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Scripts de Gênero e as Performances das Crianças que Reverberam no Contexto da Educação Infantil

Scripts de Genre et Performances d’Enfants qui se Répercutent dans le Contexte de l’Éducation de la Petite Enfance

RESUMO

Scripts de Gênero e as Performances das Crianças que Reverberam no Contexto da Educação Infantil – A partir dos Estudos de Gênero e da Sociologia da Infância, o artigo busca compreender e analisar as estratégias que as crianças estabelecem para lidar com os scripts de gênero que lhes são endereçados no cotidiano da educação infantil. Os resultados da análise mostram que elas buscam modos mais plurais de vivenciar suas experiências como meninas e meninos, ainda que sejam educadas a partir de concepções binárias que tentam impor um reiterado governo dos corpos infantis. A pesquisa, de inspiração etnográfica, foi desenvolvida a partir da observação participante com crianças de quatro anos de idade em uma escola pública de educação infantil na Região Metropolitana de Porto Alegre/RS/Brasil.

Palavras-chave:
Scripts de Gênero; Performance; Pesquisa com Crianças; Infâncias; Educação Infantil

RÉSUMÉ

Scripts de Genre et Performances d’Enfants qui se Répercutent dans le Contexte de l’Éducation de la Petite Enfance – Basé sur les études de genre et la sociologie de l’enfance, l’article cherche à comprendre et à analyser les stratégies que les enfants établissent pour faire face aux scénarios de genre qui leur sont adressés dans l’éducation quotidienne de la petite enfance. Les résultats de l’analyse montrent qu’ils recherchent des manières plus plurielles de vivre leurs expériences de filles et de garçons, même s’ ils sont éduqués sur la base de concepts binaires qui tentent d’imposer un gouvernement répété du corps des enfants. La recherche, d’inspiration ethnographique, a été développée à partir de l’observation participante auprès d’enfants de quatre ans, dans une école publique d’éducation préscolaire, dans la région métropolitaine de Porto Alegre/RS/Brésil.

Mots-clés:
Scripts de Genre; Performance; Recherche avec des Enfants; Enfances; L’Éducation des Enfants

ABSTRACT

Gender Scripts and Children’s Performances that Reverberate in the Context of Early Childhood Education – Based on Gender Studies and the Sociology of Childhood, this article seeks to understand and analyze the strategies that children establish to deal with the gender scripts addressed to them in everyday Early Childhood Education. The results of the analysis show that they seek more plural ways of living their experiences as girls and boys, even though they are educated based on binary concepts that try to impose a repeated control of children’s bodies. The research, of ethnographic inspiration, was developed based on participant observation with four-year-old children, in a public early childhood education school, in the Metropolitan Area of Porto Alegre/RS/Brazil.

Keywords:
Gender Scripts; Performance; Research with Children; Childhoods; Child Education

Para início de conversa: cenas que nos convocam

Em Flor de Açafrão (2017), Guacira Lopes Louro, referência nos Estudos de Gênero, recorre à arte, em especial ao cinema, a partir de takes, cuts e close-ups para analisar algumas temáticas de gênero e sexualidade. Acreditamos que esses exercícios nos suscitam a enxergar e a escrever de outros modos, refinando nossa capacidade de observar, de sentir, de ver além do que parece óbvio e de questionar. Inspiradas nesse movimento proposto pela referida autora, destacamos a seguir algumas cenas que apresentam situações e vivências que nos motivam a pesquisar com as crianças.

Cena um

Uma turma de 20 crianças da faixa etária de quatro anos em uma escola pública de educação infantil da Região Metropolitana de Porto Alegre. A professora, sentada em roda com a turma, coloca algumas imagens de brinquedos no centro, como Barbies, super-heróis, carrinhos, bonecas, entre outros. Pede que as crianças, uma a uma, escolham uma imagem que representa o seu tipo de brinquedo preferido e justifiquem o porquê da escolha. Todos os meninos escolhem carrinhos ou super-heróis. E todas as meninas selecionam imagens de Barbies ou de outras bonecas, além de utensílios de cozinha. As crianças justificam, basicamente, dizendo que é porque o brinquedo é para menino ou para menina.

Ao final da discussão, a professora questiona o motivo pelo qual nenhum menino havia escolhido uma boneca, ou uma menina, um superherói ou um carrinho. Mais que depressa, um menino responde: “Eu queria escolher uma Barbie, aquela que é sereia, mas acontece que os meninos têm vergonha de brincar com as bonecas”.

Cena dois

Uma professora da educação infantil pública de uma cidade da região Sudeste do país envia por WhatsApp um áudio para sua colega, também professora, de um pai de aluno xingando-a, porque o seu filho havia brincado com bonecas na escola. No áudio, o pai diz à docente: “Meu filho hoje ele não queria falar, mas acabou falando que brincou de boneca de novo. Eu não acho correto, eu não quero que meu filho fique brincando de boneca. Ele brinca com outras coisas, com carrinho. [...] Eu não aceito de forma alguma!”.

Cena três

Em uma escola pública de Educação Infantil da Região Metropolitana de Porto Alegre, a professora de uma turma de 15 crianças da faixa etária de três anos se insere em uma brincadeira de jogo simbólico com as crianças, assumindo o papel de bruxa, com o poder de transformá-las em outros seres. Em determinado momento, ela diz para um dos meninos que vai transformá-lo em um rato, e ele prontamente contesta, argumentando:

  • – “Ah! Não, profe, eu não quero ser transformado num rato!”

  • – “Então no que você quer se transformar?” – a professora questiona.

  • – “Eu quero ser uma rata!” – diz o menino, girando com as mãos para cima e esboçando um sorriso.

As três situações aqui descritas podem ser analisadas a partir do conceito de scripts de gênero (Felipe, 2019FELIPE, Jane. Scripts de Gênero, Sexualidade e Infâncias: temas para a formação docente. In: ALBUQUERQUE, Simone Santos; FELIPE, Jane; CORSO, Luciana Vellinho (Org.). Para Pensar a Docência na Educação Infantil. Porto Alegre: Evanfrag, 2019. P. 238-250.; Rosa; Felipe, 2023ROSA, Cristiano; FELIPE, Jane. Uma Família que Não Educa e Nem Protege?: scripts de gênero e violência/abuso sexual contra meninos. Debates Insubmissos, Caruaru, ano 6, v. 6, n. 20, p. 10-37, jan./maio 2023.), que se refere aos roteiros prescritos a meninos e meninas, homens e mulheres, a partir das expectativas históricas, sociais e culturais em torno de corpos masculinos e femininos. Tais prescrições trazem consigo inúmeras regulações que incidem sobre as ações, escolhas e brincadeiras das crianças, uma vez que determinados scripts são acionados desde a mais tenra idade, na tentativa de formatar os corpos de acordo com ideais cis-heteronormativos que se pretendem hegemônicos. Fazendo uma analogia com a arte, em especial no cinema, no teatro ou mesmo na TV, conforme é apontado por Jane Felipe (2019, p. 241)FELIPE, Jane. Scripts de Gênero, Sexualidade e Infâncias: temas para a formação docente. In: ALBUQUERQUE, Simone Santos; FELIPE, Jane; CORSO, Luciana Vellinho (Org.). Para Pensar a Docência na Educação Infantil. Porto Alegre: Evanfrag, 2019. P. 238-250., “[...] os scripts (ou roteiros) são elaborados pelo autor ou diretor “com uma série de instruções escritas que tem por objetivo nortear a atuação de atores/atrizes/apresentadores/as na construção e no bom andamento da interpretação de seus personagens”. No entanto, apesar das prescrições, sempre é possível reescrever, alterar e ressignificar os scripts a partir da movimentação e interpretação dos/as atores/atrizes em um constante movimento de força e jogos de poder que vão se estabelecendo nessa relação, pois, como observa Foucault (2009, p. 105)FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009., “onde há poder há resistência”.

Richard Schechner (1985)SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985., ao desenvolver sua teoria de script no campo da arte1 1 Para um maior aprofundamento do movimento Performance Studies no campo da arte, veja Veloso (2014). Neste artigo, utilizaremos o conceito de performance a partir de Judith Butler (2018). , argumenta que os/as atores/atrizes ou quaisquer outras pessoas que vão desempenhar algum tipo de performance têm sempre a possibilidade de interpretar ou mesmo inserir elementos de improvisação nesse roteiro, sendo, portanto, coautores/as na estrutura que lhes é fornecida para ser seguida.

A partir dessas considerações, lançamo-nos à seguinte pergunta: de que modo as crianças, no cotidiano da educação infantil, estabelecem estratégias para lidar com os scripts de gênero socialmente impostos? De que forma elas se mobilizam para estabelecer estratégias mais plurais a fim de viverem a infância? A partir desses eixos norteadores da pesquisa, procuramos ouvir um grupo de 17 crianças de quatro anos de idade de uma escola pública da Rede Metropolitana de Porto Alegre/RS. Observamos como participantes e utilizamos ainda diferentes estratégias para escutar as crianças a partir de distintas linguagens com as quais se expressam e para garantir os pressupostos éticos na pesquisa com crianças, que discutiremos mais adiante.

As análises aqui apresentadas apoiam-se nas concepções teóricas oriundas dos Estudos de Gênero e da Sociologia da Infância, demarcando a importância de contemplarmos as temáticas de gênero na escola acolhendo as mobilizações das crianças diante dos scripts de gênero que lhes são impostos. Muitas vezes, tais imposições que prescrevem os comportamentos infantis se dão a partir das expectativas sobre os seus corpos, podendo ser colocadas de modo sutil ou mesmo de forma mais explícita. No entanto, é preciso lembrar que cabe às instituições educativas trabalhar no sentido de garantir os direitos das crianças, zelando pelo bem-estar físico e psicológico delas.

Qual é a escuta que a escola infantil tem proporcionado às crianças, como as descritas nas cenas 2 e 3? Que tipo de contraponto o corpo docente das instituições de educação infantil consegue oferecer ao menino, cujo pai tem uma concepção tão binária e misógina que o proíbe de brincar de boneca? Em que outros espaços as crianças encontrariam possibilidades de falarem sobre suas vergonhas ou de se transformarem em algo que foge do script esperado senão na escola, como no caso dos meninos descritos nas cenas um e três?

Em uma perspectiva de escuta da infância, consideramos relevante desenvolver pesquisas que coloquem em cena essas reivindicações simbólicas, as diferentes estratégias e linguagens que as crianças utilizam para sinalizar que existem modos mais plurais e diversos de meninos e meninas viverem a infância. Nessa direção, o olhar foi lançado para as possibilidades que o ambiente escolar tem para além da regulação das condutas: pode ser um espaço de rupturas, de divergências e, sobretudo, de acolhimento aos diferentes modos de viver a infância e de ser criança na contemporaneidade. Ao trazer essas situações, pretendemos dar visibilidade aos modos como as crianças pensam, interagem e se expressam, desacomodando assim as nossas certezas e abrindo a possibilidade de pensarmos as questões de gênero na escola a partir dessas rupturas que são propostas por meninos e meninas2 2 Destacamos ainda que consideramos o uso de crianças de modo generalizado em certas análises dos estudos de gênero, talvez como mais uma forma de tratar a infância a partir de uma visão hegemônica, uma vez que as estatísticas e situações de vida das crianças no Brasil são diferentes se forem meninos ou meninas. Portanto, quando utilizamos, ao longo do texto, meninos e meninas para nos referirmos às crianças em certos momentos, não o fazemos numa tentativa de encaixá-las em um padrão generificado, mas sim para sublinhar o reconhecimento das particularidades e desigualdades que são preconizadas de acordo com o gênero das crianças – o que não anula a possibilidade de outras inúmeras formas de vivenciar o gênero. , mas ainda pouco exploradas.

Destacamos ainda que o artigo está estruturado em mais quatro seções que se dividem do seguinte modo: a) uma breve discussão sobre os direitos das crianças em uma perspectiva de interseccionalidade com as questões de gênero; b) os principais percursos éticos e metodológicos que utilizamos para realizar esta pesquisa com as crianças da educação infantil e quem são os sujeitos; c) análises acerca dos takes, cuts e close-ups com vistas à ampliação do conceito de scripts de gênero a partir da perspectiva da infância; d) e, por fim, as considerações finais que apontam para possibilidades e modos mais plurais de meninas e meninos viverem suas infâncias.

Pela defesa dos direitos (de atuar e performar) das crianças

As crianças realmente têm a capacidade de exercer seus novos direitos? O que faz o reconhecimento como sujeitos de ‘direitos’ que a Convenção lhes atribui, desde que não saiam da situação social de marginalidade e falta de poder que a sociedade burguesa e capitalista lhes exige? Se fossem levados a sério os direitos das crianças, haveria outra infância diferente [...]? (Liebel, 2007, p. 113LIEBEL, Mandred. Paternalismo, Participación y Protagonismo Infantil. In: CORONA, Yolanda; LINARES, María Eugenia. Participación Infantil y Juvenil en América Latina. México: Universidad Autónoma Metropolitana, 2007. P. 113-146., tradução nossa).

A Declaração dos Direitos da Criança de 1959 evidencia em seu texto uma concepção de fragilidade atribuída às crianças e, portanto, versa sobre seus direitos de proteção e provisão. No entanto, em 1989, com a Convenção dos Direitos da Criança (CDC), foi acrescentado mais um direito importante, a participação, que é um dos pontos que diferencia a infância moderna da contemporânea (Abramowicz; Moruzzi, 2016ABRAMOWICZ, Anete; MORUZZI, Andrea Braga. Infância na Contemporaneidade: questões para os estudos sociológicos da infância. Crítica Educativa, Sorocaba, v. 2, n. 2, p. 25-37, jul./dez. 2016.), uma vez que abre mão da visão de criança ingênua e dependente dos adultos e passa a reconhecê-la como sujeito potente e ator social, capaz de participar das situações e decisões a seu respeito. Cabe ainda destacar que, ao discorrer sobre a infância, nós a compreendemos como “[...] construção social, sempre negociada entre crianças e adultos, pois em cada contexto histórico, político, cultural e social as infâncias são reinventadas e modificadas conforme as gerações que a experienciam” (Martins Filho; Delgado, 2018, p. 155MARTINS FILHO, Altino José; DELGADO, Ana Cristina Coll. Da Complexidade da Infância aos Direitos das Crianças: pesquisas com crianças e a produção das culturas infantis. Humanidades e Inovação, v. 5, n. 6, 2018.).

Falar que os direitos das crianças são direitos humanos é uma questão indiscutível, mas o que merece estranhamento é o alcance e o modo como se exercem esses direitos. Por isso, cabe sublinhar que este debate não tem uma vertente apenas jurídica, mas também sociológica, pois leva em consideração a posição das crianças na sociedade. Além disso, as vertentes psicológica e pedagógica compõem esse importante arcabouço, uma vez que elas se encontram em posição de aprendizes. Por último, a vertente econômica se faz presente pelo papel que é atribuído à infância no sistema de produção (Muñoz, 2018MUÑOZ, Lourdes Gaitán. Los Derechos Humanos de los Niños: ciudadanía más allá de las “3Ps”. Sociedad e Infancias, v. 2, p. 17-37, 2018.).

Diante da realidade de dados e estatísticas alarmantes que evidenciam como as desigualdades e as violências de gênero que vão se estabelecendo desde a infância nas relações entre meninos e meninas, consideramos relevante questionar de que modo, enquanto pessoas adultas, defendemos os direitos das crianças. É importante ressaltar que elas, muitas vezes, têm alguns dos seus direitos limitados, especialmente no que se refere à sua participação na sociedade, à liberdade de ação no mundo, levando, em casos extremos, até mesmo à morte. Ademais, é necessário nos perguntarmos sobre os direitos de quais crianças estamos falando, uma vez que, mesmo que não haja dúvidas sobre a importância de uma convenção internacional sobre os direitos específicos das crianças, muitos deles foram pensados em um contexto ocidental, europeu e branco, validando um jeito adequado de viver a infância e invisibilizando ou até mesmo marginalizando outras possibilidades que existem em localidades e culturas distintas. Desse modo, “[...] as noções de criança em desenvolvimento como a de criança global – com agência, autonomia e direitos – têm sido postas em destaque como concepções que universalizam a maneira de se representar as crianças em todas as nações e culturas” (Castro, 2021, p. 42CASTRO, Lucia Rabello de. Os Universalismos no Estudo da Infância: a criança em desenvolvimento e a criança global. In: CASTRO, Lucia Rabello de (Org.). Infâncias do Sul Global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021. P. 41-60.).

Nessa direção, um primeiro ponto a considerar é que os movimentos políticos voltados à infância envolvem práticas de disputas em que as pessoas que estão em condições de se posicionar e ocupar espaços de poder falam em nome de quem não ocupa de fato esses lugares – nesse caso, as crianças. No delineamento dessa discussão, Liebel (2019)LIEBEL, Manfred. Infancias Dignas o Cómo Descolonizarse. Buenos Aires: Editorial El Colectivo, 2019. considera que há um processo de institucionalização da infância, pois as crianças ocupam apenas lugares que são destinados a elas. Ou seja, as políticas de garantia dos direitos humanos das crianças não são pensadas com a participação delas, tampouco se questiona o quanto esses direitos são subjetivos e devem envolver todas as pessoas, independentemente da idade que tenham.

Lourdes Muñoz (2018)MUÑOZ, Lourdes Gaitán. Los Derechos Humanos de los Niños: ciudadanía más allá de las “3Ps”. Sociedad e Infancias, v. 2, p. 17-37, 2018. enfatiza que os principais documentos jurídicos que discorrem sobre os direitos das crianças, como no caso da CDC, foram construídos a saltos, intermediados por discussões sobre a aplicabilidade dos direitos humanos às pessoas que se encontravam nos primeiros anos de vida. No referido documento, é possível observar tensões entre os objetivos de avanço da autonomia das crianças e os de controle e contenção de suas ações. Muñoz (2018, p. 19MUÑOZ, Lourdes Gaitán. Los Derechos Humanos de los Niños: ciudadanía más allá de las “3Ps”. Sociedad e Infancias, v. 2, p. 17-37, 2018., tradução nossa) ainda pondera que, se realmente se deseja “[...] avançar na prática dos direitos humanos universais, é preciso ‘desconstruir’ o relato criado para explicar os direitos das crianças para ‘reconstruí-lo’ [...] e ‘recriá-lo’ através das políticas e das práticas sociais”3 3 No original em espanhol: “[...] avanzar en la práctica de los derechos humanos universales, es preciso ‘deconstruir’ el relato creado para explicar los derechos de los niños, para ‘reconstruirlo’ en su esencia original y ‘recrearlo’ a través de las políticas y de las prácticas sociales” (Muñoz, 2018, p. 19). .

Do mesmo modo, Jeans Qvortrup inquieta nossos entendimentos sobre os direitos das crianças quando aponta que:

A forma pela qual se fala sobre crianças [...] é extremamente confusa. Se alguém disser que as crianças são seres humanos, ninguém discordará, embora esse status seja constantemente colocado em dúvida, visto que as capacidades e competências infantis são supostamente incompletas se comparadas às de uma pessoa completamente crescida; as crianças também não são cidadãs, no sentido mais abrangente do termo, pois não têm, por exemplo, a oportunidade de atuar como membros de uma sociedade democrática; elas têm direitos, mas estão longe de ter todos os direitos dos quais os adultos dispõem (Qvortrup, 2014, p. 25QVORTRUP, Jeans. Visibilidades das Crianças e da Infância. Linhas Críticas, Brasília, v. 20, n. 41, p. 23-42, jan./abr. 2014.).

Obviamente a existência de documentos legais que protejam as crianças e seus direitos é uma conquista importante e necessária se analisarmos a história da infância (Ariès, 1978ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução: Dora Flaksman. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.; Corazza, 2004CORAZZA, Sandra Mara. História da Infância sem Fim. 2. ed. Ijuí: UNIJUÍ, 2004.). No entanto, para que esses direitos sejam garantidos, torna-se fundamental considerar que não se limitam apenas a uma questão legal, mas sobretudo a estruturas sociais, relações e processos (Liebel, 2019LIEBEL, Manfred. Infancias Dignas o Cómo Descolonizarse. Buenos Aires: Editorial El Colectivo, 2019.), e o fato de ter direitos não significa, necessariamente, que eles sejam praticados ou garantidos. Assim, autores como Immanuel Wallerstein (2006)WALLERSTEIN, Immanuel. European Universalism: the rhetoric of power. Nova York/ Londres: The New Press, 2006. falam sobre a necessidade de haver uma estrutura mundial mais equitativa na construção dos direitos humanos, uma vez que não podemos continuar considerando a infância como “[...] um item de um projeto civilizatório universal articulado a visões de futuro e de sociedade no qual se estabelece o tipo de subjetividade humana a ser cultivada desde a mais tenra idade” (Castro, 2021, p. 42CASTRO, Lucia Rabello de. Os Universalismos no Estudo da Infância: a criança em desenvolvimento e a criança global. In: CASTRO, Lucia Rabello de (Org.). Infâncias do Sul Global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021. P. 41-60.).

Com isso, não queremos dizer que não deve haver políticas para a infância nem que não devemos pensar sobre elas, mas talvez seja importante questionar até que ponto o caráter protetivo dessas ações pode limitar a participação de meninos e meninas nos movimentos e decisões da sociedade. Isso é relevante porque, em certa medida, a sociedade os considera como produtores de cultura e atores sociais, mas, em contrapartida, delimita o nível dessa participação.

Levando essa discussão para o campo dos Estudos de Gênero, ainda seria possível perguntar: até que ponto a vigilância que há em torno da cisheteronormatividade, em especial em relação aos meninos, com o objetivo de protegê-los limita suas possibilidades de expressão e ação nos contextos em que estão inseridos? Até que ponto a intolerância, disfarçada de proteção, para que meninos não rompam com os scripts de gênero socialmente impostos, agride-os? Ou ainda, em que medida uma proteção mais acentuada em torno das meninas, vistas como frágeis e indefesas, limita a capacidade delas de se posicionarem e agirem de forma autônoma, enfrentando certos desafios? Ou ainda, o fato de restringir as meninas ao ambiente doméstico, com o suposto argumento de que ali estarão mais protegidas, não as colocaria numa posição de desigualdade de oportunidades? Todas essas questões aqui levantadas a partir das cenas que apresentamos no início podem contribuir, em alguma medida, para refletirmos o quanto, em diferentes contextos, as necessidades e formas de expressão de meninos e meninas estão sendo ignoradas, incompreendidas e desrespeitadas.

Os questionamentos aqui elencados serviram de base para uma proposta de pesquisa voltada para ouvir as crianças. Buscamos compreender as estratégias que elas utilizavam no cotidiano de uma escola de educação infantil localizada no sul do Brasil para lidar com os scripts de gênero veiculados pelos adultos e pelos seus próprios pares, uma vez que as vozes das crianças são polifônicas, isto é, muitas vezes reproduzem as falas dos adultos e suas expectativas sobre elas (Silveira, 2002SILVEIRA, Rosa Hessel. Olha Quem Está Falando Agora!: a escuta das vozes em educação. In: COSTA, Marisa (Org.). Caminhos Investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. P. 61-83.). Sobretudo, como podemos apoiá-las acolhendo a sua multiplicidade de jeitos de ser e de viver a infância e enfrentando o desafio de olhar para elas para além daquilo que as regula, que lhes coloca numa posição subalterna ou daquilo que lhes falta? Como argumenta Luciana Rabello de Castro (2021)CASTRO, Lucia Rabello de. Os Universalismos no Estudo da Infância: a criança em desenvolvimento e a criança global. In: CASTRO, Lucia Rabello de (Org.). Infâncias do Sul Global: experiências, pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021. P. 41-60., a diferença das crianças em relação aos adultos as hierarquiza, colocando-as no campo do primitivo, que deve ser substituído e elevado a outro patamar. Por conta dessa visão da infância, não raras vezes as crianças são pensadas em relação àquilo que lhes falta.

Para a referida autora, muitos dos entendimentos e até mesmo as defesas que fazemos acerca da infância são resultado das teorias do desenvolvimento que oferecem de maneira universal o mesmo destino a todas as crianças, que é a superação da imaturidade e da racionalidade, atingindo a sua plenitude na fase adulta. Só então esse sujeito é considerado apto a participar ativamente das questões sociais e políticas.

Além disso, quando essas discussões que nos convocam a olhar para outros modos de meninos e meninas viverem a infância são atravessadas pelas questões de gênero, também é possível fazer a crítica a partir do próprio conceito de gênero, originalmente proveniente do inglês, gender, que apresenta algumas fissuras que não são debatidas justamente por ter sido traduzido para muitas línguas diferentes do inglês, conforme é analisado por Judith Butler (2021)BUTLER, Judith. Gênero em Tradução: além do monolinguismo. Cadernos de Ética e Filosofia Política, v. 39, n. 2, p. 364-387, 2021.. Nessa direção, a autora destaca que o referido conceito deve ser passível de crítica, considerando que não se trata de um dogma. Nesse espectro, umas das críticas se refere às generalizações feitas e às não equivalências conceituais no momento em que gender é traduzido para outras línguas, ou seja, muitas vezes “[...] o que acontece em uma língua não pode ser completa ou adequadamente traduzido para a língua do outro” (Butler, 2021, p. 372BUTLER, Judith. Gênero em Tradução: além do monolinguismo. Cadernos de Ética e Filosofia Política, v. 39, n. 2, p. 364-387, 2021.).

Na mesma direção, Berenice Bento (2022, p. 16)BENTO, Berenice. Gênero: uma categoria útil de análise? Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 15-50, 2022. discorre sobre os limites da categoria gênero, ressaltando que “[...] o debate sobre produção do sujeito está assentado em uma concepção binária racializada do masculino e do feminino, que se efetiva nos marcos da família”. A autora faz a crítica no sentido de dar destaque à necessidade de produzir outras possibilidades de operação linguística que possam contemplar outros corpos que não cabem no binarismo homem/mulher. Nessa direção, de acordo com os entendimentos da autora, é possível compreender que “[...] para entender as relações de poder, talvez seja necessário se pensar que há um momento analítico anterior que se refere às corporalidades que não podem ser reconhecidas como homem e mulher” (Bento, 2022, p. 17BENTO, Berenice. Gênero: uma categoria útil de análise? Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 15-50, 2022.).

Nesse sentido, pensamos que estudos e debates do campo dos Estudos de Gênero e da Sociologia da infância, operados de modo interseccional, podem contribuir para imaginar infâncias mais plurais, de modo que outras formas de ser criança possam emergir das margens para o centro. Para nós, a interseccionalidade pode permitir novas formas de atuar diante das hierarquias e dos modos engessados, universais e binários das crianças viverem a infância. Ainda consideramos que a interseccionalidade, enquanto conceito, pode contribuir para compreendermos as formas de regulação sociocultural das subjetividades (Pocahy, 2011POCAHY, Fernando Altair. Interseccionalidade e Educação: cartografias de uma prática-conceito feminista. Textura, n. 23, p. 18- 30, jan./jun. 2011.). Assim, com inspiração nesses estudos, críticas e tensionamentos, nós nos perguntamos como podemos ampliar o debate acerca das questões de gênero e de infância interseccionalmente, de modo que possamos pensar em novas formas de ser criança que não cabem em um padrão global, binário e idealizado.

Mudando o figurino: pesquisar com crianças exige novas roupagens

Ao pesquisarmos com crianças, principalmente sobre temáticas consideradas sensíveis, como as questões de gênero, torna-se necessário nos despirmos de alguns de nossos próprios saberes e entendimentos para nos vestirmos de criatividade, pensando em estratégias que possam captar as vozes das crianças, que nem sempre se expressam através da fala. Para tanto, consideramos que as pesquisas com seres humanos, principalmente com os de pouca idade, exigem um rigor ético para pensar em metodologias e estratégias adequadas às idades dos sujeitos. Conforme já mencionado anteriormente, esta pesquisa foi realizada com 17 crianças de quatro anos de idade, pertencentes a uma turma de educação infantil de uma escola pública localizada na periferia de uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS, no segundo semestre do ano de 2022.

Para pensarmos a ética no contexto desta pesquisa, referenciamos Pereira et al. (2018, p. 763)PEREIRA, Rita Ribes et al. A Infância no Fio da Navalha. Educação Temática Digital, Campinas, v. 20, n. 3, p. 761-780, jul./set. 2018. para apresentar alguns questionamentos: “Como equilibrar as noções de proteção e participação que, por vezes, se contrapõem e se atravessam? [...] como a dimensão ética é capaz de abarcar a diversidade, complexidade e alteridade da infância?”. Desse modo, as autoras consideram que é necessário considerar a desigualdade estrutural que há nas relações entre crianças e adultos, uma vez que estes são os que produzem e referendam o conhecimento científico. Desse modo, entendemos que uma teoria sobre a infância está fortemente ligada a uma dimensão ética. Assim, é possível dizer que a ética na pesquisa com crianças não se dá apenas por meio de contratos que validam e normatizam o contato do/a pesquisador com ela, mas perpassam o antes, o durante e o depois4 4 Pensar o antes, o durante e o depois na pesquisa com crianças é uma consideração já debatida por estudiosos/as da infância referenciados/as ao longo do texto. Utilizamos esses entendimentos de empréstimo para dar destaque especificamente à dimensão ética de uma pesquisa com crianças da educação infantil que trata das questões de gênero. Cabe ainda registrar que a pesquisa em tela faz parte de um projeto maior intitulado Ignorar para Acobertar ou Informar para Proteger?: scripts de gênero e sexualidade na prevenção das violências contra crianças, coordenado pela pesquisadora Jane Felipe (projeto nº 38749, aprovado em 9/3/20 em consonância com o Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da UFRGS). do processo de investigação.

Quando falamos no antes, nós nos referimos principalmente às concepções e teorizações do/a pesquisador/a acerca da infância e aos objetivos que tem com sua pesquisa. Ademais, destacamos que o empenho em considerar a ética na pesquisa com crianças antes mesmo de ela acontecer faz parte de um posicionamento que é atravessado pelas questões de gênero, uma vez que apostar e acreditar na escuta da infância também é acreditar no potencial de meninos e meninas para a contribuição no debate acerca dos preconceitos e das desigualdades.

No que se refere ao durante, além da pesquisa de campo – muitas vezes, é nessa esfera que a ética é mais mencionada –, pensamos que também diz respeito aos próprios/as pesquisadores/as teorizarem sobre a infância, dialogando o que já foi produzido, dito e analisado, contribuindo, assim, para a produção de novas narrativas acerca da infância.

No que diz respeito ao depois, levamos em conta que é necessário considerar o direito dos/as participantes de acesso à informação e aqui destacamos o retorno dos resultados da pesquisa às crianças. Além disso, outra questão que envolve a dimensão ética do depois é considerar como os possíveis achados da pesquisa podem ser socialmente relevantes à infância e às crianças, o que implica em uma ética também no momento da análise e interpretação dos dados obtidos.

Levando em consideração essas dimensões acerca da ética, esta pesquisa se desenvolveu a partir de observações participantes que ocorreram entre os meses de setembro e dezembro de 2022, três vezes por semana. Como instrumentos, foram utilizados registros fotográficos das crianças durante suas jornadas na escola, um caderno de anotações, desenhos e proposições de brincadeiras. Além dos Termos de Consentimento Livres e Esclarecidos (TCLE) entregues à escola e às famílias, foi elaborado um Termo de Assentimento Livre e Esclarecido às crianças, adaptado em formato de história em quadrinhos, contando, em uma linguagem condizente com a faixa etária, os objetivos, possíveis riscos e autores da pesquisa. Informamos que o sigilo seria mantido, quais instrumentos seriam utilizados e que elas teriam total liberdade para participar da pesquisa ou não.

Também adotamos a utilização de crachás verdes e vermelhos para as crianças que quisessem ou não ser fotografadas durante as observações. No entanto, com o passar dos dias, optou-se por não mais utilizarmos os crachás, atentando mais para os silêncios, olhares desconfiados ou incomodados das crianças diante da aproximação de uma das pesquisadoras. Foi possível perceber que, com o estabelecimento do contato e da proximidade com as crianças, a questão do crachá passou a ter menos credibilidade na expressão dos reais aceites delas. Por isso, também se recorreu ao “radar ético” (Skanfors, 2009SKANFORS, Lovisa. Ethics in Child Research: children’s agency and researchers’ ‘ethical radar’. Childhoods Today, v. 3, n. 1, p. 1-22, 2009.), evitando se limitar apenas a ver qual cor de crachá a criança estava utilizando. Em vez disso, nós nos dispusemos a abrir mão de certas escolhas e do que julgávamos como melhor e mais adequado em alguns momentos para tentar compreender o que realmente significava as vozes, os desejos e as recusas das crianças por meio de seus silêncios, gestos e expressões.

Além disso, também foi utilizada uma linha do tempo que as crianças preenchiam para fazer a contagem regressiva de uma das pesquisadoras no campo e, ao final das observações, foi realizada uma pré-devolutiva dos dados às crianças por meio de uma exposição de fotos suas feitas durante as observações. A devolutiva final à turma, assim como ao corpo docente, também foi prevista, e os nomes fictícios utilizados ao longo da pesquisa foram escolhidos por meio de um sorteio realizado junto à turma.

Dado esse panorama de como a pesquisa se realizou, assim como seus pressupostos éticos, na sequência apresentamos algumas análises a partir dos dados produzidos junto às crianças.

Pensando o conceito de scripts de gênero a partir das performances das crianças

Compreendemos o conceito de scripts de gênero, assim como o próprio conceito de gênero, como uma ferramenta teórico-analítica e política para entender os mecanismos de opressão nas sociedades patriarcais, que constroem narrativas sobre os corpos a partir de determinadas expectativas históricas, sociais e culturais no sentido de controlar os sujeitos e seus modos de perceber e se inserir no mundo. No entanto, ao realizar a etapa de campo da pesquisa com as crianças, olhando com mais atenção para seus movimentos, performances e estratégias para burlar – ou não – determinados scripts5 5 O conceito de scripts no campo da arte, em especial no teatro, foi amplamente discutido por Schechner (2002). Seus posicionamentos se assemelham com as concepções que temos desenvolvido a respeito dos scripts de gênero no campo da educação. Segundo o referido autor, o conceito de script desempenha um papel central para as performances, uma vez que elas são baseadas em roteiros, norteadoras da ação. Tais roteiros podem ser literários, teatrais ou ainda podem ser vivenciados de forma mais ampla, abrangendo normas culturais e sociais. Ainda, sobre o mesmo conceito, cabe mencionar os estudos de Diana Taylor (2003), para quem os scripts são um conjunto de ações, palavras e gestos que são repetidos e reencenados ao longo do tempo, desempenhando um papel fundamental na construção e preservação da memória cultural e da identidade. Taylor enfatiza a importância do corpo como a principal ferramenta para a transmissão desses scripts. Em sua teoria, portanto, script está mais ligado à preservação e transmissão cultural do que à improvisação criativa. de gênero, foi possível perceber que havia outras nuances e focos que precisávamos considerar para tentar compreender o que aquele determinado grupo de crianças estava querendo nos contar.

Quando nos referimos à performance6 6 Segundo Veloso, o termo performance se consolidou e foi ampliado a partir da década de 70 do século XX como uma expressão artística com características próprias e efetivas para a hibridação da arte. “A partir daí, integra uma variedade de teorias nas ciências humanas e sociais, tais como a fenomenologia, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, semiótica, psicanálise lacaniana, desconstrutivismo e feminismo” (Veloso, 2014, p. 193-194). de gênero das crianças, cabe ressaltar que, neste artigo, ela deve ser compreendida como comportamentos, gestos e símbolos que são ensinados aos sujeitos, de modo intencional, que atribuem e reforçam scripts binários de feminilidade e masculinidade a partir de uma compreensão essencialista do sexo biológico (Butler, 2018BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e a subversão das identidades. 16. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2018.).

Diante desse contexto, percebemos que, além dos scripts socialmente esperados que elas incorporem às suas ações e performances, em função de seus corpos biológicos, há outras possibilidades para pensarmos as infâncias, em especial no que se refere às questões de gênero, a partir de takes, cuts e close-ups, como sugere Louro (2017)LOURO, Guacira Lopes. Flor de Açafrão: takes, cuts, close-ups. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., que serão discutidos na sequência.

Takes: o visível e naturalizado

Helena, com o auxílio da professora, se arruma como noiva, com um véu branco na cabeça e segurando flores de plástico. Diz que vai casar com Júlia. Lorenzo escuta e diz: ‘Tu vai é casar comigo, guria!’. Helena posa para fotografá-la e Lorenzo chega ao lado dela para também aparecer na foto, como noivo. Mas Helena diz: ‘Sai, eu não vou casar contigo, vou casar com a Júlia!’. Lorenzo não aceita, tenta abraçá-la à força e depois tira seu véu, dizendo que está na hora de guardar e acabou a brincadeira. Helena não se posiciona e vai para o outro lado da sala, procurar outra coisa para brincar (Caderno de Anotações, 5 dez. 2022).

Logo de início, quando explicamos do que se tratava a proposta, até para as crianças poderem escolher se iriam ou não participar, Bernardo e Guilherme questionam: ‘Mas só vai ter coisa de menina? Não vai ter nada para menino?’ (Caderno de Anotações, 16 nov. 2022).

Ao trazermos esses excertos de situações vivenciadas pelas crianças durante o período de observações, temos a intenção de discorrer sobre alguns tensionamentos, que aqui chamaremos de takes. Nessa direção, eles foram compreendidos como as performances visíveis das crianças para desempenhar o script geralmente esperado para meninos e meninas. São entendidos como as tentativas de produção de cenas que, por sua vez, são elaboradas a partir de determinados scripts. Quando esses takes não estão no roteiro preestabelecido ou desestabilizam os scripts por algum movimento ou ação inesperada por parte dos atores (neste caso, as crianças), esses atores sofrem alguma sanção ou lembrete para que não sejam burlados ou esquecidos e, assim, possam estar aptos a compor a cena.

Conforme é possível perceber nas situações, elas são corrigidas pelas próprias crianças por serem, em alguma medida, desestabilizadoras. Lorenzo lembra a Helena que ela não pode se casar com outra menina, cabendo somente a ele, como representante masculino, exercer o papel de marido. Bernardo e Guilherme questionam uma das pesquisadoras quando ela propõe algo que também foge do script esperado – nesse caso, tratava-se de brincadeiras com bonecas e utensílios de cozinha.

Consideramos ainda que, para tentar compreender essas situações, é necessário levarmos em conta as questões de interdependência entre crianças e adultos, uma vez que elas não habitam um mundo à parte, necessitando de apoio, atenção, carinho e proteção por parte de quem as cuida/educa. Como observa Alexandre Bello (2006)BELLO, Alexandre Toaldo. Sujeitos Infantis Masculinos: homens por vir? 2006. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006., as crianças percebem facilmente o que devem dizer e/ou fazer para agradar os adultos e, além disso, elas também se autorregulam, corrigem as condutas e performances de colegas e pessoas de mais idade que fogem do script padrão. Tais situações nos mostram a necessidade de compreendermos que não são somente as pessoas adultas ou as instituições – escola, família e igrejas – que tentam formatar e controlar os comportamentos, gestos e gostos dos indivíduos. As próprias crianças se mostram capazes de atuar, produzir e regular os scripts para que eles não sejam esquecidos, muito embora elas também operem no sentido de burlálos. Desse modo, esses takes passam a fazer parte do roteiro a ser seguido. Torna-se imperativo, portanto, considerar “as crianças como atores competentes na sociedade e perceber a infância em termos estruturais” (Qvortrup, 2014, p. 34QVORTRUP, Jeans. Visibilidades das Crianças e da Infância. Linhas Críticas, Brasília, v. 20, n. 41, p. 23-42, jan./abr. 2014.).

Ainda, como continuação das descrições do segundo fragmento do caderno de anotações que abre esta seção, foi possível perceber a seguinte situação:

De início, todas as crianças presentes quiseram ir até ao espaço. Ao chegarem lá, os meninos foram, em sua totalidade, para o canto de brincar de cozinhar, que era composto por panelas e utensílios de cozinha reais, sementes, massa crua, folhas etc. Já as meninas se dividiram entre o espaço com as bonecas bebês e o das Barbies étnicas. Depois de algum tempo, percebi que um grupo de meninos começou a inventar outras simbologias para os elementos da cozinha, correndo pelo espaço e fazendo de conta que as colheres eram espadas, brincando de polícia e ladrão (Caderno de anotações, 16 nov. 2022).

Ainda em relação aos takes, notamos que as crianças, a partir deles, mostraram-nos outros direcionamentos para a nossa pergunta inicial de pesquisa, pois, se queríamos saber das suas performances para desestabilizar ou burlar certos scripts de gênero, elas atuaram de modo a demonstrar que, além dessas estratégias que queríamos investigar, também há as que se movimentaram em outro sentido para justamente manter os scripts preestabelecidos. É interessante observar que os meninos questionaram se não havia coisa para menino também, já que havia apenas bonecas e utensílios de cozinha. No entanto, diante da negativa da pesquisadora e inconformados com a possibilidade de não participarem da brincadeira, movimentaram-se para performar o que, segundo seus entendimentos, cabia a eles: fizeram das colheres espadas, e das panelas, escudos.

Ademais, entendemos que, para que a pesquisa atinja a dimensão ética do durante e até mesmo do depois, conforme mencionamos na seção anterior, não podemos olhar somente para o que responde a nossa pergunta de pesquisa. Também precisamos dar a devida atenção para aquilo que os sujeitos nos mostram em relação ao borramento de fronteiras quando se trata de gênero.

Cuts: sobre os sutis borramentos de fronteiras

Momento de guardar os brinquedos. A professora avisa sobre o horário e que está na hora de organizar a sala. Neste momento, é possível perceber que é a hora em que os meninos aproveitam para mexer, tocar e observar os brinquedos que são do canto monopolizado pelas meninas (a cozinha/casinha). Enquanto mexem, aproveitam para brincar, quase que de maneira clandestina, com os berços de bonecas, as mamadeiras e as vassourinhas. Enquanto isso, a professora vai alertando e dizendo que não é hora de brincar, mas sim de guardar os brinquedos. Então eles vão, após esses rápidos usos, guardando (Caderno de Anotações, 10 out. 2022).

Na hora de guardar os brinquedos, Guilherme, assim como no outro dia, pega os brinquedos da cozinha/casinha para guardar. Vai guardando e brincando ao mesmo tempo, olhando para os lados, para ver se a professora não o vê para advertir que é hora de guardar e não de brincar (Caderno de Anotações, 09 nov. 2022).

No exemplo acima, é possível notar o quanto as crianças, em especial os meninos, percebem quais são as expectativas voltadas para elas e, em alguns momentos possíveis, tentam escapar desse governamento. Isso significa que, desde muito cedo, as crianças aprendem como elas devem se comportar, o que devem ou não dizer ou fazer para serem mais aceitas no seu grupo social. Ao perceberem algumas chances de não estar sob o olhar escrutinador dos demais colegas ou mesmo da professora, elas se permitem olhar para outras direções, ainda que colaborem para que determinados scripts sejam mantidos. Elas também agem de modo a suspendê-los, mesmo que de maneira clandestina e momentânea, por compreenderem que eles só poderiam ocorrer assim: na invisibilidade, senão logo sofreriam sanções para que retornassem aos scripts de gênero preestabelecidos.

Portanto, cuts (ou cortes, na linguagem audiovisual) implicaram essas mudanças de passagem entre um plano e outro, isto é, aquilo que se espera dela (ou dele) em termos de comportamentos, gostos, gestos, falas etc. para aquilo que ela faz na informalidade, quando não há olhos vigilantes para governar seus corpos. Percebemos que, no momento de guardar os brinquedos, os meninos se permitem brincar com os objetos que comumente são associados ao gênero feminino. É na hora de guardar que tudo é permitido pegar e performar, já que ninguém vai dizer para largar aquele brinquedo ou que não podem pegá-lo. Afinal, se estão manuseando, é para guardar, então não só podem como devem fazê-lo.

Talvez o momento de organizar a sala e guardar os brinquedos não seja considerado como problemático, visto que está associado a uma prática organizacional necessária no cotidiano da educação infantil, assim como outras situações corriqueiras da rotina de uma escola. Entretanto, as crianças nos mostram que é justamente nesses instantes que outra faceta da infância pode se manifestar, colocando em suspenso alguns dos nossos entendimentos sobre o modo como elas criam performances a partir de outros scripts, aprendendo e experimentando o mundo e suas relações com ele. Bernardo e Vinícius também demonstraram isso na situação que descreveremos a seguir:

Bernardo entra na sala para guardar um brinquedo, vê a tiara de abelha de Beatriz e a põe escondido, com um sorriso no rosto. Nisso, Vinícius vê e também pede para colocar. Para tanto, se esconde atrás de uma estante de brinquedos (Caderno de anotações, 06 out. 2022).

Situações como essa evidenciam, mais uma vez, o quanto as crianças têm curiosidade em experimentar determinadas situações e/ou objetos supostamente voltados para um gênero específico e muitas vezes só não o fazem por conta da interdição da cultura na qual estão inseridas. Daí a necessidade de operarmos com percepções mais flexíveis envolvendo as questões de gênero e os direitos das crianças, defendendo que elas possam ter a oportunidade de ser protagonistas de seus movimentos ao mesmo tempo que participam da vida em sociedade de maneira justa e igualitária, apoiadas pelos adultos. Consideramos, portanto, que a defesa pelos direitos das crianças é algo que faz (ou que deve fazer) parte da agenda feminista, uma vez que, assim como o machismo, o adultocentrismo também é algo que subestima e violenta os sujeitos por meio das relações de poder desiguais na sociedade patriarcal.

Close-ups: para ver melhor os detalhes

Neste primeiro dia, ao observar as crianças, um fato interessante percebido foi que, para brincar no canto da cozinha, onde tem muitos brinquedos da cor rosa e roxo, os meninos se permitem experimentar os utensílios quando não há nenhuma menina. No entanto, quando alguma menina chega, imediatamente eles cedem espaço, sem que elas digam nada, e passam a assumir outros papéis na brincadeira para que também possam ocupar o mesmo espaço, como: construtor de muros ou gatos (Caderno de Anotações, 28 set. 2022).

Bruno entra na cozinha para brincar. Pega alguns alimentos de plástico e começa a simbolizar movimentos de cozinhar. Com a chegada de Helena, logo diz a ela: ‘Vamos brincar de esconder?’. E, então, começam a esconder alimentos na geladeira. Logo, ele propõe: ‘Vamos fazer uma comida pra ela?’, apontando para a boneca que Helena tinha na mão. ‘Deixa que eu dou’, ele diz. E emenda: ‘Vamos dar mamá pra ela? Deixa que eu dou!’. E também pega a vassoura para varrer (Caderno de Anotações, 09 nov. 2022).

Ao olharmos de perto (close-ups) as dinâmicas que se expressam no cotidiano das instituições de educação infantil a partir das diferentes linguagens com as quais as crianças se comunicam, é necessário não só nos atentarmos aos discursos que elas produzem através de suas verbalizações. Também é importante considerar seus movimentos e performances que acontecem com frequência quando estão em grupo ou mesmo sozinhas.

Os dois excertos do caderno de anotações acima descrevem situações de brincadeiras que poderíamos considerar triviais no cotidiano da educação infantil. No entanto, mirando com mais foco as cenas e ampliando o zoom, é possível perceber que os meninos estabelecem algumas estratégias para se manter naquele espaço, tradicionalmente direcionado às meninas. O que as diferentes estratégias adotadas pelo grupo de meninos, principalmente para adentrar o espaço da cozinha durante as brincadeiras, nos convoca a pensar acerca da infância? Seria possível encontrar outras possibilidades de educar as crianças rompendo com concepções binárias e dicotômicas de gênero, que acabam por legitimar comportamentos que se pretendem hegemônicos? Talvez não seja possível romper facilmente com tais scripts, mas as performances das crianças durante as brincadeiras nos apresentam possibilidades de pensar acerca dos direitos delas de ocupar determinados espaços e acessar brinquedos e brincadeiras, independentemente do seu gênero. Acolher os modos como meninas e meninos vivenciam suas infâncias, com inúmeras experiências possíveis, passa necessariamente pelo conhecimento de como as crianças se desenvolvem e pela relevância de pensar na formação docente para lidar com tais questões.

Bernardo novamente brinca de gatinho na cozinha com um grupo de meninas. Elas não o incluem em seu jogo simbólico. Então, ele começa a olhar para elas e a dizer ‘miau, miau!’, pedindo atenção. Elas não o olham. Então, Bernardo começa a cutucá-las, mas, mesmo assim, ele não tem sucesso. Por vezes, uma ou outra diz: ‘Sai daqui, gatinho!’. Quando Maria vira de costas e Caroline sai da cozinha, Bernardo pega um garfinho cor de rosa para brincar na cozinha. Em seguida, Maria vira para ele e ele, com uma expressão de susto, larga o garfo no chão e imediatamente começa a miar. A professora, ao notar que eu observava Bernardo, comenta: ‘quando ele brinca com as meninas dá mais certo. Com os meninos sempre dá conflito’ (Caderno de Anotações, 05 out. 2022).

Como complemento à situação descrita acima, ainda cabe destacar que, sempre que Bernardo brincava de gatinho com as meninas na cozinha, adotava uma postura dócil e de submissão, dizendo que era um gatinho bebê para receber cuidados das meninas. É interessante observar a estratégia do menino para receber atenção e se sentir incluído na brincadeira, uma vez que as meninas limitavam suas ações nesse contexto, dando as diretrizes naquele momento. Essa performance adotada por Bernardo mostra que, assim como ele, muitos outros meninos podem apresentar interesse em ter diferentes tipos de experiência que não se limitam aos scripts esperados que eles desempenhem, como coragem, força e dominação. Conforme estudos apontam (Bello, 2006BELLO, Alexandre Toaldo. Sujeitos Infantis Masculinos: homens por vir? 2006. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.; Leguiça, 2019), eles sofrem uma constante vigilância em redes de controle e de regulação através de rituais, discursos e comportamentos para que, desde muito cedo, assumam os scripts de masculinidade.

Cabe salientar que as questões até aqui apresentadas acerca das discussões sobre os scripts de gênero se referem não só a essas performances das crianças em si e de maneira isolada, mas também à forma como a exigência de determinados comportamentos representa e sustenta as desigualdades entre os sujeitos desde a mais tenra infância. O que queremos pontuar é que, por meio das suas performances, as crianças nos contam que tentar encaixálas em um padrão binário é diminuí-las em suas capacidades, causando maus tratos emocionais desnecessários. Dentro das suas possibilidades, as crianças estão a nos dizer, ainda que de forma sutil e simbólica, o quanto elas reivindicam condições para que vivam relações mais justas e plurais.

Questões para seguir o debate: pensando a infância de modo mais plural

Diante desses argumentos, consideramos que é necessário compreender como os movimentos e até mesmo as pequenas transgressões das crianças nos convidam a pensar além, ampliando nossos entendimentos acerca das questões de gênero e dos próprios scripts. Nessa direção, somos levadas a buscar não só quais scripts as crianças tentam trazer para as cenas por meio dos takes, cuts e close-ups, mas também o que esses novos scripts revelam, o que denotam sobre os interesses das crianças e quais novos enredos podemos pensar a partir dessas performances da infância.

A reflexão que fazemos agora é se não estaríamos sustentando desigualdades e opressões ao ignorarmos as estratégias que elas estabelecem para romper com alguns desses roteiros a elas endereçados (Felipe; Guizzo, 2022FELIPE, Jane; GUIZZO, Bianca. “Minha Mãe Me Vestiu de Batman, mas Eu Sou a Mulher Gato”: discussões sobre scripts de gênero, sexualidade e infâncias. In: SEFFNER, Fernando; FELIPE, Jane (Org.). Educação, Gênero e Sexualidade: (im)pertinências. Petrópolis: Vozes, 2022. P. 56-74.). Lembramos que uma ação isolada de uma única criança pode não significar uma evidência; no entanto, um conjunto de movimentos que as crianças vão fazendo no contexto da escola, de maneira recorrente, carrega um significado: talvez os modos como temos pensado a estrutura e as rotinas das escolas de educação infantil, a divisão dos grupos, os modos de exercer a docência, os espaço físicos (ou a falta dele) e as materialidades, de certo modo, colaboram para que as crianças limitem suas ações, suas performances e seus modos de ser e intervir no mundo.

Nessa direção, os questionamentos que ficam e aqui compartilhamos para seguirmos pensando são: como poderíamos pensar a escola de educação infantil de modo que acolha, genuinamente, a multiplicidade de meninos e meninas viverem a infância, com vistas à garantia de seus direitos de atuar e performar com mais liberdade? Como essas outras performances poderiam contribuir com relações e experiências mais justas entre as crianças, sobretudo na escola?

Assim, destacamos a necessidade de pensar os interesses das crianças de modo mais abrangente, principalmente no que se refere às questões de gênero, pois suas escolhas, muitas vezes, se dão de formas condicionadas a scripts binários. Para isso, pensamos ser importante olhar para as ações comuns das crianças, sobretudo nas escolas, para ampliar nossos entendimentos sobre a infância e os scripts de gênero.

De modo complementar a esses tensionamentos, consideramos que é necessário pensar as necessidades e os interesses de meninas e meninos de modo articulado, uma vez que as necessidades se referem às questões humanas básicas, ainda que se modifiquem com o transcorrer do tempo. No delineamento desta discussão, entendemos que o brincar pode ser interpretado como uma necessidade e, portanto, um direito fundamental para a infância; no entanto, por meio de suas performances ao brincar, as crianças nos denunciam alguns interesses, quais sejam: a) explorar o desconhecido; b) experimentar diferentes papéis e performances durante as brincadeiras; c) fazer algo pela primeira vez; d) ter novas relações; e) inventar novas brincadeiras.

A partir desses interesses, que foram evidenciados pelas crianças, ainda nos perguntamos: o que motiva meninos e meninas a articularem-se individual ou coletivamente em relação aos scripts binários de gênero? Como podemos partir dos interesses das crianças para repensar práticas ainda na primeira infância, sobretudo na escola de educação infantil, ofertando a possibilidade de que elas vivam infâncias mais plurais e menos binárias e hegemônicas?

Diante desses tensionamentos, apostamos na ideia de que pensar os direitos das crianças à equidade de gênero como um importante aspecto que ajuda a construir uma infância mais justa e plural talvez possa ser visto como algo que atravessa o direito de todas as crianças. Como é possível depreender de alguns dados estatísticos, tal equidade ainda não se faz presente de forma plena em diversos lugares no mundo7 7 Estudos realizados por organizações mundiais, como a Global Early Adolescent Study, que atua em todos os continentes, apontam que, tanto em sociedades mais conservadores quanto em mais liberais, as crianças interiorizam a ideia de que meninos são fortes e independentes e que as meninas são vulneráveis. . Portanto, defendemos que deveria ser possível aceitar os takes que fogem do script preestabelecido, trazer os cuts à cena e ver com mais profundidade, através dos close-ups, sem as lentes de modelos universais, binários e hegemônicos, a multiplicidade de infâncias e suas performances.

Notas

  • 1
    Para um maior aprofundamento do movimento Performance Studies no campo da arte, veja Veloso (2014)VELOSO, Sainy. Entre Tablados e Arenas: performances culturais. Urdimento, v. 2, n. 23, p. 188-205, dez. 2014.. Neste artigo, utilizaremos o conceito de performance a partir de Judith Butler (2018)BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e a subversão das identidades. 16. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2018..
  • 2
    Destacamos ainda que consideramos o uso de crianças de modo generalizado em certas análises dos estudos de gênero, talvez como mais uma forma de tratar a infância a partir de uma visão hegemônica, uma vez que as estatísticas e situações de vida das crianças no Brasil são diferentes se forem meninos ou meninas. Portanto, quando utilizamos, ao longo do texto, meninos e meninas para nos referirmos às crianças em certos momentos, não o fazemos numa tentativa de encaixá-las em um padrão generificado, mas sim para sublinhar o reconhecimento das particularidades e desigualdades que são preconizadas de acordo com o gênero das crianças – o que não anula a possibilidade de outras inúmeras formas de vivenciar o gênero.
  • 3
    No original em espanhol: “[...] avanzar en la práctica de los derechos humanos universales, es preciso ‘deconstruir’ el relato creado para explicar los derechos de los niños, para ‘reconstruirlo’ en su esencia original y ‘recrearlo’ a través de las políticas y de las prácticas sociales” (Muñoz, 2018, p. 19MUÑOZ, Lourdes Gaitán. Los Derechos Humanos de los Niños: ciudadanía más allá de las “3Ps”. Sociedad e Infancias, v. 2, p. 17-37, 2018.).
  • 4
    Pensar o antes, o durante e o depois na pesquisa com crianças é uma consideração já debatida por estudiosos/as da infância referenciados/as ao longo do texto. Utilizamos esses entendimentos de empréstimo para dar destaque especificamente à dimensão ética de uma pesquisa com crianças da educação infantil que trata das questões de gênero. Cabe ainda registrar que a pesquisa em tela faz parte de um projeto maior intitulado Ignorar para Acobertar ou Informar para Proteger?: scripts de gênero e sexualidade na prevenção das violências contra crianças, coordenado pela pesquisadora Jane Felipe (projeto nº 38749, aprovado em 9/3/20 em consonância com o Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da UFRGS).
  • 5
    O conceito de scripts no campo da arte, em especial no teatro, foi amplamente discutido por Schechner (2002). Seus posicionamentos se assemelham com as concepções que temos desenvolvido a respeito dos scripts de gênero no campo da educação. Segundo o referido autor, o conceito de script desempenha um papel central para as performances, uma vez que elas são baseadas em roteiros, norteadoras da ação. Tais roteiros podem ser literários, teatrais ou ainda podem ser vivenciados de forma mais ampla, abrangendo normas culturais e sociais. Ainda, sobre o mesmo conceito, cabe mencionar os estudos de Diana Taylor (2003)TAYLOR, Diana. The Archive and the Repertoire: performing cultural memory in the Americas. 1. ed. Durham: Duke University Press, 2003., para quem os scripts são um conjunto de ações, palavras e gestos que são repetidos e reencenados ao longo do tempo, desempenhando um papel fundamental na construção e preservação da memória cultural e da identidade. Taylor enfatiza a importância do corpo como a principal ferramenta para a transmissão desses scripts. Em sua teoria, portanto, script está mais ligado à preservação e transmissão cultural do que à improvisação criativa.
  • 6
    Segundo Veloso, o termo performance se consolidou e foi ampliado a partir da década de 70 do século XX como uma expressão artística com características próprias e efetivas para a hibridação da arte. “A partir daí, integra uma variedade de teorias nas ciências humanas e sociais, tais como a fenomenologia, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, semiótica, psicanálise lacaniana, desconstrutivismo e feminismo” (Veloso, 2014, p. 193-194VELOSO, Sainy. Entre Tablados e Arenas: performances culturais. Urdimento, v. 2, n. 23, p. 188-205, dez. 2014.).
  • 7
    Estudos realizados por organizações mundiais, como a Global Early Adolescent Study, que atua em todos os continentes, apontam que, tanto em sociedades mais conservadores quanto em mais liberais, as crianças interiorizam a ideia de que meninos são fortes e independentes e que as meninas são vulneráveis.

Disponiblidade de dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Referências

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Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
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