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Decolonizar o Currículo? Possibilidades para desestabilizar a formação em performance

Resumo:

Este ensaio problematiza o termo decolonização aplicado aos currículos de dança e performance no ensino superior. Para tanto, utiliza o argumento de Eve Tuck e K. Wayne Yang (2012) de que a colonização está enraizada em uma visão de mundo que considera os seres como coisas passíveis de exploração. Também examina os esforços para promover a diversidade na formação, coreografia e conhecimento em estúdio e a precarização do trabalho nos departamentos universitários. O ensaio reflete sobre a estrutura da universidade como ente colonial e empresarial, apontando sua relação com a precariedade do neoliberalismo. O artigo é concluído ao sugerir que o conhecimento e o ensino das artes e das humanidades criam oportunidades para maneiras alternativas de viver e interagir para além de paradigmas neoliberais e neocoloniais.

Palavras-chave:
Decolonização; Danças do Mundo; Neoliberalismo; Precarização do Trabalho; Precariedade

Abstract:

This essay problematizes the term ‘decolonization’ as applied to university dance and performance curricula. It does so via Eve Tuck and K. Wayne Yang’s (2012) argument that colonization is rooted in a worldview that positions beings as exploitable things. Addressing efforts to foster diversity within studio training, choreography, and scholarship, the casualization of labor within university departments is also examined. The essay considers the structure of the university as both a colonial and corporate entity, signaling its relationship to the precarity of neoliberalism. The paper concludes by suggesting that arts and humanities scholarship and teaching create opportunities for alternate ways of living and interacting beyond neoliberal, neocolonial paradigms.

Keywords:
Decolonization; World Dance; Neoliberalism; Casualization of Labor; Precarity

Résumé:

Cet article problématise le terme ‘décolonisation’ appliqué aux programmes de danse et de performance universitaires. Il le fait via l’argument d’Eve Tuck et K. Wayne Yang (2012) selon lequel la colonisation est enracinée dans une vision du monde qui positionne les êtres comme des choses exploitables. En s’attachant aux efforts visant à favoriser la diversité dans la formation, la chorégraphie et l’érudition en studio, la précarisation du travail au sein des départements universitaires est également examinée. L’essai considère la structure de l’université comme une entité à la fois coloniale et corporative, signalant sa relation avec la précarité du néolibéralisme. L’article conclut en suggérant que l’érudition et l’enseignement des arts et des sciences humaines créent des occasions de vivre et d’interagir au-delà des paradigmes néolibéraux et néocoloniaux.

Mots-clés:
Décolonisation; Danse du Monde; Néolibéralisme; Précarisation du Travail; Précarité

No dia 4 de dezembro de 2017, Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, solapou o status público e protegido dos parques nacionais Bears’ Ears e Grand Staircase-Escalante (Smith; Milman, 2017SMITH, David; MILMAN, Oliver. Trump Slashes Size of Bears Ears and Grand Staircase Monument in Utah. The Guardian , London, 4 December 2017. Available at: <Available at: https://www.theguardian.com/us-news/2017/dec/04/ trump-bears-ears-grand-staircase-escalante-monuments-shrink >. Accessed: Dec. 15, 2017.
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). O decreto de Trump reduziu drasticamente os espaços protegidos dos monumentos naturais. Até então, estes espaços estavam protegidos sob o Antiquities Act, proposto principalmente para proteger sítios importantes para os povos indígenas norte-americanos. Representando uma mudança do controle federal para o controle local, este movimento comprometeu a soberania nativa, além de abrir terras anteriormente públicas à mineração, à extração de petróleo, à pecuária e às atividades off-road. Mesmo em uma semana com notícias nacionais e internacionais turbulentas, este decreto teve destaque por sua crueldade e desrespeito gritante pelas consequências ambientais de ações políticas.

O decreto também sinalizou a natureza duradoura do imperialismo norte-americano, sua operação por meio de indústrias extrativistas e expansionistas e sua sustentação econômica. Em outras palavras, sua promulgação teve um caráter assumida e fundamentalmente colonialista. Iniciativas como esta, ao lado de outras como o Dakota Access Pipeline, indicam as interseções entre a degradação do ambiente, a exploração capitalista e o desrespeito pela soberania dos povos indígenas tanto nos Estados Unidos como nas Américas de maneira geral. O colonialismo, longe de ser um mero antecedente histórico para a vida política nas Américas, continua sendo um aspecto essencial das suas variadas formações políticas9 1 Sei que a história, a política e a economia de países e regiões nas Américas variam imensamente. Entretanto, existe uma história do colonialismo colonizador comum a muitas nações nas Américas, mesmo que a relação destes países com o colonialismo metropolitano seja diferente. .

Talvez devido à persistência de iniciativas coloniais muito depois do término do colonialismo oficial, governamental, a decolonização é um termo cada vez mais evidente nos estudos da performance e das artes. Decolonização suplantou amplamente o termo pós-colonial, indicando uma mudança entre as circunstâncias passíveis de crítica geradas pelo colonialismo e o trabalho ativo contra elas. O termo sugere que os artistas, os criadores e os estudiosos adotam uma abordagem anti-imperialista no fazer, no ensino e na teoria das artes à luz das múltiplas crises que enfrentamos atualmente. A chamada de artigos para esta edição, por exemplo, descreve a ampla variedade de projetos incluídos sob a categoria de abordagens decoloniais, sugerindo que aspectos em comum podem ser um novo marco epistemológico que proporciona agenciamento e visibilidade àqueles que eram marginalizados e que buscam uma geo-reconfiguração política de tipos diferentes de conhecimento. Este periódico não é o único a manifestar este interesse: inúmeras abordagens em dança e estudos da performance se apresentam como decoloniais e decolonizadoras em seus esforços pela inclusividade e introduzem epistemologias contra-hegemônicas.

Neste entusiasmo pela substituição ou suplementação da crítica pós-colonial pelo decolonialismo, é importante ter cautela com um aspecto. Conforme Eve Tuck e K. Wayne Yang (2012TUCK, Eve; YANG, K. Wayne. Decolonization is Not a Metaphor. Decolonization: Indigeneity, Education, and Society, Toronto, University of Toronto, v. 1, n. 1, p. 1-40, 2012.) discutem, a decolonização não é uma metáfora. Tuck e Yang indicam que a decolonização reconhece o investimento continuado no colonialismo colonizador que até mesmo os participantes de projetos progressistas trazem consigo. Defendem que a decolonização deve objetivar reverter o colonialismo colonizador, um empreendimento muito mais vasto, mais complexo e mais controverso do que aqueles voltados para a inclusividade e o empoderamento. Por este motivo, insistem eles, a “(de)colonização não têm nenhum sinônimo” (Tuck; Yang 2012, p. 3): não é análoga ao antirracismo ou a outras iniciativas de justiça social.

Tuck e Yang abordam o colonialismo colonizador, particularmente o tipo de colonialismo exercido nas Américas (bem como na Austrália e na Nova Zelândia), indicando que o colonialismo, neste contexto, envolvia o roubo de terras de seus habitantes originais, a transferência forçada desta população e o empobrecimento continuado de seus descendentes. O colonialismo colonizador resultou na perda duradoura das terras e da soberania, enquanto o colonialismo metropolitano resultou em desequilíbrios internacionais prolongados de riqueza, mas também testemunhou a devolução pelo menos parcial de leis e de terras aos colonizados. O colonialismo metropolitano promoveu a extração das riquezas, mas as terras puderam ser reclamadas de volta com maior facilidade na esteira da independência, quando a colonização era fundamentalmente embasada em um fundamento absenteísta. Contudo, conforme Tuck e Yang indicam (2012, p. 5), tanto o colonialismo colonizador como o expansionista envolveram a reconceituação de pessoas, terra, água, animais e minerais como “recursos” que poderiam ser reenquadrados como entes econômicos (objetos, bens, trabalhadores) acima de tudo.

Estes autores se atêm exclusivamente ao contexto dos Estados Unidos e sua definição de decolonização refere-se particularmente às possibilidades de desestabilização colocadas por ela, especificamente no que tange à propriedade da terra. A crítica feita por eles é importante, dada a tendência de negligenciar a história norte-americana do colonialismo colonizador na pressa de destacar o status (anteriormente) colonizado de muitos imigrantes para a América, “trazendo ambiguidade” ao status controverso de muitos imigrantes americanos tanto como sujeitos anteriormente colonizados como colonizadores/colonos (Tuck; Yang, 2012TUCK, Eve; YANG, K. Wayne. Decolonization is Not a Metaphor. Decolonization: Indigeneity, Education, and Society, Toronto, University of Toronto, v. 1, n. 1, p. 1-40, 2012., p. 17). As implicações do argumento de Tuck e Yang são que o colonialismo é não apenas material - dependente da extração de matérias-primas, de seu processamento e de sua revenda com lucro - mas também que sua visão de mundo transforma uma rede interconectada de seres em material. Considero com muita seriedade seus argumentos de que a colonização depende da transformação dos seres vivos e do mundo físico em recursos econômicos, um fenômeno observado claramente quando Trump permite a grilagem de terras empresarial10 2 Extraí o termo land grab [grilagem de terras] da coletânea Grabbong Back: Essays Against the Global Land Grab, de autoria de Alexander Reid Ross (2014). . Entretanto, também desejo refletir se o reconhecimento da epistemologia que possibilita a existência das coisas econômicas do mundo vivo pode sustentar uma crítica das funções físicas, materiais e econômicas do colonialismo, mesmo sem relegar aqueles afetados pelo colonialismo colonizador à categoria de “asterisco” contra a qual Tuck e Yang advertem (2012, p. 22-23). Desejo refletir se tratar o sistema neoliberal, no qual o lucro é perseguido a qualquer custo, como uma extensão do colonialismo auxilia na resistência a ambos os colonialismos existentes, o neocolonialismo e a desigualdade de riquezas neoliberal.

Além disso, vale a pena pensar se este argumento pode ser estendido à performance, à teoria da performance e ao ensino em performance e, se o for, de que maneira. Especificamente, para decolonizar o ensino da dança no ensino superior, e especialmente o ensino das assim-chamadas formas não-ocidentais, é necessário enfrentar o status de seres vivos como recursos econômicos passíveis de exploração. Se a performance, o conhecimento e o ensino em performance realmente buscarem uma abordagem decolonial, precisam responder aos fundamentos coloniais de estruturas da universidade e o modo como algumas estruturas colonialistas pioraram, mesmo que algumas tenham melhorado. A atenção às condições materiais destas estruturas pode contribuir para uma abordagem decolonial mais verdadeira ao ativismo, ao conhecimento e à performance, mesmo que seja necessário reconhecer que a própria noção de material como separado de outras esferas da vida representa uma visão de mundo colonialista.

Inclusividade em Cursos de Dança na Universidade

Pensei nisto pela primeira vez em resposta a um convite para uma mesa-redonda em uma conferência intitulada Putting Politics into Practice: Diverse Perspectives on Decolonizing University Dance Programs [Colocando a Política em Prática: Perspectivas Diversas sobre a Decolonização de Programas de Dança na Universidade]. Como membro do corpo docente do curso World Arts and Cultures/Dance [Artes e Culturas/Danças do Mundo] da University of California, Los Angeles (UCLA), eu, ao lado de outros docentes cujos cursos de dança integravam diversas formas de dança e deslocavam do foco principal o balé e a dança moderna, discuti como meu departamento colocava em prática estudos críticos de raça e críticas pós-coloniais na construção do currículo. Incumbida de descrever como o currículo do meu departamento deu início a movimentos de decolonização, achei que seria importante problematizar o assunto.

Os currículos de dança podem ser inclusivos e antirracistas. Considerando o argumento de Tuck e Yang de que a colonização se concentra no fato de terra, ar e água terem se transformado em “recursos” (2012, p. 5) e que a decolonização deve responder à altura, a dança e a performance podem realmente decolonizar? Sob quais circunstâncias podem fazê-lo? Como o ensino da dança e de sua história pode representar possibilidades de desestabilização? Colonização é sinônimo de cânone? De que maneiras a universidade opera como um ente econômico colonizador e como podemos responder a isto?

Ao sugerir limitações em como, e se, o ensino e a aprendizagem de dança podem decolonizar, espero indicar como a dança em um contexto institucional pode pelo menos perturbar investimentos coloniais, mesmo que não consigam ser verdadeiramente decolonizadores. Para enfrentar práticas coloniais, não podemos simplesmente nos ater à inclusividade ou mesmo à multivocalidade. Devemos levar em conta as condições físicas, econômicas e materiais de estruturas coloniais. Esta iniciativa pode estar mais alinhada com o que Tuck e Yang denominam de redução de danos, porém, conforme apontam, estes esforços conservam importância política e ética mesmo que não consigam propriamente decolonizar.

Quando se trata de dança e currículos de graduação, um elemento em particular da provocação de Tuck e Yang é crucial: o argumento de que libertar a mente e permitir que o restante continue como está é incompleto. Quando desestabilizamos o cânone e apresentamos aos estudantes uma gama de formas de dança, cada uma com sua estética diferente, somos, no máximo, mentes decolonizadoras. Apesar da importância deste movimento, também é fundamental ir além dele e responder às circunstâncias sociais, políticas e históricas específicas em que ocorre o desmantelamento do cânone.

Antes de assumir um cargo na UCLA, trabalhei durante oito anos em departamentos de dança em universidades da Grã-Bretanha. Como pesquisadora que investigava a história cultural da dança clássica da Índia e como norte-americana de origem irlandesa, eu tinha uma clara compreensão do colonialismo britânico e, assim, sentia como minha docência poderia incentivar os estudantes a reconhecerem um passado colonial na Grã-Bretanha. Consegui evidenciar a história do colonialismo metropolitano do Reino Unido e seus padrões de imigração relacionados principalmente por meio da história de formas de espetáculos de dança da Ásia Meridional.

Depois de me mudar para os Estados Unidos, continuei a lecionar a produção cultural indiana e o imperialismo britânico, relacionando isto com a história do colonialismo norte-americano, principalmente por meio da história da dança nas Filipinas e no Havaí. Também ampliei esta atenção à geopolítica ao identificar os efeitos da escravidão transatlântica sobre a produção cultural, enfocando principalmente os Estados Unidos e o Brasil11 3 Compreender as consequências da escravidão e sua influência na produção cultural em minha docência na graduação originou-se principalmente dos estudos de hip-hop e capoeira. . Apontei a natureza continuada do imperialismo (metropolitano) norte-americano, conforme fica evidente nas guerras no Iraque e no Afeganistão. Esta história vinculava o status dos Estados Unidos como colonialista colonizador com sua posição como poder colonial metropolitano, mas não se aprofundava muito no colonialismo colonizador em si. Para desenvolver plenamente uma prática decolonizadora, esta história precisaria estar relacionada com o status permanente dos Estados Unidos como colonialismo colonizador e metropolitano.

Meus esforços em fazer uma crítica anticolonial por meio do conteúdo de uma disciplina não são despendidos em meu departamento. O plano do curso de graduação em dança da UCLA responde a dois legados de lógica imperialista. Um é a suposta centralidade do balé e da dança moderna na prática da dança. Se as verbas e a programação de espetáculos nos Estados Unidos privilegiam o balé, os currículos universitários favorecem a dança moderna12 4 Ver Ross (2000) e Foster (2011) para uma história do estabelecimento da dança moderna em currículos de cursos universitários. . Na maioria dos departamentos de dança das universidades nos Estados Unidos a referência é a ênfase em dança moderna, sendo que a formação em outras práticas aparece como eletiva.

A segunda lógica imperialista que estrutura muitos departamentos de dança é um modelo de coletânea boasiana de formação em dança. Estes cursos seguem as convenções da antropologia norte-americana inicial, na qual documentar modos de vida diversos era considerado sinônimo de compreendê-los13 5 Como tal, estes currículos seguem o exemplo de festivais culturais em que a coletânea é feita como sendo coincidente com compreensão. Para saber mais sobre as estruturas de festivais, ver O’Shea (2016). . Seguindo esta lógica, muitos departamentos de dança oferecem aos estudantes uma quantidade muito pequena de práticas de dança de diferentes partes do mundo de uma maneira descontextualizada e sem a possibilidade de buscar formação continuada ou avançada nestas práticas. O pressuposto subjacente a este enfoque é que a exposição às assim-chamadas formas de danças do mundo será suficiente em termos de ampliação dos horizontes do estudante, promovendo uma compreensão da diferença e contribuindo com as comunidades pacificamente diversas14 6 Isto fica evidente, por exemplo, na lógica estruturante do evento LA Festival de 1990 (Kirshenblatt-Gimblett 1998, p. 203-248). . Por mais otimistas que estas abordagens sejam, ainda conservam uma estrutura colonial em que o balé e a dança moderna são a norma e as práticas de dança do mundo são a exceção. As formas de dança do mundo também aparecem aqui como repositórios estáticos de tradição, sendo que a dança moderna e o balé representam, respectivamente, a inovação e o virtuosismo.

Os docentes do curso de dança da UCLA reagiram a estas condições ao modificarem o currículo, de modo que nenhum estudante aprende dança moderna como sua prática de referência, suplementada com cursos adicionais sobre formas de dança não-ocidental, danças do mundo. Ao invés disto, os estudantes se especializam em duas de cinco práticas de dança, selecionadas entre dança moderna/pós-moderna, balé, dança da África Ocidental, dança em parceria ou hip-hop. Assim, a dança moderna não é o foco neste currículo, pois os estudantes precisam dominar duas das linguagens do movimento acima (indicado pela conclusão de cursos de nível avançado). As formas eletivas de dança são oferecidas por meio de disciplinas especiais, cujo título e conteúdo podem ser adaptados para incluir práticas de dança que representam a experiência daqueles disponíveis para ensinar.

Neste processo, os docentes também debateram como identificar as práticas de dança. Anteriormente, o curso de dança da UCLA as identificava de acordo com seu local de origem. Assim, por exemplo, tínhamos Danças da África e Diáspora, Danças da Ásia Meridional etc. Como um gesto rumo à equidade, o balé foi identificado como Danças da Europa15 7 Antes desta classificação, conforme Susan Foster (2009, p. 1-2) indica, o curso World Arts and Cultures da UCLA se originou de um “Currículo de Artes Étnicas, que foi precedido por cursos em ‘Artes Folclóricas’”. Da mesma forma, conforme Foster ilustra, na década de 1930, a UCLA incluiu cursos de “Dança Folclórica” juntamente com aulas de “Dança”, tendo a nomenclatura mudado na década de 1960 para ‘Dança Criativa’, ‘Dança Étnica’ e ‘Dança de Culturas Específicas’. Embora esta expansão do currículo procurasse ampliar a compreensão do que constituía a dança, ainda assim conservava uma estrutura em que algumas práticas continuavam vinculadas à cultura, enquanto outras evocavam a estética. . A dança moderna e a pós-moderna permaneciam sem identificação. Isto era claramente problemático porque reduzia algumas danças a um símbolo de cultura, enquanto outras práticas de dança operam como conjuntos de códigos coreográficos, convenções e investimentos estéticos (Jeyasingh, 1990JEYASINGH, Shobana. Getting Off the Orient Express. Dance Theatre Journal, London, Laban Center, v. 8, n. 2, p. 34-37, 1990.). Também ignora a história de circulação global. Embora a identificação do balé como Danças da Europa tentasse equilibrar esta associação, ainda reifica as práticas de dança como alinhadas a regiões geográficas.

O projeto atual do nosso curso preserva elementos de definições geográficas de dança. Algumas práticas que são convencionalmente identificadas por um substantivo próprio conservam estas denominações em nosso catálogo de cursos, sendo hip-hop e balé identificados como tal. Da mesma forma, dança moderna, pós-moderna e em parceria não são identificadas. As danças da África Ocidental mantêm sua nomenclatura geográfica, pois seu conteúdo inclui uma série de gêneros de dança, da mesma forma que algumas danças eletivas.

Existem diversas razões para a persistência destas generalidades. Uma delas está relacionada com a fluidez da força de trabalho. A maioria dos cursos de técnica em dança, na maior parte das universidades dos Estados Unidos, é lecionada por professores assistentes, por contratados por tempo determinado e por professores visitantes. Em outros países é diferente; na Grã-Bretanha, por exemplo, os instrutores de aulas de técnica fazem parte do corpo docente de um curso de dança. Entretanto, a dependência de professores contratados por tempo determinado é tão comum nos Estados Unidos que é difícil imaginar como um curso de dança seria estruturado se os coreógrafos e os acadêmicos do corpo docente também lecionassem cursos de técnica ou se artistas, que também não fossem coreógrafos ou autores, fossem incluídos no corpo docente. Este último caso seria improvável sem uma grande reestruturação das universidades norte-americanas pois, ao se manterem de acordo com a lógica cartesiana geral, a maioria destas instituições não considera a performance como pesquisa na ausência de autoria coreográfica.

Além disso, uma suposta variabilidade da carreira em performance nos leva a depender de uma mutabilidade da força de trabalho no que tange ao ensino de técnicas de dança: está dado que os dançarinos e outros artistas podem estar eventualmente disponíveis para ensinar, mas em outras ocasiões terão apresentações agendadas. Supõe-se que irão assumir dez semanas de docência, mas não dedicação exclusiva ao ensino. A fluidez do trabalho não é necessariamente um problema se possibilitar as idas e vindas de uma carreira em performance.

Entretanto, o ideal de flexibilidade16 8 Anusha Kedhar (2014) investiga ideais literais e metafóricos de flexibilidade como um meio pelo qual os dançarinos da Ásia Meridional em diáspora negociam a precariedade associada a uma economia neoliberal. mascara uma crise subjacente nas universidades, especialmente nos Estados Unidos. As universidades do país dependem do trabalho de contratados por tempo determinado, ao ponto de setenta por cento do corpo docente ser composto atualmente por funcionários eventuais (Edmunds, 2015EDMUNDS, Dan. More than Half of College Faculty are Adjuncts; Should you Care? Forbes, Jersey City, New Jersey. May 28, 2015. Available at: <Available at: https://www.forbes.com/sites/noodleeducation/2015/05/28/more-than-half-of-college-faculty-are-adjuncts-should-you-care/#72b43b501600 >. Accessed: Dec. 15, 2017.
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). Quando incluímos o trabalho de egressos, isto significa que os trabalhadores temporários lecionam uma quantidade imensa de cursos. Os contratados por tempo determinado também são, cada vez mais, mal remunerados por seus esforços e estão expostos a uma crescente precariedade, se não pobreza absoluta (Gee, 2017GEE, Alastair. Facing Poverty, Academics turn to Sex Work and Sleeping in Cars. The Guardian, London, 28 September 2017. Available at: <Available at: https://www.theguardian.com/us-news/2017/sep/28/adjunct-professors-homeless-sex-work-academia-poverty >. Accessed: Dec. 15, 2017.
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). Em departamentos de dança, como em outras unidades, os professores contratados por tempo determinado são considerados como temporários, em parte por opção, mas sua contratação por múltiplos semestres e múltiplos anos contradiz esta suposição.

O cargo de professor contratado por tempo determinado exemplifica um problema do capitalismo tardio e neoliberal em que os custos continuam a aumentar enquanto os salários dos trabalhadores se mantêm estagnados ou diminuem. Nos Estados Unidos, o custo da matrícula e das mensalidades dos estudantes está mais elevado do que nunca. Como a maioria dos cursos funciona com docentes eventuais e egressos, as universidades estão gastando menos do que nunca com o salário de docentes empregados. A economia produzida por esta redução no corpo docente permanente não é dirigida ao ensino em si, mas sim para a administração, a manutenção e os serviços, especialmente aqueles associados ao recrutamento e ao ingresso (Jaschik, 2017JASCHIK, Scott. When Colleges Rely on Adjuncts, Where Does the Money Go? Inside Higher Ed, Washington, DC., January 5, 2017. Available at: <Available at: https://www.insidehighered.com/news/2017/01/05/study-looks-impact-adjunct-hiring-college-spending-patterns >. Accessed: December 15, 2017.
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). Ou seja, de maneira muito semelhante a uma empresa, as universidades contemporâneas reduzem a estabilidade oferecida a sua força de trabalho e mantêm os custos elevados aos consumidores para depositar mais recursos de volta na estrutura da própria instituição. Diferente de uma empresa, as universidades públicas continuam dependendo de verbas governamentais, que estão diminuindo, e assim sua economia de recursos é, em parte, um mecanismo de sobrevivência.

Esta exploração do trabalho na instituição neoliberal revela um modelo econômico colonial de tratar as pessoas como trabalhadores e produtos, não como seres inter-relacionados. O excedente empresarial e a austeridade pública representam, da mesma forma, uma continuidade dos modelos coloniais de apropriação e exploração de recursos. Não pretendo que esta afirmativa signifique uma equivalência entre a exploração capitalista dos trabalhadores e o roubo colonial de terras. Ao contrário, desejo me ater às marcadas e crescentes disparidades em riqueza e renda que constituem a economia neoliberal quando se originam de estruturas coloniais. Mas também quero chamar a atenção para a instabilidade que caracteriza este momento do capitalismo e do colonialismo tardios.

Assim como sugere o decreto de Trump com o qual iniciei esta discussão, estamos testemunhando uma expansão irresponsável da generosidade empresarial e das indústrias extrativistas e expansionistas no exato momento em que nosso planeta e nossos povos menos podem sustentá-la (Klein, 2014KLEIN, Naomi. This Changes Everything: Capitalism Versus the Climate. New York: Simon and Schuster, 2014.). Proporcionalmente, há mais recursos nas mãos de muito poucos do que em qualquer época desde a Era Dourada do começo do século XX (Neate, 2017NEATE, Richard. World’s Witnessing a New Gilded Age as Billionaires’ Wealth Swells to $6tn. The Guardian , London, 26 October 2017. Available at: <Available at: https://www.theguardian.com/business/2017/oct/26/worlds-witnessing-a-new-gilded-age-as-billionaires-wealth-swells-to-6tn >. Accessed: Dec. 15, 2017.
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). E, contudo, a instabilidade que agora enfrentamos também sinaliza que esta é uma época de crise para o neocolonialismo e o neoliberalismo. A máscara benevolente do colonialismo, com suas promessas fraudulentas de igualdade, foi rasgada para revelar a agenda exploratória que o rege.

Este momento de instabilidade, esta época de crise política e econômica, oferece uma oportunidade para reimaginar modos de ser, trabalhar e se conectar. Uma abordagem decolonizadora pode aproveitar esta instabilidade para desestabilizá-la e pensar seriamente em alternativas. Jane Desmond (2016DESMOND, Jane. Displaying Death and Animating Life: Human-Animal Relations in Art, Science, and Everyday Life. Chicago: University of Chicago Press, 2016.) discutiu recentemente que o conhecimento em humanidades nos permite questionar como vivemos agora e como queremos viver. Desmond argumenta, deste modo, que o conhecimento em artes e humanidades permite que imaginemos outros mundos e outras maneiras de ser. Da mesma forma que nossa teorização, assim, também, nossa docência pode nos permitir imaginar outras maneiras de existir e de interagir. Ao repensar nossos currículos, podemos repensar e reformular nosso trabalho de maneira a suplantar modelos coloniais de exploração e apropriação. Movimentos decolonizadores em estudos de dança e performance podem aproveitar a instabilidade, não apenas considerando seriamente alternativas, mas também as criando.

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  • TUCK, Eve; YANG, K. Wayne. Decolonization is Not a Metaphor. Decolonization: Indigeneity, Education, and Society, Toronto, University of Toronto, v. 1, n. 1, p. 1-40, 2012.
  • 1
    Sei que a história, a política e a economia de países e regiões nas Américas variam imensamente. Entretanto, existe uma história do colonialismo colonizador comum a muitas nações nas Américas, mesmo que a relação destes países com o colonialismo metropolitano seja diferente.
  • 2
    Extraí o termo land grab [grilagem de terras] da coletânea Grabbong Back: Essays Against the Global Land Grab, de autoria de Alexander Reid Ross (2014ROSS, Alexander Reid. Grabbing Back: Essays Against the Global Land Grab. New York: AK Press, 2014.).
  • 3
    Compreender as consequências da escravidão e sua influência na produção cultural em minha docência na graduação originou-se principalmente dos estudos de hip-hop e capoeira.
  • 4
    Ver Ross (2000ROSS, Janice. Moving Lessons: Margaret H’Doubler and the Beginning of Dance in American Education. Madison: University of Wisconsin Press, 2000.) e Foster (2011FOSTER, Susan. Choreographing Empathy: Kinesthesia in Performance. London; New York: Routledge, 2011.) para uma história do estabelecimento da dança moderna em currículos de cursos universitários.
  • 5
    Como tal, estes currículos seguem o exemplo de festivais culturais em que a coletânea é feita como sendo coincidente com compreensão. Para saber mais sobre as estruturas de festivais, ver O’Shea (2016O’SHEA, Janet. Festivals and Local Identities in a Global Economy, The Festival of India and Dance Umbrella. In: DEFRANTZ, Thomas; ROTHFIELD, Philipa. Choreography and Corporeality: Relay in Motion. London: Palgrave Macmillan, 2016. P. 85-102.).
  • 6
    Isto fica evidente, por exemplo, na lógica estruturante do evento LA Festival de 1990 (Kirshenblatt-Gimblett 1998KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Confusing Pleasures. In: KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Destination Culture: Tourism, Museums, and Heritage. Berkeley: University of California Press, 1998., p. 203-248).
  • 7
    Antes desta classificação, conforme Susan Foster (2009FOSTER, Susan. Worlding Dance: An Introduction. In: FOSTER, Susan. Worlding Dance. London: Palgrave Mcmillan, 2009. P. 1-13., p. 1-2) indica, o curso World Arts and Cultures da UCLA se originou de um “Currículo de Artes Étnicas, que foi precedido por cursos em ‘Artes Folclóricas’”. Da mesma forma, conforme Foster ilustra, na década de 1930, a UCLA incluiu cursos de “Dança Folclórica” juntamente com aulas de “Dança”, tendo a nomenclatura mudado na década de 1960 para ‘Dança Criativa’, ‘Dança Étnica’ e ‘Dança de Culturas Específicas’. Embora esta expansão do currículo procurasse ampliar a compreensão do que constituía a dança, ainda assim conservava uma estrutura em que algumas práticas continuavam vinculadas à cultura, enquanto outras evocavam a estética.
  • 8
    Anusha Kedhar (2014KEDHAR, Anusha. Flexibility and its Bodily Limits: Transnational South Asian Dancers in an Age of Neoliberalism. Dance Research Journal, Cambridge, Cambridge University Press, v. 46, n. 1, p. 23-40, 2014.) investiga ideais literais e metafóricos de flexibilidade como um meio pelo qual os dançarinos da Ásia Meridional em diáspora negociam a precariedade associada a uma economia neoliberal.
  • Este texto inédito, traduzido por Ananyr Porto Fajardo, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2017
  • Aceito
    04 Jun 2018
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