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Uma Amazona de Barba

Une Amazone Barbu

RESUMO

Uma Amazona de Barba – O texto sustenta sua metodologia na Análise de Discurso. Para tanto, mobiliza significantes no intuito de analisar discursivamente a performance artística de uma drag queen. A tese apresentada é a de que montar-se é um mecanismo discursivo que cria um punctum simbólico que encobre o real traumático de crescer impedido de associar-se ao feminino. Conclui que o lugar da drag, como tensão entre a formação masculinista e o seu avesso, representa um espaço limiar, dissidente, de mestiçagem e transfiguração da dor, repressão e perda. A contribuição refere ao fato de que é por meio desse fazer artístico que o sujeito do discurso resiste e se autoriza a agir, a significar.

Palavras-chave:
Drag ; Performance; Gênero; Análise de Discurso; Psicanálise

RÉSUMÉ

Une Amazone Barbu – Le texte fonde sa méthodologie dans l’Analyse du Discours. Pour ce faire, il mobilise des signifiants dans le but d’analyser discursivement la performance artistique d’une drag queen. La thèse présentée soutient que se costumer est un mécanisme discursif qui crée un punctum symbolique dissimulant la réalité traumatisante de grandir en étant incapable de s’associer au féminin. Il conclut que la position de la drag, en tant que tension entre la formation masculiniste et son opposé, représente un espace liminal, dissident, d’hybridité et de transfiguration de la douleur, de la répression et de la perte. La contribution réside dans le fait que c’est à travers cette pratique artistique que le sujet du discours résiste et s’autorise à agir, à signifier.

Mots-clés:
Drag ; Performance; Genre; Analyse du discours; Psychanalyse

ABSTRACT

A Bearded Amazon – The text grounds its methodology in Discourse Analysis. To do so, it mobilizes signifiers with the aim of discursively analyzing the artistic performance of a drag queen. The thesis presented argues that dressing up is a discursive mechanism that creates a symbolic punctum that conceals the traumatic reality of growing up unable to associate with the feminine. It concludes that the drag’s position, as a tension between masculinist formation and its opposite, represents a liminal, dissenting space of hybridity and transfiguration of pain, repression, and loss. The contribution lies in the fact that it is through this artistic practice that the subject of discourse resists and authorizes oneself to act, to signify.

Keywords:
Drag ; Performance; Gender; Discourse Analysis; Psychoanalysis

Introdução

Conheci G. Amazone em 2014, quando ainda morava em Recife. Ao longo dos anos vi crescer e amadurecer uma artista de senso estético e inteligência performática absurdos, alguém que se agarrou à ideia de constituir-se sujeito em conjunção com a sua drag; hoje, performer e personagem são uma e a mesma coisa. Num primeiro momento, entretanto, Amazone estava apartada da figura masculina. Apresentava-se meio tímida e emulando, tanto quanto possível, a impressão de uma figura cultural e tradicionalmente feminina – o longo vestido, nenhum pelo no corpo, os saltos altos, grandes turbantes e pulseiras. Essa drag, ainda jovem, passa por um ponto de clivagem muito particular – fora dos palcos, o sujeito performer tem foliculite, e decide, em virtude da manutenção da própria saúde, manter os pelos (incluindo a barba) como elemento constituinte da personagem drag. O termo personagem que utilizo aqui é posto pela própria Amazone, como, por exemplo, quando afirma que a drag é “uma personificação feminina”, e que surgiu de uma demanda criativa situada, centrada num artista masculino que interpreta ou cria uma figura feminina: “quando eu aceitei o convite pra festa foi que fui parar para sentar e tentar criar um personagem”, diz Amazone em entrevista gravada em vídeo1 1 O vídeo reúne, ainda, trechos de performances conduzidas por Amazone, e está disponível em: https://youtu.be/d24dfwkaM9o. .

O material em vídeo servirá de apoio às discussões conduzidas neste artigo. Trata-se de um videodocumentário em que pudesse reunir cortes, registros de cenas, danças, músicas, falas de e sobre drag queens. O vídeo compreende uma série de falas, gravações de performances articuladas e um tanto de vídeos transversos que foram sendo organizados em torno de três pontos: o corpo, a arte e o discurso. Os sujeitos presentes no vídeo são artistas drag queens que gentilmente nos ajudam a compreender as vicissitudes dessa expressão artística, e a observar o discurso que lhes possibilita o sentido. Disso resulta que este estudo se volta sobre a leitura dessa materialidade, o documentário Vrá! (2022)VRÁ. Capítulo dois, G. Amazone. YouTube. 2022. 30m34s. Disponível em: https://youtu.be/d24dfwkaM9o. Acesso em: 02 fev. 2023.
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, disponível sob licença gratuita e pública no YouTube. Para fins legais, sigo, então, a determinação estabelecida pelo Ofício Circular nº 17 de 2022 do CONEP/SECNS/MS, que orienta sobre a Resolução CNS n.º 510, de 7 de abril de 2016, regulamentando os “projetos que utilizam metodologias características das Ciências Humanas e Sociais e que estão dispensados de submissão ao Sistema CEP/Conep” (Brasil, 2022BRASIL. Ministério da Saúde. Ofício circular nº 17/2022/CONEP/SECNS/MS. Brasília, 2022. Available at: https://conselho.saude.gov.br/images/Ofício_Circular_17_SEI_MS_-_25000.094016_2022_10.pdf. Accessed on: June 02, 2022.
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). Seguindo Pêcheux (2014)PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (1975). Translated by Eni Orlandi. 5th ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2014., a análise de discurso considera alguns passos como procedimentos metodológicos da abordagem discursiva.

Indursky (2019)INDURSKY, Freda. Que sujeito é este? In: GRIGOLETTO, Evandra; DE NARDI, Fabiele; SILVA SOBRINHO, Helson (Org.). Silêncio, Memória, Resistencia. A Política e o Político no Discurso. Campinas: Pontes, 2019. destaca que, em primeiro lugar, há de se considerar a identificação dos pontos de equívoco que se mostram na superfície material do discurso, que é a língua. Por pontos de equívoco, entendemos os lapsos, atos falhos, ambiguidades, metáforas, metonímias, enfim, qualquer manifestação linguageira que torne possível vislumbrar um estranhamento com relação à significação. O estranho aqui não se filia à abordagem freudiana, mas, sim, à suspensão do sentido ordinário, atravessamento de um dizer de outra ordem no fio do discurso de um sujeito. O estranhamento em análise de discurso guarda relação com a forma como os significantes se entrelaçam na enunciação. O segundo passo é desuperficializar esse dizer, de forma a tornar opaca essa relação que se mostra transparente apesar de despertar o ponto de equívoco. A desuperficialização aponta para um trabalho com a língua que leve em conta a descrição histórica, social, ideológica e econômica que aquele significante traz consigo.

Deslinearizar esse significante é devolvê-lo à linguagem, interpretar com vistas às condições de produção daquele significado, ordenado por um sujeito de discurso, identificado com uma posição discursiva específica, que se se relaciona, por seu turno, com uma formação discursiva, salvaguardada pela formação ideológica. O terceiro passo consiste, assim, em identificar essas formações e seu funcionamento por meio de um batimento entre interpretação e descrição. A interpretação se filia à descrição da situação e das condições de produção na tentativa de lançar mão de um sentido possível para as sentenças destacadas. Por fim, a reflexão sobre a relação entre língua e mundo é destacada, de forma a elucidar o papel que a ideologia desempenha na formação do efeito de sentido conduzido entre os sujeitos, lugar onde é possível observar os meandres do discurso. Nossa análise, parte, assim, dos dizeres de Amazone em que foi possível perceber um adensamento com relação à significação.

De minha parte, não vejo ganho teórico em definir a drag como uma personagem, conceito advindo dos estudos literários, mas como posição dissidente no discurso. Nesses termos, interessa tratar de Amazone como ponto de encontro e de fuga. É nela que estão alocados o desejo de ser e a impossibilidade de ser de outra forma, ela abriga uma posição historicamente determinada como masculina, superidentificada com o fato de replicar o ideal de homem, e outra contrária a ela, uma posição dissidente com sonhos de desidentificação. Esta posição de contraidentificação, representada pela drag, é constituída nas bordas da posição sujeito dominante, em resposta a ela. Ela serve como ponto de virada, símbolo ou epítome da resistência ao sistema que imputa, compulsoriamente e por via da cultura, a ideologia que sustenta o ideal desse ser masculino. É imputado ao sujeito masculino ser homem e isso de uma forma antônima ao ser mulher. O homem está ali no espaço de negação do feminino. A drag surge com o intuito de reintegrar a contraparte renegada do ser feminino ao ser masculino, como resistência à homogeneização cultural que impede a assunção de qualquer característica feminina ao homem “de verdade”. Contudo, ainda que se apresente como oposto simétrico – a mulher que comparece como antônima ao sujeito homem em dominância, esta posição dissidente raramente comporta o desejo de superidentificação com o gênero feminino2 2 Salvo os casos em que por meio da arte drag os sujeitos se entendem como pessoas transsexuais. . A drag é uma fuga das amarras da masculinidade e, ao mesmo tempo, o ponto que reforça o seu laço contínuo sobre o sujeito masculino. Ela empurra as fronteiras culturais, questiona alguns papéis sociais e de gênero, reinventa o sujeito à luz daquilo que ele foi obrigado a recalcar para ser homem – o imaginário do feminino, e o faz a partir de um mecanismo especialmente interessante, que aqui refiro como montação.

É na figura da drag que paradoxalmente se expressam e se dissolvem as contradições entre masculino e feminino, significante e significado – o corpo desse sujeito está além do pedaço marcado pela genitália, além do sexo e, também, além do gênero. Trata-se, como afirma Paul Preciado (2014)PRECIADO, Beatriz [Paul Preciado]. Manifesto Contrassexual. Translated by Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014., no Manifesto Contrassexual, de um corpo feito de incessantes devires, “devir-mulher, devir-animal, devir-flor”, um corpo entre, que apesar de carregar esse devir na memória, “não se identifica nem com a mulher nem com o inseto nem com a flor” (Preciado, 2014, p. 192PRECIADO, Beatriz [Paul Preciado]. Manifesto Contrassexual. Translated by Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014.). Dirá Bourdieu (2020, p. 195)BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 18nd ed. Translated by Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020., em A dominação masculina, que esse tipo de prática constitutiva da identidade gay, aqui marcada pela figura drag de Amazone, implica na sua anulação, “[...] tudo se passa, de fato, como se os homossexuais, que tiveram que lutar para passar da invisibilidade para a visibilidade, para deixarem de ser invisíveis” fossem silenciados, “e de certo modo neutros e neutralizados, pela submissão à norma dominante”. No fazer da drag, esse lugar de recalque é ressignificado a partir da montação, prática que possibilita o retorno do objeto real por intermédio da assunção dos signos reprimidos.

O lugar da drag representa o espaço de transfiguração da dor, da repressão e da perda. É por meio desse fazer artístico que o sujeito resiste e se autoriza a agir, apresentar-se da forma que fora condicionado a não ser, ainda que se utilizando da máscara fornecida pela maquiagem. Essa forma assumida pela drag é transformada pela linguagem e materializada numa amálgama visual composta pelos signos que integram o universo do gênero interditado – nesse caso, o feminino. Feminino, como afirma Maria Rita Kehl (2008)KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008. em Deslocamentos do feminino, é tomado aqui como uma construção discursiva apoiada na criação de um saber e de um poder que fazem referência ao universo de sentidos que sustenta a formação discursiva masculinista. Pensei em chamar essa formação de “viril” ou da “virilidade”, a exemplo de Courtine ao se referir a um ideal de homem centrado num ser e parecer específicos (cf. História da virilidade).

Entretanto, acredito que essa marcação levasse o assentamento de sentidos que viso classificar para outro lugar, mais associado ao sexo, à performance masculina no ato sexual. Como estamos falando de uma posição assumida em relação a uma designação de gênero, aludir ao sexo poderia remeter à descrição biológica de gênero, o que procuro evitar. “Masculino”, por si só, não descreve com exatidão essa posição que determina ser “macho”; “machista” incorre num problema parecido. Além disso, é possível ser machista e ser mulher, por exemplo. Penso que o adjetivo “masculinista” resolve a questão por remeter ao masculino, mas deixar marcado que essa é uma atribuição conferida, qualificada, alcançada, mantida com certa virilidade e certa violência – principalmente quando em relação ao gênero feminino. De outro lado, posição dissidente poderíamos muito bem denominar de enviada3 3 A referência é à canção Enviadescer de Linn da Quebrada, faixa do álbum Pajubá, de 2017. , representativa da formação discursiva que envia o sujeito a esse espaço de questionamento da ordem masculina, e que o faz por meio de um processo que envaidece e “enviadesce” o corpo em ato durante a performance drag.

Montar-se de drag é um mecanismo discursivo que, por meio da linguagem artística, cria um punctum4 4 O termo punctum foi mobilizado por Barthes (1984) em A câmara clara, de 1980, e pode ser entendido, grosso modo, como o ponto (no caso de Barthes, na fotografia) que se impõe ao espectador, que demanda seu interesse. simbólico que encobre o real traumático, esse de crescer impedido de ser, agir, andar e falar de uma determinada maneira. A formação discursiva da masculinidade que coopta os sujeitos a degradarem o feminino opera com a formação cultural que regula a dominação masculina, refreando os corpos homossexuais e condicionando-os a assemelhar-se ao padrão imposto sociocultural e historicamente – esse do homem viril e reprodutor, que só se constitui a partir da negação do feminino em qualquer instância de agência. Vale precisar aqui que entendo formação cultural como sendo o “espaço a partir do qual se podem prever os efeitos de sentido a serem produzidos” (Leandro-Ferreira, 2011, p. 60LEANDRO-FERREIRA, Maria Cristina. O lugar social e da cultura numa dimensão discursiva. In: INDURSKY, Freda; LEANDRO-FERREIRA, Maria Cristina; MITTMANN, Solange (Org.). Memória e história na/da análise do discurso. Campinas: Mercado de Letras, 2011. p. 55-64.), como apontado por Maria Cristina Leandro-Ferreira em O lugar do social e da cultura numa dimensão discursiva. Assim, este é, por excelência, um espaço de dar a ver esses assentamentos de sentido, em que a regularidade atua de tal modo a tornar previsível uma dada interpretação, donde deriva a noção de protótipo que exploro mais adiante neste texto.

A montação não é um termo novo nas comunidades de drag queens ou kings5 5 Trata-se da forma de arte que centraliza formas de representação da figura masculina. Geralmente é realizado por pessoas que se identificam como do gênero feminino. . A origem da palavra no contexto em que é empregada é incerta, mas a hipótese mais aceita é a de que seria necessário montar num salto para completar o processo de produção da drag. De toda sorte, revisito a palavra agora para operar com ela o que Orlandi (2013) se refere como teorização, uma discursivização específica que integra um tratamento destinado a conferir uma roupagem discursiva a um significante ou conceito advindo de outro campo de pesquisa ou atuação. A montação guarda relação de proximidade com a montagem, conceito explorado por Georges Didi-Huberman (2011DIDI-HUBERMAN, Georges. La condition des images. In: AUGÉ, Marc; DIDI-HUBERMAN, Georges; ECO, Umberto. L’expérience des images. Paris: INA Éditions, 2011.; 2016DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar, remontagem (do tempo). (2007). Translated by Milene Migliano, revised by Cícero de Oliveira. Revista Chão da Feira, n. 47, 2016. Available at: https://bit.ly/3HRy904. Accessed on: Feb. 02, 2023.
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) em Les condition des images, de 2011, e em Remontar, remontagem (do tempo), de 2007. Para Didi-Huberman, a montagem é construída talhando coisas que habitualmente estão unidas e reunindo outras habitualmente separadas, o que poderíamos afirmar sobre a conjunção entre a imagem feminina e a barba que Amazone sustenta. A montagem é, desse modo, um processo que expõe as contradições e paradoxos inerentes aos objetos, um procedimento que permite desmontar a política ao tornar visíveis “os choques recíprocos dos quais toda história é tecida” (Didi-Huberman, 2016, p. 1DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar, remontagem (do tempo). (2007). Translated by Milene Migliano, revised by Cícero de Oliveira. Revista Chão da Feira, n. 47, 2016. Available at: https://bit.ly/3HRy904. Accessed on: Feb. 02, 2023.
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). A montagem opera o mecanismo filosófico de remontar a história, como Pêcheux remonta à origem da categoria de contradição em Remontemos de Foucault a Spinoza, de 1977.

Como exposição de anacronismos, dirá Didi-Huberman (2016)DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar, remontagem (do tempo). (2007). Translated by Milene Migliano, revised by Cícero de Oliveira. Revista Chão da Feira, n. 47, 2016. Available at: https://bit.ly/3HRy904. Accessed on: Feb. 02, 2023.
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, a montagem cria um abalo, e isso porque lança mão de uma interpretação que não deixa de estar relacionada a um gesto político – este gesto dialético de exposição da contradição com o qual a Análise de Discurso também costuma operar. A montagem, assim, atua como ferramenta que proporciona “compreender a eficácia dessas imagens como fundamentalmente sobredeterminada, ampliada, múltipla, invasora”, como afirma Didi-Huberman (2015, p. 187)DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Translated by Verna Casa Nova and Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015., dessa vez em Diante do tempo. A montação, de maneira similar, confere forma a uma posição de um discurso complexo e disperso, reúne contrários em torno de si e potencializa o corpo como objeto paradoxal; ela comparece como contraparte fixa, contorno, fôrma, materialização discursiva.

Depois de montada, a drag, que serve como totem, símbolo da força que amalgama os sentidos de resistência à posição dominante da formação masculinista, permite ao sujeito performer assumir a posição dissidente, enviada, que comentei há pouco. Montar-se, assim, é um processo discursivo que compreende duas etapas – primeiro, o reconhecimento de si em um corpo outro, que passa pela transformação gradual da imagem de si mesmo; num segundo momento, quase que concomitante ao primeiro, está a filiação desse sujeito a uma outra posição discursiva por intermédio do olhar guiado para um anteparo que confira contorno ao corpo em produção. Geralmente o anteparo material em questão é um espelho, reflexo que torna tangível a imagem do novo corpo em vista. O termo deriva do latim speculum, que reflete o olhar de quem vê, e integra uma família latina de palavras cuja centralidade gira em torno da ideia de projeção e de observação, como especulação e espetáculo. A palavra pode designar, ainda, o “ponto do qual se tem uma visão privilegiada de algo” (Rodrigues, 2014, s. p.RODRIGUES, Sérgio. O que a especulação tem a ver com o espelho. Sobre palavras. Revista Veja, January 27th, 2014. Available at: https://bit.ly/3Ai02u7. Accessed on: Aug. 02, 2022.
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). É sobre esse objeto que o sujeito lança um olhar e, de volta, é olhado por esse outro corpo em produção, materialização de uma posição que diz de um exercício artístico, mas também, e sobretudo, de um desejo, de uma filiação a uma rede de sentidos específica.

Apesar da presença da superfície material do espelho nesse jogo entre visualização do sujeito e assunção de uma posição no discurso, não raro a posição da drag é convocada a tomar espaço na fala cotidiana do sujeito desmontado, dispensando o uso do reflexo imagético, mas mantendo a função especular como mecanismo discursivo – dessa vez, pelo olho do outro, o olhar que convoca a existência da posição enviada. Nesses termos, a imagem produzida pelo espelho não é posta em significação por causa do anteparo, mas, sim, por meio do discurso que lhe sustenta a possibilidade de significar e que elenca, nesse processo, o olho como ponto central de sua projeção. Exemplos desse tipo de interpelação da posição da drag no dizer ordinário do sujeito desmontado podem ser observados quando, em entrevistas, performers respondem a uma determinada pergunta modalizando a voz para um tom mais agudo, adotando postura mais ereta, mimetizando ou realizando certos tiques, utilizando pronomes do feminino ou referindo-se à drag na primeira pessoa (em detrimento do registro mais comum, na terceira pessoa. Por exemplo, quando Amazone diz que “ela começou com um viés muito mais de moda, muito mais top model, uma coisa muito mais só plástica; e quando eu comecei realmente a botar em prática o que precisava para festa foi quando Amazone começou a criar corpo, ter nome, algumas características e aí eu já consegui ver, enxergar uma forma bem peculiar de fazer a minha drag”).

O espelho

A questão do espelho na constituição do sujeito de linguagem é explorada por Lacan, quando da ocasião d’O estádio do espelho como formador da função do Eu, de 1949, em que se é discutido o papel que esse objeto desempenha na formação da imagem do corpo de um indivíduo, sempre em relação ao outro que significa a imagem formada no espelho. Ser significado a partir dessa imagem especular e do dizer materno, assim, é um mecanismo de identificação que se sedimenta ainda nos primeiros anos de vida e que acompanha o desenvolvimento do sujeito até a maturidade. No caso das drags, o que ocorre é um descompasso entre a imagem apresentada e a nova imagem produzida. Ao invés de reafirmar a identidade ora posta, a de sujeito masculino, por exemplo, o sujeito fabrica uma imagem que corresponda à posição discursiva que se assume na montação, o que vinha me referindo como posição enviada. Deparado com esse outro contorno, o performer passa, então, a significar no interior de outra posição de sujeito consubstanciada ao corpo modificado, montado. Dei preferência especial a entrevistas em vídeo que retratassem o processo da montação para que fosse possível observar a forma como ocorre essa passagem especular – de uma posição a outra, ainda que essa transição não dependa unicamente do reconhecimento imagético, mas, sim, de uma identificação discursiva particular. A isso equivale dizer que esse momento, em que se “conclui o estádio de espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial [...], a dialética que desde então liga o Eu a situações socialmente elaboradas” (Lacan, 1996, p. 101LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do Eu [1949]. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Translated by Vera Ribeiro. 1st reprint. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 97-104., os grifos são do autor). Essas situações socialmente elaboradas não são senão a rede de referentes em conflito que sustentam a existência do aparato discursivo, seu real socio-histórico.

Em determinado ponto, no espaço em que o sujeito percebe a complementariedade da posição outra que criou para si, a realização de que esta posição não está apartada do desenvolvimento identitário do sujeito, ocorre um borramento dos limites entre as duas posições. Amazone afirma que

[...] da mesma forma como a segurança que Amazone tem, a altivez que Amazone tem... não ter medo de sempre estar à frente, de sempre ser o centro das atenções; buscando ser o centro da atenção, é o que falta no Bruno. Onde eu tento fazer essa mesclagem. Não querer aparecer, sempre estar em segundo plano, sempre não ter essa atitude tão externada, mesmo sendo um carro alegórico, mas contido. Transformar isso. Mais uma vez: o que é que em um pode fortalecer o outro. Isso é constante. Quando eu tô parado pensando numa performance ou quando eu tô no trabalho criando alguma coisa.

Aqui é interessante destacar que após a utilização do termo mesclagem, a drag de Amazone, que fora referida como ela em sentenças como “altivez que Amazone tem”, passa a ser entendida como eu (quando eu tô parado pensando). Essa escolha sintática sutil reforça as relações de sentido mobilizadas pelo sujeito, que agora entende que a posição enviada que assume enquanto drag é a mesma que sustenta seu posicionamento desmontado – o que efetivamente é alterada é a forma de apresentação dessa posição no corpo. A sintaxe, aí, pode ser tomada como “instância de manifestação do processo de subjetivação (inclusive, talvez, nas identificações de gêneros), a qual revela a dimensão simbólica do sujeito”, como postula Jacob Biziak (2021, p. 320)BIZIAK, Jacob. Uma poética da ambiguidade: autoria, gênero e político da língua em perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. In: ZOPPI-FONTANA, Monica; BIZIAK, Jacob. Mulheres em discurso: lugares de enunciação e corpos em disputa, v. 3. Campinas: Pontes, 2021. p. 313-335. em Uma poética da ambiguidade. Esse processo funciona ligando, no plano simbólico, o real (a verdade de que a drag representa a mesma posição ocupada pelo sujeito que a designa) ao imaginário de reintegração – da “personagem” com o artista.

Tania Rivera (2018, p. 23)RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: SESI-SP, 2018., em O avesso do imaginário, afirma que a performance cria condições que permitem observar o corpo de outro modo, ela reconfigura as relações entre o performer e o próprio corpo, entre o objeto e o espaço, e isso porque, na performance, “não há coincidência entre eu e meu corpo”; condição que me leva a classificar o corpo como objeto paradoxal. Nesses termos, o corpo, além de servir de superfície material do sujeito do discurso, materializa, no mesmo processo, a relação de deslocamento desse sujeito, de afastamento do corpo – passagem de objeto à questão. O sujeito que coloca o corpo como questão é um nômade zanzando pelo deserto das possibilidades de vir a ser, longe de assegurar o corpo como morada, este é um sujeito que mobiliza outras formas de presença, ele atua “do lugar que lhe seria de direito: ‘de fora’. São os ‘olhadores’ que ‘fazem o quadro’, na famosa fórmula de Duchamp” (Rivera, 2018, p. 22-23RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: SESI-SP, 2018.).

Para esse sujeito performer, sujeito em contato com a arte contemporânea, não basta a presença do corpo para que o corpo como objeto se coloque – como questão lançada sobre si e em direção ao outro, esse corpo comparece em pedaços que se dão ao ver, que apelam ao outro, relembrando, assim, a sua constituição. “A performance mostra, assim, que o sujeito só pode aparecer de forma efêmera, fugaz, como efeito de um ato que se dá entre o eu e o outro” (Rivera, 2018, p. 24RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: SESI-SP, 2018.). Daí a possibilidade de assumir o sujeito drag no espaço intervalar, esse vão que se abre entre eu e ela. De forma bastante particular, na filiação mesma à rede de sentidos que sustenta esse sujeito, a posição ocupada pela drag opera no limbo6 6 O termo me foi oferecido por Evandra Grigoletto e se ata perfeitamente à definição intervalar que procuro adjetivar, a começar pela sua definição formal: trata-se de um substantivo masculino, este que designa o exterior de algo; uma margem, borda, rebordo. Margem que se desenha em torno de si para poder significar de outro lugar, e, além disso, borda que traceja os limites da FD masculinista e da FD feminista. Em sentido possível, o limbo é o estado do que se encontra esquecido, negligenciado, indefinido, negligenciado – remissão ao que de feminino foi cultural e ideologicamente reprimido no desenvolvimento da posição masculinista. Ainda sobre a definição desse substantivo, deparamo-nos com uma condição de dúvida, de indecisão e incerteza – de não-formatação, de filiação operacionalizada por uma não-filiação, rebeldia, negação. , a partir do entremeio, num espaço de desidentificação com a formação masculinista e, ainda assim, sem atar-se de maneira superidentificada à formação feminista que nos serve de contraposto à FD masculinista. Trata-se, como venho afirmando, de uma posição enviada: lançada, mas não pousada ou assentada.

Assim, quando Amazone menciona a mesclagem, não se trata, como é possível interpretar, de uma síntese, a simples fusão de elementos distintos num novo produto final, como o definiria a estética clássica (Cf. Suassuna, 2013SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. (1972). 12nd ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.), mas, sim, de um trabalho desenvolvido na tensão entre essas formas (formas artísticas e formas de ser eu). Sobre isso falou Hannah Gadsby, no aclamado Nanette (2018)NANETTE. Direção de Madeleine Parry e Jon Olb. Tasmânia: Netflix, 2018. 69 min.: o que o artista faz é controlar a tensão da plateia, o cerne da performance é a manutenção desse estado de tensão. O mesmo pode ser dito sobre a Análise de Discurso, caracterizada como uma disciplina de entremeio, que, como afirmou Eni Orlandi, em Análise de discurso, ciência e atualidade, de 2013, não se deixa adjetivar por uma ou outra área de contato – linguística, psicanálise, materialismo histórico. A análise materialista de discurso atua no espaço contraditório que há entre suas áreas de base, na tensão específica a cada problema que se impõe a partir do contato da ideologia com o inconsciente e a língua.

Ao mostrar a reunião de diferentes espaços numa mesma obra, o entremeio também dá a ver os vãos que existem entre um e outro espaço; nesses intervalos, dirá Icleia Borsa Cattani (2004, p. 169)CATTANI, Icleia Borsa. Os lugares da mestiçagem na arte contemporânea. In: FARIAS, Agnaldo (Org.). Icleia Cattani. Rio de Janeiro: Funarte, 2004. p. 169-182. Available at: https://bit.ly/3HIsNUH. Accessed on: Feb. 02, 2023.
https://bit.ly/3HIsNUH...
, em Os lugares da mestiçagem na arte contemporânea, de 2004, “cruzam-se os sentidos, como em encruzilhadas – sobrepõem-se sem se fundirem: são lugares de mestiçagem por excelência”. Carla Süssenbach (2017)SÜSSENBACH, Carla. “Espelho Diário”: Corpo(s)-Arte de Rosângela(s) Rennó na perspectiva discursiva. 2017. 139 f. Thesis (PhD in Sciences of Language) – Universidade do Sul de Santa Catarina, Palhoça, 2017., em Espelho Diário, mobiliza a ideia de mestiçagem na arte para tratar da tensão produzida a partir dessa miscelânea de linguagens, meios, materiais e processos artísticos; nesses moldes, “não há fusão sem conflito ou tensão” (Süssenbach, 2017, p. 81SÜSSENBACH, Carla. “Espelho Diário”: Corpo(s)-Arte de Rosângela(s) Rennó na perspectiva discursiva. 2017. 139 f. Thesis (PhD in Sciences of Language) – Universidade do Sul de Santa Catarina, Palhoça, 2017.). Há de se ressaltar, ainda, que o conflito e as dissimetrias sociais que ele gera estão no centro das discussões sobre as quais se ocupa o materialismo dialético.

Assim, a performance se acotovela no meio desses sistemas formais diversos, seu espaço é construído nesses vãos, por oposição ao outro e ao próprio lugar, numa zona intervalar e instável, particular pelo tensionamento da forma, do original e também de sua cópia, pela reunião de contrários. Este é o entorno de suas condições de produção – o cheio e o vazio, a presença e ausência simultâneas que caracterizam a arte contemporânea. O espaço de entremeio é fundamental para compreensão da posição enviada sustentada pela drag queen. Essa é uma posição discursiva que se encontra na ambivalência de estar em dissidência à formação masculinista e à formação feminista ao mesmo tempo. To drag, em inglês, também significa arrastar – a prática fundante dessa posição arrasta junto com seu vestido longo os sentidos de uma formação em direção à outra, sem, positivamente, filiar-se a nenhuma delas. É no envio (e não no recebimento ou postagem), no processo de mestiçagem desses fragmentos de sentido (antimasculinistas e não propriamente feministas), no espaço tenso e inconstante entre ela e eu, que é possível observar a posição enviada.

Segundo essa lógica, o macho só é possível a partir da anulação da fêmea. Ele existe como negação ao que é socialmente considerado feminino; não há nada particular ao homem senão uma série de interdições – não andar como mulher, não falar como mulher, não vestir como mulher, sob o risco de ser lido como conjuntivo feminino (qualquer posição nãomasculina, mas, mais comumente, a de gay, por exemplo). Ainda que num primeiro momento o espelho atue na delineação corpórea dessa posição contrária à ação homogeneizante da ideologia masculinista, esse sujeito passa a compreender que a assunção social da possibilidade dessa contradição à norma surge como necessidade identitária, decorrente e complementar do/ao âmbito psicológico. Daí Amazone figurar como “o que falta no Bruno. Onde eu tento fazer essa mesclagem”, o que se marca na língua pelo câmbio irrestrito entre eu/ela e Bruno/Amazone quanto em passagens do tipo “G. Amazone que na verdade também sou eu, hoje eu entendo isso; mais do que duas personas separadas, é como o yin e yang, fazem parte de um mesmo, de um todo”. Para além do espelho, o que existe é um espaço de percepção da conjunção entre psicológico e social, de complementariedade do outro em relação ao eu, ao desejo que o eu materializa numa posição dissidente à formação masculinista, mas filiada à posição enviada.

Imagens

Ainda em 1969, Pêcheux (1990, p. 82)PÊCHEUX, Michel. Por uma análise automática do discurso. Campinas: Unicamp, 1990. desenvolve o conceito de formações imaginárias como espaço de assentamento de representações de um lugar social presente, mas transformado, elas “designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (grifos do autor). Dessa colocação é possível aferir que a marcação discursiva da presença de um indivíduo encontra sua existência mais concreta quando em relação às formações imaginárias postas em jogo no momento da produção discursiva, da representação linguageira que opera um sujeito determinado ao antecipar o momento mesmo da enunciação. Trata-se de um intricado jogo imagético, uma série de especulações do eu em relação a si e ao outro; essas imagens estão indelevelmente atreladas ao corpo do sujeito que enuncia e ao de seu interlocutor, além de também levar em consideração o lugar social que eles ocupam, o momento e o espaço da enunciação.

É igualmente interessante mencionar que a leitura do lugar social do outro operada pelo sujeito não está isenta da determinação ideológica que incide sobre a formação de imagens representativas ou superpostas a uma dada formação cultural. É o caso de alocar o outro como homem por meio da associação da barba com a posição em dominância na formação cultural que sustenta a formação discursiva da binariedade, esta que prediz a existência de um ser masculino prototípico que se configura por oposição a um ser feminino para quem a barba é elemento periférico. Essa composição pode ser entendida nos mesmos termos empregados pela semântica dos protótipos, ao assumir um modelo em que os conceitos são “estruturados de forma gradual, havendo um membro típico ou central das categorias e outros menos típicos ou mais periféricos”, como o afirmou Márcia Cançado (2022, p. 108)CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas e exercícios. 2nd ed. 4th reprint. São Paulo: Contexto, 2022., em seu Manual de Semântica. A compreensão linguística de protótipo se coaduna à ideia de formação imaginária na medida em que estabelece a associação categórica como mecanismo constitutivo da representação. Suzy Lagazzi (2015)LAGAZZI, Suzy. Paráfrase da imagem e cenas prototípicas: em torno da memória do equívoco. In: FLORES, Giovanna; NECKEL, Nádia; GALLO, Solange. Análise de discurso em rede: cultura e mídia. Campinas: Pontes Editores, 2015. p. 177-189., em Paráfrase da imagem e cenas prototípicas, estabelece conexão semelhante, ao abordar o conceito de cena prototípica. A ideia é a de definir um já-visto, nos moldes de um já-dito; essa cena atua como domesticadora da interpretação e remete à memória de algo reconhecido, já dito, já visto, um pré-construído de tipo imagético. É o caso, por exemplo, da identificação visual (de um logotipo, tipografia, identidade visual) de uma determinada marca em outro produto do mesmo gênero.

É nesse sentido preciso que a barba de Amazone produz um equívoco – o sujeito, posto a significar de uma forma determinada pela estrutura que o determina, é obrigado a suspender três imagens dominantes na formação imaginária que o afeta: a de homem, a de mulher e a da própria drag queen, que a cultura tratou de cristalizar como sendo predominantemente voltada à representação prototípica feminina. Para o sujeito que significa Amazone, ela é e não é homem, assim como é e não é mulher e drag queen. Daí também podermos afirmar que o corpo da drag se apresenta como objeto paradoxal, a reunião exemplar de contradições, o ponto em que elas propositalmente estão a serviço da suspensão do engessamento do sentido ordinário, em favor da construção de um espaço de estranhamento em que o olhar esteja a serviço do performer – é ela quem direciona e demanda atenção, e é sobre ela que repousa a orientação da presença.

A questão teórica em destaque diz sobre a articulação complexa que se demonstra entre a produção de imagens, sua cristalização, a representação, a antecipação e os mecanismos de significação que amparam o processo discursivo. A questão prática aponta para a miríade de processos nesse arranjo, ressaltando a sumária importância das instâncias da cultura, do inconsciente e da ideologia, que põem em contato formações imaginárias, ideológicas, culturais e discursivas materializadas na língua apropriada por um sujeito de linguagem, corporificado pelo discurso e em ação por intermédio da arte. Nesses moldes, quando afirmo que Amazone orienta a produção de um equívoco no corpo e que o faz em relação a uma resposta de um outro, preciso que o interlocutor, a quem podemos chamar de público, corresponde a uma série de imagens que circundam em torno de uma matriz prototípica. O performer cria um imaginário particular de público e organiza o ato performático em torno dessa figura. Posta em ato, entretanto, a performance, por seu caráter acontecimental, pode reorganizar o roteiro a partir de um movimento imprevisto – a promessa de atualidade que integra a estrutura de qualquer ato performático, o ponto impossível que confere particularidade ímpar, tornando cada ato único.

Outras imagens

Há de se ressaltar, ainda nesse âmbito, que a pandemia de Covid-19 forçou a estrutura acontecimental da performance para fora do espaço de interação direta com o público, longe da presença e em direção ao ciberespaço, ao campo de ações e interações mediadas pelos dispositivos e redes sociais. Esse novo espaço de comunicação aberto pela interconexão da rede de computadores, como o descreve Pierre Lévy (2003)LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2nd ed. São Paulo: Editora 34, 2003., serve de janela para visualização de uma cultura virtual da performance. O incômodo que atravessa a regularidade da performance, sobretudo em ambiente virtual, é a angústia de que eu sou objeto de percepção do outro; eu, como afirma Tania Rivera (2018)RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: Arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: SESI-SP, 2018., “[...] se mistura à cena do mundo para um olhar externo, e não detenho a posição autônoma e imperturbável que asseguraria o mundo da percepção”. O que circula aqui é uma imagem de eu que não vê completamente a si própria, e que por isso mimetiza o ambiente em que se encontra.

Trata-se do campo de inexistência do sujeito como outro, como o afirma Byung-Chul Han (2018, p. 26)HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Translated by Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2018., em No enxame, de 2018; o que provém do fato de que o smartphone “funciona como espelho digital para nova versão pós-infantil do estádio do espelho. Ele abre um espaço narcísico, uma esfera do imaginário na qual eu me tranco. Por meio do smartphone o outro não fala” (grifos do autor). Sem o outro, essa contraparte a partir da qual o sujeito é constituído, a negatividade que concorre na formulação da imagem de si como contrastante do outro que significa eu, o sujeito é puramente positivo. Didi-Huberman (2013, p. 182)DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Translated by Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013., em Diante da imagem, afirma, ainda, que “há um trabalho do negativo na imagem, uma eficácia ‘sombria’ que, por assim dizer, escava o visível” (grifos do autor). Assim, as imagens postas em circulação no ciberespaço tendem a promover o igual, o uniforme, o liso, o belo, o mimetizável, um local em que a presentificação dos sujeitos é atravessada pelo drama existente entre o senhor que passa de agente da visão a objeto do olhar.

Em Políticas da imagem, Giselle Beiguelman (2021)BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu, 2021. afirma que o corpo foi apartado dos processos de visualização; dele só restou o olhar, organizado e disciplinado por uma lógica fabril. Nesse esquema, a conjuntura social capitalista isola o olhar, exclui o olho da experiência conjunta que opera com os outros órgãos, na intenção de direcionar a atenção do olhar para o trabalho e o consumo. Nesses termos, “imagens digitais não são versões de imagens analógicas em outro suporte”, e isso porque se rompe aí com o “[...] pressuposto da separação dos sentidos e da autonomia da visão em relação ao corpo, um dos marcos da reorganização da subjetividade e da vida, que ocorrem no processo de consolidação do capitalismo industrial e da urbanização do século XIX” (Beiguelman, 2021, p. 7BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu, 2021.). A ideia é a de que as imagens que circulam em redes sociais instauram um efeito, este de que são leituras atualizadas de uma prática analógica, retratos da vida offline, quando, na prática, comparecem como um amontoado de pixels, mapas informacionais que efetivam conexões entre a imagem e um algoritmo.

É o cálculo informacional que vai alimentar a base de dados online e instaurar coordenadas que sustentam um regime da visão. Esse sistema de imagens virtuais é formatado, assim, no interior de um conjunto de práticas orientadas por um mercado – o que olhamos tende a sedimentar-se e estabelecer um padrão (ou, poderíamos dizer, contornar uma formação), e, a partir daí, fica fácil pensar que esse objeto, produto ou serviço é frequentemente consumido, desejado, replicado, curtido. Esse mecanismo também incide sobre a percepção do corpo, tanto no estabelecimento de um corpo ideal quanto no controle do corpo do sujeito cujo olhar é domesticado pela máquina. A predominância da cultura visual é baseada por uma forma específica de percepção e de fruição das imagens centrada no condicionamento do corpo e do olhar numa determinada direção. Existe, por assim dizer, uma ilusão especular que “opera ‘no nível da retina’ [fenômeno que está] baseado em um modelo narrativo linear, no qual a imagem é tratada como analogia do real” (Beiguelman, 2021, p. 11BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu, 2021.).

Amazone afirma que “na pandemia eu explorei muito a questão da fotografia no Instagram. Assim, bater mil seguidores, sendo que no meu perfil pessoal não tenho nada perto disso, pra mim é fantástico”. Estamos, assim, “diante de um novo tempo da imagem. Nele prevalece a expansão da fotografia não humana” (Beiguelman, 2021, p. 13BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu, 2021.), esse novo regime de interação permite compreender experiências artísticas de outra ordem, ou pelo menos sob um novo ponto de vista. A existência da performance nesse cenário é centrada na formulação e circulação de imagens, isso que comparece como algo que perdura, o fardo constante do olhar virtual que significa o artista no ciberespaço. Nesse cenário, o olhar é o outro na imagem, o que prende e fascina aquele que olha, e o sujeito performer é impelido a dar corpo a esta figura a partir das novas demandas encetadas pela relação com a tela fria. Aqui é a lógica capitalista de produção e reprodução (neste caso, de imagens) que rege o fazer artístico.

Desse modo, esse exercício de circulação imagética em ambiente virtual constitui “um movimento de inscrição desse sujeito em uma tela vazia”, como afirmam Evandra Grigoletto e Rita de Kássia Wanderley em A narrativa de si em blogs de moda feminina: entre a subjetividade e a alteridade (Grigoletto; Wanderley, 2016, p. 71GRIGOLETTO, Evandra; WANDERLEY, Rita de Kássia. A narrativa de si em blogs de moda feminina: entre a subjetividade e a alteridade. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 12, n. 1, p. 64-81, Jan./June 2016.). Mais ainda: para além da expansão do registro escrito, que rege a dinâmica da narrativa de si observada pelas autoras, e em direção ao registro imagético, nesse outro tipo de inscrição subjetiva o que predomina é uma “intervenção da identidade narrativa na constituição conceitual da identidade pessoal”, como apontou Paul Ricoeur (2014, p. 118)RICOEUR, Paul. O Si-mesmo como outro. Translates by Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. em O si-mesmo como outro. Com isso, é possível dizer que a identidade fabricada pela narrativa imagética interfere na percepção do corpo “pessoal” do sujeito, ou, mais precisamente, a imagem editada de si afeta o contorno do próprio corpo. O endosso da imagem da drag nas redes sociais, por exemplo, “duplica o corpo na consciência, fazendo-o existir mais intensamente”, de acordo com Georges Vigarello (2016, p. 272)VIGARELLO, Georges. O sentimento de si: história da percepção do corpo séculos XVI-XX. Translated by Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2016. n’O sentimento de si.

É a montação que autoriza o sujeito a significar no espaço artístico, já que cria uma posição cujo efeito principal é o de emulação, separação entre o indivíduo masculino, sujeito de direito, e sua imagem dissidente, sujeito permitido fazer e dizer. À drag é permitido ser o artista negado ao sujeito de direito. Na ilusão de estar apartado do peso da determinação social que rege o corpo a ser masculino, a posição drag consegue fabricar um corpo atento às vazões artísticas desejadas pelo sujeito. Essa nova posição pode cantar, dançar, dublar, atuar, comunicar, animar etc. Incorporar elementos dessas outras artes é, assim, resistir ao controle dos corpos e, ao mesmo tempo, não se limitar a um único meio de significar artisticamente. Note-se, ainda, que essa incorporação opera na tensão entre os campos e os sentidos por eles encetados, sem, propriamente, sintetizá-los num novo arranjo ou objeto. Em aberto, a performance drag consegue, em meio digital, criar a imagem de um corpo outro, este que resiste aos encalços comunicativos do ciberespaço.

É de espelho, um semblante

Ao mencionar o conceito de trompe-l'oeil, Hal Foster (2017)FOSTER, Hal. O retorno do real: A vanguarda no final do século XX. Translated by Célia Euvaldo. São Paulo: Ubu, 2017. aponta que, no ato de ver, a obra de arte pode terminar por enganar o olho (trom-pe-l'oeil), fabricando um anteparo que proteja contra o olhar, que é da ordem do real. A ideia é que essa obra sele o que é traumático em uma superfície artística, que domestique o olhar ao unir imaginário e simbólico contra o real. A relação entre olho, olhar e anteparo é discutida no Seminário XI, momento em que Lacan (1985a)LACAN, Jacques. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985a. critica mais explicitamente a noção de sujeito como centro a partir do qual se desenvolve o olhar direcionado a um objeto. Lacan mortifica esse sujeito posicionado como ponto geometral de referência na imagem ao tratar da existência de um olhar vindo, também, do objeto. O sujeito que direciona o olhar não está ausente da cena em que ele, de volta, é olhado pelo objeto. “Sem dúvida, no fundo do meu olho o quadro se pinta. O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no quadro” (Lacan, 1985a, p. 94LACAN, Jacques. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985a.). Nesses termos, entre o olhar e o objeto, é necessário existir uma espécie de instância de mediação, função desempenhada por um anteparo de ordem simbólica que serve para proteger o sujeito do olhar-objeto, este que é um olhar do mundo, radical, real. Os animais, prossegue Lacan, estão presos no olhar do mundo, mas nós, que temos acesso ao simbólico, podemos mediar e manipular esse olhar, domesticá-lo, contemplar um objeto no ponto luminoso do olho.

Poderíamos, em favor de uma distinção mais clara, falar de uma arte centrada na ilusão da verossimilhança e outra preocupada com o ilusionismo traumático, mas pouco avançaríamos na discussão central desta questão, que é a relação entre sedução, ilusão e dissolução. Ao tratar desse ponto, Lacan utiliza a anedota da disputa entre Zêuxis, que pinta uvas tão realistas a ponto de atrair os pássaros até sua obra, e Parrásio, que pinta uma cortina numa parede e, assim, termina por iludir Zêuxis, que pede para ver o que há por detrás daquele tecido. Aqui o jogo se dá entre o animal seduzido e o humano iludido, já que é por detrás do pano da cortina que está o olhar, isso que atrás ou além está sempre a nos seduzir. O ilusionismo traumático, por outro lado, poria em questão a existência do muro, lembrando haver, em primeiro lugar, uma barreira; o objetivo disso é propor sua dissolução. Nesse último caso, como o colocou Hélène Cixous (2022, p. 42)CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Translated by Natalia de Santanna Guerellus. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. n’O riso da medusa, “[...] como não há lugar de onde estabelecer um discurso, mas um solo milenar e árido a fissurar, o que eu digo tem ao menos duas faces e dois destinos: destruir, quebrar; prever o imprevisto, projetar”. A opção aqui é pela violência, por derrocar uma estrutura em favor de outra que habilite a existência de outro discurso, seu estabelecimento e circulação.

Num cenário semelhante a esse, mas em relação à castração e ao fetiche, concorrem as noções de véu, mascarada e semblante. Essa aproximação, segundo Christian Dunker (2021)DUNKER, Christian. Semblantes e mascaradas. Falando nIsso 323. YouTube. 2021. 29m50s. Available at: https://bit.ly/3tZQdyp. Accessed on: Nov. 01, 2022.
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, em Semblantes e mascaradas, decorre da formulação segundo a qual o véu é lido como uma estrutura do fetiche; a realização de um fetiche nos dá indícios de que objeto está sendo colocado como substituto do falo materno que não se aceita ter perdido. O véu, assim, promove uma ação de enganar olhos, de ludibriar aquele que engana os pássaros, pintando uma cortina que esconda a castração. O fetichista é, dessa forma, manipulativo, ele goza em jogar com a aparência fálica aludida pelo objeto, com isso que está atrás da cortina, por detrás do véu que causa o desejo. O gozo aí se encontra na falta, em causar – e nunca realizar – o desejo. Assim também é o funcionamento da mascarada, que representa a forma como a feminilidade é construída – não como uma imagem direta e ostensiva, mas, sim, como algo velado, escondido por uma máscara. A mascarada também está ligada à causação do desejo, mas, dirá Dunker (2021)DUNKER, Christian. Semblantes e mascaradas. Falando nIsso 323. YouTube. 2021. 29m50s. Available at: https://bit.ly/3tZQdyp. Accessed on: Nov. 01, 2022.
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, não se conecta necessariamente ao fetiche, já que o propósito é o de fazer com que o outro descubra sobre o sujeito – a descoberta, sempre proposta e imediatamente impedida (e não o impedimento do desejo por si só), é, ela mesma, o fim último da mascarada, ainda que sob a máscara esteja outra máscara.

Entre a noção de véu e a de mascarada, está o semblante, sustentado pela verdade, arquitetado como ficção, e cuja função é manter a ficcionalidade do agente do discurso. Dessa maneira, sustentar um semblante significa, para a Psicanálise, inscrever-se em um discurso, e isso porque “[...] só há discurso de semblante. Se isso não se confessasse por si só, eu já denunciei a coisa e relembro sua articulação. O semblante só se enuncia a partir da verdade” (Lacan, 2009, p. 136LACAN, Jacques. O Seminário, livro XVIII: de um discurso que não fosse semblante. (1971). Translated by Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.). No discurso do mestre, por exemplo, o sujeito ocupa o lugar da verdade; pode-se dizer a partir daí que a verdade de um sujeito é o semblante que o discurso criou. Uma aproximação possível com esse funcionamento é, notadamente, a ideia de posição-sujeito, que não existe a priori, mas que é fabricada pelo discurso e sustentada pelo sujeito, de maneira que o sujeito aparece como instância material superidentificada com determinada posição – existe uma cara, um semblante específico, que caracteriza um homem, por exemplo.

Assumir o semblante de uma dada posição no discurso significa identificar-se com a rede de sentidos que sustenta essa posição, reproduzindo uma série específica de condutas, dizeres e práticas. Manter a ficcionalidade desse sujeito equivale à reprodução: “portar-se como”, agir conforme, falar de acordo, enfim, entender e replicar isso que se “[...] constitui sóciohistoricamente sob a forma de pontos de estabilização que produzem o sujeito, com, simultaneamente, aquilo que lhe é dado a ver, compreender, fazer, temer, esperar etc.” (Pêcheux, 2014, p. 148PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (1975). Translated by Eni Orlandi. 5th ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2014., os grifos são do autor). O semblante diz respeito, assim, a um conjunto de práticas, imagens e enunciados postos em circulação pela ação de um discurso e sustentados pelo sujeito que se inscreve no discurso (se identifica com uma posição-sujeito). Nesses termos, entre o véu que esconde a castração e estrutura um fetiche, e a mascarada, que aceita a castração mas que deseja a descoberta de uma verdade escondida por uma máscara, está o assentamento de sentidos que sustenta a possibilidade de um agente de discurso, isto é, o semblante que permite que haja reconhecimento da posição ocupada pelo sujeito; a máscara que ele utiliza para significar. O ponto crucial aqui é compreender que esse jogo de ilusão e desejo desvela para nós o funcionamento de um mecanismo essencial ao sujeito drag queen – a montação cria um semblante para o sujeito a partir de uma máscara feita de linguagem e maquiagem. Isto é, a posição-sujeito que a montação autoriza existir ocorre por intermédio da apresentação de um semblante que sustenta a verdade de um sujeito performer, que age de modo a mobilizar um anteparo artístico que o proteja da ação violenta do olhar real – este que desvela o performer, que enxerga o ponto mais fraco que o véu procura esconder. Esconder o fato de que “não só isso olha, mas que isso mostra [...], ainda aí, alguma forma de deslizamento do sujeito se demonstra” (Lacan, 1985b, p. 76LACAN, Jacques. O Inconsciente Freudiano e o nosso. In: LACAN, Jacques. O Seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985b. p. 23-32., os grifos são do autor).

Daí a possibilidade de Amazone fazer outro de si. A ambivalência que essa posição enceta assume a contradição inscrita no corpo de um sujeito dividido entre estar superposto a uma posição enviada e, ao mesmo tempo, de não apresentar um semblante possível para ela senão por intermédio da montação. E isso porque o semblante a ser sustentado pelo sujeito desmontado diz sobre a posição masculinista, esta que precisa se manter alinhada à formação imaginária cujo fundo de sentido prediz uma imagem cultural e ideologicamente determinada do que é ser e parecer um homem. Impedido de significar e de dar ao corpo à imagem que lhe corresponderia, o sujeito opera, via performance, o desarranjo necessário para identificar-se com a posiçãodiscursiva a que se filia. É na arte que o semblante da drag surge, e é pelo discurso que os dizeres contra o binarismo e o masculinismo se coadunam à face resistente criada, materializada no novo corpo fabricado pelo performer.

Para compreender esse processo de produção corpórea, devemos lembrar que o corpo, apesar de dado por meio da linguagem, não é “nunca completamente dado dessa forma, e dizer que ele é parcialmente dado só pode ser entendido se também admitirmos que ele é dado, quando é dado, em partes”, como dirá Judith Butler (2021, p. 43)BUTLER, Judith. Os sentidos do sujeito. Translated by Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. em Os sentidos do sujeito. Reconhecemos a produção do corpo pelo discurso como precondição para a existência do sujeito, mas deixamos de examinar que a linguagem que habilita essa operação é a mesma que a restringe. O corpo não se dá de maneira homogênea ou por completo, pois o sujeito que está na sua gênese é heteróclito e cindido. Nesse sentido, o corpo excede o esforço linguístico de sua captura, de imposição de um semblante determinado a uma posição constituída no discurso e sedimentada pela cultura. Trata-se, como resume Mariele Bressan (2017, p. 251)BRESSAN, Mariele Zawierucka. O Corpo que fal(h)a, nas tramas do discurso: A Anoréxica e o(s) outro(s) no espetáculo da rede. 2017. 296 f. Thesis (PhD in Textual, Discursive and Enunciative Analyses) – Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017., em O Corpo que fal(h)a, nas tramas do discurso, de um corpo atravessado de discursividade, um corpo “[...] no qual se inscreve a interpelação ideológica, inconsciente e cultural. Pelo paradoxo, podemos ler a contradição, a partir da qual irrompe o equívoco que, por sua vez, materializa uma forma de resistência”.

A afirmação de que o corpo se dá em partes é consequência da percepção de que ele escapa à compreensão linguística lógico-normativa da totalidade e da unidade. O corpo do sujeito drag põe em questão a contradição ao operacionalizar o paradoxo de ser e não ser ao mesmo tempo eu e ela. A máscara fornecida pela maquiagem contorna o rosto dela, o corpo do eu é alterado pelo processo discursivo da montação que mescla duas imagens numa mesma figura; esse corpo que é dado pela linguagem “não é, por essa razão, redutível à linguagem” (Butler, 2021, p. 43BUTLER, Judith. Os sentidos do sujeito. Translated by Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.). Da maneira como o colocou Amazone, “tem etapas da maquiagem que dão saltos de que Amazone tá chegando [...] saltos para a personificação”. Essa figura que aparece personificada aos poucos, em pedaços e saltos que deixam indícios de seu surgimento, é o índice que desponta a forma material do equívoco a que Bressan se refere; o centro de um nó numa corda trançada pela cultura, pela ideologia, pelo inconsciente e pelo discurso, que ata os pedaços do corpo de um sujeito ambíguo. Ela e ele, dele e dela, de um ao outro noutra volta.

O corpo conferido ao sujeito drag pelo discurso que o sustenta comparece como um tropo, uma figura formada por associações, ligada a vários pontos de uma só vez, alongada por partes que lhe parecem alheias, apesar de indelevelmente suas. Esse ímpeto de alargamento, que resulta no corpo em pedaços, delineia uma forma para logo em seguida romper com ela; trata-se de um tipo de distribuição geográfica, espacial, cartográfica do corpo. Assume-se uma conexão que não é orientada linearmente pelos órgãos, mas por afecções que se incorporam à textura do corpo, como afirma Suely Rolnik (2010)ROLNIK, Suely. Entrevista com Suely Rolnik concecida a Pedro Dultra Britto. Revista Redobra, Salvador, n. 8, Dec. 2010. Available at: https://bit.ly/40LIi74. Accessed on: Feb. 02, 2023.
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, em entrevista concedida à Revista Redobra. Para Rolnik, essa é uma capacidade vibrátil do corpo, na qual o contato consigo e com o outro, humano e não-humano, expande os limites corpóreos e, nesse processo, orienta afetos. Compreende-se o funcionamento de uma série de constantes movimentos paradoxais do corpo, de admitir que ele necessita de um contorno e que é irredutível ao contorno atual. Sobretudo o corpo do sujeito drag é, antes de ser objeto, uma questão lançada em direção ao outro, uma interrogação que leva à recriação do corpo e do espaço ao seu redor. Esses movimentos, “[...] dependendo do limiar desse paradoxo geram sensações, a sensação desse paradoxo tem que ser enfrentado, ela gera um vazio de sentidos, nos torna frágeis; e é a experiência dessa sensação que nos empurra e nos obriga a criar” (Rolnik, 2010, s. p.ROLNIK, Suely. Entrevista com Suely Rolnik concecida a Pedro Dultra Britto. Revista Redobra, Salvador, n. 8, Dec. 2010. Available at: https://bit.ly/40LIi74. Accessed on: Feb. 02, 2023.
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).

Conclusão

A principal contribuição deste trabalho para a discussão sobre o sujeito drag queen em AD se dá a partir da constatação de que a montação funciona como mecanismo de reconhecimento de si em um corpo-outro, processo que passa pela transformação gradual da imagem de si mesmo, e, concomitantemente, pela filiação do sujeito a uma posição discursiva dissidente, sustentada, no caso da drag, por um semblante. Desse arranjo participa, ainda, um anteparo material, um espelho, reflexo que torna tangível a imagem do novo corpo em vista. Utilizo o termo anteparo por considerar que o olhar é do campo do real, e que o artista precisa, por conta da ação violenta desse olhar, criar anteparos que o guardem e protejam do traumático; nesse sentido, a arte atua na domesticação do olhar e o espelho confere forma à figura que atuará como escudo diante daquele que vê. É em direção ao espelho que o sujeito lança um olhar e, de volta, é olhado por esse outro corpo em produção, materialização de uma posição que diz de um exercício artístico, mas também, e sobretudo, de um desejo, de uma filiação a uma rede de sentidos. Deparado com esse outro contorno, o performer passa, então, a significar no interior de outra posição de sujeito consubstanciada ao corpo modificado, montado. A maquiagem contorna o semblante da posição enviada, imagem montada por um sujeito filiado a uma posição dissidente. Esse sujeito performer não consegue acessar sem resistência os sentidos advindos da formação discursiva via posição enviada, e isso pela restrição cultural e ideológica que incide sobre a corporificação de determinados signos femininos, que representam direção diversa da masculinista.

É por intermédio da drag que o sujeito consegue resistir à coerção da norma imposta pela formação ideológica e disseminada pela formação cultural, rompendo com a imagem masculina sustentada por uma formação imaginária específica. O sujeito cria um semblante para a posição enviada, contraidentificada com a posição masculinista. Essa posição enviada é autorizada a dizer e a representar signos ligados à formação imaginária que veicula o protótipo imagético do feminino, sem, no entanto, filiar-se à FD feminista. Trata-se de uma posição de tensão, entremeio, inscrita por entre os vãos das FD masculinista e feminista. Montar-se significa resistir, desobedecer à determinação de um padrão imposto culturalmente e, assim, agir conforme os princípios de uma posição que não concorda com a reprodução de sentidos masculinistas, que veiculam a ideia da violência e do desrespeito contra a mulher e qualquer outro ser que a ela seja empático. A drag provoca, critica e propõe reflexões sobre a reprodução desses padrões, é um ato de colocar-se num lugar outro, como posição estratégica na defesa da luta pela própria subjetivação e existência.

Notas

  • 1
    O vídeo reúne, ainda, trechos de performances conduzidas por Amazone, e está disponível em: https://youtu.be/d24dfwkaM9o.
  • 2
    Salvo os casos em que por meio da arte drag os sujeitos se entendem como pessoas transsexuais.
  • 3
    A referência é à canção Enviadescer de Linn da Quebrada, faixa do álbum Pajubá, de 2017.
  • 4
    O termo punctum foi mobilizado por Barthes (1984)BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Translated by Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. em A câmara clara, de 1980, e pode ser entendido, grosso modo, como o ponto (no caso de Barthes, na fotografia) que se impõe ao espectador, que demanda seu interesse.
  • 5
    Trata-se da forma de arte que centraliza formas de representação da figura masculina. Geralmente é realizado por pessoas que se identificam como do gênero feminino.
  • 6
    O termo me foi oferecido por Evandra Grigoletto e se ata perfeitamente à definição intervalar que procuro adjetivar, a começar pela sua definição formal: trata-se de um substantivo masculino, este que designa o exterior de algo; uma margem, borda, rebordo. Margem que se desenha em torno de si para poder significar de outro lugar, e, além disso, borda que traceja os limites da FD masculinista e da FD feminista. Em sentido possível, o limbo é o estado do que se encontra esquecido, negligenciado, indefinido, negligenciado – remissão ao que de feminino foi cultural e ideologicamente reprimido no desenvolvimento da posição masculinista. Ainda sobre a definição desse substantivo, deparamo-nos com uma condição de dúvida, de indecisão e incerteza – de não-formatação, de filiação operacionalizada por uma não-filiação, rebeldia, negação.

Disponiblidade de dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Referências

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Editor responsável: Marcelo de Andrade Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2023
  • Aceito
    16 Jan 2024
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