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A Percepção de Acadêmicos sobre a Relação Médico-Paciente Discutida em Oficinas Problematizadas do Caso do Eixo Teórico-Prático Integrado (Cetpi)

Students’ Views on the Doctor-Patient Relationship Discussed in Critical Analysis Workshops on Integrated Theoretical-Practical Case Studies(CETPI)

Resumos

As novas diretrizes fortalecem a postura crítica do aluno ao fomentarem a participação ativa na construção do conhecimento e a integração entre os conteúdos, a partir da ênfase no aprendizado baseado na prática e em diferentes cenários.

Objetivos

Promover o contato com um problema real e modificar a situação.

Relato

“O que vi foi um médico que não se levantou para receber a paciente e sua mãe, lhe receitou um exame de fezes, em seguida pediu que a garota de 5 anos viesse até sua cadeira e realizou sua ausculta pulmonar, de pé e vestida. A consulta terminou ao fim de 3 minutos e cinco frases do médico. A mãe saiu sem ser orientada com relação à saúde de sua filha. Assim, percebi que tive uma aula em que se aprende um exemplo a não ser seguido. Não é isso que aprendemos em nossas aulas, e não é isto que um ser humano merece receber”.

Resultados

Foram percebidas as falhas na relação médico-paciente do caso e em quais momentos da formação médica surge a ruptura do compromisso com o atendimento humanizado.

Conclusão

A mudança curricular permite a aplicação de metodologias que resultam em alunos capazes de formular seu conhecimento. A começar pela inserção precoce no ambiente de prática, que possibilita aos alunos a análise crítica e a discussão dos bons e maus exemplos de um encontro clínico. Assim, podem não ver mais o professor como uma pessoa que dita o conhecimento, mas como alguém com quem compartilhem a construção da aprendizagem.

Estudantes de Medicina; Educação Médica; Relações Médico-Paciente; Percepção


The new curricular guidelines reinforce the student’s critical stance by fostering active participation in knowledge construction and content integration based on an emphasis on practice-based learning in different scenarios.

Objectives

to promote contact with a real problem and modify the situation.

Description of experience

“First the doctor I was accompanying did not stand up from his chair to receive the patient and her mother. He prescribed a fecal exam and then asked the five year-old girl to come to his chair so he could listen to her chest; she was dressed and standing during the examination. The consultation ended after three minutes and only five sentences uttered by the doctor. The mother left with no advice about her daughter’s health. So I realized I’d had a lesson where you learn an example not to be followed. This is not what we have learned in our classes and this is not the treatment that a human being deserves to receive”.

Results

we perceived flaws in the doctor-patient relationship in this case and at which points of medical training the commitment to humanized attendance appears to rupture.

Conclusion

the curricular change allows the application of methodologies that result in students capable of formulating their own understanding. This should start with early student participation in practical settings, which enables them to critically analyze and discuss the good and bad examples of a medical consultation. Thus, they may no longer see the teacher as someone who dictates the knowledge, but rather as someone with whom they share the construction of learning.

Medical Students; Medical Education; Physician-Patient Relations; Perception


INTRODUÇÃO

O ensino médico no Brasil já completou dois centenários.Nesse período, vivenciou inúmeras mudanças na estrutura da saúde no País, plantou e germinou sua melhor semente: o Sistema Único de Saúde (SUS), que completa sua segunda década de implantação e que, como todo amadurecer, experimenta hoje um processo de reformulação e debate.

Tanto no Brasil como em um contexto mundial, a educação médica tem suscitado as mais diversas discussões e abordagens no que diz respeito à avaliação da doutrina e prática exigidas na formação profissional do médico contemporâneo.

As novas formulações se compõem de aspectos não somente políticos e didático-pedagógicos, como também econômicos, culturais e comunitários – relacionados ao contexto social em que se insere o paciente. Isto reflete as mudanças nos sistemas e serviços de saúde e a própria urgência de readequação na educação médica brasileira e mundial.

A missão do SUS é então definida como a garantia, aos cidadãos, do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, promovendo e recuperando a saúde.

Assim, o Estado federal deixa de ser um executor das ações de saúde e se transforma em gestor de políticas, em parceria com seus entes federados. Deste modo, o SUS atua como política do Estado brasileiro, uma ferramenta de melhoria da qualidade de vida no âmbito da Atenção Básica da Saúde.

O conceito de saúde se modificou ao longo dos tempos, e o que antes era entendido como ausência de doença agora é visto de modo ampliado e definido como bem-estar não somente físico, mas também mental. Essa mudança trouxe para o médico mais uma missão: entender o melhor caminho para construir uma atmosfera de saúde em torno do paciente sob seus cuidados. Cada vez mais, torna-se importante cuidar da vida de modo a reduzir o adoecimento e a propiciar saúde ao indivíduo em sua coletividade.

À medida que se compreende que o processo saúde-adoecimento é determinado pela existência de condições de trabalho, moradia, alimentação, estresse, meio ambiente, lazer, graus de autonomia, exercício da cidadania – enfim, por uma série de construções socioeconomico-culturais –, modifica-se o pensar nas ações do setor sanitário, o que, sem dúvida, se reflete no formar e educar médico.

As mudanças no desenvolvimento do SUS são de real importância e representam mais que um desafio, são um imperativo para a qualificação da atenção à saúde na direção da integralidade.

TRANSFORMAÇÃO DA EDUCAÇÃO MÉDICA

O atual movimento de transformação vivido na educação médica é fruto do contexto da redemocratização brasileira, que, ao promover avanços na garantia do direito constitucional à saúde, fez surgir mudanças nas relações sociais implicadas na educação e prática médica.

A própria construção de diretrizes curriculares foi um exercício de democracia. Resultante da insatisfação de usuários do sistema de saúde, foi expressa pelos movimentos sociais que encontraram eco nas lideranças acadêmicas que se articularam em torno da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) e da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação da Educação Médica (Cinaem).Foram sucessivos fóruns de discussão que congregaram alunos, docentes e gestores, construindo credibilidade perante o governo e a sociedade.

Tal processo resultou no encaminhamento do Ministério da Educação ao Conselho Nacional de Educação das diretrizes curriculares para a educação médica. As novas diretrizes avançam no sentido de se superar o chamado modelo flexneriano – no qual a base científica foi desmembrada da prática médica, promovendo a fragmentação do conhecimento, com negligência de aspectos psicossociais que permeiam o exercício da medicina.E, ainda, condenam a educação centrada no professor, que falha na formação de profissionais críticos.

Nos processos de ensino-aprendizagem, as novas diretrizes contribuem para reconstruir conexões interdisciplinares e fortalecer a postura crítica do aluno ao fomentarem “a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e a integração entre os conteúdos, além de estimular a interação entre o ensino, a pesquisa e a extensão”, a partir da ênfase no aprendizado baseado na prática e em diferentes “cenários”, não apenas o hospital-escola, “permitindo ao aluno conhecer ativamente situações variadas de organizar cuidados à saúde e trabalhar em equipe multiprofissional”, além de “buscar a educação permanente, especialmente a autoaprendizagem”.

A implantação das novas diretrizes curriculares no meio acadêmico será gradual porque, em um primeiro momento, o problema das propostas de mudança até o final da década de 1980 teria sido a dificuldade de traduzir para o campo da educação médica as insuficiências da prática médica e da organização dos serviços de saúde, diagnosticadas comoincipientes1Schraiber LB. Educação médica e capitalismo. São Paulo: Hucitec/Abrasco;1989.. Agora se sabe que a morosidade, em grande parte, se deve à carência de docentes dispostos a modificar a maneira de trabalhar o saber médico do modo catedrático para o modo compartilhado.

O mundo mudou, e com ele mudaram as exigências do paciente no momento do encontro clínico. Ao abordar o doente, cabe ao médico ver a doença não apenas como patologia, mas como um fenômeno social, o que possibilita ações sobre o indivíduo e seu coletivo –entendendo que a compreensão da causalidade social da doença auxilia a construção do raciocínio clínico e repercute na adesão às propostas terapêuticas.

A inadequação do processo formador médico em responder às demandas sociais é de reconhecimento internacional. Há necessidade de mudança para que se valorize a equidade e a qualidade da assistência,tornando o trabalho médico eficiente e relevante.É necessário romper com as estruturas de ensino tradicional e formar profissionais de saúde com habilidades, competências e atitudes que lhes permitam recuperar a essência do cuidado, a humanização da prática médica.

Pensando nisto, algumas escolas médicas já têm buscado interagir com a comunidade externa às academias com inovações na maneira de planejar e desenvolver seus cursos. Inspiradas nos exemplos de experiências realizadas no Canadá (MacMaster) e na Holanda (Maastricht), e também por recomendação das Sociedades das Escolas Médicas para países da Ásia, África e América Latina, escolas de Medicina no Brasil vêm buscando adotar em seus currículos metodologias pedagógicas ativas, dentre elas a Aprendizagem Baseada em Problemas (Problem Based Learning– PBL) e a Metodologia da Problematização.

Segundo Sakai e Lima2Sakai MH, Lima GZ. PBL: uma visão geral do método. Olho Mágico 1996; 2(5/6)., a PBL é o eixo principal do aprendizado teórico do currículo de algumas escolas médicas cuja filosofia pedagógica é o aprendizado centrado no aluno. Embora não constitua a única prática pedagógica, predomina no processo ensino-aprendizagem de conteúdos cognitivos e na integração de disciplinas. É uma metodologia formativa, pois estimula uma busca ativa do aluno pelo conhecimento, e não meramente informativa, como é o caso da prática pedagógica tradicional.

A Metodologia da Problematização é um processo emancipatório, de diálogo entre educador e educando. Paulo Freire3Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro:Paz e Terra; 1975.defende que a educação não pode ser uma prática de depósito de conteúdos apoiada numa concepção de homens como seres vazios, mas de problematização dos homens em suas relações com o mundo.

A problematização tem sua origem nos estudos de Freire, para quem os problemas a serem estudados precisam se valer de um cenário real. A observação da realidade permite a obtenção dos problemas que se manifestam aos alunos e professores com todas as suas peculiaridades e contradições, o que possibilita a formulação crítica.

Para Freire, quanto mais o professor possibilitar que os estudantes se percebam como seres inseridos no mundo, mais estes se sentirão desafiados a responder aos novos desafios. Ensinar, aprender e pesquisar. O eixo básico orientador do processo de problematização é a relação ação-reflexão-ação transformadora.

Referência para essa metodologia é o Método do Arco de Charles Maguerez, do qual conhecemos o esquema apresentado por Bordenave e Pereira4Bordenave J, Pereira A. Estratégias de ensino aprendizagem. 4. ed. Petrópolis: Vozes; 1982.. Constitui-se de cinco etapas que se desenvolvem com base na realidade ou em um recorte da realidade: observação da realidade; pontos-chave; teorização; hipóteses de solução; aplicação à realidade (prática).

A PROBLEMATIZAÇÃO NO CEPTI

O processo de ensino tem início no contato dos alunos com um problema real, mediante observação da realidade. Segue-se a identificação das variáveis ou pontos-chave do problema, fatores modificáveis que poderiam resultar na solução do problema.

Há, então, a formulação de eixos e subeixos temáticos identificados para a discussão e solução do problema, ocorrendo uma interação entre estudante e objeto de estudo, com a construção de um diálogo crítico.

Em seguida, os alunos buscam uma teorização sobre o problema por intermédio de entrevistas com especialistas e pesquisas, evidenciando a contribuição da ciência para o esclarecimento e a discussão do assunto.

Na educação problematizadora, busca-se interpretar a realidade mediante a criação de espaços contestatórios que possibilitem a crítica à realidade estudada. Trabalhando e conhecendo os problemas, os alunos são capacitados a intervir na realidade.

O Cetpi tem como finalidade a articulação e o aprofundamento de conhecimentos e a aquisição da visão global da comunidade sobre o cenário onde estão inseridos para as atividades práticas comunitárias.

De acordo com a representação do Método do Arco, há cinco momentos:

  • – Identificação de casos-problema na comunidade;

  • –Escolha do eixo norteadore dos subeixos que derivam do caso;

  • – Encontros de discussão dos subtemas derivados do problema em pequenos grupos;

  • – Verbalização da pesquisa nos artigos científicos relacionados para o grande grupo.

Essas etapas são discutidas em pequenos grupos, com a participação de um docente, buscando sempre estabelecer um processo dialógico entre os alunos e o professor, a fim de superar as barreiras emocionais em relação à comunicação no grande grupo posteriormente.

Relato

Numa sessão de Cepti dos acadêmicos de Medicina da PUC Goiás a respeito da relação médico-paciente, uma aluna relatou a experiência que vivenciou numa consulta num dos espaços de atendimento médico no distrito sanitário escola. A princípio, ela se entusiasmou ao saber que estaria presente no consultório com um médico muito experiente, mas este sentimento logo foi substituído por decepção:

“O que vi ali foi um médico que não se levantou para receber a paciente e sua mãe, não as cumprimentou, não solicitou à mãe (gestante) que se sentasse; logo que soube que as queixas da paciente eram abdominais, prontamente lhe receitou um EPF (o que é isso?) sem mais explicações. Em seguida, pediu que a garotinha de 5 anos viesse até sua cadeira e realizou a ausculta pulmonar ali mesmo, com a menina de pé e vestida, e, sem mais palavras, entregou à mãe o pedido de exames.A consulta terminou ao fim de 3 minutos e cinco frases do médico com a paciente e sua mãe, que saiu de lá sem nem ao menos ser levada à porta ou ser orientada com relação à saúde da filha. Colegas, hoje sei que naquele dia tive, sim, uma aula: aquela em que se aprende o exemplo a não ser seguido. Não sei se ele sempre foi assim em seu consultório ou se foi o passar dos anos que o tornou assim; sei que não devemos, em tempo algum, agir de tal modo em nossa prática profissional. Não é isso que aprendemos em nossas aulas, e não é este o tratamento digno que um ser humano debilitado por sua doença merece receber”.

Após o depoimento, seguiu-se um amplo debate dos alunos e professores acerca de tudo o que foi dito, da maneira como perceberam as falhas na relação médico-paciente do caso relatado e que momentos da formação médica poderiam contribuir coma busca da manutenção do atendimento humanizado.

CONCLUSÃO

Ao fim dessa discussão, concluiu-se que a mudança curricular permite aplicar metodologias que resultam em alunos críticos e capazes de autoconstrução de seu conhecimento. A começar pelo modo como os conteúdos são apresentados aos alunos, que agora veem no professor não mais um ser indiscutivelmente detentor de todo o saber, que de modo vertical dita o saber; mas aquele com quem eles podem compartilhar o conhecimento, construir novos conceitos e, de forma dinâmica, horizontalizar o saber, sendo mais um tutor, orientador.

Isto se reflete na mudança de visão da relação médico-paciente. Antes baseada na compreensão de que o médico estava acima do outro – um paciente –, ela passa a uma relação em que o processo de cuidado requer a decisão conjunta de ambos, em que o corpo está doente e não apenas uma parte dele, sabendo-se que o paciente merece ser respeitado, visto e tratado de forma humana e como coparticipante do processo decisório da conduta terapêutica.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Schraiber LB. Educação médica e capitalismo. São Paulo: Hucitec/Abrasco;1989.
  • 2
    Sakai MH, Lima GZ. PBL: uma visão geral do método. Olho Mágico 1996; 2(5/6).
  • 3
    Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro:Paz e Terra; 1975.
  • 4
    Bordenave J, Pereira A. Estratégias de ensino aprendizagem. 4. ed. Petrópolis: Vozes; 1982.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2013
  • Aceito
    17 Out 2014
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