Resumo:
Proposição de desdobramento da disciplina de Microbiologia médica do ciclio básico do curso de Medicina, em duas: Microbiologia biomédica e Iniciação à Infectologia. A primeira, tecnologia da Microbiologia biomédica, com carga horária reduzida no ciclo básico, de execuções individuais e demonstrações a grupos de estudantes, tomando a Bacteriologia como algo paragmático (com MUTATIS MUTANDIS oportunos). E a segunda, no ciclo clínico, com maior carga horária, predominantemente conceitual e, Clínica e Epidemiologia (definições, glossário de terminologia instrumental) de integração vertical a disciplinas do ciclo clínico, em particular Moléstias Infecciosas, STRICTU SENSU, (Clínica Médica) e sua Epidemiologia Medicina social preventiva).
Palavras-chave:
História da Medicina; Doenças transmissíveis; Microbiológica; Educação médica
Summary:
Proposal of unfolding for the programmatic contents of the medical and paramedical discipline of short duration. Microbiology, basic cycle, into two disciplines; the first, paramedical Microbiology (technology), at the same basic cycle, taking bacteriology as a paradigmatic example with opportune mutatis mutandis of technical procedures (demonstrations to groups of students and students personal performances) as an expressed sufficient adequacy for medical education. And a second new discipline of rather long duration, initiation to Infectology, clinical cycle. This discipline (concepts, definitions, glossary of instrumental terminology on practical facts) should show an interdisciplinary vertical integration to disciplines of clinical cycle, particularly Infectious Diseases stricto sensu (Clinical Practice), and to their Epidemiology (Social Preventive Medicine).
Keywords:
Medicine, History of; Communicable Diseases; Microbiological Techniques; Education, Medical
INTRODUÇÃO
O admirável desenvolvimento da Microbiologia, no século XIX, fê-la revelar-se como especialidade biomédica autônoma no sentido exato, dedicada que era, após as fundamentais contribuições metodológicas de Pasteur (1822-1895) e Koch (1843-1910), a exames não da pessoa do paciente, como a competência da clínica o exige, mas dos mais diferentes tipos de material colhidos do paciente para serem submetidos a exames laboratoriais, de ordem complementar e de valor conclusivo para determinar a "identidade biológica" dos micróbios encontrados. O micróbio é o seu mister, objeto direto de sua investigação. As identidades encontradas e isoladas em cultura pura eram confrontadas com a situação clínico-epidemiológica do paciente, inclusive se isento de sintomatologia. Esses cotejamentos ininterruptos, em que se estudavam surtos e epidemias fornecedores de casos clínico-epidemiológicos da doença, levavam a conclusões confirmativas de diagnóstico bilateral clínico-microbiológico.
Os resultados confirmavam as suspeitas com tanta frequência que o período foi cognominado áureo para a nova ciência da Microbiologia em Medicina: ciência em plena fase de consolidação observacional, experimental e conceitua!, valorizando-se definitivamente, em sua contribuição complementar ao diagnóstico do caso em posição conclusiva idônea. Só bem mais tarde ficou estabelecido que "certa" doença infecciosa, causada especificamente por micróbio de "determinada" identidade, não bastava para que se produzisse a moléstia necessariamente, como ficou evidente nos casos (nada raros) de portadores-sãos. Então, a rigor, esse micróbio não encerrava toda a etiologia (etio, causa em grego), não encerrava toda a "carga da causa". Ele não poderia ser o agente etiológico da doença, como foi abusivamente denominado à época; mas, sem dúvida, o agente infeccioso, adequadamente denominado hoje.
Desse modo, a Microbiologia foi alcançando plena autonomia científica com sua decisão idônea e singular, na determinação dos agentes microbianos patogênicos, e não patogênicos da flora normal. Métodos e processos que, ainda hoje, continuam a evoluir de modo que possam oferecer, além de segurança tecnológica, prontidão de resultados para agilizar a conclusão diagnóstica do caso - de suspeito a definitivo. Em face da feliz especificidade das reações imunológicas, a Imunologia, associada à Microbiologia médica, tomou-se, de diversas maneiras, imprescindível, sublinhando com exatidão que, se o paciente reage a determinado micróbio, foi por ele atacado; não importa que essa reação assuma diferentes aspectos em cada exemplo onde atua.
Mas, apesar do exposto, a carga horária atribuída à Microbiologia médica no ciclo básico (disciplina do 29 ano nas faculdades de Medicina), em geral, tem sido, muito restrita. Esta avaliação crítica é, entretanto, factual, considerando: a) a importância da disciplina ante as muito elevadas prevalências de Moléstias Infecciosas, stricto sensu, isto é, produzidas por agentes infecciosos microbianos; b) na volta recente ao cenário de Saúde Pública de doenças epidêmicas que se julgavam (com inaceitável simplismo ante a complexidade, de regra, dos fenômenos biológicos) estarem "eliminadas" do país, como a cólera, a febre amarela, a dengue; e, noutra faixa, "controladas", a peste, a tuberculose e a hanseníase. Se bem que os sanitaristas do passado já haviam notado que, moléstias transmissíveis "controladas", voltavam ao campo, mais cedo ou mais tarde, após o afrouxamento, nunca impune, das medidas de controle; c) até mesmo o aparecimento de uma, nunca antes identificada que se tornou surpreendentemente ameaçadora à humanidade como um todo, como é a AIDS, que exorbita dos quadros a que estávamos acostumados; e outras, de revelação também recente, mas de pouca extensão aparente; d) como aquilatar a esperança outra vez simplista, de tratamento anti-infeccioso em moldes de alta eficiência, iniciados na década de 40 com as novas quimioterapias e antibioticoterapias aparentemente capazes de eliminarem e/ou controlarem moléstias infecciosas graves e hoje, termos de aceitar como fato contumaz o surgimento da resistência, até multi-instalada, dos micróbios a esses medicamentos ? Como aceitar que o estreptococo do Grupo A, já de tão diversificada patogenicidade, ainda tenha revelado ultimamente, linhagens novas, capazes de "digerirem tecidos moles vivos" ("flesh-eating kind") corno recentemente se verificou em sua nova capacidade patogénica, agora necrotizante também? E outras tantas perguntas no campo do que melhor parecíamos conhecer, que ficam com respostas suspensas, e até quando?
Considerando-se como meta a alcançar no curso de graduação em Medicina, tanto sob o ponto de vista biomédico (Tecnologia) como médico (Infectologia) um certo grau de proficiência caracterizado por influência educativa de algum modo, marcante, fica o penoso registro de que "a clássica" disciplina Microbiologia (Médica) do curso de Medicina, hoje, pode admitir uma aplicação mais profícua da preciosa carga horária, que lhe corrige a situação antiga de não satisfazer melhor nem ao seu aspecto biomédico, nem ao seu aspecto médico. Uma carga horária maior, entretanto, deveria reservar-se para a Iniciação à Infectologia, pois a ênfase deve ser colocada, de preferência, se houver necessidade de escolha, pelos aspectos específicos da vocação médica.
Para o Conteúdo Programático seria criada uma nova disciplina médica, a denominar-se Iniciação à Infectologia (Clínicoepidemiológica) no 3° ano (ciclo clínico) em desdobramento da, e complementação à disciplina tradicionalmente denominada Microbiologia (Médica), do 2° ano (ciclo básico) que passaria a denominar-se Microbiologia biomédica (tecnologia, métodos e processos).
Julgamos necessário que a programação incluísse não somente questões sugeridas pelo Professor encarregado da Iniciação à Infectologia, mas também pelos seus colegas das disciplinas clínicas para as quais a nova disciplina deseja oferecer-lhes integração vertical complementar básica: Doenças Infecciosas stricto sensu da Clínica Médica e sua Epidemiologia (Medicina Social Preventiva). Por outro lado, a ênfase na complementação médica que traria esta disciplina é dirigida ao discernimento claro de conceitos fatuais clínico-epidemiológicos da Infectologia de interesse fundamental na atuação do médico como clínico, envolvendo os chamados atos médicos (exclusivos, e indelegáveis, exceto formalmente), e que, em doenças transmissíveis assumem aspectos clínicos de diagnóstico, epidemiológicos, preventivos e terapêuticos.
Numa parte geral do curso de Iniciação à lnfectologia dar-se-ia importância também aos aspectos históricos da evolução das incipientes conjecturas na interpretação das ocorrências de casos isolados (esporádicos), como surtos epidêmicos e epidemias de dimensões catastróficas, que tiveram repercussão no passado (citemos o exemplo da erradicação da varíola).
A correta definição dos conceitos pode parecer, pejorativamente, uma montagem "teórica" dos fatos, se assim considerados, mas significam muito na prática: por exemplo, os micróbios, agentes imputáveis de patogenicidade não são, conforme já referido anteriormente, etiológicos como foram denominados na consolidação da microbiologia médica, mas, a rigor mostraram-se infecciosos, pois dependem da conjunção de três ordens de fatores: 1°) do ser infectado, 2º) do meio ambiente total e, enfim, 3º) do próprio micróbio. E esse conhecimento completo pode ser utilizado na Medicina Preventiva.
O notável microbiologista franco-americano René Jules Dubos, do Instituto Rockefeller (Nova York), ainda na década de 40 defendia o plano de que poderia ser de sumo interesse prático para a medicina social preventiva aprofundar as condições de história natural que tornam possível o portador-são: i. é, aquele equilíbrio alcançado entre agredido e agressor tornando pacífica a sua convivência. Numerosas observações confirmaram e esclareceram a moléstia infecciosa no paciente e a infecção no portador-são. A moléstia infecciosa, stricto sensu, é um drama resultante de três fatores em suas variáveis:
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A susceptibilidade-imunidade e resistência inespecífica do paciente;
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grau variável de patogenicidade do micróbio;
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influência dos meios-ambiente:
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ecológico-epidemiológico;
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sócio-econômico - em suas alternativas favoráveis ou desfavoráveis aos humanos enfrentando os micróbios patogênicos.
Exemplos:
1° - erradicação:
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da varíola, efetivada; por meio de vacinação em massa;
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da poliomielite, em processo de efetivação (?); por meio de vacinação em massa.
2° - eliminação:
da febre amarela; passagem de urbana silvestre por alteração do meio ambiente ecológico-epidemiológico e vacinação dos expostos.
3° - controle ou eliminação
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Da tuberculose
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Da hanseníase
por nível suficientemente elevado do meio ambiente sócio-econômico-cultural e vacinação anti-tuberculose dos expostos.
Uma tarefa fundamental do Professor hoje, ante a massa de informações e conhecimentos lançada pelos meios de comunicação que chegam continuamente à nossas bibliotecas, tomou-se - contrariando o antigo e popular adágio, de que "o saber não ocupa lugar", já que o saber, hoje, ocupa lugar (se não puder ser, de alguma forma, utilizado) não apenas um problema relativamente simples de substituir matéria obsoleta pontual por aquisições científicas de recente consubstanciação (corno tão frequentemente, e não de há muito, foi evoluindo nosso conhecimento, por exemplo, sobre a Família Enterobacteriaceae). Isso constitui um tipo de tarefa que, em certos casos, demanda uma atitude de descompromissada equanimidade e capacidade de integração de conhecimentos para alcançar uma escolha adequada - ponto que talvez só as felizes intuições consigam alcançar.
É fato consumado que os estudantes de Medicina, há algum tempo, não escolhem, a disciplina Microbiologia (Médica) como especialidade laboratorial da biomedicina, senão, excepcionalmente. Esse desinteresse leal pela disciplina de Microbiologia biomédica (tecnologia: processos e métodos) não pode e não deve ser recriminado.
Ao contrário, só pode merecer nosso respeito pela louvável fidelidade que essa atitude significa para com a sua vocação médica confirmada; pela qual, isto sim, se sentem naturalmente atraídos e - sintoma decisivo - pessoalmente valorizados.
Enfim, o que eles vieram almejando e esperavam ao conseguirem matrícula tão competitiva numa Faculdade de Medicina, foi começar desde logo sua vivência médica, mergulhando numa atmosfera distinta da laicidade anterior, distinta e indiscutivelmente valorizante, impressionados pelos modelos que lhes são novos, de comportamento de seus professores, sobretudo ante os pacientes, e já aprendendo a executar, responsavelmente, tarefas profissionais sob supervisão próxima "em benefício dos pacientes", na lição hipocrática fundamental (curativos, injeções, primeiros socorros, medida da pressão arterial e da temperatura, registro sistemático de anamneses, uso do estetoscópio, frequência de pulsos, estágios no serviço de radiografias, eletrocardiografias, nos laboratórios de análises clínicas, não para todos, mas para os que se decidiram por especialidades correlatas, etc.).
Na dependência determinante da carga horária disponível dentro da inextensível carga horária total do curso de Medicina, realmente não cremos que se deva despender parte desse precioso fator (carga horária) com estudos e treinamentos tecnológicos para alcançar proficiência teórica e prática em tipos de atividade e trabalho que os estudantes de medicina hoje jamais pensariam utilizar em suas vidas profissionais de clínicos, como essa situação atual, e de há muito, vem demonstrando de forma inequívoca em circunstâncias que nos parecem irreversíveis.
AGRADECIMENTOS
O autor agradece à Escola de Higiene e Saúde Pública da Universidade John Hopkins, MD, U.S.A., da qual recebeu medalha de bronze pelo quinquagésimo aniversário de sua graduação "Master of Public Health", 1945-46.
Obs.: A ABEM parabeniza-se com o emérito Professor distinguido com a medalha de bronze pela Escola de Higiene e Saúde Pública da Universidade John Hopkins, MD, U.S.A., na passagem do 50º aniversário de sua graduação "Master of Public Health".
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 1997