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RESPONSABILIDADE ÉTICA DA LINGUAGEM MÉDICO-CIENTÍFICA

“O uso da ração X tinha boa indicação: em 66,6% dos casos os frangos ganharam peso e em 33,3% o resultado era duvidoso. A conclusão acima derivou do estudo de 3 frangos: em um (33,3%) deles houve aumento nítido de peso, em outro (33,3%) aumento discreto; o 3.0 (33,3%) fugiu, daí o resultado duvidoso”. (de autor não identificado)

"Uma coisa não se sabe, enquanto as palavras e os conceitos para dizê-la não foram ainda utilizados nesta posição”. (Ítalo Calvino 4 4. CALVINO, I. A combinatória e o mito na arte da narrativa. Atualidade do mito. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1977. )

''A linguagem, em si, já é um meio de produção, possivelmente o mais antigo de todos”. (J. D. Bemal 1 1. BERNAL. J. D. Ciência na história. Lisboa, Livros Horizonte, 1975. )

Chega a surpreender o fato de conceitos equivocados ou incompletos, sobre os quais se estabelecem condutas terapêuticas e ou diagnósticas, serem aceitos facilmente, sendo "derrubados" somente após um certo período de tempo.

Mesmo nos dias de hoje, quando a ciência médica apresenta progresso vertiginoso, a ponto de ter evoluído em 50 anos mais do que em muitos séculos, o fenômeno continua a ocorrer.

Tanto no passado, como no presente, a "autoridade" e o "prestígio" de quem propõe ou defende um certo conceito pesa. O famoso episódio ocorrido com o cirurgião inglês John Hunter é bem ilustrativo. Discutia-se, no séc. 18, se blenorragia e sífilis eram uma só doença, ou duas moléstias diferentes; Hunter, então com 38 anos (1767), auto inoculou a secreção purulenta obtida da uretra de paciente com blenorragia e acabou contraindo blenorragia e sífilis, pois o doente era também portador de lues não diagnosticada pelo cirurgião1414. VIEIRA, S. & HOSSNE, W. S. Experimentação com seres humanos. 2. ed. s.l., Moderna, 1987 ..

Com base nesta auto experimentação isolada, graças ao renome de Hunter, durante muitos anos este conceito equivocado não foi contestado.

Se é verdade que, hoje em dia, graças à introdução do método científico na ciência médica, não se aceita como verdade científica a conclusão baseada em uma única observação isolada, sem réplica e repetição, não é menos verdade que a linguagem não adequada, utilizada por pessoas com "autoridade" ou' 'prestígio", também pode conduzir à aceitação durante algum tempo, ao menos, de conceitos equivocados.

Deixando de lado os casos em que reconhecidamente existe má fé, não são poucas as situações em que se emitem, enfaticamente, conceitos como se tivessem base científica comprovada quando, na verdade, isso não ocorre

Assim, a utilização de linguagem inadequada, sobretudo verbal, em Congressos, simpósios, palestras e conferências, pode equivocada mente dar foro de verdade científica ao que é apenas um ponto de vista, uma opinião, ou, no máximo, uma hipótese a ser ainda comprovada.

Se o expositor é uma "autoridade", o equívoco acaba sendo aceito, e mesmo divulgado, por prazo de tempo razoável. Em se tratando de um conceito que embasa uma conduta terapêutica, medicamentosa ou cirúrgica, a responsabilidade ética se acentua, pois, afinal, muitas pessoas poderão ser tratadas de maneira equivocada, ainda que de boa-fé.

A "impressão", a "opinião", a "consideração", a "suposição" são elementos úteis sem dúvida, mas não passam disso, não se podendo confundir com verdade ou fato científico. De fato, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira66. FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.: “IMPRESSÃO: opinião mais ou menos vaga, sem maior fundamento, noção, idéia. OPINIÃO: atribuição do caráter de verdade ou falsidade a uma as­serção sem que tal atribuição se faça acompanhar de certeza. ACHAR: considerar, julgar, supor. CONSIDERAR: atentar para, pensar em meditar, ponderar”.

Sem dúvida, a impressão, a opinião, a consideração, a suposição, derivadas da vivência e da experiência do expositor, têm seu valor. Na realidade é sobre elas que se baseia a busca da verdade científica; são pontos de partida para a investigação científica, mas não a substituem e não devem se confundir com fatos (fato "aquilo que realmente existe, que é real" - A. B. Holanda Ferreira66. FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.).

Não se questiona, pois, a importância da opinião, do ponto de vista, ou da reflexão crítica. O que se questiona, do ponto de vista ético, é o emprego da linguagem inadequada, gerando distorções e equívocos.

Na área da literatura, das artes, das humanidades em geral, quando o autor da publicação faz uma afirmação, emite um conceito, expõe uma avaliação ou tece análise crítica, existe sempre, por parte do leitor, conscientemente ou não, a ideia básica de que a manifestação do autor é uma opinião pessoal, a ser endossada, seguida, aceita, refutada ou até mesmo rejeitada.

Na área das ciências exatas, tecnológicas ou biológicas, ocorre, em geral, fenômeno diverso: supõe-se, quase sempre, que a afirmação não é mera opinião pessoal e sim o enunciado de uma verdade científica resultante de uma pesquisa ou investigação bem conduzida, realizada com metodologia científica adequada e que levou a uma conclusão, agora exposta pelo autor. Em suma: não se considera a afirmação do autor como mera opinião pessoal (a menos que ele mesmo decline esta condição), impressão ou ponto de vista, mas sim como um fato científico Ora, nem sempre isso ocorre e, por isso, a bem da verdade e da ética, é imprescindível que o autor declare enfaticamente que se trata apenas de uma opinião, impressão ou ideia, ainda que baseada em vivência e experiência próprias, mas nunca um fato comprovado; a opinião pessoal pode até ser (e de fato o é muitas vezes) importante ponto de partida para o delineamento de um projeto de pesquisa, para confirmar ou refutar a opinião

Este fenômeno distorcido não é raro nas ciências médicas. Autores de prestígio, em publicações e, sobretudo, em manifestações orais (congressos, palestras, conferências, entrevistas) enunciam, às vezes, como se fosse uma verdade científica o que é apenas impressão ou opinião pessoal. Explica-se, assim, porque certas condutas diagnósticas, e ou terapêuticas são, às vezes, adotadas por muitos e ao fim de algum tempo acabam sendo abandonadas. Mas, quantos pacientes, neste meio tempo, podem ter sido prejudicados ou, ao menos, na melhor hipótese, não beneficiados? É um preço caro.

A responsabilidade ética aumenta quando se emprega linguagem facciosa em trabalho metodologicamente correto; não se foge propriamente à verdade científica, mas se apresenta apenas um ou outro angulo da verdade como se fosse toda a verdade. De várias maneiras, a linguagem tem sido utilizada para tal fim.

Uma das maneiras mais simples é expressar os resultados apenas sob a forma de frequência relativa (em geral porcentagem) e da maneira que convém. Suponhamos, por exemplo, que uma determinada droga (de custo elevado) não isenta de efeitos colaterais, mas hipoteticamente capaz de prevenir o “aparecimento do câncer”, seja ministrada a 1.000 pessoas e que, ao fim de um ano de acompanhamento, apenas duas pessoas apresentem a doença; em outro grupo de 1.000 pessoas, que não receberam a droga, 3 tenham câncer ao fim de um ano.

O autor, ou o laboratório interessado na comercialização da droga, poderá anunciar que a droga é realmente eficaz na proteção contra o câncer, pois a prevalência de câncer foi uma vez e meia maior no grupo não tratado.

Convenhamos que 2 em 1.000 ou 3em 1.000 pode significar que ao menos 987 pessoas dentro de 1.000 não irão se beneficiar do tratamento, pois sem usar a droga não tiveram câncer; além do mais, não gastaram dinheiro e não correram o risco de aparecimento de efeitos colaterais.

Na literatura médica podem-se encontrar trabalhos considerados importantes e que empregam, conscientemente ou não, propositalmente ou não, técnica de linguagem semelhante.

Um bom exemplo, dada a importância clínica de que se reveste, ocorreu na área do tratamento da hipercolesterolemia.

Recentemente foram publicados os resultados do programa "Pesquisa Clínica de Lipídios" (L.R.C.P. - 1984 E.U.1111. LIPID RESEARCH CLINICS PROGRAM. Ireduction in incidence of coronary heart disease. JAMA , 251:351-62, 1984.) e "Estudo do Coração, de Helsinque77. FRICH, M. H. et al. Helsinki Heart Study: Primary prevention trial with gemfibragil in middle-aged men with dyslipidemia: safety of treatment, changes in risk factors, and incidence of coronary heart disease N. Engl. J. Med 317:1237-45, 1987." (1987). Ambos envolveram grande casuística e foram desenvolvidos durante longo período de observação, alcançando grande repercussão no meio médico e no ambiente leigo.

Sobre estas duas publicações, BRETT22. BRETI, A. S. Treating hipercholesterolemia: how should practicing physicians interpet the published data for patients? N. Engl. J. Med., 321: 676-79, 1989. e LEAF1010. LEAF, A. Management of hypercholesterolemia are preventiva interventions advisable? N. Engl. J. Med , 321:680-83, 1989. (de Boston) fizeram, recentemente (1989), uma análise crítica dos dados apresentados, inclusive quanto à linguagem utilizada. Os comentários que se seguem se baseam nas considerações feitas por BRETT22. BRETI, A. S. Treating hipercholesterolemia: how should practicing physicians interpet the published data for patients? N. Engl. J. Med., 321: 676-79, 1989. e por LEAF1010. LEAF, A. Management of hypercholesterolemia are preventiva interventions advisable? N. Engl. J. Med , 321:680-83, 1989..

Nas duas publicações citadas, chegou-se à conclusão de que a terapêutica com drogas, que baixam o nível do colesterol sanguíneo, associada a cuidados dietéticos, pode reduzir a frequência de complicações car­diovasculares quando os pacientes são tratados por 5 ou mais anos.

Considerando que estes resultados se coadunam com as observações epidemiológicas e experimentais (em animais) quanto ao papel do colesterol nas complicações cardiovasculares, muitas autoridades passaram a admitir, como inequívocos, os benefícios advindos da terapia medicamentosa. Evidentemente, os laboratórios farmacêuticos, fabricantes dos medicamentos, procuraram dar a maior ressonância possível ao fato; a própria imprensa leiga, com base nas afirmações das autoridades médicas, se encarregou de ampliar a divulgação.

Impõe-se, antes de mais nada, analisar a amostra populacional empregada na investigação: a pesquisa foi desenvolvida em pessoas do sexo masculino, de meia idade, assintomáticas e com nível médio de colesterolemia de 290mg.

A bem da verdade científica, e a rigor, os resultados obtidos só poderiam, pois, ser considerados válidos, para as pessoas que preenchem as condições acima descritas da amostra estudada: sexo masculino, meia idade, assintomáticas, e com colesterolemia elevada.

Contudo, os resultados passaram a ser generalizados, aplicando-se a mulheres e a pessoas com níveis de colesterol discretamente elevado, sem que se tenha feito nenhum estudo neste sentido.

Por outro lado, quando se analisam os resultados "favoráveis" observados no trabalho americano (L.R.C.P.1111. LIPID RESEARCH CLINICS PROGRAM. Ireduction in incidence of coronary heart disease. JAMA , 251:351-62, 1984., observa-se que das 1.900 pessoas que não receberam medicamento 187 (9,8%) tiveram morte coronariana ou infarto miocárdico não fatal, ao passo que das 1.906 pessoas que receberam a droga 155 (8,1 %) tiveram morte coronariana ou infarto miocárdico não fatal. Nos dois grupos a avaliação se refere aos resultados observados após 7 anos de acompanhamento.

No caso da pesquisa de Helsinque77. FRICH, M. H. et al. Helsinki Heart Study: Primary prevention trial with gemfibragil in middle-aged men with dyslipidemia: safety of treatment, changes in risk factors, and incidence of coronary heart disease N. Engl. J. Med 317:1237-45, 1987., verifica-se que das 2.030 pessoas que não receberam droga - 84 (4,1%) apresentaram problema coronariano, ao passo que das 2.051 que receberam a droga 56 ( 3,7 %) tiveram problema coronariano após 5 anos de observação.

No primeiro estudo1111. LIPID RESEARCH CLINICS PROGRAM. Ireduction in incidence of coronary heart disease. JAMA , 251:351-62, 1984., a diferença entre os dois grupos foi de 1,7% (9,8% - 8,1%), mas os autores concluem que, no grupo tratado, houve redução de 19% d a mortalidade e da morbidade cardiovasculares.

No segundo estudo77. FRICH, M. H. et al. Helsinki Heart Study: Primary prevention trial with gemfibragil in middle-aged men with dyslipidemia: safety of treatment, changes in risk factors, and incidence of coronary heart disease N. Engl. J. Med 317:1237-45, 1987., a diferença entre os 2 grupos foi de 1,4% (4,1% - 2,7%), mas os autores concluem que, no grupo tratado, houve redução de 34% da incidência de moléstia coronariana.

Muito embora estatisticamente possa haver diferença significante entre os 2 grupos (o que aliás não está em discussão), a linguagem utilizada nos dois estudos, dando ênfase à redução de 19% e de 34 %, criou atmosfera e ambiente altamente favoráveis ao emprego da droga. A repercussão foi grande nos meios médico e leigo.

Os laboratórios fabricantes dos produtos deram ênfase a esta linguagem, criando clima entusiástico; afinal, reduzir de 34% a incidência de moléstia coronariana entusiasma qualquer um pelo método terapêutico capaz de tal proeza.

Assim, o Boston Globe, ao analisar os dados de estudo de Helsinque, conclui que os homens tratados têm 37% menos chances de ataques cardíacos fatais e 26% menos de morte coronariana.

Na falta de apresentação dos dados absolutos, o leitor pode perfeitamente concluir que no grupo não tratado todas as pessoas morreram de infarto, ao passo que no grupo tratado apenas 64%.

Analisemos, agora, como fazem BRETT22. BRETI, A. S. Treating hipercholesterolemia: how should practicing physicians interpet the published data for patients? N. Engl. J. Med., 321: 676-79, 1989. e LEAF1010. LEAF, A. Management of hypercholesterolemia are preventiva interventions advisable? N. Engl. J. Med , 321:680-83, 1989., os dados sob outro ângulo. Com base nos resultados obtidos pelo grupo de Helsinque podemos verificar que 973 pessoas de 1.000 tratadas, e 959 pessoas de 1.000 não tratadas não tiveram infarto cardíaco ou morte coronariana.

No 1° caso, a cifra é de 97% e, no 2º, 96%, com diferença de 1% a favor dos casos tratados. Compare-se 1% com os "34%" acima referidos.

Sob este prisma, fica óbvio que muitas pessoas foram tratadas, a custo elevado, e poucas, na verdade, se beneficiaram.

Note-se que as cifras encontradas - 973 pessoas num grupo e 959 no outro - correspondem a dizer que, na grande série analisada, apenas se beneficiaram 14 pessoas (973 - 959) e que 986 não obtiveram benefício.

Vale a pena analisar também a mortalidade observada. No Lipid Research1111. LIPID RESEARCH CLINICS PROGRAM. Ireduction in incidence of coronary heart disease. JAMA , 251:351-62, 1984., assinala-se que a redução de risco de morte por coronariopatia é de 24 % no grupo tratado, o que é um dado aparentemente relevante. Na realidade, porém, a morte coronariana ocorreu em 38 pessoas do grupo não tratado e em 30 do grupo tratado e; no caso, a diferença não é significante, podendo eventualmente ser atribuída ao acaso

Nos dois estudos77. FRICH, M. H. et al. Helsinki Heart Study: Primary prevention trial with gemfibragil in middle-aged men with dyslipidemia: safety of treatment, changes in risk factors, and incidence of coronary heart disease N. Engl. J. Med 317:1237-45, 1987.), (1111. LIPID RESEARCH CLINICS PROGRAM. Ireduction in incidence of coronary heart disease. JAMA , 251:351-62, 1984. observou-se, por outro lado, fato inesperado: o número de mortes violentas ou por acidente foi maior - 11 óbitos, no Lirid Research, 10 no Helsinque - nos grupos tratados do que nos grupos não tratados - 4 óbitos, nos 2 estudos. Embora, estatisticamente, a diferença não seja significante, o fato não foi devidamente salientado. O fenômeno está sendo observado, porém, em outras séries de pacientes que tomam medicação para baixar a taxa de colesterol. Este dado não pode ser ignorado ao se prescrever a medicação e merece ser melhor investigado.

Apesar de todas as informações disponíveis, de ordem epidemiológica e experimental, que sugerem papel importante da hipercolesterolemia e da dieta na incidência de coronariopatias, muitas controvérsias e muitas polêmicas ainda existem. A própria política governamental (nos Estados Unidos) de instituir um programa de saúde pública, visando reduzir a ingestão de gorduras saturadas e de colesterol, está sendo questionada por alguns pesquisadores.

Neste sentido, PALCA1313. PALCA, J. Getting to the heart of the cholesterol debale. Science, 247:1170-71, 1990 (1990) noticia que Richard Peta, estatístico da Universidade de Oxford, está revendo todas as informações já existentes e reanalisando-as. Embora seu trabalho ainda não tenha sido publicado, Peto conclui que "quase todo mundo interpretou mal os dados existentes" e "trombetearam" as informações.

Para alguns cientistas, "trombetear" é justamente o que o NATIONAL CHOLLES TEROL EDUCATION PROGRAM (NCEP) está fazendo ao anunciar seu "guide-lines" dietético para a população. O NCEP, utilizando com alarde os meios de comunicação, está propondo medidas para que todos os americanos, acima de 2 anos de idade, alterem sua dieta, para reduzir o risco de morte cardíaca.

O NCEP baseia suas recomendações em dados epidemiológicos e experimentais. Um dos maiores ensaios, sobre o qual se baseia a proposta, é o Multiple Risk Factor Intervention Trial (MARFIT), estudo envolvendo cerca de 362.000 homens de meia idade, e que mostrou relação entre o aumento do colesterol sanguíneo e o aumento do risco de morte cardíaca1212 . MEIER, P. Statistics and medical experimentation. Biometrics, 31:511-29, 1984..

O que muitos autores questionam é a falta de dados e estudos suficientemente bem conduzidos que permitam utilizar a linguagem que vem sendo empregada e as ilações que vem sendo feitas.

Neste campo da medicina (hipercolesterolemial, há alguns fatos comprovados, ao lado de aspectos polêmicos e de interesses (econômicos, sobretudo) conflitantes, gerando distorções e/ou inadequações de linguagem.

Em outro campo médico, em publicação recente, BRYNSKOV e mais 17 autores33. BRYNSKOV, J. et al - A placebo - controlled, double-blind, randomized trial of Cyclosporine Therapy in Active Chronic Crohn's Disease. N. Engl J. Med, 321:845-50, 1989., em estudo multicêntrico, concluíram que ''a ciclosporina tem efeito terapêutico benéfico nos pacientes com moléstia de Crohn e que são resistentes ou têm intolerância aos corticosterioides". A investigação foi realizada em 71 pacientes: 37 foram tratados com ciclosporina e 34 receberam apenas placebo. Os AA. observaram, após 2 semanas, que no 1° grupo 22 pacientes (59%) obtiveram melhora, contra 11 pacientes (32%) do 2° grupo. Estatisticamente, a diferença foi significante Nos 3 meses subsequentes, com suspensão gradual da medicação, a melhora continuou em 14 dos 37 pacientes (38%) e em 5 dos 34 (15%), dos grupos tratado e não tratado respectivamente

Não há dúvida de que o grupo que recebeu ciclosporina apresentou melhores resultados; neste sentido, não há o que questionar.

É válido, contudo, analisar os dados dos AA. sob outro ângulo.

Assim, nos 2 grupos tratava-se de pacientes que não podiam se beneficiar do uso de corticosteróides, daí a proposta do uso da ciclosporina. Essa droga é cara, não isenta de efeitos colaterais e não produz melhora em todos os pacientes, mas 3 em cada 5 (ou 1:1,7).

Ainda de acordo com os achados referidos pelos autores, se os doentes, que não podem se beneficiar do uso de corticosteróides, receberem placebo, 1 em cada 3 (ou 1:31 obterá melhoras.

Diante desses fatos, parece razoável considerar como válida a conduta de tratar tais pacientes inicialmente apenas com placebo (psicoterapia?). Somente diante da ausência de resposta favorável seria, então instituída a terapêutica com ciclosporina, o que contrasta com a linguagem enfática empregada pelos autores em suas conclusões.

Enfatizando a metodologia estatística utilizada, PAUL MEIER1212 . MEIER, P. Statistics and medical experimentation. Biometrics, 31:511-29, 1984. publicou, há alguns anos, interessante artigo em revista especializada, mostrando como as conclusões apresentadas em várias publicações nem sempre eram as melhores, e algumas nem eram válidas. O autor analisou trabalhos versando sobre a vacina SALK, sobre cirurgia coronariana, sobre hipoglicemiantes orais, e sobre câncer da mama, o que evidencia a abrangência do estudo.

Outras vezes, a inadequação da linguagem resulta do fato da metodologia empregada não ser a mais correta e, neste caso, se extraem e se expressam conclusões que acabam, depois de algum tempo, sendo rejeitadas. Cite-se como exemplo as publicações ocorridas na década de 19501414. VIEIRA, S. & HOSSNE, W. S. Experimentação com seres humanos. 2. ed. s.l., Moderna, 1987 . com o emprego do dietilestilbestrol no tratamento do aborto habitual. Milhares de pessoas foram tratadas com esta droga, frente à descrição enfática de resultados benéficos referidos na literatura. O tratamento foi abandonado quando, com metodologia científica adequada incluindo grupo comparativo, se evidenciou a ausência de efeito da droga na proteção ao aborto habitual. O mais grave, porém, é que, posteriormente, se verificou que os filhos das mães que receberam o medicamento vieram a apresentar anomalias genitais e infertilidade

Outra situação semelhante ocorreu com o tratamento de úlcera gastro-duodenal pelo resfriamento gástrico1414. VIEIRA, S. & HOSSNE, W. S. Experimentação com seres humanos. 2. ed. s.l., Moderna, 1987 .. Muitos centros médicos do mundo utilizaram este método referindo bons resultados; inúmeras máquinas de resfriamento foram vendidas após o emprego de linguagem tonitruante, não compatível com os fatos. Quando se realizou pesquisa com metodologia adequada, com grupo comparativo, se verificou que água de torneira (fornecida como placebo) apresentava os mesmos resultados do congelamento. Finalmente, o método foi abandonado após ter causado alguns acidentes (e até mortes).

O extraordinário avanço tecnológico tem permitido o aparecimento de novas drogas e novos equipamentos, muitos dos quais revolucionaram as práticas de diagnóstico e de tratamento. O investimento financeiro, elevado, exige como contrapartida a venda de grande número de aparelhos e de medicamentos e, por isso, ao lado da promoção comercial, procura-se criar uma atmosfera de entusiasmo que, às vezes, leva ao uso inadequado da linguagem escrita ou falada nos meios médicos, transmitindo-se uma mensagem subliminar incompleta ou equivocada.

Conscientemente ou não, acaba-se com o uso de um superlativo aqui, uma supervalorização de resultados ali, uma repetição continuada de vantagens acolá, criando uma versão sobre a importância do equipamento e da droga que nem sempre corresponde à verdade e, com isso, amplia-se a gama de indicações do novo produto.

A linguagem inadequada gera também o "modismo" e às vezes o "modernismo" (acaba-se adquirindo o equipamento apenas para não se sentir "ultrapassado"). Outra consequência grave é que o médico menos experiente tenta encobrir sua insegurança, indicando desnecessariamente, por exemplo, a realização de exa­mes sofisticados, de grande importância sem dúvida, mas que devem ter boa base científica em suas indicações.

VILLARDELL1515. VILLARDELL, F. Problemas eticos de la tecnologia médica. Bioética. Washington, OPAS, 1990. (1990) chama a atenção para o mau emprego de provas diagnósticas, mostrando que um exame de rotina mal indicado em número elevado de casos-é tão custoso quanto o exame sofisticado mal aplicado em poucos casos.

KAPLAN e col.99. KAPLAN, E. B. et al. The usefulness of preoperative laboratory screening. JAMA , 253:3576-81, 1985. (1985) já haviam demonstrado que em 6.200 exames laboratoriais pré-operatórios realizados em 2.000 pacientes mais de 60% não se justificavam pela história clínica.

Do mesmo modo, CHASSIN e col.55. CHASSIN, M. et al. Does inappropriate use explain geographic variactions in the use of health care services? JAMA ,. 258:2533-37, 1987. (1987) verificaram que 17% das endoscopias digestivas (nos E. Unidos) não tinham indicação. O mesmo fenômeno foi assinalado por KAHM e col.88. KAHN, K. L. et al. Use and misuse of upper gastro intestinal endoscopy. Ann. Int. Med ., 109:664-70, 1988. (1988) com relação às coronariografias.

Com base nesse fenômeno é possível rotular, caricaturalmente, cada geração de médicos. Assim, tivemos a geração da ''nitrofurazona" (furacin), do resfriamento gástrico, da gentamicina, da cimetidina, do "Equanil", do "Valium", da traqueostomia, dos intra cath..., empregados à larga, mas sem indicações precisas. São ondas ou fases em que se indica o produto para tudo que se aproxima da indicação correta.

A etiopatogenia desses fenômenos é complexa e obedece a múltiplos fatores. A linguagem tem papel no processo, sem dúvida.

É responsabilidade ética da linguagem tornar acessíveis aos médicos os avanços da medicina, de maneira adequada e correta, de modo a incorporar em proveito do paciente, os progressos da ciência sem o ''abuso tecnológico".

Sob o prisma de interesse direto do paciente, a linguagem adquire extraordinário valor ético em certas situações, como por exemplo, por ocasião da obtenção do "consentimento esclarecido" do paciente, nos trabalhos de experimentação com seres humanos. É dever ético do pesquisador esclarecer de forma adequada o paciente antes de obter o chamado consentimento.

É tal a relevância ética do ato que já existem propostas no sentido de que as informações a serem prestadas ao paciente sejam redigidas, sob assessoria médica, por escritores profissionais, de modo a assegu­rar o emprego correto e adequado da linguagem, esclarecendo o paciente (ou voluntário).

Em atividades acadêmicas em geral e, sobretudo, em arguições de teses, tem sido praxe analisar-se o conteúdo e a forma da publicação.

Conteúdo e forma, na verdade, se completam; deslizes em um ou outro podem induzir a conclusões equivocadas e, por isso, ambas as partes se revestem de pesada responsabilidade ética.

A análise de conteúdo dos trabalhos técnico-científicos absorve a maior parte das atenções devido à própria essência da metodologia científica. E o rigor desta análise tem trazido à luz vários casos de fraude científica. A fraude científica, um dos maiores atentados à ética e cuja frequência vem aumentando, se faz sob diversas formas, tais como "fabricação de dados", "alteração de conclusões", ''acerto nos resultados'', '' incorreções propositais da metodologia", "omissão de resultados desfavoráveis", "plágio", etc.

A étiopatogenia da fraude em ciência é um capítulo extremamente importante a ser melhor estudado. Apontam-se como fatores, ao menos coadjuvantes, o “vedetismo”, o “estrelismo”, o "carreirismo", a competição e a rivalidade doentia, a busca do "publique ou pereça" e, antes de mais nada, a "má índole".

A análise de forma restringe-se, quase sempre, a questões de gramática, ao uso de galicismos e anglicismos, à sequência na apresentação dos capítulos e partes da publicação e não propriamente à linguagem enquanto veículo final de comunicação e transmissão adequada e correta do conteúdo.

Tanto nas situações de conteúdo correto como de conteúdo fraudulento ou fraudado, a linguagem assume papel fundamental; no primeiro caso, para comunicar adequadamente o conteúdo, sem permitir "fraude" - agora na linguagem, e no segundo caso, para não camuflar a fraude cometida no conteúdo.

Apesar da sua importância e da sua responsabilidade ética, a metodologia da pesquisa tem se preocupado muito pouco com a linguagem.

Em sua angústia existencial, o homem sempre se interroga diante dos fatos da Natureza e busca respostas concretas (verdade científica). Não as encontrando, cria hipóteses ou formula teorias; não conseguindo tal façanha, "salva-se" da cruel angústia da incerteza e da ignorância, apelando para a linguagem: cria um nome ou um rótulo. Não é apenas um "rótulo salvador" o nome dado a quadros clínicos cuja etiopatogenia ainda se desconhece? Aí encontram-se expressões como "primário'', "essencial", "criptogenético" e até despudoradamente (embora honestamente) o "a esclarecer " ou o "de causa não esclarecida".

Em ciência não basta, do ponto de vista ético, buscar a verdade - é preciso saber expressá-la.

No trabalho científico existe responsabilidade ética no saber fazer, mas existe igualmente responsabilidade ética no saber dizer.

Agradecimentos

O Autor manifesta os agradecimentos à ANDREA SAAD HOSSNE, Pós-Graduando da Teoria Literária e Literatura Comparada - USP, pelas valiosas sugestões e pela revisão do texto.

Referências Bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 1990
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