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Projeto “Conte Comigo”: enfretamento da violência contra as mulheres nos jogos universitários

Resumo:

Introdução:

A universidade é instrumento de mudança social capaz de levar à comunidade novos pensamentos e análises críticas. Com a expansão do movimento feminista no Brasil, a discussão a respeito das relações de gênero se expandiu, com reivindicações por relações simétricas, justapondo os espaços universitários a tais demandas. Nesse contexto, nos jogos universitários entre Faculdades de Medicina (Intermed), evidenciou-se a violência contra as mulheres, havendo necessidade de um núcleo capaz de prover proteção às estudantes e promover mudanças na condução de tais eventos. A partir dessa realidade, surgiu a ideia do projeto “Conte Comigo”.

Relato de experiência:

Na organização do “Intermed” de 2017, um grupo de mulheres se propôs a estruturar um ambiente em que as participantes conseguissem salvaguarda em um contexto opressor. Foi criada uma tenda de apoio na qual seriam acolhidas queixas de transgressões que ocorressem durante o evento. Para otimizar a abordagem de queixas específicas, promoveu-se capacitação na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher para as voluntárias do projeto, além da elaboração de uma rede para atuar durante o evento com: escala de pronto atendimento na tenda; livro-ata para registro das queixas e dos adornos para identificação das voluntárias. Em 2018, as participantes do “Conte Comigo” ajudaram na redação do estatuto que rege a organização do “Intermed”, atribuindo punições a alguns tipos de violência. Além disso, nesse documento, foi formalizada a obrigatoriedade de um espaço físico para o projeto em todas as edições.

Discussão:

Em poucos anos, o “Conte Comigo” se estabeleceu como aparelho para a segurança e o bem-estar das participantes. Como a violência contra a mulher é um problema de saúde pública, essa medida inovadora se contrapôs a comportamentos machistas.

Conclusão:

Mesmo com a implementação do “Conte Comigo” podendo ser considerada um sucesso, múltiplas ações ainda são necessárias para tornar o ambiente universitário justo para todos os estudantes, o que depende de engajamento das voluntárias com capacitações frequentes, educação dos estudantes homens quanto à causa e coordenação das escolas médicas que têm o dever de prover o melhor ambiente possível a todos os estudantes.

Palavras-chave:
Feminismo; Educação de Graduação em Medicina; Violência de Gênero; Universidades; Assédio Sexual

Abstract:

Introduction:

The university is an instrument of social change, capable of bringing new thoughts and critical analyses to the community. With the expansion of the feminist movement in Brazil, the discussion about gender relations has increased, with demands for symmetrical relations, juxtaposing university spaces to such demands. In this context, in the university games between medical schools (Intermed), violence against women has become evident, with the need for a center able to provide protection to students and promote changes in the accomplishment of such events. Based on this reality, the idea of the “Count on Me” project has emerged.

Experience report:

At the organization of “Intermed” 2017, a group of women proposed to construct an environment where the participants could find safeguard in an oppressor context. A support tent was created, in which complaints of transgressions that occurred during the event would be heard. To optimize the approach to specific complaints, training was carried out together with the Special Police Force for Women’s Assistance for the project volunteers, in addition to the creation of a network of which function during the event was: to provide an emergency care shift in the tent; Minute Book for the recording of complaints and ornaments to identify the volunteers. In 2018, the participants of “Count on Me” project helped in the drafting of the statute that regulates the organization of “Intermed”, assigning punishments to some types of violence. Additionally, this document formalized the requirement for a physical space for the project in all editions.

Discussion:

In a few years, the “Count on Me” project established itself as an apparatus for the safety and well-being of the female participants. As violence against women is a public health problem, this innovative measure showed to be effective in confronting sexism.

Conclusion:

Even though the implementation of “Count on Me” project can be considered a success, multiple efforts are still necessary to make the university environment a fair one for all students, which depends on the volunteers’ engagement with frequent trainings, the education of male students regarding the cause, to the coordination of Medical Schools that have the obligation to provide the best possible environment for all students.

Keywords:
Feminism; Undergraduate Medical Education; Gender-Based Violence; Universities; Sexual Harassment

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher pode ser definida como “qualquer ato de violência baseado na diferença de gênero que resulte em sofrimentos e danos físicos, sexuais e psicológicos da mulher”11. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”. Belém: Comissão Interamericana de Direitos Humanos; 1994 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm .
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. Ela advém do machismo, forma de preconceito histórico que defende a dominação dos homens sobre as mulheres a partir de uma visão biológica do sujeito22. Sá BS, Folriano MD, Rampazo AV. Assédio sexual: o poder do macho dentro da universidade. Estud Adm Soc. 2017];3(2):22-31. doi: 10.22409/eas.v3i2.70.
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Entre seus componentes, há o assédio sexual, previsto no Código Penal pelo artigo 216-A. É um crime que prevê a existência de relação laboral entre o agente e a vítima, em que o assediador usa a hierarquia com a finalidade de obter vantagem sexual33. Brasil. Lei n° 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Brasília; 2001 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10224.htm .
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. Caso a conduta seja praticada nas ruas ou em outros contextos, o crime é outro: importunação sexual44. Brasil. Lei n° 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável. Brasília; 2018 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm .
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. O presente trabalho, em termos técnicos, aborda a importunação sexual. Entretanto, lança-se mão do termo “assédio”, tendo em vista sua acessibilidade e universalidade nos meios de comunicação.

A partir da expansão do movimento feminista no Brasil desde meados de 1960 e do início das indagações acerca das relações de gênero na década de 1990, a discussão a respeito do universo feminino, das relações de gênero e de poder se ampliou, abarcando novos aspectos55. Marques MC, Xavier KRL. A gênese do movimento feminista e sua trajetória no Brasil. IV Seminário Cetros; 2018 ago 22-24; Itaperi (CE). Itaperi: Universidade Estadual do Ceará; 2018 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.uece.br/eventos/seminariocetros/anais/trabalhos_completos/425-51237-16072018-192558.pdf .
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. A partir desse contexto, as mulheres, em seu processo de tomada de consciência, transformaram os assuntos pessoais e individuais em questões políticas e se organizaram em grupos politicamente ativos chamados “coletivos”66. mulheres.org.br. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde; c2020 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.mulheres.org.br/ .
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Sob a ótica dos coletivos feministas universitários, comportamentos machistas identificados nas instituições de ensino superior (IES) devem ser censurados. Alguns trabalhos científicos corroboram a disparidade existente entre gêneros na universidade. Um estudo realizado pelo Instituto Avon/Data Popular, em 2015, com 1.823 estudantes do Brasil sobre a violência de gênero no ambiente universitário apontou que 67% das mulheres reconheceram já ter sofrido algum tipo de violência dentro da universidade77. Scavone M, coordenadora. Violência contra a mulher no ambiente universitário. São Paulo: Instituto Avon; 2015 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/violencia-contra-a-mulher-no-ambiente-universitario-data-popularinstituto-avon-2015/ .
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. Em 2018, em uma pesquisa realizada pelo “Escritório USP Mulheres”, na Universidade de São Paulo (USP), 13.377 alunos foram questionados acerca do ambiente universitário, e, desses, 71% consideraram a USP um ambiente machista, enquanto 26% já vivenciaram violência moral, e 7%, sexual - esta se relacionando, muitas vezes, ao espaço “festas”88. Castro M. Para mais da metade dos estudantes, USP é machista e racista. Jornal da USP; 2018 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: https://jornal.usp.br/universidade/para-mais-da-metade-dos-estudantes-usp-e-machista-e-racista/ .
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Nos coletivos, ao tentar integrar as IES às demandas das novas gerações, o arcabouço da estrutura universitária começou a ser redesenhado. Por exemplo, na USP de Ribeirão Preto, foi implantada a Comissão para Apurar Denúncias de Violência Contra Mulheres e Gêneros (CAV-Mulheres USP-RP). A comissão, em 2018, divulgou as “Diretrizes gerais para as ações institucionais de intervenção em situações de violência e discriminação de gênero e orientação sexual”. Entre elas, há orientações para o atendimento integral à vítima, que conta com a promoção de autonomia do sujeito em situação de violência, o compromisso com a sistematização de dados relativos ao ocorrido e a continuidade no atendimento, entre outros99. Universidade de São Paulo. Comissão para Apurar Denúncias Contra Mulheres e Gêneros. Diretrizes gerais para as ações institucionais de intervenção diante de situações de violência ou discriminação de gênero ou orientação sexual. Ribeirão Preto; 2017 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.prefeiturarp.usp.br/cav-mulheres/diretrizes-2018.pdf .
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Nesse contexto, pensando em possíveis intervenções que poderiam ser realizadas nas universidades do Centro-Oeste (CO), alguns dos eventos tradicionais das instituições, como os jogos interuniversitários, começaram a ser repensados, de forma a adaptá-los a essas novas demandas.

Conhecidos como “Intermed”, os jogos universitários entre as Faculdades de Medicina são reproduzidos em diferentes partes do país, em variadas edições. Para o Distrito Federal (DF), a edição microrregional corresponde ao “Intermed-DF”, e a macrorregional, abrangendo as demais faculdades do CO, corresponde ao “Intermed-CO”. Cada edição é realizada por uma Associação Atlética Acadêmica (AAA) organizadora. Uma AAA constitui-se em organização estudantil de caráter esportivo que tem como principal objetivo promover o esporte no âmbito universitário1010. Oliveira GC. Gestão organizacional nas Atléticas: um estudo sobre gerenciamento das Associações Atléticas Acadêmicas do DF [monografia]. Brasília: Universidade de Brasília; 2016 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/13959/1/2016_GuilhermeCesardeOliveira.pdf .
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. As faculdades participantes do “Intermed” são convidadas por meio de suas próprias atléticas e seus alunos ficam sob responsabilidade dessas atléticas.

Em 2017, a partir da análise feita por diversos coletivos feministas universitários do CO sobre a vivência do evento, tornou-se clara a necessidade da instauração de um núcleo permanente de apoio capaz de prover proteção às participantes do “Intermed”, além da necessidade de mudanças na condução e estrutura de tais eventos. A partir dessa conjuntura, o projeto “Conte Comigo” surgiu.

Assim, este estudo descritivo tem como finalidade relatar o processo de criação e estruturação e os resultados já conquistados pela iniciativa.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Nos jogos universitários, a violência e o machismo se reproduzem intrinsecamente e podem ser identificados a partir da análise de diversos componentes. Durante os jogos, os insultos às jogadoras por parte da torcida evidenciam a subjugação do masculino sobre o feminino, tanto em forma de “gritos de guerra” como em comentários avulsos. Os xingamentos são comumente relacionados à vida sexual das jogadoras e aos seus corpos, objetificando-as e dando-lhes conotação de desprezo11.

Além disso, durante as festas do evento, são comuns os apertos de braço seguidos por beijo forçado, toques inapropriados e intimidações. Ademais, tem-se as músicas como o veículo mais explícito e passivamente aceito dessa violência1111. Michetti M, Von Mettenheim SL. Gênero e violência simbólica em eventos esportivos universitários paulistas. Cad Pagu. 2019;56:e195623. doi: 10.1590/18094449201900560023.
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. Por exemplo, uma canção reproduzida inúmeras vezes em edições passadas foi a “Helicóptero”, do DJ Guuga com participação do MC Pierre, cuja letra diz:

Tu vai fuder no céu piranha, dentro do helicóptero […] Piranha tu quis o céu, [...] qual que vai ser? Vai dar ou vai descer? [...] O mar tá lá embaixo, nós tá aqui em cima. E ela tá achando que nós tá brincando Não tô brincando [...] Se ficar de palhaçada eu taco no oceano 12 12. Santana WM (DJ Guuga). Helicóptero. São Paulo: Gr6; 2019 [acesso 9 ago 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.letras.mus.br/dj-guuga/helicoptero-part-mc-pierre/ .
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Dessa forma, as estudantes que frequentam esses eventos na expectativa de entretenimento são inseridas em situações de medo e diminuição social por parcela importante dos discentes que reproduzem padrões machistas aprendidos em sociedade.

O projeto surgiu durante o “Intermed-DF”, em 2016, quando foi disseminado relato de estupro que teria ocorrido em um dos alojamentos estudantis do evento. À época, iniciou-se a discussão sobre a necessidade de um núcleo de apoio às mulheres durante os jogos. Na segunda edição do mesmo ano, no “Intermed-CO”, algumas estudantes, organizadas de forma independente do evento, distribuíram pulseiras na festividade, identificando-se como um ponto de apoio para outras estudantes.

No ano seguinte, um grupo de mulheres da “Comissão de Segurança” da AAA organizadora do “Intermed-DF” se propôs a elaborar um programa de acolhimento às mulheres, no qual as participantes vítimas de violência pudessem ser protegidas dentro da celebração. Resgatou-se, então, a proposta realizada no “Intermed-CO” do ano anterior, e, a partir dela, o projeto “Conte Comigo” foi criado no primeiro semestre de 2017.

À época, esse mesmo grupo de mulheres se reuniu com a delegada-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher do Distrito Federal (Deam-DF) e realizou uma capacitação de acolhimento a vítimas de assédio para um grupo de voluntários. Esses constituíam-se essencialmente de alunas participantes do evento, independentemente da faculdade de origem e do período de graduação. A capacitação foi parte de um projeto já estabelecido pela Deam chamado “Lidera - Empoderar para Multiplicar”, voltado para líderes comunitários no enfrentamento da violência contra as mulheres. O projeto funciona por meio de oficinas que abordam questões de gênero, diferentes formas de prevenção à violência e medidas básicas de ajuda às vítimas. Nos “Intermed” seguintes, todas as voluntárias já orientadas ficaram responsáveis por compartilhar esse conteúdo com as novas voluntárias que adentrassem no projeto.

A iniciativa pauta-se em uma estrutura capaz de acolher as mulheres a qualquer momento durante o evento, embasada em dois pilares: um suporte fixo e um móvel. O fixo consiste em uma tenda de apoio, estrategicamente colocada próxima ao local de festas, na qual são acolhidas queixas de diversos tipos que ocorrem durante os happy hours. Na tenda há um livro-ata, no qual se registram o nome do agressor, a faculdade à qual pertence, o ocorrido e sua data, a fim de manter um histórico quantitativo e qualitativo das transgressões. Ao final do atendimento, às estudantes era oferecida a possibilidade de serem levadas a uma unidade de saúde, delegacia de polícia ou local de hospedagem. Infelizmente, o livro-ata utilizado foi perdido após a última edição do “Intermed”, em 2019, o que inviabiliza a citação categórica das formas de violências registradas. O suporte fixo também conta com uma rede de organização das voluntárias, escaladas em regime de pronto atendimento para acolhimento das demandas. Já o apoio móvel é formado à maneira como foi realizado em 2016: voluntárias se identificam como “pontos de assistência” a partir da utilização de crachás e pulseiras especiais. Dessa forma, durante todo o dia, não apenas nas festas, o projeto consegue estar presente provendo ajuda.

Devido aos seus ótimos resultados, o projeto adquiriu novas proporções, conquistando mais autonomia e respeito. Uma das conquistas foi o espaço de participação e fala durante as reuniões diárias da organização do evento. Nessas, a AAA organizadora, com as responsáveis de cada AAA participante, apura todos os acontecimentos do dia e delibera decisões sobre cada caso. Com esse espaço garantido, foi possível explicitar as violências ocorridas, o que permitiu a organização coletiva de diferentes formas de punição e advertência às partes denunciadas.

As punições aplicadas iam desde a perda de pontos da AAA responsável pelo agressor na competição até a expulsão individual dos participantes do evento, a depender da gravidade da agressão. Em injúrias coletivas (como gritos de guerra), a AAA era responsabilizada como um todo, e, em violências interpessoais específicas, tanto o participante quanto a AAA arcavam com as consequências.

Outra conquista importante ocorreu em 2018, quando as participantes do “Conte Comigo” ajudaram na redação do novo estatuto da Liga Intermed do Centro-Oeste (Lico), que rege a organização do “Intermed-CO”. Pelo artigo 52, fica passível de advertência escrita aquele participante que “proceder com agressão verbal de cunho pessoal tais como ofensas raciais, xenofobia, ofensa de cunho sexista, ofensa a crenças religiosas, entre outros”, e, pelo artigo 53, pode ser suspenso o participante que “estiver envolvido em brigas ou revide, agressões físicas, ofensas raciais, assédio sexual, roubo ou furto”.

Além disso, dentro do escopo de conquistas do projeto, no estatuto, foi formalizada a obrigatoriedade de a AAA organizadora prover um espaço físico para o projeto, além de pulseiras e crachás para suas participantes. Tornou-se também obrigatória a criação de estrutura física de fácil acesso e que resguarde a privacidade das vítimas, a fim de ensejar caráter permanente e duradouro para o “Conte Comigo”.

DISCUSSÃO

Criados para descontração e socialização dos estudantes, os jogos universitários tornam-se cenário para reprodução de comportamentos aprendidos coletivamente. Esse contexto é característica comum nos ambientes informais, visto que o rigor exigido em socializações formais é abandonado, contribuindo para o exercício da violência e opressão.

Assim sendo, o cenário extra-acadêmico se torna um mecanismo de escape social, no qual se acredita em uma permissão implícita para quebra de regras sociais sob o pretexto da informalidade. Os jogos universitários são uma projeção social do problema e propiciam a materialização da violência, principalmente de cunho sexual e moral.

Dito isso, alguns pontos precisam ser levados em consideração para o completo entendimento do impacto do projeto apresentado.

Os jogos e as festas são apenas dois dos cenários existentes de prática da violência contra a mulher no âmbito universitário. A violência ganha forma em outros espaços, como aulas e palestras, tanto nas relações hierárquicas docentes-discentes quanto entre os próprios discentes. Entretanto, existe uma grande limitação na caracterização desse tipo de violência dentro da universidade, tanto pelo receio de retaliação por parte das vítimas quanto pelo fato de que, para muitas autoridades, tal violência somente existe quando deixa marcas físicas graves na vítima, conforme narra a pesquisadora Heloísa Almeida em “Violência sexual e de gênero na universidade: do segredo à luta por reconhecimento”1313. Almeida HB. Violence sexuelle et de genre à l’université: du secret à la bataille pour la reconnaissance. Brésil(s). 2019;(16) [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: http://journals.openedition.org/bresils/5348 .
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. Assim, a desvalorização da violência psicológica ou do assédio sem contato físico caracteriza ainda outro tipo de violência: a institucional1414. Brasil. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília; 2011 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres#:~:text=A%20Pol%C3%ADtica%20Nacional%20de%20Enfrentamento,viol%C3%AAncia%2C%20conforme%20normas%20e%20instrumentos .
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Como centro de análise crítica da sociedade, a universidade abre espaço para o processo de tomada de consciência a partir da percepção pessoal e institucional de um problema estrutural como a violência. Dentro desse contexto, é importante abordar o comportamento do agressor e das testemunhas perante essas situações. De acordo com a pesquisa do Instituto Avon/Data Popular, cerca de 38% dos estudantes homens admitiram já ter cometido alguma violência, seja ela de cunho sexual, psicológico, moral, físico ou de desqualificação intelectual com base em gênero77. Scavone M, coordenadora. Violência contra a mulher no ambiente universitário. São Paulo: Instituto Avon; 2015 [acesso em 12 nov 2020]. Disponível em: Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/violencia-contra-a-mulher-no-ambiente-universitario-data-popularinstituto-avon-2015/ .
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. Já em relação ao comportamento das testemunhas, um estudo nigeriano sobre a preparação dos estudantes de Medicina para reconhecer a violência de gênero e responder a ela demonstrou que 59,8% dos entrevistados acreditam que não é competência médica se envolver em como um casal resolve seus conflitos e preferem não agir por considerarem “invasão de privacidade”1515. Fawole OI, Van Wyk JM, Balogun BO, Akinsola OJ, Adejimi A. Preparing medical students to recognize and respond to gender based violence in Nigeria. Afr Health Sci. 2019;19(1):1486-98 [acesso em 12 set 2021]. Disponível em: Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31148976/ .
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Além disso, a violência constitui-se também como problema de saúde pública. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, 35,5% das mulheres que sofreram homicídios dolosos em 2019 foram vítimas de feminicídios, demonstrando um crescimento de 7,1% na taxa de feminicídios por 100 mil mulheres entre 2018 e 2019. A análise dos últimos 11 anos produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de acordo com o Atlas da violência 2021 indica que os homicídios de mulheres dentro de suas residências cresceram, enquanto os de fora das residências diminuíram no mesmo período, o que demonstra um provável crescimento da violência doméstica1616. Cerqueira D, Ferreira H, Bueno S, coordenadores. Atlas da Violência 2021. Brasília: Ipea; 2021 [acesso em 6 set 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf .
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. Esses números são alarmantes dentro do atual contexto de machismo estrutural e acendem um alerta para a importância acerca da implementação de estratégias preventivas.

Tendo isso em vista, é importante ressaltar que a universidade, como espaço de ensino e análise crítica social, apresenta uma ótima oportunidade para a interrupção do ciclo vicioso da violência de gênero. O ensino médico deve contemplar todas as dimensões da complexidade de um atendimento e relacionamento interpessoal humanizado. É fundamental que, durante a graduação, como formação de agentes da saúde com capacidade de modificação sociocultural, seja abordado o problema de saúde pública que a violência de gênero constitui, assim como deve ser aberto o espaço para a percepção pessoal da perpetuação de atitudes agressivas e coniventes com a violência (seja como agressor ou testemunha), além da perpetuação da violência institucional.

O projeto revela-se relevante ao mostrar para a comunidade acadêmica que não deve haver impunidade em nenhum ambiente, mesmo se totalmente informal como os jogos universitários. Além disso, prova ser falsa a ideia de que há uma permissão implícita para a quebra de regras sociais no âmbito extra-acadêmico, deixando claro que nenhum abuso deve ser tolerado em nenhum cenário, independentemente do seu nível de formalidade.

O projeto tem como seu pilar principal o acolhimento adequado de vítimas de violência, promovendo amparo àquelas que necessitem, validando suas queixas e dando vazão às demandas emergentes. Com pouco tempo de existência, o “Conte Comigo” se estabeleceu como ferramenta importante para a segurança dos participantes, por meio da disponibilização de espaço físico e simbólico (com poder de ação e fala) dentro do maior evento universitário dos cursos de Medicina do CO.

Em relação à estruturação do projeto, a fim de sistematizar e padronizar os atendimentos, o livro-ata foi utilizado como forma de registrar a abordagem empregada nos acolhimentos. Ademais, sua inserção como instrumento obrigatório do “Intermed” por meio do estatuto da Lico faz com que a tendência seja seu enraizamento como constituinte natural do evento.

Entretanto, o “Conte Comigo” apresenta algumas limitações: a possibilidade de perda da qualidade do acolhimento prestado ao longo do tempo, caso não haja capacitação contínua e regular em parceria com a Deam; a decisão final de punição ser exclusiva da AAA organizadora, podendo haver conclusões parciais e subjetivas; e, por último, a ausência de descrição prévia da implementação e da forma de atuação do projeto, com o repasse de suas características sendo feito de forma predominantemente oral, o que tem acarretado perda de informações relevantes, inclusive para este relato, tais como detalhes sobre a capacitação da Deam e sistematização dos atendimentos nos livros-ata ao longo dos anos.

É importante sinalizar que não foram encontradas outras produções científicas acerca da proposta do projeto bases de dados LILACS, SciELO e PubMed, tornando este um trabalho de alto valor agregado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O “Conte Comigo” propiciou um ambiente inédito no “Intermed-CO”, no qual se tornou possível tipificar as transgressões mais comuns que ocorrem no evento, tornando-o passível de intervenções.

É importante salientar que a manutenção do êxito do projeto em seu propósito depende das ações conjuntas dos principais agentes envolvidos: a AAA organizadora deve fornecer o espaço físico e os materiais para identificação das voluntárias, além do espaço de fala durante as reuniões diárias; e as voluntárias devem manter a capacitação continuada de forma regular para as novas participantes, com aperfeiçoamento contínuo, preferencialmente com o apoio da Deam. Assim, a tendência é o aprimoramento no atendimento integral à vítima, com resposta efetiva às transgressões.

Como melhorias para o projeto, sugere-se que haja uma melhor sistematização dos incidentes ocorridos, a exemplo da informatização dos registros, para que não seja perdido o seguimento do perfil de transgressões e, consequentemente, não haja prejuízo na possibilidade de intervenção dos agravos.

Além disso, é importante que as ações em prol da igualdade de gênero não se limitem aos jogos universitários. As escolas médicas devem considerar em seus currículos a abordagem da violência de gênero como questão de saúde pública, além de posicionar o profissional médico nesse contexto como agente capaz de modificação sociocultural. O enfrentamento desse tipo de violência deve ser iniciado na própria IES, defendendo seus alunos, inclusive, da própria violência institucional. Entretanto, sabendo que a maioria das IES brasileiras não possuem experiência na adoção e execução de políticas de enfrentamento da violência contra a mulher, sugere-se a utilização das diretrizes do CAV-Mulheres USP-RP como base para a articulação de políticas.

Desafortunadamente, sendo o “Conte Comigo” uma associação de mais de uma dezena de faculdades, dificilmente ele se tornará um programa a ser implementado de maneira padronizada dentro das escolas médicas. Contudo, dentro de escopo de possibilidades de cada faculdade, é possível, e recomendável, o desenvolvimento de programas com a mesma intenção de criação de um ponto de acolhimento às vítimas de violência organizado por parcerias entre os coletivos de mulheres e coordenações de curso.

REFERENCES

  • 7
    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.
Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Gustavo Antonio Raimondi.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2021
  • Aceito
    06 Dez 2021
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