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A ESCOLA MÉDICA E SEUS IMPLÍCITOS SOBRE A MORTE

Summary:

The author interviewed students of the Medical School of the UERJ to get to know how they learn to deal with death in their studies.

The results showed that dealing with death is part of their daily learning activities, but the presence of death is rarely discussed colectively. The students learn to cope with death, alone, in accord to a code of seeing and absorling.

The author concludes that the almost rictualistic characther of the tradicional curriculum is related with death and it's taboo.

This might be one of the reasons that explain the difficulties to implement curricular changes, that should be studied and discussed in order to clarity this question.

APRESENTAÇÃO

O texto a seguir é o resultado parcial de uma investigação levada a cabo na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1989, desenvolvida através de auxílio do CNPq.

Sua origem remonta a uma questão já antiga, qual seja, a dificuldade de modificar o currículo das Escolas Médicas. Efetivamente, o modelo “tradicional” apresenta uma tal força que chega a retornar em situações onde parecia completamente alijado, como é o caso clássico da Universidade de Brasília.

As explicações de cunho corporativista, ou que giram estritamente em tomo das dicotomias liberal-assalariado, ou generalista-especialista, não nos pareciam suficientes para explicar o fenômeno. Este ensino e o profissional que ele origina possivelmente respondem a alguma demanda social mais ampla do que a simples reprodução de um modelo adequado às classes dominantes, ou seja, esta formação pode apresentar alguma positividade além das conhecidas como compromissos ideológicos.

Partiu-se dessa premissa para pensar que o papel de ocultador da morte, que é hoje em dia atribuído ao médico, pode ser um fator a conferir uma lógica a este currículo tradicional. Lógica voltada para o aprendizado de lidar com a morte, em parte responsável pela estrutura do currículo “tradicional” e pela sua resistência à modernizações.

Esse trabalho é uma abordagem inicial que buscou, junto ao estudante, dimensionar a presença da morte em sua experiência e esboçar algumas hipóteses sobre o sentido que esta experiência pode adquirir.

PRÁTICA E ENSINO MÉDICOS E SEUS IMPLÍCITOS SOBRE A MORTE

I - Sacerdócio da Medicina e o conhecimento da morte

As formulações explícitas sobre a função social do médico e as metas propostas para a sua formação giram todas ao redor da resolutividade em tratar, curar ou prevenir doenças. Não se discute praticamente o fato de que o médico, principalmente nos grupamentos sociais industrializados urbanos, seja também o único profissional encarregado de lidar com a morte. Este encargo é indiscutível, verificável por exemplo no valor que se atribui ao preenchimento do atestado de óbito (onde o médico pode ser substituído, embora precariamente, pelas autoridades policiais ou judiciárias), e no fato de que hoje os agonizantes são levados para morrer no hospital, mesmo que não apresentem condições para nenhum tipo de tratamento11 - A bibliografia sobre a morte no hospital é extensa. Há uma revisão de HERZLICH, C. - “Le travail de la mort” Annales ESC, Paris, éc. Hautes études en Scienses Sociales. 51(1) jan-fev, 1976, que abrange a maior parte da literatura a respeito nos anos 70, bem como o capítulo “A morte ivertida” in ARIES, P. O homem diante da morte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982, vol.II. Este assunto foi muito discutido, juntamente com as questões relativas ao direito dos familiares e doentes à eutanásia e definição do momento de morte..

O médico substitui o sacerdote como personagem que se interpõe entre o medo dos vivos e o momento em que a morte mais uma vez afirma sua inexorabilidade. Esta substituição, no entanto, não é só de um ator por outro: a responsabilidade de mediador entre a sociedade e a morte é realizada de modo bastante diferente.

Os médicos se vêem, e freqüentemente são vistos, como sacerdotes22 - Os médicos se vêem, eles próprios, como herdeiros dos xamãs. v. LAFAYETTE, CECIL, RUSSEL. Tratado de Medicina interna. 16.ed., Rio de Janeiro, ed. Guanabara, 1986., apesar das diferenças entre suas práticas e sentido que adquirem. A legitimidade do sacerdote e do médico vem do conhecimento da morte, da capacidade de compreensão do fenômeno. O conhecimento do xamã tradicional e do sacerdote advém da revelação, da apreensão do significado da morte em um contexto religioso33 - HERZLICH, C. Malades d'hier, malades d'au jourd'hui: de la mort collective au devoir de quérison. Paris, Payot, 1984 & ARIÉS, P. (v. 1), comentam a característica sacerdotal da profissão e sua legitimação no conhecimento do corpo, do processo de morrer e do cadáver., enquanto o conhecimento do médico é baseado nos paradigmas da ciência, no que Luz44 - LUZ, M.T. Natural, Racional, Social. Rio de Janeiro, Campus, 1988. Ver aqui como o conhecimento chamado moderno pressupõe, entre outras características, o conhecer para intervir e dominar ativamente a natureza. chama de racionalidade científica moderna. Conseqüentemente, o trabalho de mediação realizado pelo médico apresenta outro sentido. O sacerdote utilizará seus conhecimentos para induzir a aceitação da morte próxima, facilitar a passagem deste mundo para o outro e consolar familiares e demais pessoas da perda inevitável, que revela a submissão do homem a desígnios maiores do que sua vontade. O médico, como aplicador do conhecimento científico e senhor de uma técnica de intervenção sobre a natureza ou o corpo, não trabalha para aceitar os fatos naturais e sim para intervir, dominando-os ou combatendo-os até onde for possível. A sociedade não demanda ao médico que ele ensine a aceitação da morte ou o consolo na idéia de uma vida eterna. Na verdade, não há espaço hoje em dia para uma vivência clara e explícita ela morte como um fato inexorável.

O século XX assistiu uma transformação do caráter da morte, de evento público em fato íntimo que provoca pudor e horror e, por fim, em fato que não pode ser aceito e tem que ser negado de várias formas. A sociedade convive hoje em dia com um tabu, o da morte55 - Segundo ARIÉS, (v.1) esta transformação não apresenta paralelo na história, e é a primeira vez que alguma cultura trata a morte como um evento que deve ser ocultado.. O médico enquanto encarregado da morte é, portanto, encarregado de um tabu, e sua atividade encontra-se em perfeita harmonia com a demanda social de que a morte desapareça do cotidiano, passe desapercebida, seja oculta. Ser encarregado da morte hoje em dia não significa propriamente ser encarregado de conduzir os vivos neste momento de passagem; significa se responsabilizar pela tarefa de ocultamento66 - Ver como HERZLICH (v.1) descreve em detalhes a organização hospitalar voltada para este ocultamento e como a morte também é tabu ao interior dos hospitais e serviços de saúde.. A morte enquanto problema para o trabalho do médico, ou o aprendizado de como lidar com ela, são assuntos pouco discutidos, embora provoquem angústia nos profissionais77 - Há uma série de publicações sobre a angústia dos médicos, sua postura geralmente de negação, não só da morte enquanto problema, mas também de negação direta do próprio evento, como em: KUBLER-ROSS, E. On Death and dying, N. York, Tavistak Pub, 1969. A autora realizou um trabalho de acompanhamento de pacientes agonizantes em um hospital americano, onde os médicos lhe diziam que “em sua enfermaria não haviam moribundos”. V. também HERZLICH, C. (1) e ZIEGLER, J., Os vivos e a morte, Rio de Janeiro, Zahar, 1977, P.III., C.VI. In: A angústia dos médicos.. Essa tarefa de ocultamento não é, no entanto, desconhecida, fica como que implícita. O tabu em questão é negado, sobre­tudo, através de um pacto de silêncio.

II - O currículo, aprendizado de morte?

O mesmo silêncio pode ser observado no processo de formação do médico. Como o estudante de medicina vê a morte ou aprende a lidar com ela, são questões pouco discutidas que jamais recebem uma atenção propriamente acadêmica - não fazem parte das cogitações de programas e currículos, salvo nos serviços de orientação psico­ pedagógica que tratam do tema com alunos angustiados de forma mais individual. Este silêncio na escola médica é, no entanto, acompanhado de uma vivência contínua do estudante à beira da morte. Começando pelo anatômico e passando pela grande quantidade de pacientes terminais que se encontra nos hospitais universitários, o estudante convive com a morte de forma intensa, mais do que conviverá em sua prática futura na maioria das especialidades.

O currículo que oferece esta abundância de experiências de morte é o mesmo que vem sendo criticado há mais de duas décadas, centrado na prática hospitalar, cindido em especialidades, voltado para o conhecimento da doença em detrimento do doente e pouco efetivo para formar um médico “capaz de tomar decisões”, “voltado para a reabilitação e promoção da saúde” ou “com alto poder de resolução”88 - As propostas de integração docente-assistencial e modificações do currículo médico com vistas à integração das disciplinas estão prontas há praticamente vinte anos. O trabalho da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), os projetos da Fundação Kellog, os documentos da Organização Mundial de Saúde e Panamericana de Saúde, são unânimes em reconhecer e trabalhar em prol da implantação destas propostas. Não obstante, as modificações se processam com excessiva lentidão, ou as novas propostas avançam de fo1ma paralela e marginal aos currículos tradicionais, que oferecem uma enorme resistência a modificações. Como estudos recentes sobre a questão, pode-se citar: FEPAFEM, Contribuição das Américas à Conferência Mundial de Educação Médica. Rio de Janeiro, projeto, EMA, 1988 (mimeo). SARAIVA, E. UNISIS: Uma contribuição da Universidade à Reforma Sanitária. Saúde em Debate, Londrina, CEBES, mar., 1989. SANTINI, L.A.R.S. A educação médica e a reforma sanitária. Cad. de Saúde Publ., RJ, FIOCRU Z, 2(4): 493-504, 1986.. Estas críticas concentram-se, geralmente, em análises sobre o que a escola não ensina, ou sobre o perfil ideológico dos recém-formados, que se constrói entre a realidade problemática do mercado de trabalho e a obediência passiva da escola à esta mesma realidade. A presença constante de paciente com doenças raras, terminais ou incuráveis na experiência do estudante é vista por estes críticos principalmente como um obstáculo técnico ao aprendizado do lidar com doentes curáveis, portadores de doenças banais e que constituirão a maior parte da clientela futura. Não há dúvidas de que isto é verdade, mas apenas um lado da verdade. Pode-se pensar que os pacientes terminais não permitem um aprendizado mas propiciam outro, e que a escola médica resiste à mudança porque preserva este outro aprendizado que está implícito, não verbalizado: o do convívio e trabalho com a morte.

III - Objetivos

Este estudo é uma tentativa de ampliar a discussão sobre os problemas que cercam a modificação dos padrões do ensino médico tradicional. Partiu-se do pressuposto de que há uma positividade neste ensino do Hospital Universitário, para além do atendimento ao cumprimento dos ideais da prática liberal ou do fascínio pelas especialidades, positividade que influencia o ensino e que é a do aprendizado do aluno em lidar com a morte: trabalhar sobre o ocultamento nos moldes socialmente demandados e desempenhar este papel abstraindo-se de que a morte também é problema para si próprio.

Os resultados apresentados a seguir constituem uma etapa preliminar exploratória, de descrição das vivências do estudante sobre a morte na escola médica, tentando delimitar a importância desta vivência no conjunto de sua formação.

IV - Coleta de informações

Para obter uma descrição da situação, optou-se por entrevistar os alunos e verificar até que ponto as suas experiências na faculdade não são, ao menos, tão voltadas para um aprendizado do lidar com a morte quanto ao aprendizado de atividades terapêuticas com vistas à recuperação da saúde dos doentes.

As entrevistas foram colhidas na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Entrevistou-se os alunos ao acaso, em quatro locais distintos, totalizando quarenta entrevistas. O primeiro foi a sala de leitura da biblioteca da escola. A seguir, foram realizadas entrevistas na cantina do Hospital onde os alunos do terceiro e quarto ano costumam conversar. A cantina do Centro Acadêmico também foi visitada, principalmente à hora do almoço. Como nestes locais não haviam alunos do sexto ano, foi necessário percorrer as enfermarias para encontra-los em meio às atividades do Internato. A maioria dos alunos foi muito loquaz e o roteiro de entrevista não foi praticamente utilizado em muitos casos, já que o aluno emendava um assunto a outro sem que a entrevistadora o dirigisse. A entrevista atraía com freqüência outros colegas que também se pronunciavam, de modo que eventualmente era difícil registrar corretamente todas as opiniões. A abordagem foi realizada através do pedido de colaboração para um trabalho sobre a vivência dos alunos na Faculdade e não houve casos de recusa.

As escolha do estudante

Os relatos sobre a escolha da Medicina como profissão podem ser distribuídos em três grupos: o primeiro que se poderia dizer atraído pelo papel social do médico, freqüentemente filhos ou parentes de médicos, que fizeram sua opção ainda na infância e a mantiveram até o momento de entrar para a escola. É um grupo que não relata espontaneamente uma questão com a morte:

“Sou um caso clássico: filho de médico”. (masc., 4º ano)

“A idéia de ser médico é muito antiga para mim. Não tenho parentes médicos, e quase fui militar por causa do colégio militar, mas acabei voltando a minha idéia de infância.” (masc., 5° ano)

“Escolhi por exclusão, para ter mais chances sociais.” (masc., 1° ano)

“Sempre quis ser médica. Brincava de médica com as bonecas e me vestia de branco”. (fem., 1° ano)

Há um grupo menor, que seguiu a Medicina como um ramo das ciências humanas, em busca de um conhecimento acerca das pessoas. Todos os entrevistados deste grupo farão psiquiatria ou psicanálise, ou fazem outra faculdade simultaneamente:

“Quis fazer Medicina desde criança, e isso passava pelo desejo de conhecer as pessoas, o porquê dos sentimentos e das coisas que dizem. É porque eu desconhecia as outras disciplinas e a Antropologia.” (fem. 6º ano, fará psicanálise)

“Sempre quis fazer de tudo, de energia nuclear a ser bailarina. Não encontrei faculdade que me desse conhecimento geral. A Comunicação e a Medicina suprem essa idéia de fazer um pouco de tudo. Nunca tive expectativa de ser médica, e sim de aprender.” (fem., 4° ano)

“Sempre quis fazer mais coisas além da Medicina. Planos para Filosofia ou História, gostaria de me tornar escritor.” (masc., 6° ano)

O grupo mais numeroso, de vinte entrevistados, é aquele que relata experiências de doença e de morte em si, ou na própria família, como origem da decisão:

“Fui fazer Medicina depois que meu pai morreu. Sei lidar com a morte com naturalidade.” (masc., 3° ano)

“Penso em Medicina desde garoto. Tinha asma, vivia no médico.” (masc., 5º ano)

“Faço análise desde adolescente, então resolvi ser médico para ser psicanalista. Preciso ser médico por causa do poder institucional.” (masc., 5° ano)

“Sempre pensei em fazer Economia ou Matemática. O tratamento que fiz para a asma e para a minha pele me provocaram uma revolução e eu resolvi fazer Medicina para ajudar os outros.” (masc., 3° ano)

Um discurso mais explícito sobre a questão da morte surgiu com maior freqüência entre os alunos do primeiro e segundo ano. É um discurso ingênuo e emocional o do calouro:

“Escolhi fazer Medicina após ter sofrido uma cirurgia de urgência em que quase morri. Estou fazendo Medicina para dominar e controlar a morte.” (masc., 1º ano)

“Tenho pavor da morte. É até, talvez, uma razão de estar fazendo Medicina. Detesto a minha morte. O que tenho mais medo é de saber que algum dia alguém vai morrer na minha mão.” (fem., 1°ano)

“Foi necessário para mim, para perder o medo da minha própria morte e sentir medo da morte dos outros.” (masc., 1º ano)

“Vim fazer Medicina após ter estado perto da morte. Conheço alguém que também veio fazer Medicina após ter estado perto da morte.” (fem., 1° ano)

Corrobora-se a afirmação de alguns psicanalistas de que a escolha da carreira médica testemunha uma angústia face à morte, e não uma insensibilidade1. As entrevistas sugerem ademais um encobrimento das questões ao longo do curso, como um aprendizado: O que no quarto ano se expressa através de “tinha asma, vivia no médico”, talvez tenha sido no primeiro ano, “porque estive perto da morte”. Dada a diferença, é permissível concluir que a experiência da escola modifica e reelabora as vivências passadas, modificando a argumentação em torno da escolha da carreira.

Do mesmo modo, a escolha da especialidade futura, que Herzlich1 afirma ter a proximidade ou distância da morte como um dos parâmetros de decisão, foi bastante comentada segundo estes critérios:

“O paciente morre e você fica de luto no hospital. Mas na rede pública é pior, o paciente não te diz nada. Vou fazer pesquisa.” (fem., 5° ano)

“Pneumologia. Mais adequado às minhas características. Odeio plantão, odeio emergência, o mau atendimento me agride. O CTI é grosseiro, as pessoas estão mutiladas.” (masc., 4º ano)

"Alguma coisa cirúrgica, urologia talvez. Racionalizando, é mais fácil: tem coisa que tem jeito e coisa que não tem jeito.” (masc., 5º ano)

“Doente incurável. É coisa de que vou fugir toda a minha vida. Oncologia. O que me chama na Obstetrícia é que de um jeito ou de outro você resolve. Lidar mais com a vida do que com a morte, por isto gosto de Obstetrícia. Vim fazer Medicina para contar a vida, não a morte.” (fem., 6º ano)

" Homeopatia. Tenho interesse nos doentes. A maioria é terminal, (no HUPE) mas a morte não me assusta. Não é um fim, só uma passagem.” (masc., 3º ano)

Mais uma vez, o discurso dos calouros é mais cru, com afirmações peremptórias:

“Quero fazer uma especialidade que esteja longe da morte.”

“Quero fazer uma perto, para trabalhar contra ela” (dois alunos do primeiro ano, entrevista dupla).

V - Ciência nas cadeiras básicas. A Anatomia

Perguntados sobre suas atividades cotidianas no ciclo básico, obteve-se respostas mais ou menos genéricas; as disciplinas são vistas de forma um tanto homogênea e inespecífica. Há uma impressão unânime de que se trata de uma continuação do colégio. Os estudantes menos próximos do padrão clássico do médico (futuros pesquisadores, psicanalistas e alguns muito indefinidos), atribuem maior importância ao ciclo básico:

“Gostei de pesquisa, e aqui na UERJ é muito largado. O grau de discussão é baixo, não se vê o novo aqui dentro, só o já estabelecido. Usar este conhecimento o estudante usa, mas pouco, insuficiente. Eles são bons práticos, mas só práticos” (masc., 5º ano, fará pesquisa).

“No terceiro e no quarto ano você se sente ignorante porque não sabe o que o professor cobra lá do primeiro e segundo ano.” (4° ano, indefinida quanto ao futuro)

A maioria dos entrevistados, mais claramente definidos como futuros médicos praticantes tem, no entanto, um depoimento mais displicente:

“O ciclo básico foi muito pesado e a utilidade era questionada por todos. Detestava Biologia Celular.” (3° ano, fará Clínica)

“Não gostava das disciplinas do 1º ano. No 2° tive anorexia nervosa por estudar, estudar e não conseguir resultados. No 3° ano melhorou, menos teoria e mais prática.” (5°ano, fará Obstetrícia)

“O lº ano foi uma crise. Detestava as matérias, não identificava as aulas com Medicina.” (5º ano, Pediatria)

A indiferença ou as críticas desaparecem, porém, quando se fala da disciplina de Anatomia. Fala-se bastante nela, mesmo para dizer que o cadáver não incomoda, ou que também é uma disciplina “chata”. Em verdade, o cadáver não incomoda até certo ponto, ou melhor, é um mal estar reprimido:

“Já fazem dezesseis meses que estou dissecando, já dissequei até um feto. Mas ontem vi um corpo cortado ao meio e foi terrível ver o reto com as fezes. Me toquei que era um ser humano.” (masc., 2° ano)

O que se aprende na Anatomia, afinal?

“A Anatomia criava algumas dificuldades para os alunos, pela necessidade de decorar.” (masc., 3° ano)

“Pensei que fosse gostar de Anatomia. Detestei. Pura decoreba.” (fem., 5° ano)

O conhecimento dos nomes de todos os acidentes anatômicos é freqüentemente considerado “decoreba inútil”, esquecido imediatamente após a prova. A atividade de dissecar, no entanto, não foi questionada por ninguém. É a primeira intervenção do estudante no corpo humano, sua obrigação precípua. O aspecto cognitivo mais estrito não importa, pois o cadáver conservado em formol guarda muito pouca semelhança com um ser vivo que tange à dissecação (aliás, desaparecida dos cursos de Medicina em países onde há dificuldade de encontrar pessoas falecidas ao abandono). Mesmo assim, as impressões deixadas pela freqüência ao anatômico são marcantes:

“Todas as cadeiras são secundárias em relação à anatomia no primeiro ano. É como se a Medicina se resumisse à Anatomia. Em Histologia você não vê para que serve. Bioquímica é importantíssimo e você não vê. Anatomia você vê o corpo humano. As outras cadeiras são continuação do colégio e Anatomia é Medicina. Na Anatomia você veste branco, tem sua importância, o branco.” (fem., 3º ano)

“O anatômico é o máximo (risos) - você veste branco e se sente médico”. (masc., 6º ano)

É uma iniciação, não à prática científica do médico ou ao conhecimento científico do organismo doente ou são, é a iniciação do olhar, poder e saber olhar99 - FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro, Forense Univ. 1977. O autor mostra como a Clínica é basicamente um modo de olhar diferente, e como este modo se organiza no estudo de Anatomia.. “Nunca tive problemas para dissecar” foi a frase usada por muitos para expressar sua capacidade ou adaptação à profissão, mais como um ritual de passagem do que propriamente como aquisição de algum conhecimento:

“Muitos tem horror do anatómico, mas isso passa. Nunca me incomodei.” (masc., 6°ano)

“Eles vão logo mostrando aqueles pedaços para que a gente se choque e se acostume logo.” (masc., 1ºano) "

“O anatômico cheira muito mal, mas a visão do cadáver não é apavorante - eles estão em decomposição, não parecem pessoas.” (masc., l º ano)

“Tinha um medo prévio do anatómico, mas após entrar fiquei como anestesiada.” (fem., 2º ano)

O aprendizado da intervenção e o hábito de lidar com o morto não é ensinado através de palavras ou textos, é sempre por exibição, por “ver”. Este ensino demonstrativo, por impacto, prossegue ao longo de todo o curso.

Apesar das frases tranquilizantes deque “o cadáver não incomoda”, ou “não se assemelha a um ser humano”, o estudante diz que:

“Foi legal ter entrado em contato com os doentes logo no primeiro ano. Porque se você chega ao anatômico e só vê pedaços, mais tarde vai tratar os doentes como peças do anatômico.” (fem., 1° ano)

Nenhuma disciplina pode dar origem a tantos chistes entre os estudantes. Dizia-se de três alunas, muito dedicadas à dissecação, que compunham o “trio formol”. Um estudante teria sido observado enquanto estudava em um Atlas de anatomia e levava à boca, distraído, um osso - ganhou o apelido de “Fagofêmur” até o dia da formatura1010 - Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. Este é o folclore da turma da autora, de 1974. Todas as turmas apresentam repertórios semelhantes.. A brincadeira vai longe, até uma canção, que foi quase um hino oficial da antiga Escola Nacional de Medicina, onde o esqueleto é um grande amigo:

O Nicodemo O Nicodemo Oba, oba... O esqueleto da Faculdade Está guardado em creolina Mas já acordou Para dizer Que Faculdade é a Medicina Nacional de Medicina É escola papafina É escola p'ra menina (tradição oral)

VII - Doença-doente, terapêutica-diagnóstico. Dois dilemas.

Os depoimentos sobre o Ciclo Clínico foram todos centrados em discussões sobre a conduta dos professores, a qualidade do hospital e o sentimento de impotência, os grandes responsáveis, segundo os alunos, pelas dificuldades vividas no terceiro ano.

A palavra mais utilizada para descrever a entrada no Ciclo Clínico foi “impacto”, com um sentido ambivalente. A maioria não teve dificuldades para estabelecer um bom relacionamento com os pacientes internados, e isto constituiu-se como fonte de satisfação:

“O terceiro ano foi de aproximação com os pacientes...” (masc., 5° ano)

“A clínica é muito melhor. Menos maçante, muito mais solto, a gente pode buscar interesses por conta própria. Fiz uma boa relação médico-paciente.” (masc., 3º ano)

“No terceiro ano melhorou. Mais prática do que teoria. A minha relação médico-paciente foi boa, apesar do meu medo de ser rejeitada pelo paciente... insegurança talvez.” (fem., 6° ano)

“O terceiro ano foi definitivo. Você encara o paciente, aprende, vai na enfermaria.” (masc., 6° ano)

Não há dúvidas de que o estudante se compraz com a entrada no hospital e o aprendizado de Semiologia e de Clínica. Paralelamente, no entanto, o contexto é, tradicionalmente, de crise:

“O terceiro ano é traumático - rotura com coisas tuas - assimilar outras realidades em um mundo que não é cor de rosa (...) Impossível não pirar aqui. Entra aos dezoito anos e aos vinte segura um paciente que vai morrer. Deprime-se muito.” (fem., 5° ano)

“O impacto do terceiro ano... todos os doentes mal, tudo sombrio, nada a fazer por eles... a gente não tinha idéia da evolução da doença, então todo mundo que tem essa doença interna e morre. Todo mundo é igual, toda gravidez é igual. Anatomia Patológica é uma lâmina que corta e diz: enfisema é assim e você acredita que a doença é assim, sem evolução, graus, estágios... Na outra enfermaria você aprende que todo bêbado morre de cirrose. A gente sonegou, no terceiro ano, que doença do dia-a-dia era outra coisa, esse conhecimento prévio foi esquecido. Pelo contrário, a gente olha em volta e todas as doenças parecem horrorosas. Hoje, vendo os estudantes do segundo ano eu sei - que ninguém nos explicava.” (fem., recém formada)

Duas figuras se fazem presentes de imediato, delineando o que a estudante chama de quadro sombrio, a morte e a doença. A doença que se apresenta no entanto não é aquela do dia-a-dia, que surge como intercorrência na vida de todos. É uma doença “horrorosa”. Na verdade esta doença horrorosa não é mais do que uma exemplificação do quadro mórbido aprendido anteriormente na Patologia. A doença é horrorosa porque aparece como um quadro fixo desumanizado, sem evolução ou remissão possíveis, é sinônimo de condenação à morte. Para esta aluna, a Clínica surge como um exemplo visual do curso de Anatomia Patológica e, como na Anatomia do primeiro ano, o importante é saber ver, enquanto as reivindicações de explicação para os fenômenos vistos não tem resposta.

Considerando o binômio doença-doente, os alunos relatam como predominância da segunda sobre o primeiro:

O monitor te obriga a transar o paciente chumbado e você vive uma experiência humana e não compartilha com ninguém.” (fem., 5° ano)

“Tive imensas dificuldades com os doentes. Na enfermaria de adolescentes, todos muito graves. A gente vendo a morte ali, do lado, e os professores pressionando para aprender.” (fem., 6° ano)

Alguns estudantes relatam um aprendizado de Semiologia e Clínica com pouco contato com o paciente, o que, até prova o contrário, é uma contradição em termos:

“O terceiro ano foi ruim, o instrutor era ruim. Quase não tive contato com pacientes, tive pouquíssima vivência de enfermaria, então fui fazer plantão fora. Não gosto de plantão, mas aprendo muito. Há mais contato com o paciente até num CTI do que no HUPE.” (masc., 5° ano)

“Quer-se de início dar e receber tanta coisa, afim deter um relacionamento bom, e a faculdade te leva a se afastar do doente. Mesmo no último ano, você só faz correr atrás de exames.” (fem., 6° ano)

Para o futuro homeopata, o esquecimento do doente se dá mesmo durante a anamnese:

“Penso em Homeopatia por ter feito um bom tratamento homeopático. Na alopatia há problema de trabalhar a doença e não o doente. Vejo mais a anamnese do que o doente na enfermaria, e levo um susto.” (masc., 3° ano)

O aprendizado de terapêutica, de tratamento também não está em primeiro plano na Clínica. O estudante vai, tradicionalmente, em busca de um aprendizado pragmático na rede de serviços, tentando preencher o que considera uma lacuna. A existência de um currículo paralelo nos serviços de emergência, maternidades e outros serviços da rede pública é já tradicional e utilizada pelos alunos de forma sistemática1111 - Sobre o currículo paralelo, ver SARAIVA (8) , e Oliveira, J. Ensino médico e papel das atividades extra-curriculares. Saúde em Debate, Londrina, CEBES, jun. 1989..

“Aprender a tratar? Só se correr atrás do professor, e lá fora, é difícil encontrar supervisão de confiança.” (masc., 5° ano)

Não, não se aprender a tratar aqui. No livro sim, e com outros médicos. No plantão fora aprendi bastante, e na emergência aprendia não me estressar.” (fem., 6° ano)

“A hora boa de discutir o tratamento é junto ao paciente. A terapia é o último, feito de qualquer jeito. Passa muito pouco mecanismo de drogas, e também muito pouca terapêutica. Não há interesse interdisciplinar nessas discussões, papos complementares.” (fem., 5° ano)

“Aqui você vê paciente de livro, bem livro, e lá fora é o contato direto.” (fem., 4º ano)

Esta falta de clareza no sentido de um projeto terapêutico produz a sensação de impotência, vivida com angústia:

“No terceiro ano eu tinha medo de incomodar porque não sabia nada. Não me deprimi porque me defendi muito... pessoas passando mal não incomodam - o que incomoda é não saber o que fazer.” (fem., 4° ano)

“O problema é que não se pode ter grandes atuações curativas nos casos do HUPE.” (masc., 3º ano)

“Os pacientes que vão morrer incomodam muito quando você não tem nada que fazer.” (masc., 5° ano)

“O crônico é o que incomoda mais. Aquilo vai te consumindo. A gente lida mal com a impotência. O HUPE é que é impotente. Estamos cansados de discutir Medicina de baixa qualidade. Fazer muitas coisas, entuba, liga o respirador, aí esquece a impotência. O crônico é abandonado - para não haver problemas o doente é esquecido, quando a gente poderia fazer tanta coisa... Não há empenho. No agudo o medo é grande, trabalhar à beira da morte é difícil, mas é diferente do crônico. O fazer, fazer, fazer, alivia a culpa da impotência. No fundo, no fundo, sabe que não adianta.” (fem., 5° ano)

Os depoimentos sobre o impacto do terceiro ano são sempre em tomo do que se vê “doentes muito graves”, a morte ali ao lado, mas não se fala ou se aprende que falar é inútil. Segundo Clavreul, o médico não filosofa e não questiona. “Um estilo conciso, sem vãs considerações, que se inscreva numa prática, é o único que convém.”1313 - CLAVREUL, J. A Ordem Médica: Poder e impotência do discurso médico. São Paulo, Brasiliense, 1983.

Aprende-se, mais do que tudo, a não verbalizar as situações vividas:

“Não sou melodramática. Você ver é problemático, mas não precisa comentar, não adianta... vi uma velha sendo entubada no plantão e quase desmaiei.” (fem., 4° ano)

VIII - Hegemonia da doença, ocultamento da morte

O projeto de estudar a doença, definí-la e conhecê-la de forma hegemônica sobre o aprendizado de uma terapêutica mais sólida, ou das medidas paliativas cabíveis nos doentes crônicos, não deve ser visto como intransitivo, não tem um fim em si mesmo. A paixão por definir doenças e controlá-las pode perfeitamente ser vista como uma forma de ocultamento da morte, ou de solução para a incapacidade de aceitá-la:

“Se não é verdade que com os médicos” o doente morre curado, por outro lado é verdade que, quando ele morre na ordem, a Ordem Médica, quando se sabe o que o matou, alguma coisa foi ganha sobre a morte: um ponto foi marcado para as futuras lutas de humanidade contra o destino.1313 - CLAVREUL, J. A Ordem Médica: Poder e impotência do discurso médico. São Paulo, Brasiliense, 1983.

O estudante é levado a lidar exclusivamente com a doença e não enxergar a morte; como mostra a aluna recém-formada:

No internato, faltei ao HUPE no dia em que meu paciente morreu, e ninguém me avisou apesar de eu ter telefonado. Ficaram chocados com meu envolvimento de perguntar pelo doente. E a morte ficou menos longe, era alguém que eu poderia perder, o meu paciente. Mas isso é meio tabu. Se a gente conseguisse olhar o sofrimento, o morrendo, a gente não ia se espantar quando o doente morre. Não sei se é esperteza das pessoas, mas para eles era inesperado. Se vissem essa morte aos poucos, ninguém ia tentar ressuscitar. Não ia dizer que morreu de hipertensão, e sim morreu porque tinha que morrer. Pouca gente não acredita nas nosologias ou questiona essa invenção - a maior parte acredita na doença como se ela fosse uma cadeira.

Estudantes e médicos, tão prestos a ler a doença no doente, a desvendar os segredos da lesão oculta no corpo, fazem-se incapazes para ler a proximidade da morte. A doença é codificável, mas a morte é inesperada. Tudo indica que a figura da doença, esta que após o diagnóstico é pregada em um quadro como uma borboleta, oblitera e apaga tudo mais. Para o médico, como aliás para a sociedade como um todo, a doença se tomou uma figura palpável, substituindo a morte e a sua foice11 - A bibliografia sobre a morte no hospital é extensa. Há uma revisão de HERZLICH, C. - “Le travail de la mort” Annales ESC, Paris, éc. Hautes études en Scienses Sociales. 51(1) jan-fev, 1976, que abrange a maior parte da literatura a respeito nos anos 70, bem como o capítulo “A morte ivertida” in ARIES, P. O homem diante da morte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982, vol.II. Este assunto foi muito discutido, juntamente com as questões relativas ao direito dos familiares e doentes à eutanásia e definição do momento de morte.. Enquanto encarregado do ocultamento da morte, o médico não pode permitir o afloramento desta enquanto fato natural - seria a confissão de impotência frente à natureza. A hegemonia da doença, no discurso médico, afasta duas situações: a ilusão perigosa de que a terapêutica disponível aqui e agora poderia de alguma forma triunfar sobre esta fatalidade - a crueza da derrota seria dura demais. Afasta também a morte trágica, a morte que se explica por si mesma, faz exatamente o contrário do que desejava a médica entrevistada - não, não morreu porque tinha que morrer, morreu porque tinha hipertensão. Permite a ilusão não perigosa porque não negável, de que, caso não houvesse hipertensão também não haveria morte.

Algumas reflexões incipientes

Os depoimentos permitem concluir que o ato de morrer e a presença do corpo morto são instâncias permanentes durante o curso, e que uma importante tarefa do estudante na faculdade consiste em um aprendizado solitário de como vencer sua impotência (dado o depoimento dos calouros, seria melhor dizer: como recuperar a onipotência). A orientação fornecida pelo instrutor é de certa forma voltada a que o estudante perceba a sua impotência e a esqueça a seguir - o professor “empurra” o estudante a examinar no doente terminal apenas a sua doença, e a negar ou se alhear completamente de que a doença está sobre um suporte específico: uma pessoa que morrerá em breve. Esquecer esta impotência e retornar a uma onipotência refeita, através da capacidade de explicar essa morte enquanto decorrência lógica de uma doença.

O aluno aprende (a maioria talvez) a ver a morte como algo que não diz respeito ao seu trabalho. Torna-se difícil neste contexto apreender as nuances e sutilezas de uma avaliação sensata sobre o que tentar com o doente, quando desistir de mantê-lo vivo e, particularmente, fica difícil valorizar a atividade totalmente curativa da Medicina, existente em boa parte das situações clínicas, mas que sem dúvida demanda atenção pessoal ao doente e uma prescrição mais ampla do que um fármaco. Pelo contrário, o ensino está longe de ministrar, de forma racional e compreensível ao aluno, o aprendizado de uma relação médico paciente com o doente curável, com o caso banal, bem como o tratamento correto, tanto medicamentoso como preventivo a ser empregado nestes casos. Um projeto de melhoria de vida, de capacitação plena do doente é algo que não se discute: basta que ele morra.

O que a escola ensina, efetivamente, é que o médico deve passar por agonizantes ou por seus próprios sentimentos a respeito da morte como se ambos não existissem. É o aprendizado de um esquecimento, de uma ocultação, realizado sem palavras, sem elaboração explícita, apenas no impacto visual. A exibição do espetáculo do doente desvalido, do abandono do doente crônico após o diagnóstico e da abundância do “caso terminal” faz um aprendizado por desgaste, por desvalorização, onde a morte e a não onipotência do médico, de tão conspícuas, tendem a se tornar invisíveis.

O aprendizado de Medicina, realizado nestas condições, caracteriza-se mais como um ritual de iniciação do que propriamente um aprendizado de prática científica, como quer o discurso médico convencional. Os resultados deste aprendizado são difíceis de avaliar. Seria um trabalho de âmbito psicanalítico1313 - CLAVREUL, J. A Ordem Médica: Poder e impotência do discurso médico. São Paulo, Brasiliense, 1983. discutir como cada médico vive a sua inserção na Ordem Médica, de que forma cada um se estrutura para conviver com as mortes dos seus doentes, com as fantasias heróicas tão a gosto de best-sellers e seriados de televisão e com os seus fracassos. Não se propõe aqui, de forma alguma, que o curso médico se transforme em uma psicologia ou psicanálise da Medicina ou de cada estudante: isto fica entregue ao plano da esfera pessoal. O que se sugere é a necessidade de trazer esta questão a público, de se criar um debate a respeito do médico como encarregado da morte e as possibilidades da Medicina de “contar a vida” como quer a estudante entrevistada, para que os conteúdos técnicos da profissão sejam equacionados com mais clareza e permitam ao aluno um aprendizado menos doloroso e mais profícuo.

Finalizando, a questão aqui levantada demanda aprofundamento e continuidade, mas esta exploração inicial reforça a hipótese de que, por detrás das dificuldades de modificação do currículo existe, cristalizado e disfarçado, um aprendizado de olhar sem ver e sobretudo sem falar, o aprendizado do ocultamento da morte.

CONCLUSÃO

A autora realizou uma investigação sob forma de entrevistas aos estudantes da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ com objetivo de avaliar a importância da presença da morte no seu aprendizado.

As entrevistas revelaram que a morte está presente nas reflexões e dificuldades dos alunos, bem como faz parte do seu aprendizado cotidiano. Revelaram igualmente que esta presença está envolta em silêncio e que o aluno aprende segundo um código de ver e absorver o que é visto com poucas discussões ou elaborações coletivas.

A autora conclui que o caráter quase ritual do currículo tradicional como um aprendizado de lidar com a morte e seu tabu pode ser uma das razões para as dificuldades de modificação do mesmo, sendo necessário maior estudo e debate para o conhecimento mais claro desta questão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    - A bibliografia sobre a morte no hospital é extensa. Há uma revisão de HERZLICH, C. - “Le travail de la mort” Annales ESC, Paris, éc. Hautes études en Scienses Sociales. 51(1) jan-fev, 1976, que abrange a maior parte da literatura a respeito nos anos 70, bem como o capítulo “A morte ivertida” in ARIES, P. O homem diante da morte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982, vol.II. Este assunto foi muito discutido, juntamente com as questões relativas ao direito dos familiares e doentes à eutanásia e definição do momento de morte.
  • 2
    - Os médicos se vêem, eles próprios, como herdeiros dos xamãs. v. LAFAYETTE, CECIL, RUSSEL. Tratado de Medicina interna 16.ed., Rio de Janeiro, ed. Guanabara, 1986.
  • 3
    - HERZLICH, C. Malades d'hier, malades d'au jourd'hui: de la mort collective au devoir de quérison Paris, Payot, 1984 & ARIÉS, P. (v. 1), comentam a característica sacerdotal da profissão e sua legitimação no conhecimento do corpo, do processo de morrer e do cadáver.
  • 4
    - LUZ, M.T. Natural, Racional, Social Rio de Janeiro, Campus, 1988. Ver aqui como o conhecimento chamado moderno pressupõe, entre outras características, o conhecer para intervir e dominar ativamente a natureza.
  • 5
    - Segundo ARIÉS, (v.1) esta transformação não apresenta paralelo na história, e é a primeira vez que alguma cultura trata a morte como um evento que deve ser ocultado.
  • 6
    - Ver como HERZLICH (v.1) descreve em detalhes a organização hospitalar voltada para este ocultamento e como a morte também é tabu ao interior dos hospitais e serviços de saúde.
  • 7
    - Há uma série de publicações sobre a angústia dos médicos, sua postura geralmente de negação, não só da morte enquanto problema, mas também de negação direta do próprio evento, como em: KUBLER-ROSS, E. On Death and dying, N. York, Tavistak Pub, 1969. A autora realizou um trabalho de acompanhamento de pacientes agonizantes em um hospital americano, onde os médicos lhe diziam que “em sua enfermaria não haviam moribundos”. V. também HERZLICH, C. (1) e ZIEGLER, J., Os vivos e a morte, Rio de Janeiro, Zahar, 1977, P.III., C.VI. In: A angústia dos médicos.
  • 8
    - As propostas de integração docente-assistencial e modificações do currículo médico com vistas à integração das disciplinas estão prontas há praticamente vinte anos. O trabalho da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), os projetos da Fundação Kellog, os documentos da Organização Mundial de Saúde e Panamericana de Saúde, são unânimes em reconhecer e trabalhar em prol da implantação destas propostas. Não obstante, as modificações se processam com excessiva lentidão, ou as novas propostas avançam de fo1ma paralela e marginal aos currículos tradicionais, que oferecem uma enorme resistência a modificações. Como estudos recentes sobre a questão, pode-se citar: FEPAFEM, Contribuição das Américas à Conferência Mundial de Educação Médica Rio de Janeiro, projeto, EMA, 1988 (mimeo). SARAIVA, E. UNISIS: Uma contribuição da Universidade à Reforma Sanitária. Saúde em Debate, Londrina, CEBES, mar., 1989. SANTINI, L.A.R.S. A educação médica e a reforma sanitária. Cad. de Saúde Publ., RJ, FIOCRU Z, 2(4): 493-504, 1986.
  • 9
    - FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro, Forense Univ. 1977. O autor mostra como a Clínica é basicamente um modo de olhar diferente, e como este modo se organiza no estudo de Anatomia.
  • 10
    - Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. Este é o folclore da turma da autora, de 1974. Todas as turmas apresentam repertórios semelhantes.
  • 11
    - Sobre o currículo paralelo, ver SARAIVA (8) , e Oliveira, J. Ensino médico e papel das atividades extra-curriculares. Saúde em Debate, Londrina, CEBES, jun. 1989.
  • 12
    - HARRISON, TINSLEY, RANDOLPH. Medicina Interna Rio de Janeiro. Guanabara Koogan, 1983, 2v. 9A ed.
  • 13
    - CLAVREUL, J. A Ordem Médica: Poder e impotência do discurso médico. São Paulo, Brasiliense, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1993
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