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Os trabalhos de Gödel e as denominadas ciências exatas: em homenagem ao centenário do nascimento de Kurt Gödel

Gödel works and the named exact sciences: to honor centenary of the birth of Kurt Gödel

Resumos

Após uma breve resenha da vida de Gödel, assinalando as origens de suas tradições intelectuais, são analisados o seu teorema da completude, o seu trabalho de tese, o teorema da incompletude e o teorema sobre a impossibilidade de demonstrar a consistência de sistemas formais complexos dentro do mesmo sistema formal. A seguir, são discutidas suas contribuições à independência da Hipótese do Contínuo e do Axioma de Escolha dos outros axiomas da teoria dos conjuntos. Nesse contexto são finalmente discutidas algumas idéias em relação à pequena influência que as contribuições de Gödel, para descrever alguns dos limites do pensamento racional, têm tido nas assim chamadas ciências exatas ou naturais, especialmente, Física e Química. Algumas reflexões são, nesse sentido, propostas.

Gödel; teoremas; completude; incompletude; consistência; ciências exatas


After a brief review of the Gödel life, pointing out the origins of his intellectual traditions, his completeness theorem, his thesis work, the incompleteness theorem and the theorem about the impossibility to demonstrate the consistence of a complex formal system in the same formal system are analyzed. In the following his contributions to the independence of the Hypothesis of Continuous and the Axiom of Choice of the other axioms of the set theory are discussed. Under this context some ideas about the small influence that the contributions of Gödel to describe some limits of the rational thought have had in the so called natural or exact sciences, specially, Physics and Chemistry are finally discussed and some reflections are, in this sense, proposed.

Gödel; theorems; completeness; incompleteness; consistency; exact sciences


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

SEÇÃO ESPECIAL: HOMENAGEM A KURT GÖDEL (1906-1978)

Os trabalhos de Gödel e as denominadas ciências exatas. Em homenagem ao centenário do nascimento de Kurt Gödel

Gödel works and the named exact sciences: to honor centenary of the birth of Kurt Gödel

C.V. D'Alkaine1 1 E-mail: dalkaine@dq.ufscar.br.

Grupo de Lógica e Filosofia da Ciência, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil

RESUMO

Após uma breve resenha da vida de Gödel, assinalando as origens de suas tradições intelectuais, são analisados o seu teorema da completude, o seu trabalho de tese, o teorema da incompletude e o teorema sobre a impossibilidade de demonstrar a consistência de sistemas formais complexos dentro do mesmo sistema formal. A seguir, são discutidas suas contribuições à independência da Hipótese do Contínuo e do Axioma de Escolha dos outros axiomas da teoria dos conjuntos. Nesse contexto são finalmente discutidas algumas idéias em relação à pequena influência que as contribuições de Gödel, para descrever alguns dos limites do pensamento racional, têm tido nas assim chamadas ciências exatas ou naturais, especialmente, Física e Química. Algumas reflexões são, nesse sentido, propostas.

Palavras-chave: Gödel, teoremas, completude, incompletude, consistência, ciências exatas.

ABSTRACT

After a brief review of the Gödel life, pointing out the origins of his intellectual traditions, his completeness theorem, his thesis work, the incompleteness theorem and the theorem about the impossibility to demonstrate the consistence of a complex formal system in the same formal system are analyzed. In the following his contributions to the independence of the Hypothesis of Continuous and the Axiom of Choice of the other axioms of the set theory are discussed. Under this context some ideas about the small influence that the contributions of Gödel to describe some limits of the rational thought have had in the so called natural or exact sciences, specially, Physics and Chemistry are finally discussed and some reflections are, in this sense, proposed.

Keywords: Gödel, theorems, completeness, incompleteness, consistency, exact sciences.

1. Introdução

Ao cumprir-se um século do nascimento de Kurt Gödel em Brünn, no antigo império austro-húngaro (atualmente Brno, na República Checa) em 1906 é interessante fazer algumas reflexões sobre sua obra, em particular, direcionadas à área das denominadas Ciências Exatas.

Os trabalhos de Gödel modificaram a fundamentação da Matemática e da Ciência da Computação colocando a análise dos sistemas formais num novo patamar. No entanto, pensamos que seus trabalhos não têm tido a influência que deveriam ter no campo das ciências exatas, em especial na Física e na Físico-Quimica. Às vezes é como se estes campos não tivessem sentido a revolução do pensamento que iniciada com o descobrimento das geometrias não-euclidianas e as crises dos paradoxos na teoria dos conjuntos, na Matemática, levaria ao desenvolvimento da Lógica Matemática e culminaria nos trabalhos de Gödel no que se tem chamado a destruição do sonho dos formalistas.

Os formalistas pensavam que seria sempre possível deduzir teorias matemáticas complexas a partir de outras mais simples até chegar a teorias básicas evidentes. Este sonho foi, na prática, questionado por Gödel em uma forma que demonstrava que o projeto era irrealizável como fora planejado. Os trabalhos de Gödel não negam a razão, os processos argumentativos, mas mostram seus limites. É este aspecto que, no nosso entender, deveria ter sido levado mais em conta nas modernas áreas das ciências exatas onde, o advento da computação (que tanto deve a Gödel) tem permitido cenários teóricos até ontem desconhecidos dos cientistas da maior parte do Século XX.

É interessante assinalar desde o começo que Gödel não foi o que chamaríamos um cientista prolífero. Publicou em vida muito poucos trabalhos mesmo tendo em conta aqueles publicados em revistas de difícil acesso. O conjunto de seus trabalhos se encontra hoje publicado pela Oxford University Press [1]. Consequentemente, teve problemas em sua carreira acadêmica. Teve também durante sua vida graves problemas de saúde e não teria sobrevivido até 1978 se não fosse a dedicação de vários de seus amigos (entre os quais Einstein) e de sua esposa. No entanto seus poucos trabalhos, tiveram um enorme impacto, afetando a forma em que hoje pensamos, afetando a lógica, que começou a compreender suas limitações quando se quer manter a rigorosidade.

Algo que também marca sua história intelectual é que ele participou, inicialmente como estudante convidado e logo como matemático, do famoso Círculo de Viena [2]. Este Círculo, formado inicialmente pelo prof. Hans Hahn e pelo filósofo Moritz Schlick, era inspirado nos escritos de Ernest Mach dentro de uma concepção racionalista que considerava que todas as coisas podiam ser explicadas pela lógica e a observação empírica, como uma forma de afirmação do positivismo como corrente filosófica. O Círculo de Viena encaminharia suas formulações em estreita relação com os trabalhos do primeiro período de Ludwig Wittgenstein [3]. Este chamou a atenção sobre o problema de até onde a linguagem pode falar sobre a linguagem e sobre a relação entre a linguagem e o mundo. Tal problema se encontra no coração de alguns dos teoremas de Gödel. Wittgenstein tratou de estudar o que pode ser dito por meio de proposições buscando diferenciá-lo do que pode ser pensado e do que pode ser mostrado, mas não dito via proposições. Os membros do Círculo de Viena formaram a base do que logo se denominaria de Positivismo Lógico e/ou Empirismo Lógico. No entanto, Gödel não participou dessas concepções. Possivelmente devido à Matemática que elegera como área de atuação, Gödel sempre se considerou como um Platonista, acreditando que junto ao mundo dos sentidos existe um mundo ideal de conceitos ao qual os humanos têm acesso via a intuição. Para ele uma proposição podia ter um valor de "verdade" independentemente de ter sido provada ou de ter sido confirmada experimentalmente. No Platonismo ele seguia muitos matemáticos. Como resultado, e devido ao seu desenvolvimento como matemático, ele trocaria os seminários do Circulo de Viena pelos seminários de Matemática da Universidade de Viena. As vicissitudes que lhe causara a chegada do nazismo ao poder, fizeram com que emigrasse para o Instituto Estudos Avançados de Princeton, não deixando nunca mais os Estados Unidos até sua morte em 1978.

2. Seu trabalho de doutorado. O teorema da completude

O trabalho de doutorado de Gödel [1], publicado um ano após sua defesa (em 1930), se refere a um dos grandes problemas da Matemática de seu tempo e lhe proporcionou um grande reconhecimento. O problema tratado tinha sido apresentado por David Hilbert e Wilhem Ackermann no livro Fundamentos da Lógica Teórica [4] em que se perguntavam até onde as regras aceitas para manipular expressões da linguagem envolvendo proposições com conectivos lógicos e quantificadores (as proposições do cálculo de predicados), quando aplicadas a partir dos axiomas do sistema formal em estudo, permitiriam a dedução de todas as afirmações consideradas verdadeiras em qualquer modelo que satisfizesse os axiomas. O primeiro trabalho de Gödel intitulado "Completude dos axiomas do cálculo funcional de primeira ordem" respondia "sim" à pergunta, como era esperado. Um sistema lógico é completo se todas suas fórmulas válidas são deriváveis no sistema.

Na realidade o trabalho de Gödel demonstrava que a lógica desenvolvida até essa época era adequada para prover argumentos para qualquer coisa que fosse verdadeira a partir de um dado conjunto de axiomas. Foi isto o que proporcionou grande prestígio inicial a Gödel e contribuiu para sua carreira acadêmica na Universidade de Viena.

Devemos notar, no entanto, que este primeiro trabalho de Gödel não mostrava que qualquer afirmação verdadeira em relação aos números naturais poderia ser provada sobre a base dos axiomas aceitos da teoria dos números (os axiomas de Giuseppe Peano de 1889). Estes axiomas incluíam o principio de indução (qualquer propriedade que seja válida para zero e que sendo válida para n, possa demonstrar-se que é válida para n + 1, será válida para todos os números naturais). Como este axioma é uma afirmação sobre propriedades dos números, constitui uma afirmação de segunda ordem (não sobre os objetos, mas sobre as propriedades dos objetos) e afirma algo sobre um conjunto infinito. Devido a estes aspectos muitos matemáticos consideraram este axioma mal definido e buscaram dar-lhe outras formulações para não perder suas conseqüências.

O teorema da completude de Gödel estabelece que todos os teoremas que derivam dos axiomas podem ser provados, no entanto, se algumas afirmações fossem verdadeiras sobre os objetos matemáticos estudados e caso não derivassem dos axiomas, não poderiam ser provadas. Inicialmente se considerou que entidades que estivessem dissimuladas, por exemplo, como números, mas que seriam diferentes dos números, não existiriam. Logo, o teorema da completude de Gödel não apresentaria problemas. Foi aqui que apareceu o segundo teorema de Gödel em 1931.

3. Os teoremas de incompletude de Gödel [5, 6]

Em um trabalho de 1931 ("Acerca de proposições formalmente indecidíveis nos Principia Mathematica e sistemas relacionados") referido a alguns aspectos do livro de Russell e Whitehead Principia Mathematica [7] (parte do projeto logicista de reduzir a Matemática a Lógica), Gödel vai mostrar que algumas afirmações verdadeiras na teoria dos números não podem ser provadas dentro desta teoria (primeiro teorema de incompletude de Gödel).

Sua demonstração também significou que objetos matemáticos que podem ser expressos com números mas que falham em comportar-se como números naturais a partir de outros pontos de vista, que se pensou não existiam, existem. Eles foram assinalados no último parágrafo da seção anterior. Um exemplo desses objetos é a própria proposição G do Teorema de Incompletude de Gödel (que na metalinguagem pode formular-se "A fórmula G não é demonstrável" e que discutiremos adiante). Esta fórmula é traduzível na codificação numérica de Gödel e, portanto, é um objeto matemático numérico, mesmo que não apresente todas as propriedades dos números.

Gödel ainda provou que não importa que aumentemos o número de axiomas independentes, sempre existirão afirmações que permanecerão sem a possibilidade de serem provadas. Em outras palavras, não adianta aumentar o número de axiomas para resolver o problema da impossibilidade de demonstrar certas afirmações a partir de axiomas nas linguagens de certa complexidade. Este primeiro Teorema da Incompletude poderia assim ser formulado: existem nas linguagens, a partir de uma certa complexidade das mesmas, afirmações expressáveis em termos dos números naturais que não podem ser provadas a partir dos axiomas e, mesmo que aumentemos o número de axiomas independentes, sempre existirão afirmações que não poderão ser provadas nesses linguagens.

Reformulado modernamente dentro da lógica poderia dizer-se que o primeiro Teorema da Incompletude de Gödel afirma que para qualquer sistema lógico consistente L que seja suficientemente complexo para poder exprimir a aritmética, existirão frases que são verdadeiras em qualquer interpretação de L, mas que não são demonstráveis em L. No caso em que L seja w-consistente então existirão frases que nem elas nem suas negações serão demonstráveis em L, serão portanto frases indecidíveis. Diz-se que um sistema lógico é consistente se não implica uma fórmula bem formada do sistema e sua negação ou se nem todas as suas fórmulas bem-formadas são demonstráveis no sistema. Um sistema é w-consistente se sendo de primeira ordem (trata dos objetos e não de suas propriedades ou das propriedades das propriedades e assim seguindo), para todas as fórmulas bem-formadas A(x) se pode demonstrar para todos os números naturais n, A(n), a partir dos axiomas da teoria dos números (|A(n)) e não se verifica que existe um x para o qual a negação de A(x) é valida). Isto significa que, do ponto de vista computacional, por exemplo, não podem existir programas susceptíveis de testar a completude [8].

Para demonstrar este teorema, Gödel codificou as fórmulas lógicas que se encontram na linguagem da meta-lógica (em uma forma simples, uma lógica mais poderosa em que é possível tratar da lógica em estudo) em números, utilizando as propriedades dos números primos, de maneira que os enunciados da meta-teoria sobre a demonstrabilidade pudessem ser traduzidos por meio dessa codificação em enunciados simples da matemática elementar. O formalismo da aritmética passou a conter assim frases codificadas que exprimiam proposições da meta-matemática. Introduziu então uma formula G que afirma sua própria indemonstrabilidade quando interpretada via sua respectiva decodificação na meta-linguagem, com forte conexão com os paradoxos semânticos. A argumentação na qual Gödel baseia a verdade de G é pela forma que é construída a partir da meta-teoria. Poder-se-ia dizer que se sabe da verdade de G na meta-teoria mas não é demonstrável na teoria (na linguagem objeto).

Os argumentos e resultados de Gödel iriam possibilitar um tratamento rigoroso da noção de função computável e de recorrência [8], facilitando a compreensão moderna dos limites da computação.

Um problema que se adiciona através da metodologia desenvolvida por Gödel é que a expressão "os axiomas não se contradizem entre si" é possível ser formulada dentro da aritmética (a linguagem objeto, neste caso), sobre a base dos números primos, mesmo sendo formalmente indecidível. Isto significa que essa frase não pode ser provada nem refutada sobre a base dos outros axiomas. Por tanto, isto leva ao final a que qualquer prova de consistência de uma teoria razoavelmente complexa (o caso da aritmética, por exemplo) necessitará apelar para linguagens mais poderosas que as da teoria considerada. E isso ocorre já, por exemplo, no caso da aritmética. Isto se constituiu no segundo Teorema de Incompletude de Gödel. Este afirma que nenhum dos sistemas aos quais se aplica o primeiro Teorema de Incompletude pode ser suficientemente poderoso para demonstrar sua própria consistência. Em termos computacionais isto significa que não podem existir programas susceptíveis de testar a consistência de teorias deste grau de complexidade [8].

Foi este segundo teorema sobre a consistência que consternou Hilbert que imaginava um programa para uma segura fundamentação da Matemática através de um processo de sucessivas fundações onde a consistência de uma teoria matemática complexa seria derivada de uma mais simples e portanto, mais evidente. É de se assinalar que Gödel nunca considerou seu teorema desse ponto de vista. Ele sempre considerou que ele demonstrava não as limitações do formalismo ou mesmo da formalização em Lógica, mas simplesmente o fato de que o pensamento não poderia ser automatizado via procedimentos mecânicos. Ele via seu teorema como uma confirmação de que o pensamento matemático necessita dos processos intuitivos do homem. Deve ser assinalado que mesmo com muitas discussões a Lógica Intuicionista pode também ser formalizada [9], ao menos em suas formulações probabilísticas. Assinalamos isto, pois a indução pode ser tratada de outros pontos de vista [10].

É interessante então remarcar uma vez mais que Gödel viu seus teoremas da incompletude não como uma demonstração das limitações dos métodos axiomáticos, mas como mostrando que a derivação de teoremas não poderia nunca ser completamente mecanizada via algum algoritmo [11]. Para ele, esses teoremas justificavam o papel da intuição nas pesquisas matemáticas.

Lateralmente, mas não menos importante, deve assinalar-se que os métodos que Gödel desenvolveu para lograr seus teoremas da incompletude, em especial o primeiro (nos referimos a técnicas pelas quais a meta-linguagem é introduzida na linguagem objeto), são fundamentais para a teoria da recursão que fundamenta a moderna Ciência da Computação. Eles permitem sem que apareçam paradoxos voltar uma linguagem sobre ela mesma. Toda a moderna teoria matemática da Recorrência tem sua base nos métodos desenvolvidos por Gödel. Ao mesmo tempo o desenvolvimento de suas idéias tem permitido mostrar os limites dos procedimentos computacionais (e de qualquer procedimento dito "mecânico", baseado num procedimento "algorítmico" bem definido). Problemas de limitações compreendidas neste sentido a partir do pensamento de Gödel são o problema da parada de um programa e o da impossibilidade de ter-se um programa que possa impedir a alteração do sistema operacional do computador (vírus).

4. As contribuições de Gödel à teoria dos conjuntos

Como se sabe, na parte final do Século XIX, George Cantor desenvolveu a teoria dos conjuntos na qual introduziu a noção de "tamanho" mesmo para conjuntos infinitos. De acordo com esse conceito, em uma forma simples, um conjunto A será menor que um conjunto B se para cada elemento do conjunto A existe um único elemento do conjunto B e nesta correspondência, cada elemento de B, que possui um correspondente em A, é único. Não existe uma função injetora de B em A. Usando esse conceito, Cantor provou, por exemplo, que o conjunto dos números naturais é menor que o conjunto dos números decimais. Ele mesmo conjecturou que não existiriam conjuntos de tamanho intermediários entre esses dois conjuntos. Esta asserção foi logo conhecida como uma das formulações do que se conhece como a Hipótese do Contínuo. Mas na teoria dos conjuntos de Cantor apareceram logo alguns dos mais famosos paradoxos. Isto levou a sua reformulação. Em 1908, E. Zermelo formulou uma lista de axiomas para a teoria dos conjuntos. Entre eles figurava um que tem recebido o nome de Axioma de Escolha. Em uma versão simples o Axioma de Escolha diz que dada uma coleção infinita de conjuntos disjuntos, cada um dos quais tendo pelo menos um elemento, deve existir um conjunto contendo exatamente um elemento de cada conjunto da coleção. Mesmo que o Axioma de Escolha possa parecer inobjetável, ele tem conseqüências bem pouco intuitivas. Isto fez com que este axioma se tornasse altamente controverso. Paralelamente estava o problema até onde a Hipótese do Contínuo e o Axioma de Escolha eram independentes dos outros axiomas da teoria. Muitos pensavam que o uso destes axiomas em demonstrações poderia levar a contradições. Foi nesse contexto que os trabalhos de Gödel sobre a teoria dos conjuntos [12], provaram que ambos os axiomas eram consistentes com o restante dos axiomas. Posteriormente se demonstrou a negação da Hipótese do Contínuo também era consistente (D. Cohen, 1963), com o qual se demonstrou sua independência dos outros axiomas.

5. Conclusões gerais sobre as contribuições de Gödel e sua conexão com as ciências exatas

Como conclusão poderíamos dizer que os trabalhos de Gödel, principalmente seus teoremas de incompletude, mostram limites às possibilidades de formulação de teorias a partir de dados níveis de linguagens. Mostram que as teorias matemáticas, mas também teorias físicas consolidadas como da mecânica, por exemplo, que necessitam para ser formalizadas recorrer ao uso de linguagens do cálculo de predicados de primeira ordem, como mínimo, implicam que incluirão (se formalizadas) fórmulas bem formadas (aquelas aceitas na sintaxe da linguagem) verdadeiras, mas não dedutíveis dos axiomas. Mostram que neste sentido este problema não poderia ser resolvido pelo aumento do número de axiomas (sempre existiriam novas fórmulas bem formadas verdadeiras, mas não demonstráveis). Em uma palavra, poderíamos resumir estes aportes afirmando que nas linguagens necessárias para formular as teorias normais da Ciência o conjunto de proposições verdadeiras é maior que o conjunto de proposições válidas (aquelas demonstráveis a partir dos axiomas). Como este tipo de problemática não deveria deixar de influir na construção de teorias nas ciências exatas? Gostaríamos de chamar a atenção sobre o fato de que ainda, no nosso entender, a influência destes resultados não se tem manifestado no nível que devem merecer neste campo, sem que isto queira dizer que ainda não continuam as discussões, particularmente filosóficas, sobre o papel dos teoremas de Gödel dentro do pensamento contemporâneo [13].

É verdade que boa parte das construções científicas ainda partem dos fatos para a formulação de teorias, utilizando processos indutivos para descobrir leis [10] e sugerir a existência de outros fatos comprováveis a partir dos quais se possa descrever o mundo físico. E deve ser assim, dado que esse foi o caminho original para construir as primeiras "explicações" científicas na história do desenvolvimento da Ciência. A indução a partir de conjuntos de fatos implica numa ampliação do conjunto de afirmações consideradas "verdadeiras". Esta ampliação vai além da que poderia surgir da aplicação só de um cálculo lógico. Esta "ampliação" é aceita na medida em que possa ser logo testada empiricamente em suas conseqüências lógicas (não entraremos no problema da refutabilidade das afirmações científicas). Estas novas experiências terminarão gerando novas ampliações da teoria por interação controlada com a natureza, e assim a seguir, em um movimento recursivo infinitamente repetido. Deve ser destacado que formam parte também deste processo indutivo afirmações do tipo: se um objeto possui uma propriedade, ele continuará a possuí-la no futuro, ou da constância de certos padrões de comportamento dos sistemas com caráter de "leis naturais", que nos permitirão assegurar a constância futura desses padrões, sobre certas condições.

Mas, já desde o século XIX (pensemos na teoria dos gases ideais) começaram a ser desenvolvidas teorias que buscavam pensar o mundo como ele deveria ser, deduzindo destas concepções conseqüências das mesmas e comparando com a realidade, até em casos onde a realidade ainda não tinha sido pesquisada. O desenvolvimento dessa atividade foi constituindo a Física e a Físico-Química teórica. Essa atividade, que se torna no decurso do século XX cada vez mais importante, não poderia deixar de ser afetada pelos trabalhos de Gödel e tanto mais, quanto mais é dependente dos processos de formalização, mesmo que só seja pelo uso de ferramentas matemáticas cada vez mais desenvolvidas.

O mundo teórico nas ciências exatas durante o século XX se desenvolveu grandemente. É só pensar nas grandes teorias que dominaram o século como as da relatividade e a da mecânica quântica. Foram assim surgindo nesse campo as experiências teóricas que passaram a servir de argumentos aos raciocínios científicos teóricos (as teorias) e experimentais. Tudo isto sem abandonar nunca um razoável espírito empirista (o conhecimento provém da experiência concebida como uma prática controlada) e pragmatista (não em suas formulações do senso comum, mas em suas formulações mais elaboradas, pensemos em Charles S. Peirce e William James: o significado de uma teoria é idêntico aos aspectos práticos que resultam de sua adoção).

Com o avanço do século XX, principalmente em sua segunda metade, as formulações teóricas (provavelmente influenciadas pelos êxitos das teorias da relatividade e da mecânica quântica, quando não da mecânica estatística, entre outras) tornaram-se muito mais importantes em seu papel dentro da ciência. Mais ainda, o trabalho dos teóricos começou a parecer-se ao dos matemáticos!! Claro que os teóricos das ciências naturais sempre podem, e devem, em última instância, referir-se ao velho mundo dos objetos físicos, dos sentidos. No entanto, os matemáticos, em seus mundos abstratos (a meu ver, por eles inventados dentro de uma dada linguagem), não dispondo de um "mundo externo", necessitam cuidar das formulações de suas teorias, tratando de formalizar ao máximo suas linguagens, mesmo que não poucas vezes as coisas se compliquem.

É neste contexto que, na segunda parte e em especial no final do século XX, surge com a força do desenvolvimento dos computadores (como visto, devido também em parte a Gödel) e com eles o mundo da simulação. A simulação como a possibilidade de ver mundos teóricos em funcionamento, em que propriedades nas quais intuitivamente "acreditávamos" eles deveriam ter, não são muitas vezes confirmadas e onde outras propriedades, que não esperávamos, surpreendentemente aparecem. Este é um processo em que a simulação nos ajuda a desenvolver idéias, estamos tentados a afirmar, em um processo dialético entre os cálculos e nosso pensamento. Isto ocorre no caso das ciências experimentais onde é a experiência controlada que interage com nosso pensamento gerando novas idéias, num processo dialético. Por isso tem se afirmado a existência na Ciência de dois contextos [14]: O contexto da pesquisa propriamente dita, onde valem os processos dialéticos, e o contexto da formalização de resultados atingidos, onde vale a lógica formal. Somos tentados a dizer que, às vezes, os teóricos são deslumbrados por mundos imaginários (por eles imaginados só em certos aspectos), que até os ajudam a compreender o "mundo real" em que vivemos como uma possibilidade dos mundos possíveis. É por isso que muitos autores consideram que hoje nas ciências exatas junto aos campos experimentais e teóricos, existe o campo da simulação.

Neste contexto do mundo teórico simulado possível das ciências exatas como não lembrar Gödel? Provavelmente este artigo seja uma forma de retribuir-lhe tudo o que liberou meu pensamento para poder fazer teoria em certas áreas reduzidas das ciências exatas, mas também para chamar a atenção de muitos outros pesquisadores, e por que não dos futuros cientistas, sobre a capacidade libertadora dos trabalhos de Gödel e a necessidade de que ele seja mais levado em conta nas discussões de nossas modernas teorias científicas no que se refere a suas fundamentações, aos argumentos com que pretendemos afirmá-las, às limitações das mesmas, em particular, quando entramos no problema das "formulações das que não se pode falar", adicionaríamos: por escrito, como diria Wittgenstein.

Poderíamos terminar com uma frase de quem precedendo a Gödel permitiu que seu trabalho fosse desenvolvido. Nos referimos a Frege quando não podendo terminar sua obra sobre Leis Fundamentais da Aritmética [15] (da qual escreveu apenas os dois primeiros volumes, por ter aceitado as críticas de Russell à sua Teoria das Classes), afirmou algo assim: "já que não podemos demonstrar, pelo menos explicitemos tudo o que supomos". Espero que estas reflexões gerem outras que também alimentem nossos trabalhos teóricos do dia a dia nas ciências exatas.

Agradecimentos

O autor agradece aos participantes do grupo de Lógica e Filosofia da Ciência da UFSCar suas discussões ao longo dos anos, sem as quais este trabalho nunca teria sido possível. Em particular aos professores doutores Pedro L.A. Malagutti e Tomas E. Barros.

Referências

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[2] H. Hahn, O. Neurath e R. Carnap, Cadernos de História e Filosofia da Ciência 10, 5-20 (1986).

[3] L. Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987).

[4] D. Hilbert e W. Ackermann, Grundzüge der Theoretischen Logic (Berlin, 1938), 2ª ed., com tradução ao inglês como Principles of Mathematical Logic (editado por R.E. Luce, N.Y., 1950).

[5] E. Nagel e J.R. Newman, Gödel's Proof (Routledge & Kegan Paul, Londres, 1981).

[6] E. Nagel e J.R. Newman, Gödel's Proof (New York University Press, New York, 2001), reeditado e revisado por D.R. Hofstadter.

[7] B. Russell e N. Whitehead, Principia Mathematica (Cambridge, 1910, 1912 e 1913), 3 v.

[8] R.L. Epstein e W. A. Carnielli, Computability, Computable Functions, Logics and the Foundation of Mathemathics (Wadsworth & Brooks/Cole, California, 1989).

[9] N. Da Costa, Lógica Indutiva e Probabilidade (HUCITEC/EDUSP, São Paulo, 1993).

[10] S.F. Barker, Inducción e hipótesis (Editora da Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 1963).

[11] S. McCall, The J. of Philosophy XCVI, 525-532 (1999); H. Gaifman, The J. of Philosophy, XCVII, 462-470 (2000).

[12] K. Gödel, The Consistency of the Axiom of Choice and of the Generalized Continuum-hypotesis with the Axioms of the Set Theory. Ann. Math. Studies, 3 (Princeton, N.J., 1940).

[13] J. Floyd e H. Putnam, The J. of Philosophy XCVII, 624-632 (2000); T. Bays, The J. of Philosophy CI, 197-210 (2004).

[14] G. Klimovski, notas do curso sobre o livro A Estrutura das Revoluções Científicas de T.S. Khun (Buenos Aires, 1973).

[15] Ver número dedicado ao tema na Revue International de Philosophie 130 (1980).

Recebido em 27/10/2006; Aceito em 5/12/2006

  • [1] Kurt Gödel, Collected Works, v. 1-3. Editado por S. Feferman et al. (Oxford University Press, Oxford, 1986, 1990, 1995).
  • [2] H. Hahn, O. Neurath e R. Carnap, Cadernos de História e Filosofia da Cięncia 10, 5-20 (1986).
  • [3] L. Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico e Investigaçőes Filosóficas (Fundaçăo Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987).
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  • [6] E. Nagel e J.R. Newman, Gödel's Proof (New York University Press, New York, 2001), reeditado e revisado por D.R. Hofstadter.
  • [7] B. Russell e N. Whitehead, Principia Mathematica (Cambridge, 1910, 1912 e 1913), 3 v.
  • [8] R.L. Epstein e W. A. Carnielli, Computability, Computable Functions, Logics and the Foundation of Mathemathics (Wadsworth & Brooks/Cole, California, 1989).
  • [9] N. Da Costa, Lógica Indutiva e Probabilidade (HUCITEC/EDUSP, Săo Paulo, 1993).
  • [10] S.F. Barker, Inducción e hipótesis (Editora da Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 1963).
  • [11] S. McCall, The J. of Philosophy XCVI, 525-532 (1999);
  • H. Gaifman, The J. of Philosophy, XCVII, 462-470 (2000).
  • [12] K. Gödel, The Consistency of the Axiom of Choice and of the Generalized Continuum-hypotesis with the Axioms of the Set Theory Ann. Math. Studies, 3 (Princeton, N.J., 1940).
  • [13] J. Floyd e H. Putnam, The J. of Philosophy XCVII, 624-632 (2000);
  • T. Bays, The J. of Philosophy CI, 197-210 (2004).
  • [14] G. Klimovski, notas do curso sobre o livro A Estrutura das Revoluçőes Científicas de T.S. Khun (Buenos Aires, 1973).
  • [15] Ver número dedicado ao tema na Revue International de Philosophie 130 (1980).
  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Aceito
      05 Dez 2006
    • Recebido
      27 Out 2006
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