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A bottle, eine Flashe, une bouteille: três versões para a garrafa de Leiden

A bottle, eine Flashe, une bouteille: three versions of the Leiden jar

Resumos

A compreensão e interpretação do fenômeno envolvido no desenvolvimento da garrafa de Leiden integrou diferentes estudiosos e perspectivas, uma vez que o dispositivo desafiou as teorias sobre eletricidade do século XVIII, levando os filósofos naturais a um intenso debate e produções experimentais. Neste trabalho, trazemos um comparativo dos pressupostos de Benjamin Franklin (1706–1790), Franz Ulrich Theodosius Aepinus (1724–1802) e Jean-Antoine Nollet (1700–1770), para explicar como e por que a garrafa fornecia eletricidade. Com a análise das três explicações, podemos comparar suas semelhanças e principalmente diferenças, explicitando os diferentes métodos utilizados para construção de cada teoria. Entendemos que este tipo de estudo histórico contribui em discussões necessárias ao Ensino de Ciências quanto à complexidade do conhecimento científico.

Palavras-chave:
Garrafa de Leiden; ensino de ciências; eletricidade século XVIII


The understanding and interpretation of the phenomenon involved in the development of the Leiden jar integrated different scholars and perspectives, as the device challenged 18th century theories about electricity, leading natural philosophers to intense debate and experimental productions. In this work, we compare the assumptions of Benjamin Franklin (1706–1790), Franz Ulrich Theodosius Aepinus (1724–1802) and Jean-Antoine Nollet (1700–1770), to explain how and why the bottle supplied electricity. With the analysis of the three explanations, we can compare their similarities and mainly differences, explaining the different methods used to construct each theory. We understand that this type of historical study contributes to discussions necessary for Science Teaching regarding the complexity of scientific knowledge.

Keywords
Leiden jar; Science Teaching; 18th century electricity


1. Introdução

Estudos de caso históricos são potencialmente importantes para trazer evidências de que o conhecimento científico é complexo e sujeito a diferentes fatores. Um exemplo disso é a garrafa de Leiden, que tem sido objeto de estudo sob diferentes perspectivas [1[1] W.T. Jardim e A. Guerra, Cad. Br. Ens. Fís. 34, 774 (2017)., 2[2] C.C. Silva e P. Heering, History of Science 56, 314 (2018).]. Estes autores mostraram que a compreensão do fenômeno ali envolvido é bem mais complexa do que “um primeiro capacitor1 1 A semelhança entre a garrafa de Leiden e um capacitor se dá porque ambos podem “armazenar” eletricidade e depois “descarregar”. No entanto, o capacitor é formado por várias camadas de dielétricos e o descarregamento é exponencial; enquanto a garrafa, quando foi elaborada, possuía apenas seu interior preenchido com um metal ou água para armazenar e o descarregamento é rápido. Portanto, a semelhança é mais na função do dispositivo do que na forma ou fenômeno envolvido. ”, como geralmente ocorrem nos livros didáticos. Um estudo das fontes primárias e secundárias envolvendo três filósofos naturais que investigaram a garrafa de Leiden durante o século XVIII mostra que havia diferentes pressupostos teóricos em torno das explicações envolvendo seu funcionamento.

Inventada na segunda metade do século XVIII, a garrafa de Leiden foi um dispositivo que chamou a atenção dos estudiosos da época que buscavam entender suas principais propriedades relacionadas ao comportamento da eletricidade. Afinal tratava-se de uma forma de armazenar a eletricidade e aumentar sua intensidade [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 309]. Nos meses seguintes à sua criação, vários experimentos foram realizados na Europa, uma vez que a incompreensão dos efeitos produzidos pela garrafa levava a novas hipóteses sobre a natureza da eletricidade. Além disso, trabalhar com o instrumento gerava receio de que o choque produzido por configurações novas pudesse matar o indivíduo que a manuseava [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 309].

A garrafa, por ser um instrumento intrigante, questionou as teorias elétricas existentes na época proporcionando o surgimento de novas concepções que envolviam a busca por uma explicação. Neste artigo, trazemos algumas das discussões que ocorreram durante o século XVIII envolvendo os primeiros relatos da garrafa de Leiden e, especificamente, três das principais interpretações/explicações acerca do dispositivo. Nosso objetivo é deixar explícito que mais de uma interpretação era possível nesse caso, assim como pode ocorrer em outros fenômenos, o que corrobora a ideia de que o conhecimento científico é um empreendimento complexo.

As seguintes fontes primárias e secundárias foram utilizadas para compreender e discutir as três explicações para o fenômeno apresentado no episódio da garrafa de Leiden: A Filosofia Natural de Benjamin Franklin – Traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019).]; Experiments and observations on electricity, made at Philadelphia in America [5[5] B. Franklin, em: Experiments and observations on electricity, editado por Peter Collinson (David Henry, Londres, 1769).]; Conjectures sur les causes de l’électricité des corps [6[6] J.A. Nollet, Conjectures sur les causes de l’électricité des corps (Histoire de l’Académie, Paris, 1745).]; Essai Sur l’Électricité Des Corps [7[7] J.A. Nollet, Essai sur l’électricité des corps (Seconde édition, Paris, 1753).] e Essay on the Theory of Electricity and Magnetism [8[8] F.U.T. Aepinus, Aepinus’s essay on the theory of electricity and magnetism (Princeton University Press, Princeton, 1979).].

2. Primeiras Discussões Sobre a Garrafa de Leiden

Dentre os fenômenos estudados pelos filósofos naturais na primeira metade do século XVIII, o tema eletricidade teve grande destaque, principalmente pela sua popularidade, através de demonstrações experimentais realizadas para o público em geral, que se interessava pelas descargas elétricas, choques entre outros efeitos. Do ponto de vista da compreensão da natureza do fenômeno, foi o período de várias invenções de novos artefatos [1[1] W.T. Jardim e A. Guerra, Cad. Br. Ens. Fís. 34, 774 (2017)., 9[9] A.C. Pimentel e C.C. Silva em In Seleção de trabalhos do 5º Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, Florianópolis, 2006, editado por R. A. Martins (Lulu, Florianópolis, 2008).]. Imersa nesse contexto, a garrafa de Leiden foi construída pela primeira vez na Europa, e trata-se de um dispositivo que armazena eletricidade, permitindo descargas que são aumentadas se comparadas com aquelas obtidas com um gerador eletrostático2 2 Um dos primeiros geradores eletrostáticos foi inventado por Otto von Guericke (1602–1686). Sua composição consistia normalmente de um globo ou cilindro de vidro que girava ao redor de um eixo através de uma manivela de forma que ocorresse atrito contra a mão de uma pessoa ou contra uma almofada, pano, couro ou outra substância apropriada gerando eletricidade [3, p. 213–218]. [2[2] C.C. Silva e P. Heering, History of Science 56, 314 (2018).].

Esse instrumento, obtido por volta de 1745, estimulou um novo entendimento sobre eletricidade e sua natureza. O instrumento conhecido como garrafa de Leiden tem seus primeiros estudos realizados na Alemanha e Holanda simultaneamente, mas sem nenhuma relação aparente. Os efeitos relacionados a eletricidade foram descritos, em situações distintas pelo alemão Ewald Jürgen von Kleist (1700–1748), e os holandeses Peter van Musschenbroek (1692–1761) e seu amigo Andreas Cunaeus (1712–1788), ambos nessa cidade de Leiden [ 1[1] W.T. Jardim e A. Guerra, Cad. Br. Ens. Fís. 34, 774 (2017)., 3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 309–316].

Kleist teve bastante contato com a prática experimental e instrumental da época sob a influência de Willem’s Gravesande (1688–1742) enquanto era estudante na Universidade de Leiden. Ao deixar a universidade, Kleist continuou trabalhando na construção de instrumentos e realização de experimentos [10[10] W.T. Jardim e A. Guerra, Física na Escola 16, 36 (2018).].

Na Alemanha, no mesmo período, já se destacavam os trabalhos de Georg Mathias Bose (1710–1761) relacionados a eletricidade. Entre seus trabalhos havia a descrição de um experimento em que Bose eletrizou água contida dentro de um copo e conseguiu extrair faíscas dela. Motivado pelos trabalhos de Bose, em 1745, Kleist realizou experimentos na tentativa de armazenar eletricidade em um recipiente de vidro preenchido com água de forma a ampliar a intensidade das faíscas, realizando algumas mudanças no aparato experimental e com isso construindo a primeira ideia do condensador [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 309–312].

Em suas primeiras tentativas, Kleist isolou eletricamente os arredores do recipiente, como uma tentativa de não permitir que a eletricidade se dispersasse para o chão e, consequentemente, conseguir eletrizar fortemente o recipiente com água ao realizar o experimento3 3 Na época, já se sabia que os experimentos com eletrostática deveriam ser isolados, esse fato era conhecido como Regra de du Fay. Du Fay foi um experimentalista da época, que estabeleceu uma regra de como realizar experimentos relacionados a eletricidade para os filósofos interessados pelo tema. A regra estabelecia que para um corpo ser eletrizado, ele precisava estar sob o apoio de um material elétrico espesso. Em outras palavras, o corpo precisaria estar isolado [3, p. 252–258]. . Porém, ao ligar o interior do recipiente a um condutor primário (máquina eletrostática), Kleist conseguiu produzir apenas pequenas faíscas do sistema isolado [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 309–312].

Em outra tentativa, só que desta vez segurando diretamente o recipiente durante o processo de eletrização do interior da garrafa, de forma que este não ficasse mais isolado, Kleist observou o efeito de faíscas elétricas com maior potência e com maior duração. Isso ocorreu mesmo após ter sido desconectado do condutor primário. Kleist comunicou suas observações no final do mesmo ano aos seus correspondentes germânicos, que ficaram entusiasmados com o experimento [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 309–312].

Na mesma época em que Kleist está desenvolvendo seus estudos acerca da garrafa de Leiden, o holandês Musschenbroek também realiza seus próprios experimentos com a garrafa de maneira independente. Também influenciado pelas proposições de Bose, interessou-se pelo armazenamento de fluidos elétricos e, junto a Jean Nicolas Sébastien Allamand (1713–1787), que era seu assistente, na própria Universidade de Leiden, começaram a realizar procedimentos experimentais [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 312–316].

Musschenbroek, na intenção de produzir grandes faíscas a partir da água eletrizada, conhecendo a Regra de du Fay, colocou o recipiente com água em um suporte isolante, e fez uma ligação através de um fio à água isolada com o condutor primário. Dessa forma, pequenas faíscas foram produzidas, ou seja, não conseguiu obter sucesso em um primeiro momento. Já Andreas Cuneaus, que tinha conhecimento dos experimentos de Musschenbroek, uma vez que era seu amigo e frequentava seu laboratório, realizou-os em sua casa na tentativa de reproduzi-los por conta própria [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 312–316].

No processo de reprodução do experimento, não seguiu exatamente os mesmos passos de Musschenbroek. Cuneaus eletrizou a água enquanto segurava o recipiente (procedimento semelhante ao de Kleist), em vez de apoiá-lo sobre um isolante; quando aproximou a mão do fio ligado à água e à máquina eletrostática, recebeu um choque intenso. Cuneaus, então, relatou o que ocorreu a Musschenbroek e a seu assistente Allamand que, após repetirem o procedimento, sentiram um grande choque. Assim, em janeiro de 1746, Musschenbroek divulgou a experiência em uma carta para René Antoine Ferchault de Réaumur (1757–1783), membro de destaque da Academia de Ciências de Paris, que a publicou nos Anais da academia [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 312–316].

O experimento da garrafa de Leiden contradizia as regras até então estabelecidas de como realizar experimentos elétricos. Segundo o historiador Heilbron [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 309–316], o experimento violava a Regra de du Fay, identificando o problema central do experimento como sendo o aterramento da pessoa que carregava a garrafa. Além disso, o descarregamento deveria ser realizado pela mesma pessoa que estava segurando o frasco.

Porém, em estudos mais recentes, Silva e Heering [2[2] C.C. Silva e P. Heering, History of Science 56, 314 (2018).] mostraram que no período inicial do desenvolvimento da garrafa, o aterramento não era a questão central. Levando em consideração que a proposta do experimento era eletrizar a água que estava contida dentro do vidro, o fenômeno respeitava a Regra de du Fay. A necessidade de conectar o interior da garrafa com o exterior, formando um circuito, foi a questão inicial levantada na época.

Junto aos questionamentos relacionados ao dispositivo apontados na época, novas discussões em busca pela compreensão do novo artefato, estimularam a comunicação à longa distância por meio de cartas entre os filósofos naturais, produzindo uma rede internacional de correspondências de cunho científico [1[1] W.T. Jardim e A. Guerra, Cad. Br. Ens. Fís. 34, 774 (2017).].

2.1. A garrafa segundo Franklin

Para iniciar as discussões envolvendo esta explicação da garrafa de Leiden, alguns termos utilizados merecem observação. O primeiro deles refere-se ao termo “elétrico” e “não elétrico”. No século XVIII os corpos/objetos isolantes eram chamados de “elétricos”, pois conseguiam manifestar os fenômenos da eletricidade: um tubo de vidro quando atritado, por exemplo, era considerado um corpo elétrico. Do mesmo modo, os corpos/objetos que hoje chamamos de condutores eram considerados “não elétricos”, ou seja, não apresentavam a propriedade de atrair pequenos objetos quando atritados [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 174].

Nesse período, a eletricidade era entendida como um fluido composto de partículas que poderiam passar ou serem retidas pelos corpos; utilizavam-se termos como: “fogo elétrico”, “fluido elétrico” e “matéria elétrica” para se referir a causa da eletricidade [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 174]. Em todos os casos é possível observarmos uma compreensão mecânica para explicar a natureza da eletricidade, embora como veremos no decorrer deste trabalho, muitos filósofos decidiam por não discutir tais questões, e focar na descrição e no tipo de interação entre os corpos elétricos.

Devido aos efeitos apresentados pelos experimentos que envolviam eletricidade, era comum no século XVIII ocorrerem apresentações públicas demonstrando diferentes fenômenos como forma de entretenimento. Em uma dessas apresentações, no ano de 1743, ocorre o primeiro contato de Benjamin Franklin (1706–1790) com a eletricidade ao assistir uma conferência do reverendo escocês Archibald Spencer (1698–1760) envolvendo alguns fenômenos curiosos e divertidos de eletricidade [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 325; 4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 6–7; 9[9] A.C. Pimentel e C.C. Silva em In Seleção de trabalhos do 5º Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, Florianópolis, 2006, editado por R. A. Martins (Lulu, Florianópolis, 2008).].

Franklin tem um envolvimento mais próximo com a filosofia natural após se tornar uma figura conhecida na Filadélfia. No ano de 1745, dois anos após a conferência do reverendo escocês Spencer, Franklin e seus companheiros estadunidenses, começaram realizar suas próprias investigações sobre eletricidade. Isso ocorreu após receber de seu amigo, e frequente colaborador Peter Collinson (1694–1768), uma tradução contendo descrições de “experimentos alemães” publicada na revista Gentleman’s Magazine e um tubo de vidro com instruções para realizar alguns fenômenos envolvendo a produção de faíscas [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 325; 4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 7; 9[9] A.C. Pimentel e C.C. Silva em In Seleção de trabalhos do 5º Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, Florianópolis, 2006, editado por R. A. Martins (Lulu, Florianópolis, 2008).].

As traduções resumiam os trabalhos sobre eletricidade dos alemães Georg Matthias Bose (1710–1761), Christian August Hausen (1693–1743) e Johann Heinrich Winckler (1703–1770) reunidos por Albrecht von Haller (1708–1777) em 1745; além de uma série de descrições detalhadas feitas por Haller, auxiliando e incentivando os primeiros estudos experimentais de Franklin [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 325; 4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 7; 9[9] A.C. Pimentel e C.C. Silva em In Seleção de trabalhos do 5º Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, Florianópolis, 2006, editado por R. A. Martins (Lulu, Florianópolis, 2008).].

Após a realização de alguns ensaios experimentais o grupo da Filadélfia (representado por Franklin e colaboradores) desenvolveu uma teoria qualitativa para explicar os fenômenos elétricos conhecidos na época [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 81–90]. Para o grupo, a eletricidade não era uma qualidade adquirida pelo corpo, mas sim uma espécie de fluido elétrico que se manifestava, algo sutil e elástico, que não poderia ser destruído ou criado. Além disso, as partículas da matéria elétrica se repeliam, enquanto as partículas de matéria comum se atraíam e as partículas de matéria elétrica seriam fortemente atraídas pela matéria comum. Dessa forma, a eletrização de um corpo dependia da ausência ou excesso de fluido elétrico presente nos corpos [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 81–90].

Junto a concepção de eletricidade exposta por Franklin envolvendo a ideia de fluido elétrico, o ato de estar carregado positivamente correspondia a um corpo ou objeto conter um excesso de fluido elétrico; de forma análoga, o carregamento negativo desse mesmo corpo ou objeto seria a falta de fluido elétrico.

Para explicar a interação entre corpos eletrizados, Franklin utiliza o termo “atmosfera elétrica”. Em seus estudos ele faz a seguinte analogia: os corpos são como “esponjas”, da mesma forma que a matéria elétrica é como a “água”. Fornecendo a esses corpos um excesso de matéria elétrica, ela ficará ao redor deles assim como a água que transborda em uma esponja já cheia, ou seja, a matéria elétrica em excesso será “transbordada” ao redor dos corpos, formando as “atmosferas elétricas” que tomam a mesma forma do corpo eletrizado envolvido [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 81–90].

Esboçadas algumas das teorias estudadas e desenvolvidas por Franklin e colaboradores, destacamos um dos pontos mais importantes envolvendo seus estudos em eletricidade, os experimentos com garrafas de Leiden. É importante enfatizar que Franklin não utilizou o termo “garrafa de Leiden” em suas comunicações a Collinson, mas sim, “frascos de vidro” ou “garrafa de Musschenbroek”, fazendo referência a garrafa [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 61].

Em suas comunicações a Collinson, em 1747 e 1748, Franklin enfatiza que já estava realizando uma série de experimentos elétricos com a garrafa, apresentando em uma delas uma explicação mais detalhada do funcionamento da garrafa de Leiden, descrita no “Opiniões e conjecturas”, enviado em 1749 [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 81].

A explicação do experimento, segundo o grupo da Filadélfia, estava pautada no equilíbrio entre dois estados de eletricidade existentes na garrafa, denominados de positivo e negativo e que, por sua vez, estavam em equilíbrio. Segundo Franklin:

Ao mesmo tempo em que o fio e o topo da garrafa são eletrizados positivamente ou mais, o fundo da garrafa é eletrificado negativamente ou menos, em exata proporção. Ou seja, para qualquer quantidade de fogo elétrico lançado em direção à parte superior da garrafa, uma quantidade correspondente deixa o fundo. (. . .) Tão maravilhosamente são esses dois estados de Eletricidade, o positivo e o negativo combinados e equilibrados nesta garrafa milagrosa! [. . .] [5[5] B. Franklin, em: Experiments and observations on electricity, editado por Peter Collinson (David Henry, Londres, 1769)., p. 13–14]

Para realizar esta etapa do fenômeno de carregamento da garrafa, Franklin parte da hipótese de que dentro da garrafa contendo um fio (provavelmente de metal) em seu interior havia certa quantidade de eletricidade em equilíbrio. Assim, na medida que se adicionava fluido elétrico na garrafa a quantidade de eletricidade no fio e na parte superior da garrafa aumentava na mesma proporção que a quantidade equivalente deixava seu interior. Esse processo se repetia até que nada mais pudesse ser acrescentado à parte superior e nada mais pudesse ser retirado da parte interior. O fluido que estava na parte externa do vidro, atravessava o experimentador que segura a garrafa, de modo a acumular-se no solo. A garrafa estava, portanto, carregada [5[5] B. Franklin, em: Experiments and observations on electricity, editado por Peter Collinson (David Henry, Londres, 1769)., p. 13–14].

Para que ocorresse novamente o equilíbrio de fluido elétrico na garrafa, Franklin realizou processos de “transferência” de eletricidade entre as partes do sistema, como mostra a Figura 1, correspondente a Fig.II do texto original que representa a descrição do experimento III:

Figura 1
Esquema de uma das garrafas utilizadas por Franklin, demonstrando o experimento de restauração de equilíbrio de fluido elétrico. Fonte: [5[5] B. Franklin, em: Experiments and observations on electricity, editado por Peter Collinson (David Henry, Londres, 1769)., plate 1].

EXPERIMENTO III. Fig. 2. Fixe um fio de arame ao chumbo, com o qual o fundo da Garrafa está armado (d), de modo que dobrando para cima, sua extremidade em forma de anel pode ficar nivelada com o topo, ou extremidade em forma de anel do fio na rolha (e), e a 3 ou 4 polegadas de distância. Em seguida, eletrifique a garrafa e coloque-a sobre a cera. Se uma rolha suspensa por um fio de seda (f) ficar pendurada entre esses dois fios de arame, ela balançará incessantemente de um lado para o outro, até que a garrafa não esteja mais eletrificada. Ou seja, ele [o fio de seda] busca e carrega o fogo do topo ao fundo da garrafa até que o equilíbrio seja restaurado [. . .] [5[5] B. Franklin, em: Experiments and observations on electricity, editado por Peter Collinson (David Henry, Londres, 1769)., p. 16–17]

Figura 2
Representação da garrafa de Leiden em equilíbrio elétrico entre as partes interna e externa representados pelos sinais de negativo e positivo. C1 e C2 são materiais “não elétricos”, ou seja, condutores e o vidro é representado pela letra I. Fonte: [11[11] A.K.T. Assis, Os fundamentos experimentais e históricos da eletricidade (Apeiron, Canadá, 2010)., p. 230].

Para Franklin, o aspecto fundamental da garrafa era o vidro, assim, compreender a interação entre o vidro e o fluido elétrico se mostra uma tarefa importante. No geral, alguns filósofos naturais da época pressupunham que o fluido elétrico poderia atravessar o vidro e exercer influência nos objetos. Mas Franklin apresentou o seguinte questionamento: “se um fluido elétrico atravessava o vidro, como a garrafa poderia ser carregada? Afinal, o vidro não ficaria com sua quantidade normal de fluido elétrico?” [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 85].

Para Franklin, o vidro atraia tão fortemente a matéria elétrica, que a única maneira de mover o fluido elétrico do vidro seria colocar materiais “não elétricos”, ou seja, condutores nas suas duas superfícies, gerando uma atmosfera elétrica no “não elétrico” interno do vidro [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 85]

O aspecto fundamental da teoria de Franklin era que não havia passagem de fluido elétrico de uma superfície de vidro para outra. Assim, admitindo que o vidro possui espessura não desprezível, poderia ser considerado uma linha divisória imaginária bem no meio da superfície onde ocorreria a passagem do fluido. Ou seja, o fluido elétrico permaneceria no interior do vidro, apenas acumulando-se numa das laterais, a interna ou externa da garrafa [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 86]. Isso ocorreria devido ao próprio processo de fabricação do vidro, em que eram formados poros onde o fluido poderia ser “armazenado”, como na ideia da “esponja”.

Portanto, Franklin estabeleceu a importância do revestimento de não elétrico dentro e fora da garrafa. Pois quando uma quantidade de fluido elétrico preenchia o revestimento de não elétrico interno, formando uma atmosfera elétrica na parte interna do vidro, ocorria um desequilíbrio nas repulsões, fazendo com que a matéria elétrica fosse empurrada para fora, se, somente se o revestimento de não elétrico externo estivesse presente, sobretudo, aterrado [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 86].

Caso o revestimento de não elétrico não fosse colocado na superfície do vidro, o carregamento da garrafa jamais poderia ocorrer, visto que a matéria elétrica presente na superfície externa não seria empurrada ao ar. Logo, o ato de estar carregada significava que uma superfície do vidro tinha um excedente de fluído e a outra uma falta, conforme esquematizado na Figura 2. A descarga/faísca produzida pela garrafa tratava-se do reestabelecimento/reequilíbrio de fluido elétrico nas duas superfícies do vidro [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 81–90].

Embora os argumentos de Franklin com relação ao comportamento da garrafa e estrutura do vidro sejam, a princípio, satisfatórios, apresentam alguns problemas. Mesmo afirmando que cada superfície do vidro tinha metade de sua espessura total, ele não explicou porquê a divisão ocorria exatamente no meio. Além disso, por que a repelência entre os fluidos elétricos em cada superfície poderia atravessar a linha divisória, mas as partículas não, mesmo sendo pequenas a ponto de sair de suas respectivas superfícies? Questionamentos como esses não foram explicados por Franklin, que reconheceu fragilidades em suas hipóteses posteriormente [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 81–90].

Apesar de algumas questões ainda merecerem atenção, principalmente em relação à estrutura do vidro, o estudo e a explicação de Franklin para o funcionamento da garrafa se mostraram suficientes, corroborando para as argumentações sobre a diferença entre corpos elétricos e não elétricos. Além disso, a explicação sobre a interação entre os fluidos elétricos nas superfícies interna e externa do vidro apresenta semelhança com o conceito de indução elétrica, que só foi desenvolvido no século XIX [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019)., p. 81–90].

2.1.1. A força na garrafa de Aepinus

Como já mencionado no início da sessão 2, a garrafa de Leiden mostrou ser um instrumento intrigante e proporcionou o surgimento de novas concepções para o conhecimento da eletricidade. A explicação aqui desenvolvida envolverá duas figuras centrais: Franz Ulrich Theodosius Aepinus (1724–1802) e seu aluno que depois se tornaria um importante colega nos estudos referentes a eletricidade e magnetismo, Johan Carl Wilcke (1732–1796) [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).].

Nascido em dezembro de 1724, em Rostock, no Norte da atual Alemanha, Franz Ulrich Theodosius Aepinus era filho do professor de teologia da Universidade de Rostock, Franz Albert Aepinus (1673–1750). Em 1740, Aepinus começou a estudar teologia na universidade, mudando pouco tempo depois para medicina. Com o término de seus estudos, Aepinus tornou-se professor em Rostock tendo como principal aluno Johan Carl Wilcke (1732–1796) [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).].

É na Academia de Ciências de Berlim, onde consegue uma vaga em meados de 1755, que Aepinus e Wilcke realizam suas primeiras investigações em eletricidade, após contato e estudo da obra de Benjamin Franklin Experiments and Observations on Electricity, made at Philadelphia in America [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., 12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).].

Baseando-se em seus estudos e na obra de Franklin, Aepinus descreve uma analogia entre eletricidade e magnetismo, formulando uma teoria magnética que se apoia na ideia de um fluido elétrico. Seus experimentos e conhecimentos matemáticos resultam no livro Tentamen Theoriae Electricitatis et Magnetismi, de 1759, publicado em São Petersburgo [11[11] A.K.T. Assis, Os fundamentos experimentais e históricos da eletricidade (Apeiron, Canadá, 2010).], que tomaremos como base para apresentar a sua explicação da garrafa de Leiden aqui presente.

Em seu livro Aepinus afirma que:

Newton demonstrou como o movimento dos corpos celestes depende da gravidade universal; mas ele não gastou energia para demonstrar a fonte dessa gravidade universal. Meu plano de ação será, sem dúvida, castigado por aqueles que não suportam falar de atração e repulsão na Filosofia Natural. Para satisfazê-los, declaro que estou plenamente convencido da existência de forças de atração e repulsão, mas não vou tão longe a ponto de sustentar, como alguns discípulos imprudentes do grande Newton, que essas são forças inatas aos corpos, e não aprovo a doutrina que afirma a possibilidade de ação à distância [. . .] [8[8] F.U.T. Aepinus, Aepinus’s essay on the theory of electricity and magnetism (Princeton University Press, Princeton, 1979)., p. 240]

Ou seja, os trabalhos de Aepinus sofreram influências newtonianas como podemos identificar na afirmação anterior. Aepinus não irá dispensar atenção na explicação das “origens das forças primitivas (elétrica e magnética)” fazendo paralelo com o trabalho de Newton sobre a gravidade em que afirma não precisar mostrar a fonte da gravidade para demonstrar que os movimentos celestes dependem da gravitação universal [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).]. Entretanto ele não considera a possibilidade da existência da ação à distância como uma explicação plausível ao fenômeno de atração e repulsão.

Aepinus traz uma síntese das ideias de Franklin, as quais ele irá utilizar para se referir aos fenômenos elétricos e magnéticos em seu trabalho:

α) Existe um certo fluido sutil e elástico que produz todos os fenômenos elétricos; cujas partes se repelem mutuamente, mesmo em distâncias bastante grandes; β) As partículas deste fluido são atraídas pela matéria de que todos os corpos conhecidos até o momento são feitos [por vezes chamada de matéria comum]; γ) Existe alguns corpos constituídos de tal maneira que a matéria elétrica se move em seus poros com a maior facilidade e não encontra resistência ao passar livremente através de seus poros em qualquer direção [os corpos chamados não-elétricos]; outros corpos, ao contrário, são de tal natureza que só com dificuldade admitem seu movimento e impedem que isso aconteça livremente [os chamados elétricos]; δ) Os fenômenos elétricos são de dois tipos. Os que ocorrem devido ao trânsito de matéria elétrica de um corpo a outro, movendo-se de um corpo com excesso de fluido elétrico para um com deficiência. Nessa classe, pertencem especialmente fenômenos como as faíscas elétricas e outros fenômenos relacionados a aparição de brilho e luzes. Outros fenômenos ocorrem sem que o fluido elétrico se movimentasse, como atrações e repulsões [. . .] [8[8] F.U.T. Aepinus, Aepinus’s essay on the theory of electricity and magnetism (Princeton University Press, Princeton, 1979)., p. 241].

Nessa síntese, Aepinus, assim como Franklin, adota a concepção de que a eletricidade se trata de um único fluido. Além disso, ele também desenvolve uma discussão acerca da impermeabilidade do vidro com relação ao fluido elétrico na teoria de Franklin, impulsionado pela necessidade de compreender melhor a garrafa de Leiden. Em relação ao papel do vidro, para Aepinus, a impermeabilidade apresentada é uma propriedade comum a todos os corpos tidos como elétricos, e não somente ao vidro [8[8] F.U.T. Aepinus, Aepinus’s essay on the theory of electricity and magnetism (Princeton University Press, Princeton, 1979).].

Segundo Nardi [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).], Aepinus, analisa o conceito de quantidade natural de fluido em um corpo, chegando as seguintes conclusões:

Existe uma quantidade natural de fluido para o corpo A em que não havia fluxo para fora ou para dentro. Dessa forma, Aepinus define o conceito frankliniano de quantidade natural em termos das forças atrativa e repulsiva; (. . .) os corpos elétricos são os agentes externos capazes de manter o excesso (ou falta) de fluido de um corpo. Se o corpo A estivesse envolto em um corpo elétrico, como o ar (seco), a partícula B teria dificuldade em escapar. Se A fosse um corpo elétrico com uma deficiência de fluido, então as partículas ao redor teriam dificuldade em entrar no corpo [. . .] [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021)., p. 67]

Expostas algumas das concepções estudadas e desenvolvidas por Aepinus, partiremos para os seus estudos envolvendo os experimentos com garrafas de Leiden. Aepinus, ao analisar o fenômeno envolvendo a garrafa, utiliza os chamados “quadrados de Franklin”4 4 Os chamados quadros ou quadrados de Franklin foram um desenvolvimento das garrafas de Leiden. Ao perceberem que o formato das garrafas não era relevante, passaram a construir condensadores de placas paralelas nos quais um retângulo de vidro isolante possuía lâminas condutoras dos dois lados, que podiam ser carregadas com cargas opostas ao serem ligadas a máquinas eletrostáticas. Eles foram inventados na década de 1740 [3, p. 317–334]. representados pela Figura 3 [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 317].

Figura 3
Representação dos chamados “quadrados de Franklin” utilizada por Aepinus. ABEF é uma placa de vidro, CD e IK são placas de metal. TS é um fio ligado a um gerador e LM é um fio conectado ao globo terrestre. Fonte: [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021)., p. 90].

Admitindo que o forma do vidro não é determinante para o experimento, Aepinus considera que as placas funcionariam se fossem cobertas de ambos os lados por metal. Assim,

Portanto ABEF, Fig. VIII [Figura 3], uma placa de vidro coberta em ambos os lados, como é usual pelas placas de metal IK e CD. Que a placa IK seja tocada por um corpo não elétrico per se, como a corrente LM na figura, não sustentada por corpos elétricos per se, mas ligada ao próprio globo terrestre por meio de outros corpos não elétricos per se [. . .] [8[8] F.U.T. Aepinus, Aepinus’s essay on the theory of electricity and magnetism (Princeton University Press, Princeton, 1979)., p. 269].

Observamos no trabalho de Aepinus, que além de utilizar os quadrados de Franklin no lugar do frasco convencional, ele também discute o fenômeno expresso na garrafa de Leiden como uma proposta experimental, uma vez que vários aspectos já eram conhecidos, dentre eles de que o formato da garrafa influenciaria apenas na intensidade do choque. Na sequência ele inicia um processo de matematização do fenômeno para explicar o aparato, a qual não nos interessa aqui e pode ser encontrada em [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).].

Para o objeto da Figura 3, através de suas hipóteses e posteriormente dedução matemática, Aepinus conclui que a quantidade de fluido adicionado no interior da garrafa não é a mesma que é ejetada pelo exterior dela, uma vez que a força proveniente da eletrização é repulsiva e cresce conforme mais fluido é adicionado à CD [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).]. Concluindo que a quantidade de fluido β (fluido ejetado), é sempre menor que a quantidade de fluido α (fluido adicionado), o que o diferencia de Franklin, o qual assumia a necessidade de haver sempre uma “conservação”.

Podemos dizer que existem algumas diferenças presentes nas teorias de Franklin e Aepinus com relação a explicação da garrafa de Leiden. Uma delas é de cunho epistemológico, correspondendo ao emprego da matematização na explicação de Aepinus [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).]; Franklin não faz nenhuma menção ao conceito de força em sua explicação com relação a quantidade natural de fluido elétrico, definindo a quantidade natural como sendo aquela que os corpos apresentam enquanto não são eletrificados; além de disso, não utiliza o conceito de força à distância, mas sim de atmosferas elétricas para analisar a atração e repulsão, diferente de Aepinus, que por ter influencias newtonianas apresenta uma modificação a respeito de seu entendimento com relação a teoria do fluido elétrico frankliniano.

2.2. Garrafa de Leiden: um fluido, duas correntes

Na França, a garrafa de Leiden atraiu a atenção de vários estúdios, entre eles Jean-Antoine Nollet (1700–1770) [13[13] C.C. Silva, Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: An account of recent works (Springer Netherlands, Dordrecht, 2011).]. Vindo de uma família humilde, Nollet chamou a atenção de alguns membros importantes da Académie des Sciences, como Charles François de Cisternay du Fay (1698–1739) e René-Antoine Ferchault Réaumur (1683–1757) ao expressar suas habilidades em um grupo que havia começado a fazer parte, o grupo Société des Arts destinado a levar artes e ciências para os artesãos. Com isso, começou a trabalhar com du Fay entre os anos 1731 a 1735, aprendendo técnicas de laboratório e abordagem cartesiana da física, além de ser contratado em 1732 por Réaumur para ser responsável de seu laboratório [13[13] C.C. Silva, Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: An account of recent works (Springer Netherlands, Dordrecht, 2011).].

Em 1739, foi nomeado para o cargo de adjoint mécanicien, anteriormente ocupado por Georges Louis Leclerc, Conde de Buffon, (1707–1788), na Académie des Sciences. Nesse mesmo ano, com a morte de du Fay, Nollet passou a ser considerado o mais relevante eletricista francês [13[13] C.C. Silva, Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: An account of recent works (Springer Netherlands, Dordrecht, 2011).]. A eletricidade era um tema abordado em suas palestras, porém Nollet não se debruçava nos estudos novos da área, e reproduzia os experimentos realizados por Hauksbee, Gray e du Fay5 5 Du Fay, diferentemente de Franklin, adotava a existência de dois tipos de eletricidade: a vítrea e a resinosa [14]. . Passou a ter interesse de fato pelos estudos que abrangiam os fenômenos elétricos após seu primeiro contato por volta de 1745, quando lhe chamou a atenção o fenômeno de ignição de faíscas por álcool presente em um frasco que recebia eletricidade a partir de uma máquina eletrostática [13[13] C.C. Silva, Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: An account of recent works (Springer Netherlands, Dordrecht, 2011).].

Meses depois, Nollet apresentou a Académie Royale des Sciences, em Paris, seu trabalho intitulado “Conjectures sur les Causes de l’Electricité des Corps” (Conjecturas sobre as causas da eletricidade dos corpos) [6[6] J.A. Nollet, Conjectures sur les causes de l’électricité des corps (Histoire de l’Académie, Paris, 1745).], contendo os fundamentos de suas ideias sobre eletricidade. Suas teorias foram rapidamente reconhecidas por Bose na Alemanha e por William Watson (1715–1787) na Inglaterra [12[12] L.M.C. Nardi, A matematização da eletrostática no século XVIII: de rupturas epistemológicas a estilos de matematização. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2021).].

Para explicação da garrafa de Leiden proposta nesta sessão, utilizaremos como base o trabalho “Conjectures sur les Causes de l’Electricité des Corps”, lido em 1745 na Académie Royale des Sciences e o livro Éssai sur l’Électricité des corps (Ensaio sobre a eletricidade dos corpos), publicado em 1746, que contém a base teórica envolvendo os fenômenos da eletricidade, uma vez que Nollet dedicou esses trabalhos para descrever novos fenômenos elétricos e suas explicações contendo resultados experimentais.

Diferente dos newtonianos franceses da época, Nollet não fala em força de atração e repulsão ao tratar os fenômenos elétricos. Era um seguidor de Descartes e afirmava que tanto as atrações quanto as repulsões nesses fenômenos se explicariam por forças de contato direto da matéria elétrica envolvendo os corpos [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 321]. Segundo Nollet quando um corpo era eletrizado por fricção emitiria ao mesmo tempo correntes “afluentes” e “efluentes” do fluido elétrico. A corrente efluente escapa através de seus poros e é compensada por uma corrente afluente do mesmo fluido vindo de fora [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 321–324]. Concluímos, com isso, que as correntes efluentes e afluentes se diferiam quanto a sua direção, e distribuição espacial.

Para Nollet o corpo eletrizado ocasionava a atração e repulsão dos corpos leves presentes na vizinhança através de uma das duas correntes que se opunham no fluido elétrico, afirmando que:

Um tubo friccionado fortemente em um local escuro espalha manchas esfumaçadas sobre os corpos não eletrificados que o cercam a uma curta distância [. . .] É, portanto, bastante evidente que as atrações, repulsões e outros fenômenos elétricos produzem os efeitos de um fluido sutil, que se fecha em torno do corpo eletrizado e estende sua ação ao redor, nas proximidades, mais ou menos conforme o grau de força que lhe foi imposta. Porque uma substância que toca, que a gente ouve agindo, que se torna visível em certos casos e que tem cheiro, pode ser outra coisa senão matéria em movimento? [. . .] [7[7] J.A. Nollet, Essai sur l’électricité des corps (Seconde édition, Paris, 1753)., p. 67].

Logo, os fenômenos elétricos eram ocasionados pelo movimento em direções opostas de duas correntes de fluido elétrico interagindo com outras correntes de diferentes intensidades em outros corpos vizinhos. Essas correntes estão presentes em todos os corpos, sendo a atração ocasionada pela corrente afluente e a repulsão pela efluente [2[2] C.C. Silva e P. Heering, History of Science 56, 314 (2018)., 3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 321–324].

Para que ocorressem os fenômenos elétricos, parte do fluido escaparia pelos poros de um corpo eletrificado, ocasionando uma corrente efluente e a perda de matéria elétrica é suprida por uma corrente afluente, como ressaltado no Conjectures:

Concordo, portanto, pelas razões que acabo de expor, que a matéria elétrica realmente dispara de dentro para fora dos corpos eletrizados, e que essas emanações têm um movimento progressivo e sensível até uma certa distância; mas tenho razões igualmente fortes para acreditar que uma matéria semelhante se transporta de todos os lados para o corpo eletrizado, e que vem para lá não apenas do ar circundante, mas também de todos os corpos, mesmo os mais densos e os mais compactos, que estão nas proximidades [. . .] [6[6] J.A. Nollet, Conjectures sur les causes de l’électricité des corps (Histoire de l’Académie, Paris, 1745)., p. 124].

Quanto ao fenômeno na garrafa de Leiden, o frasco ficou conhecido pelos acadêmicos a partir de uma carta que Musschenbroek enviou para Réaumur, em janeiro de 1746. A carta tem sua primeira leitura realizada na Académie, e uma segunda leitura três meses depois, em uma sessão pública, quando Nollet investigou e confirmou os efeitos presentes no experimento e como obtê-los [2[2] C.C. Silva e P. Heering, History of Science 56, 314 (2018).].

Em seu livro Éssai sur l’Électricité des corps lido em abril de 1746 na sessão pública, Nollet relata ter realizado a experiência com um copo comum segurando o frasco com uma mão e puxando a faísca com a outra, recebendo um choque que ele considera inegável. Ele explicou que reproduziu o experimento sozinho por estar impaciente e não poderia esperar pelo vidro alemão ou boêmio indicado por Musschenbroek, que considerava ser os únicos materiais que produziriam os resultados esperados [2[2] C.C. Silva e P. Heering, History of Science 56, 314 (2018).].

Nollet admitiu que o fenômeno de carregamento da garrafa fugia às regras de como fazer experimentos envolvendo eletricidade. Porém, não se questionou a ponto de construir uma nova teoria, mas sim tratou a garrafa de Leiden como uma exceção à regra, um fenômeno sui generis [4[4] B.A. Moura, A filosofia natural de Benjamin Franklin: traduções de cartas e ensaios sobre a eletricidade e a luz (Editora UFABC, São Paulo, 2019).]. Logo, ele atribui o fato de a garrafa permanecer eletrificada ao vidro no experimento, informando que o vidro impedia a perda de eflúvios do condutor primário na medida que adquiria uma forte eletrificação, tornando-se um forte emissor e receptor de matéria elétrica [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 321–324].

Nollet descreveu o experimento afirmando que quando uma pessoa segurando com uma das mãos o frasco de vidro ou porcelana, carregada cheia de água e suspensa de um metal carregado, aproxima a outra mão para obter uma faísca, essa pessoa sente um choque violento e passageiro, causado em ambos os braços, e até no peito, nas entranhas, e geralmente em todas as partes do corpo [7[7] J.A. Nollet, Essai sur l’électricité des corps (Seconde édition, Paris, 1753)., p. 194]. Ele conclui:

Tudo nos indica e nos leva a crer que a matéria elétrica é um fluido muito sútil que se refugia em toda parte, dentro e fora dos corpos, portanto está dentro de nós mesmos; e se julgarmos pela facilidade com que entra com força, pela extrema finura de suas partes, e pela porosidade de nossa própria matéria, não teremos dificuldade em compreender que ela flui em nós com uma continuidade perfeita, e que seus movimentos são pelo menos semelhantes aos dos outros fluidos que conhecemos [. . .] [7[7] J.A. Nollet, Essai sur l’électricité des corps (Seconde édition, Paris, 1753)., p. 194]

Em sua teoria, o vidro, na garrafa, desempenhava o papel de impedir a perda de eflúvios do condutor primário e de adquirir ele próprio uma grande eletrificação, ficando, portanto, carregado. A superfície superior da garrafa agia como um isolante, o volume do vidro como um condutor e a superfície inferior como um metal altamente eletrificado ou um corpo não excitado, conforme era aterrado ou isolado [13[13] C.C. Silva, Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: An account of recent works (Springer Netherlands, Dordrecht, 2011).].

Dessa forma, para que ocorresse o fenômeno elétrico envolvendo a garrafa de Leiden, uma pessoa segurando o frasco com uma das mãos enquanto o eletrifica, serve como um agente de fluxo duplo das correntes afluentes e efluentes. As correntes afluentes passam do exterior da garrafa para o chão através do experimentador, enquanto uma contracorrente de si mesmo passa para o frasco [13[13] C.C. Silva, Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: An account of recent works (Springer Netherlands, Dordrecht, 2011).].

Ao tocar o condutor principal com a outra mão que está livre, outro fluxo duplo mais rápido é estabelecido do metal para a mão e vice-versa. Logo o experimentador é atingido por afluentes da garrafa e do condutor, que repelem os efluentes de seu corpo, comprimindo dolorosamente a matéria elétrica naturalmente presente nos braços, peito e restante do corpo [13[13] C.C. Silva, Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: An account of recent works (Springer Netherlands, Dordrecht, 2011).].

De acordo com a base teórica de Nollet e da forma como ele conduz o experimento da garrafa de Leiden, observamos dois pontos importantes: que ele atribui o fato da garrafa desafiar a regra de du Fay devido as propriedades especiais do vidro, que simultaneamente retem o eflúvio que seria perdido pelo condutor primário e ao mesmo tempo transmite a eletricidade comunicada através do experimentador; e que tanto o carregamento da garrafa quando a alta descarga expressa no experimentador se dá pelos fluxos duplos de fluido elétrico exercido pelas correntes afluentes e efluentes.

Logo, Nollet não expressa o aterramento como sendo algo necessário para o experimento. Além disso, o francês utilizou diferentes líquidos dentro da garrafa, concluindo que os líquidos oleosos não eram eficazes, e fazendo uso da água como a mais adequada para a realização do fenômeno. Ele também testou frascos compostos por vários materiais, tamanhos e formas, concluindo que eles deveriam ser feitos de vidro ou porcelana, com 4 ou 5 polegadas de diâmetro [2[2] C.C. Silva e P. Heering, History of Science 56, 314 (2018).].

A fragilidade expressa pela teoria de Nollet em explicar pontos básicos como as características do condensador, como ele era carregado de maneira que se opunha as regras já estabelecidas em realizar experimentos envolvendo eletricidade, fez com que suas teorias fossem questionadas, fomentando ainda mais os estudos envolvendo eletricidade, em especial os que compunham a recém-inventada garrafa de Leiden.

3. Análise das Explicações da Garrafa de Leiden

Analisando as três explicações da garrafa de Leiden, podemos fazer uma comparação apontando algumas semelhanças, mas principalmente diferenças existentes em cada teoria criada. Conjecturamos que as diferenças sejam provenientes, principalmente, pelas influências de cada estudioso, seus métodos e os paradigmas vigentes nos diferentes espaços em que se deram os estudos.

Dentre as três explicações, duas envolviam a hipótese de um único fluido elétrico expressa por Franklin e posteriormente Aepinus; enquanto Nollet que considerava a existência de duas correntes. No entanto, mesmo as que tratavam de um único fluido elétrico, agindo pelo acúmulo ou falta deste, diferem-se quanto à explicação, pois Franklin trabalha o conceito de atmosfera elétrica; diferentemente de Aepinus, que por influências newtonianas, interpreta os trabalhos de Franklin tendo um olhar voltado para a ideia de força à distância.

Isso faz com que ocorra inclusive uma correção nos trabalhos de Franklin, quando Aepinus, através de uma série de hipóteses e, posteriormente, utilização da matematização, afirma que a quantidade inicial de fluido elétrico nunca será igual à quantidade final, relacionando a ideia de força à distância e diferença de fluido elétrico em ambos os lados da garrafa.

Nollet, por sua vez, seguidor de Descartes, para não refutar du Fay, considera o fenômeno de carregamento da garrafa como uma exceção à regra no processo de eletrização, referindo-se a ela como um fenômeno sui generis. Atribuindo aspecto de eletrização às propriedades de reter o eflúvio, formando uma emanação e transmiti-lo simultaneamente. Além de explicar o fenômeno da garrafa por meio das trocas duplas de fluxo do fluido elétrico por meio das correntes afluentes e efluentes nos diferentes corpos.

Franklin também explica o ato de carregar a garrafa de Leiden devido as propriedades do vidro, enfatizando a questão da sua impermeabilidade elétrica, que impede a passagem de fluido elétrico por ele, sem, no entanto, impedir a interação em ambos os lados do frasco. Ele explica o carregamento por meio da atmosfera elétrica, criada pelo excesso e falta de um único fluido elétrico coexistente no frasco de vidro. Aepinus generaliza a teoria da impermeabilidade do vidro, e por meio da matematização e montagem experimental explica o funcionamento da garrafa através de força à distância de forma repulsiva e ao fato do não elétrico estar conectado ao globo terrestre por meio de outros não elétricos.

Em síntese, podemos apontar questões importantes quanto as explicações envolvendo a garrafa de Leiden: duas hipóteses quanto a natureza da eletricidade foram estabelecidas, a de um único fluido elétrico e a de dois fluidos de matéria elétrica; as influências exercidas pelos diferentes filósofos naturais desempenharam um papel quanto a construção das explicações; o fato de já existir uma teoria para eletricidade e de como se realizar experimentos elétricos também influenciaram nas explicações.

Dessa forma, criamos um quadro comparativo (Quadro 1) apontando essas questões de maneira que fiquem mais claras as diferenças expressas nas explicações que envolvem o fenômeno da garrafa de Leiden.

Quadro 1
Resumo das características envolvendo o experimento na França, Inglaterra e Alemanha.

4. Considerações Finais

O principal aspecto que destacamos neste estudo de caso é a existência de diferentes explicações para o mesmo fenômeno que ocorria com a garrafa de Leiden. Também destacamos que o fato de os estudiosos estarem em diferentes locais e contextos, mas imersos no paradigma mecânico, faz com que apresentem conjecturas diferentes nas explicações. Por outro lado, o fato da natureza do fenômeno que ocorria alí não apresentar uma única explicação, não impediu da garrafa de Leiden se tornar um objeto imprescindível para vários experimentos que vieram posteriormente, como a pilha e aqueles envolvendo eletricidade e magnetismo. Portanto, observa-se que a existência de uma teoria e/ou modelo matemático, não é condição necessária para que um instrumento possa ser empregado.

Através da análise deste estudo de caso, percebemos que a garrafa de Leiden se mostraria de extrema relevância na associação da História da Ciência no Ensino de Ciências, pois apresenta aspectos significativos quanto à complexidade do conhecimento científico; contemplando diferentes questões, na medida que o fenômeno desafiava o conhecimento teórico e experimental da época.

Referências

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    C.C. Silva, Brazilian Studies in Philosophy and History of Science: An account of recent works (Springer Netherlands, Dordrecht, 2011).
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    S.L.B. Boss e J.J. Caluzi, Rev. Br. Ens. Fís. 29, 635 (2007).
  • 1
    A semelhança entre a garrafa de Leiden e um capacitor se dá porque ambos podem “armazenar” eletricidade e depois “descarregar”. No entanto, o capacitor é formado por várias camadas de dielétricos e o descarregamento é exponencial; enquanto a garrafa, quando foi elaborada, possuía apenas seu interior preenchido com um metal ou água para armazenar e o descarregamento é rápido. Portanto, a semelhança é mais na função do dispositivo do que na forma ou fenômeno envolvido.
  • 2
    Um dos primeiros geradores eletrostáticos foi inventado por Otto von Guericke (1602–1686). Sua composição consistia normalmente de um globo ou cilindro de vidro que girava ao redor de um eixo através de uma manivela de forma que ocorresse atrito contra a mão de uma pessoa ou contra uma almofada, pano, couro ou outra substância apropriada gerando eletricidade [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 213–218].
  • 3
    Na época, já se sabia que os experimentos com eletrostática deveriam ser isolados, esse fato era conhecido como Regra de du Fay. Du Fay foi um experimentalista da época, que estabeleceu uma regra de como realizar experimentos relacionados a eletricidade para os filósofos interessados pelo tema. A regra estabelecia que para um corpo ser eletrizado, ele precisava estar sob o apoio de um material elétrico espesso. Em outras palavras, o corpo precisaria estar isolado [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 252–258].
  • 4
    Os chamados quadros ou quadrados de Franklin foram um desenvolvimento das garrafas de Leiden. Ao perceberem que o formato das garrafas não era relevante, passaram a construir condensadores de placas paralelas nos quais um retângulo de vidro isolante possuía lâminas condutoras dos dois lados, que podiam ser carregadas com cargas opostas ao serem ligadas a máquinas eletrostáticas. Eles foram inventados na década de 1740 [3[3] J.L. Heilbron, Electricity in the 17th and 18th centuries: A study of early modern physics (Univ of California Press, Califórnia, 1979)., p. 317–334].
  • 5
    Du Fay, diferentemente de Franklin, adotava a existência de dois tipos de eletricidade: a vítrea e a resinosa [14[14] S.L.B. Boss e J.J. Caluzi, Rev. Br. Ens. Fís. 29, 635 (2007).].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2023
  • Revisado
    17 Jan 2024
  • Aceito
    18 Jan 2024
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