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A Modernidade Desencantada, a Crise da Medicina e o Imaginário Institucional

Disenchanted Modernity, the Crisis in Medicine, and Institutional Imagination

Resumo:

Constataram-se as profundas amarras do saber médico ao modelo e às normas da ciência moderna, que, ao dissociar razão/sujeito, produz uma ciência que centro seu objeto de estudo no corpo anatomopatológico, caracterizando-se, desta forma o aprimoramento da ciência médica ao paradigma da simplificação. A partir ainda das negatividades da dissociação racionalidade/subjetividade, é pensada a crise da modernidade, bem como a crise da medicina e da fonnação médica. Sugere-se a ruptura com o paradigma da simplificação como o caminho possível para a construção de um novo modelo de formação médica medicina da complexidade. Acredita-se que somente a partir de profundas mudanças através das quais se conceba a pedagogia como “escola de gestão de sujeitos”, será possível a superação de uma medicina orgânica e o surgimento de uma nova concepção em educação médica, que, por sua vez participe, dentro de suas limitações, da construção de um novo homem e uma nova humanidade.

Descritores:
Ética médica

Abstract:

lt is possible to locate the profound connection between medical knowledge and the modem model and rules of modem science, which, by establishing a split between reason and subject, leads to a science which has the "pathological” body as its main object of study, thereby imprisoning medical science within a paradigm of simplification. The author analyzes both the crisis of modernity and that of medicine and medical education from the perspective of tire negativism arising from the dissociation between rationality and subjectivity. Breaking with the paradigm of simplification is suppested as a possible way to create a new model for medical education - a Medicine of Complexity The author contends that only by way of profound changes by which Education is seen as·a “school giving birth to subjects”. will it be possible to supplant organic medicine and bring about a new concept of modern education which - despite its limitations - takes part in giving rise to a new man and a new humankind.

Keywords:
Ethics medical

INTRODUÇÃO

O Aprisionamento do Saber Médico aos Paradigmas da Ciência Moderna: da Medicina Orgânica a uma Medicina da Complexidade

A partir da constituição do saber médico como discurso científico, cada vez mais e de maneira mais acentuada tem a medicina centrado este saber sobre o corpo biológico, caracterizando a atual racionalidade médica como fundamentalmente anátomo-fisiopatológica, o que é facilmente confirmado no modelo da prática clínica tradicional de uma medicina quase estritamente orgânica.

Aprisionadas a esta razão que elegeu como objeto de estudo o corpo físico, as escolas médicas têm-se limitado a concentrar seus conteúdos pragmáticos numa racionalidade orgânico-tecnicista, que visa sobretudo a capacitar tecnicamente o futuro profissional na arte semiótica, preparando-o para diagnosticar e curar as enfermidades orgânicas de seus pacientes.

Comprometidas com este modelo de formação e fortemente influenciadas pelas herança; do iluminismo, e mais especificamente de seu representante final, o positivismo e sua ideologia resultante, o tecnicismo, as escolas médicas têm atuado apenas como locais de Instrução. A consequência em face da referida dominância e aprisionamento a um cientificismo ideológico orgânico-tecnicista, é a formação prevalente de médicos organicistas-tecnocratas.

A disjunção objetivismo científico/subjetivismo humano conduziu a um saber no qual as diversas disciplinas científicas eliminaram o homem enquanto problema determinante e fundamental, ponto de partida e de chegada do conhecimento. Ao excluir o sujeito, esquecendo que o saber só tem sentido quando referido e voltado para a libertação e crescimento deste mesmo homem, a ciência perde de vista seus objetivos terminais e fundamentais, afastando e impedindo que suas questões mais importantes a possibilidade de uma postura critico-reflexiva sobre o sentido e o significado do próprio saber sejam pensadas. As indagações e inquietações referentes à interioridade do homem, as preocupações metafisicas com o ser são rechaçadas, visto que elas apenas impedem a busca das certezas absolutas e das verdades dos fatos, estas, sim, considerados questões relevantes: as reflexões sobre a transcendência, o sentido, a finalidade da vida são excluídas por representarem, talvez, resquícios da ligação do homem a pensamentos pré-lógicos e mítico-mágicos, incompatíveis com uma razão verdadeiramente científica, e as questões éticas, esquecidas e relegadas a um segundo plano, já que a única postura ética é a busca do conhecimento verdadeiro a qualquer preço e custo.

Neste contexto, o conhecimento corre o risco de se transformar numa mera aquisição e acúmulo de informações a partir dos interesses lógico-tecnicistas, limitando-se a educação à simples tarefa de transmissão dessas informações, reduzindo o papel das escolas a meros locais de instrução, e o processo educacional ao repasse imitativo repetitivo de conhecimento de segunda mão.

Se chega a ser chocante esta visão utilitarista da formação profissional, é também triste a visão redacionista e fragmentadora do processo educacional nas diversas disciplinas científicas. Duplamente chocante se torna a visão do saber médico e de sua aplicabilidade prática restritos a uma ética da saúde do corpo físico, comprometida apenas com a cura do corpo biológico, numa perspectiva instrumental-tecnológica na qual o olhar para além do corpo enfermo pode ser visto como comprometedor e interferir na desejada frieza e objetividade do ato clínico, no qual o encontro de pessoa com pessoa é temido e considerado sentimentalismo inútil e desnecessário.

A medicina atual, marcada por extraordinários avanços científico­tecnológicos, caracteriza-se cada vez mais pela sofisticação e precisão de suas práticas e técnicas diagnósticas, bem como por seus procedimentos e técnicas terapêuticas e farmacológicas. Portanto. ela deveria ser cada vez mais procurada e reconhecida, e deveria contar com alto grau de confiabilidade por parte da população enferma. Entretanto, a medicina passa por sua talvez mais profunda crise de valores, de identidade, sofrendo mesmo um acentuado descrédito. Isto pode ser constatado pela procura cada vez mais frequente das práticas alternativas e mítico-mágicas pela população, o que sugere um retorno às origens de uma medicina pré-científica, que buscava a cura do corpo e a salvação da alma nos sacerdotes e xamãs. Esse fato aponta a existência de uma divergência entre uma prática clínica voltada para a cura da doença do corpo e a demanda latente não entendida e como tal não atendida da população enferma, que se recusa a ser olhada como corpo doente, mas pede para ser compreendida e tratada como pessoa enferma.

Na tentativa de superação de uma medicina orgânica, o que se vê hoje é o surgimento e o oferecimento de uma medicina holística, globalista, que promove o todo, se dirige ao todo, mas rejeita e mesmo desconhece as partes, caindo desta forma em outra concepção reducionista, mais grave ainda, a meu ver, do 'que a redução e fragmentação médicas apoiadas na disciplinaridade do corpo anátomo-fisiopatológico. Isto porque essas concepções médicas alternativas se apoiam, acima de tudo, na exploração ingênua das necessidades e demandas de uma massa humana enferma e carente de amparo religioso e afetivo, o que possibilita e facilita os processos de curas meramente sugestivas.

São antigas e bem fundamentadas as críticas direcionadas à medicina organicista, as tentativas de superação desta prática médica e os anseios pela constituição de uma medicina da pessoa, antropológica, cuja referência não se dirija apenas ao domínio do biológico, mas às dimensões outras do humano que se contraponham as da espécie natural. Também são sobejamente conhecidas as aspirações de uma prática médica pensada e exercida com o auxílio de saberes outros, que deveri­am ser articulados numa profunda relação de complexidade com o discurso somático. Desta forma, a medicina entraria na região da inter­disciplinaridade, na qual o corpo anátomo-fisiopatológico se articularia com corpos outros o afetivo, o pulsional e o social, passando então a medicina a centrar seu olhar no que deve ser seu verdadeiro objeto de estudo, o homem, numa perspectiva globalizante e compreendido em sua dimensão bio-psico-sociocultural.

No entanto, constata-se ainda hoje a existência de uma profunda resistência por parte do saber médico em romper com sua prática organicamente centrada e ir em busca de um modelo comprometido com a pessoa e com a complexidade do humano, apesar de todos os posicionamentos e posturas teórico-críticos por nós já referidas, que lutam, propõem, clamam, tentam a implementação de uma nova prática clínica.

Resistências diversas, referentes a questões de poder político, econômico-financeiras, ideológico-culturais, entre tantas outras historicamente condicionadas e condicionantes, têm se colocado contra o surgi­mento de um modelo de formação médica comprometido com a noção de complexidade, o que permitiria, por sua vez, a instauraçao de uma nova prática médica voltada para uma noção complexa do homem e do enfermar, em sua dimensão bioantropológica e bio-psico-sociocultural.

Tais resistências acabam por prevalecer na formação do profissional médico, predominando nas faculdades de medicina um processo de instrução científico-tecnicista centrado no corpo físico, preocupado quase exclusivamente com a capacitação técnica do médico, com o objetivo de inseri-lo no mercado de trabalho, sem maiores preocupações com uma formação médico-educacional, verdadeiro objetivo do ensino.

Tendo em vista a absoluta necessidade da construção de um novo modelo teórico-prático de formação médica, e a partir do entendimento de que as faculdades de medicina não podem continuar a se prestar ao papel de serem apenas locais de instrução, preocupadas somente com a qualificação técnico-científica de seus alunos, sem se dar conta de sua importância e responsabilidades enquanto espaços sócio-politico-culturais, deveriam as mesmas assumir seus objetivos e compromissos maiores, engajando-se num verdadeiro processo educacional, que passa, inexoravelmente, pelas preocupações com a construção simbólica de seus sujeitos-alunos.

DA CRISE DA MODERNIDADE À CRISE DA MEDICINA

Não podemos negar que vivemos todos uma grave e intensa crise, numa sociedade que se encontra assustada, perplexa, quase paralisada diante da proximidade da violência, da morte, da destruição, da miséria e da fome, que nos atingem e ameaçam muito de perto. Não podemos mais acreditar na existência de lugares ou meios em que nos sintamos seguros, protegidos e a salvo dos riscos de uma humanidade em crise.

E é nesta modernidade em crise que somos convidados a escrever, sonhar e construir nosso futuro, nossa história, e o futuro e a história da humanidade numa sociedade que se dividiu, por um lado, num coletivo (vazio de valores) sob a dominância dos poderes de estado, econômico-financeiros e da mídia, que visam sobretudo ao lucro, à submissão e ao controle sobre os homens; e, por outro, em indivíduos, qual náufragos sobreviventes (vazios de sentido e finalidade), maciçamente estimulados a "inflar seus egos', num individualismo narcísico, por uma sociedade que ilude com a promessa de gozos e prazeres absolutos, estimulando ainda a busca de ‘status social’ e o consumo desenfreado como alternativas possíveis para suprir e fugir das carências, dos vazios e das angústias referentes às condições fundantes e estruturantes do humano, a finitude e o desamparo.

Por enquanto, saídas e soluções ilusórias, pois, no final da festa... se instalam a tristeza, a depressão e o duro enfrentamento com as dores do humano. Dores que, cada vez mais, são sentidas e sofridas no corpo biológico, manifestando-se sob as mais variadas formas de sensações corpóreas, sinais e sintomas, que, entretanto, são incapazes de ser reconhecidas por uma medicina cega para tudo que não se inscreva na ordem de um saber sobre o corpo anatomo-patológico.

A modernidade está em crise e, com ela, o homem, a sociedade e a própria humanidade se deparam com os caminhos e descaminhos que apontam ou para a destruição da própria humanidade ou, quem sabe... para o nascimento de um novo homem e de uma nova humanidade.

Não se trata de culpar de maneira simplista a ciência moderna e seu produto final, a racionalidade técnico-científica, pelos males de nosso mundo atual. Ao contrário, torna-se absolutamente justo e coerente que o conhecimento científico-tecnológico seja reconhecido em suas positividades.

Contudo, não se pode negar que a ciência moderna, ao dissociar razão/subjetivação, privilegiando a primeira e esquecendo e excluindo o sujeito, teve uma parcela enorme de responsabilidade na construção desta modernidade em crise. Os traços psicopatológicos mais marcantes desta modernidade são, dentre outros, a psicopatia (entendida como a inexistência de uma consciência crítica): a histeria (histericização perverso-masoquista das relações humanas); o narcisismo (entendido como amor de si próprio enquanto máxima a ser seguida); a fuga para as drogas (entendida como a ilusão do encontro com o impossível objeto do desejo); e, finalmente, a depressão (entendida como perda deste mesmo ilusório e impossível objeto do desejo). Esses traços configuram a profunda crise de valores no mundo contemporâneo, que nos assusta, intimida, acua e amedronta, pois a cada dia somos obrigados a conviver mais de perto com a dura realidade de um mundo que, a partir das crenças nos ideais iluministas, cuja ideologia resultante foi uma tecno-ciência com sua racionalidade - instrumental-tecnológica, acreditou ser possível libertar o homem dos medos, dos irracionalismos, da ignorância, da submissão do homem ao próprio homem, pensou dominar e submeter a natureza, construindo o que seria, em suma, o milagre do progresso da modernidade, que, no entanto, a despeito de suas positividades, já reconhecidas e antes referidas, agravou e acelerou a fome, a miséria, as discriminações sociais disfarçadas, fazendo disparar de maneira descomedida a violência, a competição desleal, a opressão, a destrutividade e a morte.

O RESGATE DA ÉTICA E DO SUJEITO NO DISCURSO MÉDICO

Ao privilegiar a razão e a racionalidade cientifica, omitindo, esquecendo e mesmo apostando na destruição do sujeito, a sociedade pós-moderna conseguiu diluir e quase apagar o humanismo e a ética, que constituem, no entanto, elementos imprescindíveis e ponto de partida para a construção de uma nova ordem social, que só pode ser pensada a partir do resgate da auto-ética e de uma ética da solidariedade e da compreensão, entendidas, acima de tudo, como a possibilidade de o indivíduo sair de seu fechamento, de seu autocentramento, e falar como sujeito, ao outro, um outro sujeito, como nos mostra Touraine1010. Touraine A. Crítica da Modernidade. Petrópolis, Vozes, 1998..

Como vemos, o resgate do humano passa pelo resgate da auto-ética, entendida por Morin55. Morin E. Amor, Poesia, Sabedoria, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998. ‘como o esforço maior da sabedoria, que implica evitar a baixeza e evitar ceder aos impulsos vingativos e maldosos’, o que a aproxima de uma ética da compreensão de que somos todos humanos, simplesmente humanos, e, portanto, vazio, carência, falta, solidão, angústia, restando como alternativa o abandono das defesas e do refúgio no autocentramento individualista e narcísico, e a abertura para a alteridade amorosa e o reconhecimento do outro.

Somente através do aprendizado e exercido desta auto-ética e da ética da compreensão poderemos talvez começar a encontrar o centro de uma verdadeira sabedoria, situada para além da mera aquisição de conhecimentos científicos a que somos induzidos por uma sociedade utilitarista, que nos leva a uma competição inútil, desnecessária e destrutiva, na qual os lucros e benefícios maiores, como sempre, são obtidos pelos detentores dos sistemas de poder e econômico-financeiros.

Talvez sejam estes os caminhos, ainda escuros e tortuosos nestes tempos sombrios, que no entanto podem nos iluminar na difícil, às vezes quase impossível, tentativa de todos nós alunos, professores, direção institucional do encontro e do diálogo que torne possível a construção de um modelo de formação médica capaz de participar do resgate da fugidia, apagada e esquecida 'humanidade do homem’, tornando possível o sonho da construção de urna nova humanidade.

Deste modo, a partir da constatação da grave crise hoje vivenciada pelo homem, ‘na qual de certa forma se joga o próprio destino da humanidade77. Morin E. Para Sair do Séc XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.’, acreditamos que as faculdades de medicina não podem se omitir, limitando-se a atender às demandas de um sistema de produção perverso e injusto, mas assumir suas responsabilidades e compromissos com o homem, a sociedade e a humanidade como um todo, tendo em vista que as mesmas se encontram inseridas no macrossistema social e, enquanto produtos desse contexto, reproduzem as tensões, conflitos, temores e desejos vivenciados pelo homem. Essa constatação nos leva a afirmar não poderem elas ser vistas apenas como locais de instrução, mas necessariamente enquanto espaço sócio-político-cultural.

UM NOVO MODELO DE FORMAÇÃO MÉDICA

Tais questões nos levam a pensar, que as instituições médico-formadoras, para além de seus compromissos com a formação de profissionais com reconhecida qualificação técnico-cientifica referidas a um saber sobre o corpo biológico, necessitam urgentemente optar por uma nova concepção em 'educação médica’. Caso contrário, a medicina não conseguirá superar seus atuais impasses, que a conduziram a uma profunda crise de valores e de identidade, cujas consequências, dentre outras, se fazem sentir através da procura cada vez maior, por parte dos pacientes, de práticas alternativas e mítico-mágico-religiosas, em face da incapacidade do saber médico de escutar, entender e atender à demanda latente de seres humanos que simbolizam no corpo biológico seus sofrimentos mais profundos, fazendo surgir as enfermidades e as lesões de órgãos.

Há que se caminhar e construir uma nova visão da formação médica, através da superação do aprisionamento ao paradigma da simplificação, que produz um saber fragmentado e reducionista, centrado no corpo anatomopatológico. Há que se superar todas as formas de autoritarismo do saber e de poder. Há que se repensar os procedimentos didáticos, na maioria das vezes ainda ancorados ao ensino decoreba repetitivo. Enfim, cabe às instituições médico-formadoras romper com o tradicionalismo de serem apenas meros locais de instrução (repasse de conhecimentos e informações, correndo o risco de se tornarem facilmente anacrônicas, desatualizadas e na maioria das vezes mal utilizadas): fornecedoras de mão-de-obra especializada (atualmente tão desvalorizada), atendendo às necessidades perversas ele uma sociedade de produção que visa apenas ao poder e ao lucro, instrumentalizando e transformando médicos e pacientes em meros objetos.

No entanto, somos todos direção institucional, professores, alunos prisioneiros do medo de romper com um sistema de ensino perverso, que somente agora mostra suas deficiências, visto que põe em crise o aluno, ameaçando com isto a estabilidade da instituição, ao privilegiar como objetivo de ensino a inserção do aluno no sistema de produção fornecendo o aprendizado de práticas e de um saber sobre as doenças que abre portas para o emprego num momento em que o mercado de trabalho possui um excedente de oferta. Sobrevivem os mais aptos mais máquinas?, mais duros?, mais insensíveis?, mais bem preparados tecnicamente? para lidar e se adaptar ao sistema na luta quase selvagem na qual o indivíduo perde sua individualidade, não tem direitos a sua singularidade e se transforma cada vez mais em objeto descartável (afinal, existem vários outros, talvez mais bem preparados tecnicamente, mais submissos e, portanto, mais adequados ao sistema), nesta estranha máquina de torturar e triturar homens.

Mas não se preocupem, neste incrível sistema nada se perde, tudo se transforma... -em lucro, o que possibilita que até os “fragmentos de pessoas” sejam reaproveitados e reutilizados pelo sistema.

Apesar da angústia, do desespero, da incerteza, da insegurança frente às sombrias perspectivas futuras, tememos, como sempre, o novo, as mudanças (possibilidades que surgem das crises), que se apresentam, no entanto, como viabilidades e alternativas de pensar saídas para um sistema de ensino que se mostra inadequado para preparar o jovem estudante para a nova realidade de mercado, tendo em vista que, ao optar pelo repasse de um saber cientifico-tecnológico, afastou e perdeu de vista os mais autênticos compromissos com as verdadeiras finalidades de um processo educacional.

IMAGINÁRIO E REFORMAS MÉDICO­INSTTTUCIONAIS

Historicamente, é sabido que a maioria das reformas educacionais (didático-pedagógicas) até agora propostas tem sempre partido de cima, dos poderes constituídos, desconsiderando-se sempre a opinião dos estudantes aos quais se dirige o processo de ensino, culminando em resistências e obstáculos que inviabilizam e mesmo paralisam as mudanças propostas.

Por outro lado, esta questão nos remete à necessidade, diria fundamental, de efetuar uma escuta do imaginário institucional, uma escuta das dimensões imaginárias nas relações de ensino e nas relações institucionais como um todo, se desejamos efetivar reformas educacionais verdadeiramente significativas.

De imediato, somos remetidos a Castoriadis22. Castoriadis C. A Institução Imaginária da Sociedade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., que, ao situar o imaginário como essencialmente criação incessante e indeterminada de figuras, formas, imagens, afirmando serem a realidade e a racionalidade seus produtos, ressitua a busca do conhecimento e o processo ensino-aprendizagem em sua relação com o imaginário em seu devido lugar, reafirmando a importância da dimensão imaginária no processo educacional.

Podemos, agora, pensar e tentar romper com o fechamento do conhecimento cientifico no tripé razão-empirismo-verificação e conceber a construção do conhecimento como uma longa e interminável viagem, na qual o homem procura descobrir, entender, compreender o mundo e a si mesmo, utilizando para atingir esta finalidade, todos os seus atributos psíquicos e não, ao se considerar apenas sapiens, acreditar ser passível a aquisição do conhecimento somente através do uso de sua racionalidade. Nesta nova perspectiva, o processo educacional entendido como busca do conhecimento na tentativa do desenvolvimento das possibilidades do humano só pode ser entendido como um diálogo entre a dimensão racional e a dimensão imaginária (fonte da criatividade humana), sem que uma se sobreponha ou anule a outra, mas a partir de um sonho, um devaneio, um quase delírio, frutos de um imaginário que, ao se misturar com pedaços, partículas de racionalidade, faz surgir o novo, o criativo, colocando mais um pequeno tijolo na construção infindável do edifício do saber.

O ser humano só pode ser homem e ser racional à medida que se permita ser imaginário-imaginante, só pode se aproximar do real se libertar seu imaginário; só pode conhecer a partir da assustadora e temerária viagem dialética, através da dialógica razão-imaginação, o que lhe permite criar um mundo em contínuo processo de transformação, entre sua razão e sua imaginação, sua objetividade e sua subjetividade, seu sonho e sua realidade.

É fundamental que se pense ainda, a partir de Castoriadis,33. Castoriadis C. Feito e a ser feito: As encruzilhadas do labirinto V. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. “o imaginário social instituinte”, tendo em vista possibilidades de mudanças quer no sentido mais abrangente da sociedade como um todo, quer no sentido mais específico (e que no momento nos interessa abordar) das reformulações institucionais médico-formadoras. Castoriadis entende que a sociedade instituída 'não se opõe a sociedade instituinte' (compreendida como imaginário social, ou o que no imaginário sócio-histórico é posição, criação, fazer ser), mas ao contrário, encontram-se ambas, sempre em interação, numa relação de recepção/alteração.

Por entendermos que a construção de um novo modelo de formação médica ético, humanístico e socialmente comprometido passa pela superação de resistências de ordens epistemológicas (referidas à fragmentação do saber, a partir da dominância cada vez maior da disciplinaridade/especialização); psicossociológicas (referidas à vontade de poder e às tiranias do magistério); e institucionais (referidas também às questões de poder e ao aprisionamento a modelos gerenciais e mesmo pedagógicos ultrapassados e esclerosados das instituições de ensino), somos levados a pensar que reformas médico-educacionais só podem ser efetivamente alcançadas a partir de uma profunda compreensão da dinâmica relacional entre uma instituição médico-formadora instituída e uma "instituição médico-formadora instituinte, ao se fazer a escuta tanto do imaginário institucional sócio-histórico, quanto do imaginário institucional psíquico.

Entendidas neste contexto, as reformas médico-educacionais pressupõem uma escura clínico-fenomenológica, acima de tudo uma escuta-sensível;11. Barbier R. Palestra proferida sobre Pesquisação, em 05, agosto de 1992, na Fac. Educação da UFF. Transcrição da Professora Anna Maria E. M. Milon Oliveira e outros. uma escuta apurada do que acontece com as pessoas na sua prática, na qual se buscaria uma aproximação emocional e afetiva, com uma reflexão crítica sobre suas vivências, sobretudo no que elas têm de perturbador, tentando captar o que acontece numa faculdade de medicina principalmente em relação às falas dissonantes, minoritárias, que questionam e perturbam o já estruturado pelo grupo e pela sociedade instituída.

A partir da escuta desta fala calada e ‘ao deixar falar ao invés de fazer calar’, se tentaria trazer à tona, clarificar, compreender e interpretar as experiências vivenciadas no cotidiano das salas de aula, nos corredores, na instituição como um todo, rompendo com as barreiras do silêncio e com as falas reprimidas, que em verdade caracterizam uma prática pedagógica (ou antipedagógica?) que esconde distorções, verdades, preconceitos, que obstaculizam o nascimento e a construção de um processo educacional libertário.

Deste modo, a captação do imaginário-fantásico institucional e o desvelar de sua trama o que nos parece fundamental em qualquer tenta­tiva séria de mudanças educacionais relevantes possibilitam o surgimento e resgate de uma prática médica verdadeiramente educacional e a construção de um novo modelo médico, técnico-ético-humanístico e socialmente comprometido.

UMA UTOPIA: FACULDADE DE MEDICINA COMO ESCOLA DE GESTAÇÃO DE SUJEITOS

A partir da crença no fundamental (mas difícil e doloroso) ‘diálogo institucionar’ franco e aberto (única via efetiva para o surgimento do novo), somos levados a acreditar na possibilidade da utilização das faculdades de medicina como locais possíveis de construção simbólica de sujeitos-alunos. Em face, ainda, da constatação de uma forte demanda expressada nas falas dos alunos e captadas em salas de aula, nos corredores, nos bate-papos “informais”, que revelam um anseio profundo, quase um pedido de socorro, em relação a suas “profundas expectativas de serem vistos, ouvidos e tratados como pessoas, impõe-se a absoluta necessidade da existência de estruturas de apoio para os estudantes durante suas formações médicas, o que pode ser confirmado pelas falas abaixo, que certamente fazem parte do cotidiano de qualquer escola médica”, bastando para tanto que estejamos dispostos a escutá-las:

  • “A faculdade tem um papel muito importante de observar, estar atenta, interessada e preocupada, participando e promovendo atividades para ajudar e acompanhar o crescimento de seus alunos”.

  • “Isto permitiria que os alunos tivessem um espaço para poder falar de seus problemas pessoais, que às vezes são muito sérios”.

  • “A faculdade tinha que ter uma estrutura humanística para dar suporte para o aluno, porque se eu encontrar este suporte vou ser um profissional melhor quando tiver que encarar o mundo lá fora e os meus pacientes”.

  • “Durante a formação entramos em crises muito fortes. Temos que lidar com o hospital, os pacientes, a morte, a fome, a miséria”.

  • “Tem aluno que fica muito mal, larga o curso, entra em depressão, toma drogas, ou tem que tomar medicação para passar por estas fases”.

  • “Nós teríamos que ser ajudados e preparados para lidar com nossos problemas, mas a faculdade não se preocupa com o lado humano do aluno”.

  • “A grande maioria dos alunos adoece, de uma forma ou de outra durante o curso, e isto é bastante agravado pelas pressões e exigências que nos são feitas”.

Desta forma, a partir da compreensão das demandas latentes captadas através da escuta do imaginário fantásico dos alunos, surge como alternativa, a ‘utopia de uma nova concepção em educação médica’ que resgate e revalorize a noção de sujeito, compreendido enquanto ‘indivíduo em sua singularidade de pessoa’, única possibilidade de ruptura com uma medicina do orgânico. Somente a partir de profundas mudanças pedagógicas através das quais se conceba a “pedagogia como Escola de Gestação de Sujeitos”,44. Demo P. Desafios Modernos da Educação, Petrópolis: Vozes, 1998. será possível romper com o comprometido, limitado e arcaico modelo de medicina organicista. Nesse contexto, as faculdades assumiriam suas obrigações em relação à construção não apenas da identidade médico-técnica de seus alunos, mas também a costrução de sujeitos-alunos, com singularidade, liberdade e criação, capazes de se conduzir não somente enquanto médicos-técnicos, mas acima de tudo como sujeitos-médicos, mima verdadeira e autêntica atuação médica, com uma visão ampla não apenas do processo enfermidade-cura-salvação de um corpo biológico, mas tornando possível uma medicina da complexidade. Esta seria centrada não apenas nos eixos técnico-científico, biológico, mas agora também no eixo antropossocial, possibilitando desta forma (ao superar e vencer resistências) a escuta da fala dos corpos afetivo, erógeno e social, até então interditados, e assumiria finalmente seus compromissos e destino maior, com uma nova forma de pensar e construir conhecimentos médicos.

Somente a partir da crença na importância do nascimento deste médico-sujeito-singularidade, liberdade, criação, poderemos sonhar com uma nova “ciência/arte” médica, que possa, dentro de seus limites e limitações, participar da emergência de uma nova medicina, um novo homem, uma nova sociedade, uma nova humanidade, pois acreditamos que:

As utopias nos parecem sempre da ordem do impossível, imaginárias e irrealizáveis. Até que algumas pessoas comecem a acredítar; trilhar seus caminhos, e a construir... um novo médico, uma nova medicina, novos caminhos, novas sociedades, um novo homem, uma nova humanidade, emergindo então... uma nova suavidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    Barbier R. Palestra proferida sobre Pesquisação, em 05, agosto de 1992, na Fac. Educação da UFF. Transcrição da Professora Anna Maria E. M. Milon Oliveira e outros.
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  • 10
    Touraine A. Crítica da Modernidade. Petrópolis, Vozes, 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2000
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