutuações de densidade no Universo primordial grandes o suficientes para que o processo de instabilidade gravitacional começasse. Mas isto não resulta nada estranho: um pouco antes na história do Universo, a temperatura era tão elevada que os átomos não existiam, somente prótons, nêutrons, elétrons e fótons como partículas livres. Quando a temperatura ambiente baixou até uns milhares de graus, a matéria recombinou, formando átomos de hidrogênio, hélio e algo de lítio. Nesse momento, os fótons começaram a viajar desimpedidos, já que os átomos são neutros eletricamente. A descoberta acidental da Radiação Cósmica de Fundo (denominada RCF em adiante) é um dos eventos fundamentais para entender o sucesso do Big Bang. A ideia de George Gamow (1904–1968) de pensar que o Universo poderia ter passado por fases cada vez mais densas e quentes no passado o levou a conjecturar que, num dado momento, não poderia ter havido átomos neutros e todo o Universo teria estado totalmente ionizado. Assim, a luz (fótons) não conseguiriam viajar distâncias longas porque as cargas elétricas os impediriam. A possibilidade de detectar essa radiação quando finalmente ficou desimpedida e sua energia característica (kBTTrec) foi progressivamente se deslocando segundo o redshift z que vimos antes levou a Gamow a estimar que hoje essa radiação teria uma temperatura típica de uns 5 K. Assim, o anúncio de Robert Wilson (1936–) e Arno Penzias (1933–) que anunciaram um “ruído” desconocido na sua antena de rádio de alta sensibilidade não caiu num vácuo teórico. As medidas mostraram um espectro tipo corpo negro com temperatura T ∼ 2, 7 K, muito próxima à estimativa de Gamow. 50 anos depois as pequenas flutuações (inomogeneidades) na RCF são uma fonte de informação fundamental para a formação das estruturas.

A razão é que este processo de recombinação, que originou a RCF, guardou memória das flutuações que até esse momento eram comúns na matéria e a radiação. Assim, quando detectadas as inomogeneidades na RCF, essas variações de temperatura relativa da ordem de 105 apontam para variações de densidade Δρ/ρ, da mesma magnitude aproximadamente (regiões mais quentes eram mais densas à época da Recombinação). Mas isso na matéria visível. Acredita-se que, junto com essa “sopa” primordial, existia matéria escura, bem mais abundante. E deve ter sido essa matéria escura a que induziu a formação da estrutura “visível”, como veremos a seguir.

A evidência para considerar a matéria escura já vai cumprir um século, e começou com a observação de Fritz Zwicky (1898–1974) de que a matéria que havia em pares de galáxias não era suficiente para ficarem ligadas, em órbita mutua. Assim, Zwicky falava de “luz faltante”, ou seja, que havia matéria que gravita, mas não produzia luz. A forma moderna deste problema adotou o nome de matéria escura.

Embora o trabalho original de Zwicky estivesse relacionado a pares de galáxias, a evidência mais séria para a presença de matéria que não brilha é dada pela curva de rotação das galáxias, incluída a nossa. Na Fig. 3 temos as medidas da Via Láctea que mostra que até cerca de 20kpc a curva de rotação não declina [8[8] P. Mroz, A. Udalski, D.M. Skowron, J. Skowron, I. Soszyński, P. Pietrukowicz, M.K. Szymański, R. Poleski, S. Kozłowski e K. Ulaczyk. Astrophys. Journ. Lett. 870, 10 (2019).]. Se formos acreditar que a matéria que vemos (estrelas e gás visível), é tudo o que existe, a rotação além de alguns kpc teria velocidade muito menor à observada, caindo com a distância segundo r1/2, tal como calculado com as Leis de Kepler.

Figura 3
A curva de rotação da Via Láctea obtida com a observação das variáveis cefeidas clássicas, observadas até distâncias bastante grandes, longe do centro galáctico. A rotação kepleriana predita pela contagem de matéria deveria produzir uma queda na curva de rotação à direita da figura. Mas as observações de aglomerados e outros marcadores mostram que a velocidade de rotação se mantém quase constante a grandes distâncias do centro. A linha pontilhada em azul seria o esperado segundo a matéria visível, em claro conflito com as observações. (OGLE Collaboration, http://ogle.astrouw.edu.pl/cont/4_main/str/rotat_curv/).

Quando observamos estruturas maiores ainda, tal como os pares de Zwicky, mas também aglomerados de galáxias e estruturas maiores, a matéria escura parece não só ser necessária, mas sua percentagem ainda maior que para nossa galáxia. Em muitos casos as observações indicam que 95% da matéria deve ser escura. Até agora não houve identificação positiva aceita para nenhuma partícula que possa constituir a matéria escura. Os astrônomos sempre favorecem, no entanto, não uma partícula, mas corpos escuros como buracos negros que tenham sido produzidos no Universo jovem. Note-se que a população de buracos negros produzidos pela morte das estrelas não entra nesta consideração, e que os processos primordiais que poderiam ter induzido uma formação copiosa de buracos negros são muito incertos. É perfeitamente possível postular que buracos negros primordiais existam, e sua procura por argumentos variados é uma tarefa comúm, e os especialistas adotam uma atitude muito otimista insistindo com que são a matéria escura mais “natural” e ainda que existem evidências indiretas da sua presença [9[9] A. Escrivà, F. Kuhnel e Y. Tada, arXiv:2211.05767 (2022).]. Que esta componente hipotética esteja presente e seja numerosa o suficiente quanto para preencher toda a fração de massa necessária (quase 22% da densidade crítica, vide abaixo e Ref. [2[2] L. Paulucci, P.H.R.S. Moraes e J.E. Horvath, A Cosmologia na sala de aula (Livraria da Física, São Paulo, 2022).]) não é nada evidente para nós, bastante menos entusiastas pelo assunto.

Por quê trouxemos a matéria escura para a discussão da formação de estrutura? Em primeiro lugar, se ela existe, participou do processo já que está nos halos galácticos. Mas as coisas podem ser ainda mais complexas: a presença de matéria escura, que não interage com os fótons, pode ter conservado as flutuações, que teriam crescido nela quando o Universo ficou dominado pela matéria (isto é, até antes da Recombinação). Ou seja, as flutuações existem na matéria bariônica e na matéria escura. Mas na matéria bariônica não poderiam ter crescido, já que os fótons “apagaram” essas pequenas irregularidades, enquanto na matéria escura, que não é enxergada pelos fótons, manteve e fez crescer as flutuações ainda antes da Recombinação. A matéria escura pode assim ter colapsado, formando poços de potencial gravitacional. Desta forma, o consenso é que a matéria bariônica “caiu” nas regiões onde já existiam concentrações de matéria escura quando recombinou. Existe um número considerável de cosmólogos que não tão somente está convencido da existência da matéria escura, mas também do seu papel fundamental na formação de estrutura, sem a qual não haveria galáxias tal como as conhecemos [10[10] J.E. Horvath, G. Lugones, M. Porto, S. Scarano e R. Teixeira, Cosmologia Física (Livraria da Física, São Paulo, 2006).]. Em outras palavras, a matéria escura é absolutamente indispensável no modelo de formação de estruturas do cenário ΛCDM. Isto convenceu muitos cosmólogos e astrofísicos de que, além das evidências dinâmicas (por exemplo, as curvas de rotação galácticas) interpretadas em termos da matéria escura, a Cosmologia hoje favorecida aponta para sua existência através justamente da formação de estruturas.

A Fig. 4 exemplifica este cenário por meio de uma analogia simples, de fácil compreensão por alunos e professores. É evidente que uma analogia deve ser tomada com precaução, neste caso a jaqueta impermeável não é “matéria escura” e a água não é “matéria bariônica”, mas a relação da formação de poças de potencial gravitacional na matéria escura primeiro, como explicado no texto, que depois atraem os bárions representados pela água é o cerne no assunto. Esta é a forma de entender a formação de estruturas vigente no modelo ΛCDM.

Figura 4
Uma analogia simples para o processo de formação de estrutura. As flutuações na densidade de comprimento λ na matéria escura (tecido preto) estão presentes já que esta não interagia com os fótons e estes não as apagaram. Assim, estas crescem e formam “poças” de potencial gravitacional (a). A matéria bariônica ordinária (representada pela água em (b)), cai nas poças atraída por estas e aglomera, formando as galáxias e grupos de galáxias, ou mais exatamente, o que vemos delas, segundo a imagem em (c).

Até os vazios observados na distribuição de matéria do Universo, cuja maior escala é de 50–100 Mpc, nos dizem como a estrutura se formou: sendo a velocidade peculiar das galáxias da ordem de 100km/s, uma galáxia com velocidade típica, por exemplo, demoraria 25 Ganos ou mais para atravessar uma grande região vazia. Este tempo é muito maior do que a idade do Universo. Portanto, as galáxias não se formaram em regiões hoje vazias, posteriormente migrando para fora como poderíamos pensar. O padrão observado hoje já existia no Universo primordial.

3.

A Instabilidade Gravitacional

A instabilidade gravitacional é o mecanismo primário que pretende explicar o porquê de hoje o Universo é mais irregular e estruturado que na Recombinação. Existem outros fatores importantes, e os estudos sobre a formação de estrutura do Universo dependem, portanto, deles, que incluem a composição e oscilações no gás quente do Universo primordial até o próprio processo evolutivo galáctico, com a formação e morte das estrelas.

Deste modo, estes estudos são feitos a partir de complexas simulações computacionais, nas quais os ingredientes e hipóteses iniciais são variados e os resultados comparados às observações. Um exemplo destas simulações é o trabalho do Illustris TNG [11[11] The Illustris Simulation, disponível em: https://www.illustris-project.org/.
https://www.illustris-project.org/...
], um dos projetos dedicados à simulação da estrutura em larga escala do Universo, com resultados bastante consistentes com o modelo cosmológico mais favorecido2 2 O modelo cosmológico mais aceito hoje, denominado ΛCDM, admite uma fração aproximada de 23% de matéria escura “fria” (que significa “não-relativística ao momento da Recombinação”) até agora não detectada, uma densidade de energia essencialmente constante, representada pela “constante cosmológica” Λ (originalmente introduzida por Einstein, e depois abandonada por ele, mas que cumpre o papel de “acelerar” a expansão conforme observado) e ∼ 4% de bérions ordinérios apenas, apontando para sermos um resíduo do Universo e não sua componente principal [2, 10]. (ΛCDM) e os dados simulados. As simulações iniciam de quando o Universo tinha cerca de 300 000 anos até os dias atuais e incluem, além do efeito gravitacional, a expansão do Universo, a dinâmica dos gases e a formação de estrelas e buracos negros. No site do projeto Illustris [11[11] The Illustris Simulation, disponível em: https://www.illustris-project.org/.
https://www.illustris-project.org/...
] é possível assistir a vídeos da evolução temporal obtida das simulações que calculam o desfecho da instabilidade gravitacional.

Como é que esta instabilidade funciona? Uma distribuição irregular de matéria qualquer é instável sob a influência da gravidade, ficando cada vez mais irregular com o tempo. A razão básica é que uma região mais densa exerce uma maior atração gravitacional sobre vizinhos, “puxando” mais matéria, o que produz um aumento da força gravitacional, “puxando” mais matéria, e assim por diante, em um processo que se retroalimenta, exemplificado na Fig. 5. Esta é a essência da instabilidade gravitacional.

Figura 5
Representação pictórica do processo de instabilidade gravitacional. Regiões inicialmente mais densas atrairão mais fortemente a matéria ao redor do que regiões menos densas, aumentando a diferença de densidade entre as diferentes regiões. Este processo é o principal responsável pelos filamentos e espaços vazios observados no Universo.

Mais formalmente, a instabilidade gravitacional estudada por James Jeans no século XIX se desenvolve quando uma pequena inomogeneidade (flutuação) na densidade atrai a matéria das vizinhanças, amplificando-se pelo fato de incorporar mais massa e assim atrair ainda mais a matéria circundante. Jeans observa inicialmente é que o gás inicial deve satisfazer o Teorema do Virial, ou seja, repartir a energia entre a energia da gravitação e energia interna da nuvem antes de qualquer colapso. O Teorema do Virial não é um tecnicismo inútil, já que a Astrofísica que lida com fluidos faz uso permanente desta relação, que precisa ser satisfeita para qualquer fluido autogravitante que tenha tempo suficiente para trocar energia entre as componentes. O equilíbrio Virial se estabelece até antes que o equilíbrio hidrostático [10[10] J.E. Horvath, G. Lugones, M. Porto, S. Scarano e R. Teixeira, Cosmologia Física (Livraria da Física, São Paulo, 2006).]. O Teorema do Virial pode ser justificado invocando a troca de energia pelas interações das partículas do gás, e diz que se transcorrer tempo suficiente Eint|Egrav|. De fato, uma demonstração rigorosa, mostra que esta relação é mais precisamente

(1) 2 E i n t = | E g r a v | ,

ou seja, somente um fator “2” diferente da igualdade exata. As barras do valor absoluto foram introduzidas porque a energia gravitacional é sempre negativa, mas a energia total é negativa somente se a nuvem está ligada. Este será o caso de uma região que vai formar uma galáxia, a gravitação local é para ela mais importante que a expansão de Hubble-Lemaître global.

Em uma região esférica de gás com raio genérico R, podemos adotar a energia interna térmica (das partículas que compo?m o gás) como a expressão para um gás monoatômico: Eint=32NkBT, onde N é o número de partículas no sistema, kB a constante de Boltzmann e T a temperatura do gás. Ainda é possível relacionar o número de partículas neste sistema com sua massa total M, usando o peso molecular médio, μ, das partículas, o que resulta em Eint=32MμmH (onde mH é a massa do átomo de hidrogênio). Para a mesma região temos que a energia gravitacional é Eint=35GM2R. Lembrando que a massa da esfera também pode ser escrita como M=4π3ρR3, o quociente das duas energias como função do raio da esfera gasosa é [2[2] L. Paulucci, P.H.R.S. Moraes e J.E. Horvath, A Cosmologia na sala de aula (Livraria da Física, São Paulo, 2022).]

(2) | E g r a v | E i n t R 2 .

Vemos da eq. (2) que existe um tamanho crítico, que chamaremos de comprimento de Jeans, RJ, para o qual o quociente acima é 1, ou seja, as duas energias se igualam. Este valor é dado por

(3) R J = ( 15 k B T 4 π μ m H ρ G ) 1 / 2 ,

Assim, massa de Jeans, contida na esfera é

(4) M J = 4 3 π ρ R J 3 = ( 5 k B T μ m H G ) 3 / 2 ( 3 4 π ρ ) 1 / 2 .

A eq. (4) mostra que quando R é suficientemente pequeno (esferas pequenas), a energia interna é maior que a gravitacional. Portanto, assim a esfera começa a contrair, a contração é detida pela energia interna. Em esferas com raios maiores que RJ, ou, de forma equivalente, de massas maiores que MJ, a gravitação dominará e o sistema poderá colapsar. Somente massas acima da massa de Jeans (ou suas análogas com outros ingredientes na Eint) podem colapsar já que a energia gravitacional domina, o que justifica a massa mínima que pode entrar em colapso para formar estrutura [10[10] J.E. Horvath, G. Lugones, M. Porto, S. Scarano e R. Teixeira, Cosmologia Física (Livraria da Física, São Paulo, 2006).]. Uma solução da equação de movimento newtoniana para o desvio respeito à densidade média do fundo, δ=δρρ=ρρ¯ρ¯ mostra que esta cresce exponencialmente como

(5) δ ( t ) = δ 0 e 4 π ρ ¯ t ,

com uma escala de tempo que regula o crescimento da instabilidade dada por tJ=1/4πρ¯, a qual fica cada vez mais rápido conforme a região se adensa, como esperado. Este é o conceito original e importante do trabalho de James Jeans (1877–1946).

Podemos revisitar agora, no contexto cosmológico, e segundo nossa descrição anterior, o crescimento das inomogeneidades δ(t). Sabemos que imediatamente antes da Recombinação a matéria e a radiação estavam fortemente acopladas, e por tanto a velocidade do som era essencialmente a correspondente a um gás ultrarrelativístico cs2=c2/3 . Quando a Recombinação finalmente acontece, a velocidade do som passa subitamente a ser a de um gás ideal cs2=5kBT/3m. A massa mínima que pode formar estrutura antes da Recombinação é enorme (1014M) já que os fótons estão juntos na mistura, ou seja, antes da Recombinação não era possível formar pequenas estruturas. Mas com a mudança no estado do fluido, depois da Recombinação a massa capaz de colapsar ficou muito menor, 106M. Embora o colapso seja em teoria possível após a Recombinação, as perturbações em escalas entre 106M e 1014M foram as apagadas pela interação da matéria bariônica com os fótons, e assim não haveria possibilidade de formação de estrutura porque as flutuações na matéria bariônica ordinária estariam em falta. É por isto que a presença de matéria escura, que não interage com os fótons, pode ter conservado as flutuações, que teriam crescido nela assim que o Universo ficou dominado pela matéria (isto é, até antes da Recombinação). Ou seja, as flutuações existem na matéria bariônica e na matéria escura, mas so na matéria escura podem colapsar formando poços de potencial gravitacional. Esta é a razão pela qual acredita-se que a matéria bariônica “caiu” nas regiões onde já existiam concentrações de matéria escura quando recombinou (Fig. 5). Existe um número considerável de cosmólogos que não tão somente está convencido da existência da matéria escura, mas também do seu papel fundamental na formação de estrutura, sem a qual não haveria galáxias tal como as conhecemos.

Um tratamento mais rigoroso precisa utilizar as equações de Friedmann-Lemaître-Robertson-Walker perturbadas, com a presença da matéria escura, e avaliar como o cenário de Jeans funciona enquanto a densidade ambiente é diluída pela expansão cósmica. O resultado é hoje bem conhecido: o crescimento do δ(t) já não resulta exponencial como era na teoria newtoniana livre, fato atribuível à expansão de Hubble, mas a essência física está refletida no cálculo newtoniano de Jeans mostrado acima.

4.

O Espectro de Potência

Para ligar os conceitos propostos do crescimento das flutuações com as estruturas reais, devemos lidar com amostras que contém grandes números de galáxias. Sabemos que há uma distribuição (também chamada de espectro) das flutuações que levaram ao crescimento de galáxias, aglomerados de galáxias, super-aglomerados de galáxias, etc., e que essa distribuição está determinada pelos processos físicos no Universo primordial que contribuem para cada comprimento específico, o qual define uma massa de forma similar à eq. (4).

Agora bem, observando a distribuição das galáxias e outras estruturas, pode-se reconstruir o espectro de potência P(k), definido como a amplitude das flutuações em cada frequência ou número de onda k, e comparar com as predições dos modelos teóricos. Isto é o que a analogia das ondas do mar da Fig. 6 quer exemplificar.

Figura 6
Perturbações na superfície do mar levam a existência de ondas em várias escalas de comprimento, desde aquelas que quebram na praia até pequenas ondulações de cm. Medindo o padrão de flutuações poderíamos, em princípio, reconstruir os processos que produziram essa distribuição. É exatamente isto que é feito quando estudamos a estrutura do Universo.

Espera-se que como a gravitação é uma força de longo alcance, a formação das estruturas pela instabilidade de Jeans deveria acontecer a partir de um P(k)kn em forma de lei de potência, pelo menos dentro de uma grande faixa de comprimentos. Embora esse índice n poderia ser a priori positivo ou negativo, os modelos inflacionários em geral prevêem um espectro de potência com n = 1, chamado de espectro de Harrison-Zel’dovich [10[10] J.E. Horvath, G. Lugones, M. Porto, S. Scarano e R. Teixeira, Cosmologia Física (Livraria da Física, São Paulo, 2006).]. Para muitos, medir algo como n = 1 é prova de que aconteceu um estágio inflacionário no Universo primordial, para outros, esta inferência pode ser muito enganosa. P(k) é obtido medindo a chamada função de auto-correlação das galáxias, ou seja, a probabilidade de achar duas galáxias para uma distância d, o qual mede o grau de aglomeração delas respeito de uma distribuição completamente aleatória.

Uma forma alternativa e mais simples de apreciar o que expressa o espectro de potência P(k) pode ser escrita em termos da flutuação de massaδMM, interpretada como a massa média das estruturas, e que resulta do tipo

(6) δ M M = A M α .

A relação entre os índices n do P(k) e o índice α da eq. (6) não é difícil de obter, o resultado é α=12(1+n3), e por tanto o espectro de Harrison-Zel’dovich “puro” corresponderia a um α=2/3. Devemos insistir em que esse espectro é uma predição genérica dos modelos inflacionários. As medidas da RCF, de fato, favorecem um índice n muito próximo de 1, e assim há razões para esperar que as galáxias e estruturas maiores mostrem evidência do mesmo espectro que aquele obtido para as “manchas” do RCF. Os resultados das medidas mais recentes confirmam essa expectativa: o espectro de potência da estrutura presente no Universo também segue a forma de Harrison-Zel’dovich (Fig. 7)

Figura 7
Resultados medidos do espectro de potência da estrutura do Universo utilizando amostras de galáxias do SDSS (preto), o RCF (verde) e outros métodos. O eixo horizontal é o número de onda k=2π/λ em unidades da constante de Hubble sem dimensões h=H/70kms1Mpc1. A identidade das flutuações na RCF (verde) e na matéria é evidente perto do máximo, tal como era esperado da teoria (Créditos: M. Tegmark et al. [12[12] M. Tegmark, M.A. Strauss, M.R. Blanton, K. Abazajian, S. Dodelson, H. Sandvik, X. Wang, D.H. Weinberg, I. Zehavi, N.A. Bahcall et al., Phys. Rev. D 69, 103501 (2004).]).

Com estes resultados da formação da estrutura, ainda não respondemos à pergunta da sequência temporal que esta seguiu. No cenário da matéria escura (dita “fria”, para indicar que ela já era não relativística, muito menos energética que o meio cósmico com temperatura T, no momento da Recombinação), que leva a denominação de CDM em inglês, já vimos que as massas maiores do que 106M são as que cresceram primeiro, e assim as galáxias teriam sido formadas por estruturas menores que fusionaram (isto é chamado de cenário bottom-up na literatura especializada). No entanto, se a matéria escura fosse relativística no momento da Recombinação, só estruturas muito massivas podem ter começado a colapsar, e assim as galáxias ter-se-iam formado pela fragmentação de estruturas maiores (ou cenário top-down). Hoje há uma forte preferência pelo primeiro cenário, em boa parte devida a concordância com o espectro de potência da Fig. 7, mas veremos depois que um Universo com matéria escura seja relativística ou outra possibilidade mais exótica ainda, não está completamente excluído. Uma última observação relevante a respeito da formação de estrutura é que, devido às evidências que apontam para a presença de matéria escura em galáxias e aglomerados, inferimos que a luz e a massa não tem a mesma distribuição espacial. Este quociente massa-luminosidade M/L é variável com a escala e resulta em geral >> 1. As galáxias em geral não necessariamente se formaram em regiões onde a densidade seja muito alta, mas alternativamente pode ser que sejam produto somente do picos mais elevados da distribuição de densidade.

5.

Outras Observações da Estrutura do Universo I: as Galáxias Mais Jovens e o Dilema da sua Formação

Além do estudo geral, existem fatos concretos que vale a pena mencionar relacionados com o problema da formação de estrutura. Já havia evidência de que a mais antiga estrutura conhecida antes de 2022, uma galáxia muito tênue, denominada MACS1149-JD1, cujo espectro a localiza em z>10 colocava um limite inferior à formação de estrutura. Mas foi recentemente determinado que existem objetos ainda mais distantes, e também que estas galáxias não são tão raras. O Universo com 1/10 da escala atual já continha estrutura significativa (Fig. 8).

Figura 8
Dois exemplos de galáxias detectadas pelo telescópio JWST que se formaram somente 500 milhões de anos depois do Big Bang. Estas galáxias não deveriam existir segundo o cenário hierárquico, mas estão aí e têm massas muito grandes, muito além do esperado. Não é claro até que ponto isto descarta a formação pela fusão de 10000 “blocos” de 106M cada, embora este processo parece agora mais improvável (Créditos: JWST e I. Labbé et al. [13[13] I. Labbé, P. Dokkum, E. Nelson, R. Bezanson, K.A. Suess, J. Leja, G. Brammer, K. Whitaker, E. Mathews, M. Stefanon et al., Nature 616, 266 (2023).]).

Isto levanta um problema sério para o modelo ΛCDM e a instabilidade de Jeans como formadora de estrutura: a presença de galáxias com massas 106M não era esperada para redshiftsz15, que corresponde a menos de 500 milhões de anos depois do Big Bang. Não haveria tempo para estes “blocos” fusionarem, e não deveriam existir [13[13] I. Labbé, P. Dokkum, E. Nelson, R. Bezanson, K.A. Suess, J. Leja, G. Brammer, K. Whitaker, E. Mathews, M. Stefanon et al., Nature 616, 266 (2023).]. Mas as observações do JWST não deixam dúvidas da sua realidade. Isto é um exemplo muito bom do que afirmamos no começo a respeito do caráter científico da Cosmologia atual: os dados concretos provocam uma revisão no cenário aceito, que pode ou não sofrer modificações ou até ser abandonado. A Ciência não produz certezas, antes é um contínuo exercício de crítica e revisão, para achar razões cada vez mais sólidas e abrangentes para explicar a Natureza. Porém, é muito importante dizer que, ainda que os problemas levem finalmente a desconsiderar o modelo ΛCDM, a consistência das explicações obtidas deste para uma série de assuntos além da formação de estruturas não será nada fácil de substituir. “Os cientistas não abandonam suas teorias meramente porque os dados as contradizem”, expressou o filósofo da Ciência Imre Lakatos (1922–1974) [14[14] I. Lakatos e A. Musgrave, Criticisms and the Growth of Knowledge (Cambridge University Press, Cambridge, 1970).], e certamente haverá um duro e prolongado confronto envolvendo praticamente toda a comunidade científica se as evidências (“anomalias” no sentido de Thomas Kuhn [15[15] T. Kuhn, The structure of Scientific Revolutions (University Chicago Press, Chicago, 1962).] forçam uma revisão profunda). Este é um dos eventos mais interessantes nas Ciências, e talvez tenhamos o privilégio de participar, sequer indiretamente ou como espectadores) no seu desenvolvimento. Mas não é simplesmente substituir uma teoria por outra, até porque a alternativa tem que explicar todo o enorme conjunto de dados acumulado, e propor ideias coerentes e testáveis para avançarmos.

6.

Outras Observações da Estrutura do Universo II: a Coevolução das Galáxias com os Buracos Negros Supermassivos

O que ninguém esperava até uns 30 anos atrás é que o processo de crescimento das flutuações estivesse ligado à presença de buracos negros supermassivos presentes possivelmente em todas as galáxias. Com efeito, os centros galácticos, tais como a nossa Via Láctea, contém massas entre 106M e 109M em regiões espacialmente minúsculas. Como as velocidades das estrelas mais próximas a eles (nos chamados bojos galácticos) está correlacionada (maior é a massa estimada, maior a velocidade das estrelas [16[16] D. Garofalo, D.J. Christian, C. Hames, M. North, K. Thottam e A. Eckelbarger, The Open Journal of Astrophysics 6, 27 (2023).]), é claro que a formação da galáxia teve a ver com esses buracos negros, que estão aí “desde sempre”. Em outras palavras, a formação dos buracos negros centrais e a da galáxia é simbiótica (Fig. 9). Esta característica não aparece em absoluto na discussão da instabilidade da Seção 3, que precede por décadas a determinação dos buracos negros centrais a (todas?) as galáxias. Mas a observação da atividade galáctica, na forma de quasares e outros núcleos ativos, sugere que esta última é consequência da presença de um buraco negro de grande massa, e que em algum momento essa atividade se detém, deixando uma galáxia ordinária com um “monstro” quieto no seu centro (Fig. 10).

Figura 9
A correlação entre a massa do buraco negro central com a chamada dispersão de velocidades σ das estrelas na região central faz pensar que a formação foi simultânea. Note-se que alguns buracos negros devem ter até 10 bilhões de massas solares, ou seja, algo como 10% da massa da Via Láctea concentrada em uma região minúscula [10[10] J.E. Horvath, G. Lugones, M. Porto, S. Scarano e R. Teixeira, Cosmologia Física (Livraria da Física, São Paulo, 2006).].
Figura 10
A “sombra” do buraco negro supermassivo no centro da galáxia próxima M87, obtida pelo Event Horizon Telescope. Um “mosaico” de dados de vários telescópios em lugares distantes da Terra foi composto para mostrar a chamada “sombra” do objeto central. Isto é possível somente para algumas galáxias muito próximas, mas mostra diretamente a presença dessa massa central (Créditos: EHT Team).

Como consequência dessa hipótese, “nosso” buraco negro, localizado na região chamada de Sgr A* no centro galáctico tem 3×106M aproximadamente, mas não se manifesta muito. É dito que está “adormecido”, sem acretar gás, e somente cada tanto produz um surto breve de fótons, quando alguma nuvem de gás ou estrela é engolida [10[10] J.E. Horvath, G. Lugones, M. Porto, S. Scarano e R. Teixeira, Cosmologia Física (Livraria da Física, São Paulo, 2006).]. Em suma, não vivemos num quasar, embora há bilhões de anos a Via Láctea pode ter passado por uma fase assim, que já acabou faz muito tempo.

Como a última época que observamos hoje diretamente é a da Recombinação, seguida do chamado Desacoplamento da matéria com a radiação, evento que produziu o RCF quando o Universo ficou transparente em z1100, e as primeiras estrelas e quasares somente se formaram em z1020, existiu um longo período onde o Universo não tem fontes de energia “internas”, e só se expandiu e esfriou. Esta é a chamada Era da Escuridão, já que não há muito para ser observado. Somente quando apareceram as primeiras estrelas e quasares o gás do Universo voltou a ser parcialmente reionizado pela radiação destas fontes. Assim, é comum se referir a esta época em torno de z1020 como a Reionização.

7.

Outras Observações da Estrutura do Universo III: Superestruturas “Que Nem Deviam Estar Aí”

Vimos diretamente da Fig. 2 que uma variedade de filamentos, vazios e outras inomogeneidades foi detectada nos maiores levantamentos SDSS e outros efetuados. Mas para estudá-los utilizando simulações numéricas, devemos trabalhar no regime da evolução não linear, já que δ1 quando crescem o suficiente. Mas para ser consistente com as hipóteses de homogeneidade e isotropia cosmológicas (“o Universo não tem direção preferencial, nem bordas ou posições privilegiadas tais como um “centro””, a estrutura presente nas maiores escalas deveria se “diluir” totalmente muito antes da escala do raio de Hubble 5000Mpc. No entanto, há trabalhos que mostram nos dados enormes estruturas, e proposto desde um ponto de vista empírico que a estrutura não acaba realmente, sendo auto-similar até os limites da amostra. Nestes modelos fractais, a estrutura resulta invariante de escala como produto de um mecanismo de auto-organização. Antes dos primeiros levantamentos de grande porte como o SDSS, padrões totalmente inesperados, como a “Grande Muralha” de quasares de Hércules-Corona Borealis [17[17] I. Horvath, Z. Bagoly, J. Hakkila e L.V. Toth, Astron.Astrophys. 584, A48 (2015).] (não confundir com a Grande Muralha original [18[18] M.J. Geller e J.P. Huchra, Science 246, 897 (1989).] não é mais que uma “pequena mureta” 10 vezes menor em comparação) em escalas de 3000Mpc (Fig. 11) eram considerados impossíveis, e de fato o próprio Princípio Cosmológico e o tratamento do Universo atual como um fluido homogêneo e isotrópico acima de uma escala de comprimento é agora questionado, já que este tipo de estrutura ocupa metade do raio de Hubble. Para termos uma perspectiva consistente, devemos lembrar que para apresentar uma estrutura auto-similar ou periodicidade deve haver mecanismos físicos para produzir perturbações que levem a esta estrutura. Assim, o estudo da estrutura no Universo precisa continuar e resolver estas e outras questões de grande interesse cosmológico.

Figura 11
Uma imagem pictórica da Grande Muralha de Hércules-Corona Borealis, uma associação de uma escala comparável à do Universo observado. A suposição de isotropia e homogeneidade do Princípio Cosmológico é contestada baseada neste tipo de estrutura “que não poderia existir”.

Gostariamos por fim destacar que as flutuações que levaram à formação da estrutura podem ser consideradas desde o ponto de vista do Princípio Antrópico, ou seja, desde sua relevância para o aparecimento da vida (Fig. 1). Isto tem sido enfatizado por Martin Rees [19[19] M. Rees, Apenas seis números (Editora Rocco, São Paulo, 2000).], quem observou que se a amplitude tivesse sido um pouco menor, o gás primordial nunca se condensaria em estruturas ligadas, e assim o material enriquecido em elementos pesados pelas estrelas ficaria disperso no espaço e não permitiria uma evolução química posterior, com uma sequência de gerações estelares. Agora, se a amplitude houvesse sido um pouco maior, regiões muito maiores do que aglomerados de galáxias se formariam muito cedo na história do Universo, e não se fragmentariam em estrelas, mas formariam vastos buracos negros. O gás remanescente seria aquecido a temperaturas tais que emitiria raios-X e raios gama, de tal forma que o material enriquecido em elementos pesados pelas estrelas seria aprisionado nos buracos negros. Nada disto favoreceria um Universo onde a vida pudesse florescer. A existência (inegável) de seres humanos pode assim ser utilizada para entender o processo de formação de estruturas, pelo menos suas características mais gerais, e particularmente a produção e evolução das abundâncias químicas que levaram o Universo atual à forma e conteúdo que tem [20[20] K.A. Horvath, P.S. Bretones e J.E. Horvath, Revista Brasileira de Ensino de Física 42, e20200160 (2020).].

8.

Conclusões

Temos abordado neste artigo o tema da formação da estrutura no Universo, desde um ponto de vista adequado para trabalhar em sala de aula. O conteúdo formal foi minimizado para esclarecer a física do processo e a sequência temporal que leva à passagem de um Universo quase homogêneo até um Universo estruturado, tal como hoje o vemos. As observações jogam um papel central para isto, exemplificando como a Cosmologia é uma disciplina madura e com forte conteúdo empírico, fato que precisa ser destacado perante os alunos. Este tema específico, o da formação das estruturas, foi apontado como um dos que menos atenção recebeu nos últimos 50 anos dentro da literatura educativa em Cosmologia em Gonçalves, Horvath e Bretones [4[4] P.C.S. Gonçalves, J.E. Horvath e P.S. Bretones, Ciência & Educação 28, e22044 (2022).].

Embora uma série importante de fatos foi desconsiderada (por exemplo, a evolução dos tipos de galáxias), o cenário inteiro pode ser acompanhado. Não menos importantes são as observações mais atuais que desafiam a compreensão dentro daquele cenário: a coevolução dos buracos negros supermassivos com as galáxias, a detecção de galáxias de massas muito grandes muito cedo na história do Universo, e a presença de estruturas extremas que não encaixam facilmente dentro do Universo homogêneo e isotrópico considerado como padrão.

A construção de uma disciplina científica como a Cosmologia segue padrões lógicos e temporais que resultam difíceis de transmitir aos alunos. Em particular, mostra como o Positivismo do século XIX estava teorizando este processo de forma errada. O conhecimento cosmológico tem altos e baixos, controvêrsias da mais variada espécie (por exemplo, a debatida por Shapley e Curtis em 1920, ou seja a natureza das “nebulosas” observadas), dogmatismo em bom grau que resulta tão indesejável quanto presente (vide Ref. [21[21] E. Lerner, An Open Letter to the Scientific Community, disponível em https://cosmology.info/org/open-letter-on-cosmology.html. Acessado em 17 de Novembro de 2023.
https://cosmology.info/org/open-letter-o...
]), interpretações forçadas de fenômenos que viesaram o rumo posterior [22[22] C.C. Silva e A. Bagdonas, Enseñanza de las Ciencias 1, 2496 (2009)., 23[23] D.L. Soares, Boletim da Sociedade Astrônomica Brasileira 25, 21 (2006).] e otros problemas. Mas além do Positivismo e com base na realidade das observações e na necessidade de dar uma explicação abrangente e simultânea ao Universo observado, constituiu-se em uma disciplina totalmente científica e de fronteira (embora existem preocupações concretas a respeito dos “deslocamentos cognitivos” que podem acontecer se algumas metodologias e conceitos sui generis da Cosmologia acabam por ser adotados [24[24] H. Kragh, arXiv:1702.05648 (2017).].

Agora bem, apesar destas características, ou talvez por elas mesmas, a discussão em sala de aula cobra uma importância especial. A Base Nacional Comúm Curricular introduz conceitos de Cosmologia em várias ocasiões [25[25] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Base Nacional Comum Curricular (Secretaria da Educação Básica, Brasília, 2017).], embora o diálogo necessário com as outras Ciências é insuficiente, e com as disciplinas de História inexistente. A Filosofia ficou mais prejudicada ainda nestas reformas, e assim destacar os conceitos, processos e fundamentos expostos acima é virtualmente impossível. Não há dúvida do caráter interdisciplinar da Cosmologia, a exposição nesses termos é imperativa e resulta na construção de pontes importantes com o resto do conhecimento humano [20[20] K.A. Horvath, P.S. Bretones e J.E. Horvath, Revista Brasileira de Ensino de Física 42, e20200160 (2020)., 26[26] L.C. Jafelice, M.L.S.L. Freitas, G.B.C. Fernandes e L.A.L. Medeiros, Astronomia, Educação e Cultura: abordagens transdisciplinares para os vários níveis de ensino (Editora da UFRN, Natal, 2010).]. Há muito material disponível (o levantamento em [5[5] P.C.S. Gonçalves, J.E. Horvath e P.S. Bretones, Revista Brasileira de Ensino de Física 44, e20210184 (2022).] pode ser consultado) para elaborar sequências didáticas significativas com estes conteúdos, colocados agora mais próximos da sala de aula. Algumas propostas concretas estão nas Refs. [27[27] A.F. Nascimento Júnior, Ciência & Educação (Bauru) 9, 277 (2003)., 28[28] H. Santos, J. Cilento, A. Guerra e J.C. Reis, em: Astronomia e modelos cosmológicos: relato de uma sequência didática a partir da codocência. Atas do XXIII SNEF (Salvador, 2019).].

Referências

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  • [27]
    A.F. Nascimento Júnior, Ciência & Educação (Bauru) 9, 277 (2003).
  • [28]
    H. Santos, J. Cilento, A. Guerra e J.C. Reis, em: Astronomia e modelos cosmológicos: relato de uma sequência didática a partir da codocência. Atas do XXIII SNEF (Salvador, 2019).
  • 1
    A especulação de Kant consistiu em identificar as “neblichten Sterne” (estrelas nebulosas) como possíveis conjuntos de estrelas observadas a grande distância. Mais de um século depois o famoso debate entre Hebert Doust Curtis (1872–1942) e Harlow Shapley (1885–1972), realizado em Abril de 1920 [2[2] L. Paulucci, P.H.R.S. Moraes e J.E. Horvath, A Cosmologia na sala de aula (Livraria da Física, São Paulo, 2022).], mostraria que Kant havia acertado em grande medida. Muitas “nebulosas” eram extragalécticas.
  • 2
    O modelo cosmológico mais aceito hoje, denominado ΛCDM, admite uma fração aproximada de 23% de matéria escura “fria” (que significa “não-relativística ao momento da Recombinação”) até agora não detectada, uma densidade de energia essencialmente constante, representada pela “constante cosmológica” Λ (originalmente introduzida por Einstein, e depois abandonada por ele, mas que cumpre o papel de “acelerar” a expansão conforme observado) e 4% de bérions ordinérios apenas, apontando para sermos um resíduo do Universo e não sua componente principal [2[2] L. Paulucci, P.H.R.S. Moraes e J.E. Horvath, A Cosmologia na sala de aula (Livraria da Física, São Paulo, 2022)., 10[10] J.E. Horvath, G. Lugones, M. Porto, S. Scarano e R. Teixeira, Cosmologia Física (Livraria da Física, São Paulo, 2006).].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Ago 2023
  • Revisado
    06 Out 2023
  • Aceito
    06 Out 2023
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