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Antropologia Educacional Histórico-Cultural Alemã: bases teórica e epistemológica

German Historical-Cultural Anthropology of Education: theoretical and epistemological benchmarks

Resumo:

Este artigo apresenta e discute as bases teórica e epistemológica da atual Antropologia Educacional Histórico-Cultural Alemã (AEHCA), tendo duas questões norteadoras: (1) qual é o seu campo de conhecimento e (2) quais são suas bases epistemológicas e teóricas? A AEHCA reconhece a educação como ciência e tem como ponto de partida o ser humano e suas dimensões educacionais, fazendo da educação um campo de conhecimento construtivo e reflexivo por meio de uma abordagem interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural e transcultural, aberta a teorias e métodos, o que leva à reflexão sobre o ser humano em si e sua educação.

Palavras-chave:
antropologia educacional; epistemologia da educação; fundamentos da educação

Abstract:

This paper presents and debates the theoretical and epistemological benchmarks of the current German Historical-Cultural Anthropology of Education (or AEHCA - from the Portuguese Antropologia Educacional Histórico-Cultural Alemã), guided by two leading questions, namely: (1) what is your field of knowledge and (2) what are your theoretical and epistemological benchmarks? The AEHCA regards education as science and takes the human being and their educational dimensions as a starting point, which turns the education into a constructive and reflexive field of knowledge through a transdisciplinary, interdisciplinary, transcultural and intercultural approach, open to theories and methods. Ultimately, this is what leads to a reflection on the human being in itself and their education.

Keywords:
anthropology of education; epistemology of education; fundamentals of education

Introdução

A Antropologia Educacional Histórico-Cultural Alemã (AEHCA) é um campo do conhecimento cuja abordagem se mostra aberta e multifacetada, além de ser uma teoria de construção crítica e reflexiva que há mais de sete décadas vem se desenvolvendo na Alemanha. O assunto da Antropologia Educacional é o ser humano, a sua educação e as suas condições de educação. A abordagem antropológico-educacional consiste em compreender a educação, a formação, a socialização e a compreensão das disposições educacionais do ser humano.

Segundo Wulf (2015WULF, C. Pädagogische Anthropologie. Springer Fachmedien Wiesbaden, ZfE - Zeitschrift Erziehungswissenchaft, Berlin, v. 18, n. 1, p. 5-25, mar. 2015. ), a Antropologia Educacional Alemã surge na segunda metade do século 20 como um campo de trabalho da ciência educacional. Duas fases podem ser distinguidas nesse processo: a primeira envolve os anos de 1950 e 1960; e a segunda começa no início dos anos 1990 e se estende até os dias atuais. Entre as duas fases, os esforços para uma pedagogia crítica e para o desenvolvimento da ciência da educação com base nas Ciências Humanas e nas Ciências Sociais têm uma influência sobre a segunda fase da Antropologia Educacional.

A primeira fase inclui uma série de abordagens que foram sistematizadas de forma diferente, como a Antropologia Educacional orientada pela Filosofia e pela Fenomenologia e a Antropologia Educacional Integrativa. A segunda fase inclui a Antropologia Educacional Histórica e a Antropologia Educacional Histórico-Cultural.

Na primeira fase, a Antropologia Educacional Filosófica reconheceu a dependência da criança em relação ao adulto, mas negligenciou a historicidade das imagens humanas, o pluralismo de abordagens entre o ser humano e a educação, os movimentos educacionais, as escolas e os educadores. A Antropologia Educacional Fenomenológica propôs a reflexão sobre os fenômenos individuais da vida humana, como decência, imprudência, vergonha, temor, medo, jogo, prática, tempo, experiência espacial, segurança e ambiente educativo, procurando compreender o ser humano no todo e na sua particularidade. A Antropologia Educacional Integrativa contribuiu para solucionar os potenciais problemas educacionais em aprendizagem e linguagem nos estudos individuais, porém esteve atrelada a abstrações e generalizações do contexto educacional.

No entanto, ao olhar para as décadas de 1950, 1960 e 1970, está explicito para Wulf (1994WULF, C. Zur Einleitung: Grundzüge einer historisch-pädagogischen Anthropologie. In: WULF, C. Einführung in die pädagogische anthropologie. Weinheim: Beltz, 1994. p. 7-20.) que os pesquisadores tentaram desenvolver uma Antropologia Educacional na Alemanha, porém esse campo de pesquisa estava separado da Ciência da Educação em geral, aparecendo mais como uma “mistura” de grandes questões e resultados da influência das Ciências Sociais, ultrapassando os problemas educacionais. Algumas objeções críticas são levantadas por Wulf (1994WULF, C. Zur Einleitung: Grundzüge einer historisch-pädagogischen Anthropologie. In: WULF, C. Einführung in die pädagogische anthropologie. Weinheim: Beltz, 1994. p. 7-20., p. 12):

  • A Antropologia Educacional não reflete as condições históricas e sociais de sua constituição, e a relação entre os desenvolvimentos sociais condicionais não é suficientemente abordada em seus significados e termos básicos. Isso se aplica, por exemplo, a termos como “perfectibilidade” e “determinação”.

  • A Antropologia Educacional tem, de fato, influência da pedagogia humanista, visto a historicidade de seus esforços, mas não enfatizou suficientemente a dupla historicidade. Além disso, enfoca a história, principalmente a humana, a história das ideias, porém entendida como história social ou mental.

  • Na Antropologia Educacional, prevaleceu a noção de que o conhecimento antropológico desenvolvido pelas Ciências Humanas poderia ser introduzido na ciência educacional e, assim, ser transformado em um todo relevante para a educação e a formação humana. Assim, tem sido gerado um conhecimento interdisciplinar que, no entanto, permanece sem solução, mantendo as barreiras existentes da Antropologia Educacional com as seguintes perguntas: O que significa a integração do conhecimento interdisciplinar adquirido na área educacional? Pode-se esperar um conhecimento antropológico total ou do ser humano?

  • A alegação da Antropologia Educacional para abordar o ser humano, a criança ou o educador não se cumpriu e não pode se cumprir em princípio. Suas reivindicações universalistas exigem relativismo histórico, antropológico e epistemológico; caso contrário, aparecem como ficções inadmissíveis e fantasmas com reivindicações de poder e autoridade.

  • Devido ao seu foco no ser humano “inteiro”, nas contingências e nas continuidades relacionadas à Antropologia Educacional, os significados de diferença, descontinuidade e pluralidade tiveram menos importância. A Antropologia Educacional também assumiu declarações sobre a natureza do ser humano e afirmou ser capaz de obter o conhecimento empírico sobre seres humanos em situações de educação ou formação humana; por isso, quase não se refletiu sobre a natureza construtiva de suas ideias e conceitos.

  • A Antropologia crítica quase não foi envolvida na Antropologia Educacional das décadas de 1950, 1960 e 1970. Em vez disso, os seus representantes viram um quadro de referência com cobertura praticamente universal e, portanto, atacaram a reflexão sobre os limites estreitos do conhecimento antropológico-educacional.

  • Vê-se uma Antropologia Educacional conceitual entendida como uma antropologia positiva, que pode constituir um quadro de referência para a educação e a formação humana. A crítica da antropologia vê surgir somente posteriormente a impossibilidade da antropologia positiva e a fertilidade da Antropologia Educacional negativa e desconstrutiva.

Essas objeções anteriores foram importantes para o desenvolvimento da segunda fase da Antropologia Educacional, sobre o qual tiveram impacto. A Antropologia Educacional Histórica leva em conta a dupla historicidade, a do sujeito e a do pesquisador. Seu objetivo é investigar a aparência humana e os modos de expressão diante de certas condições históricas e sociais. As pesquisas estão voltadas para corpo e natureza, sentido, beleza, amor, sagrado, alma, morte, silêncio, percepção e estética, nascimento e geração, formas de religião, trabalho e educação, jogo, memória, espaço e tempo nos processos educacionais, instituições de ensino, experiência, amizade e alimentos. Os métodos que utiliza são etnografia, observação de participante com vídeo e entrevistas-narrativas com fundamento na abordagem hermenêutica.

A Antropologia Educacional Histórico-Cultural foi desenvolvida em continuidade aos estudos da Antropologia Histórica, os quais trataram de temáticas como: corpo, alimento, paladar, gênero, identidade, geração, religião, jogo, espaço, tempo, memória e ética. Segundo as pesquisas de Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.), esses estudos levaram ao desenvolvimento de perspectivas inter, multi e transdisciplinares, globais e transculturais, imbuídas de crítica e de reflexividade, e neles são apresentadas mais questões para reflexão: a pluralidade do conhecimento, ou seja, um campo aberto; o enigma da questão do ser humano; e a imagem educacional do ser humano universalista, homogeneizador e etnocêntrico. Diante de tal abordagem plural, há de se considerar que a formação desse campo de conhecimento é interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural e transcultural.

Desse modo, este artigo tem como objetivo apresentar e discutir as bases teóricas e epistemológicas da AEHCA. Para alcançar esse objetivo, duas questões importantes devem ser respondidas: Qual é o campo de conhecimento da Antropologia Educacional Alemã? Quais são suas bases epistemológicas e constitutivas teóricas? O artigo, desse modo, apresenta a Antropologia Educacional Alemã, seu campo de conhecimento, sua constituição epistemológica e suas proposições reflexivas para o desenvolvimento da área.

Considerar a AEHCA nos leva a refletir sobre o ser humano em si, sua educação e suas características históricas e culturais em sua diversidade e potencialidade, que problematizam e pluralizam seus projetos; logo, ela não reduz o ser humano a um conjunto específico de características universalistas. Por isso, reconhece o ser humano, sua educação e as condições de educação em sua formação, socialização, aprendizagem e ensino, específicos de cada cultura, em sua historicidade.

O campo de conhecimento: interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural e transcultural

Primeiro, considera-se que a Antropologia Educacional é uma área interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural e transcultural, ou seja, em que ocorre uma ligação entre áreas, com vistas à unidade de conhecimento, à promoção do cruzamento de culturas e à mudança de perspectiva. É, assim, uma área cujos limites se alteram dinamicamente, ligados pelo que é comum, o estudo do ser humano em suas diferenças histórica, cultural, metodológica e teórica.

A Antropologia Educacional, como uma área de conhecimento interdisciplinar, é também formada por duas áreas interdisciplinares do conhecimento: a Ciência da Educação e a Antropologia.

A compreensão da Ciência da Educação como área interdisciplinar, para Rathmayr (2014RATHMAYR, B. Interdisziplinarität. In: WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer, 2014. p. 91-102.), significa mais do que o conceito de uma ciência composta por Sociologia, Psicologia, Antropologia etc.:

Não basta afiar as teorias individuais relevantes e as ciências individuais para questões pedagógicas e contextos de aplicação - tais tentativas correm frequentemente o risco de lidar com manipulações pedagógicas de teorias científicas. Mas essas teorias individuais e ciências individuais devem, em um primeiro passo, ser reconhecidas como abordagens independentes da realidade do ser humano e integradas em um segundo esforço em modelos explicativos relevantes ligados ao indivíduo, ao social e às realidades sociais. (Rathmayr, 2014RATHMAYR, B. Interdisziplinarität. In: WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer, 2014. p. 91-102., p. 96, tradução nossa).

Outro ponto ressaltado por Rathmayr (2014RATHMAYR, B. Interdisziplinarität. In: WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer, 2014. p. 91-102.) é o fato de que a Ciência Educacional se refere a um amplo espectro de teorias e disciplinas científicas individuais, sociais, societárias e culturais. Isso não significa que essas teorias e disciplinas aceitem ou repitam suas próprias perguntas. Em vez disso, aplicam seus métodos e conhecimentos aos problemas que surgem no contexto da existência humana em sociedade, cuja complexidade só pode ser compreendida em uma perspectiva múltipla. Por exemplo, situações da vida e do destino, pessoas com deficiências físicas ou mentais ou pessoas em crise de vida. O denominador comum desses problemas é a mediação entre o pessoal, o social, a existência social e a dinâmica do desenvolvimento de pessoas, grupos e sociedades.

A Antropologia, por sua vez, desde a sua fundação como ciência independente, por um lado, com Immanuel Kant e, por outro, com Charles Darwin, ordenou um amplo campo de diferentes disciplinas e direções dentro dessas próprias disciplinas, como expõe Wulf (2008WULF, C. Antropología: historia, cultura, filosofia. Traducción de Daniel Barreto González. Barcelona: Anthropos Editorial; México: Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa, 2008.) ao unir as antropologias Evolutiva, Filosófica, Histórica e Cultural. O autor parte do princípio de que a diversidade do conhecimento antropológico não é mais uma imagem humana uniforme e fechada, mas multiforme, diferenciada e diversificada.

Os estudos realizados nas fronteiras da investigação disciplinar levaram a AEHCA a desenvolver perspectivas inter e transdisciplinares. Segundo Wulf (2015WULF, C. Pädagogische Anthropologie. Springer Fachmedien Wiesbaden, ZfE - Zeitschrift Erziehungswissenchaft, Berlin, v. 18, n. 1, p. 5-25, mar. 2015. ), a troca conceitual e metodológica entre as ciências mostra uma nova pesquisa, sem afetar a aplicação da hermenêutica, por exemplo, a performatividade do comportamento social, a visão antropológica, a aplicação de métodos de pesquisa etnográfica ou qualitativa, bem como a comparação diacrônica e sincrônica. A performatividade do comportamento social coloca a encenação, o desempenho e a fisicalidade dos processos educativos no centro. A visão antropológica permite o surgimento de novas questões e novas perspectivas e as comparações diacrônica e sincrônica ajudam a compreender e a representar a especificidade de uma situação ou de um fenômeno.

Ao vincular questões e descobertas dos paradigmas antropológicos evolucionista, filosófico, histórico e cultural, pode-se desenvolver e concretizar novas questões e novas pesquisas iniciadas em campos educativo-antropológicos como “educação”, “aprendizagem”, “formação humana”, “ensino” e “socialização”, ressalta Wulf (2015WULF, C. Pädagogische Anthropologie. Springer Fachmedien Wiesbaden, ZfE - Zeitschrift Erziehungswissenchaft, Berlin, v. 18, n. 1, p. 5-25, mar. 2015. ). Logo, a Pedagogia não pode impor a sua visão restrita sobre o ser humano. O reconhecimento das possibilidades múltiplas e multiplicáveis do ser humano deve ser acompanhado por um esforço para adquirir conhecimento de continuidades temporárias em certas culturas e sociedades.

A AEHCA não leva em consideração apenas a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, mas também a interculturalidade e a transculturalidade. Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.) mostram que esse é outro desafio dessa área do conhecimento, pois sendo uma condição central do conhecimento antropológico e uma consequência da globalização, tais processos enfatizam conflitos que surgem do desenvolvimento e que determinam as condições de vida das pessoas em detrimento de uma globalização homogeneizante e diversificada.

Os conflitos são caracterizados por tensões entre global e local, universal e singular, tradição e modernidade, espiritual e material, de longo prazo e considerações de curto prazo, as necessidades da concorrência e da igualdade de oportunidades, uma forte expansão do conhecimento e uma capacidade limitada de pessoas para lidar com isso. (Wulf; Zirfas, 2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014., p. 710, tradução nossa).

Uma tarefa central, então, da Antropologia Educacional consiste em investigar as diferentes formas de educação no mundo globalizado. Nesse processo, as relações de poder e de troca assimétricas e as dinâmicas transculturais desempenham um papel importante e encontram ideias de identidade e de educação tradicionais em interação global, explicam Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.). Sendo assim, a transculturalidade serve como uma noção heurística para investigar os desenvolvimentos reais, simbólicos e imaginários, sociais e culturais, conceitualmente e metodologicamente novos, no mundo globalizado. Para Wulf e Zirfas (2014)WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014., isso também requer o estudo e a reflexão dos pressupostos implícitos culturalmente e determinados metodologicamente como subsídio para a Antropologia Educacional; logo, as

Pesquisas local, regional e global são necessárias para explorar as dimensões diacrônica e sincrônica. Esses movimentos culturais têm lugar não linear, eles se ramificam, fazem desvios, empurrando na direção oposta. Os objetos, os significados e as imagens são traduzidos, aparecendo em novos contextos. Surgem novas práticas sociais e educacionais, novas formas de conhecimento e design estético. Essas alterações são refletidas na política, nos negócios, na administração e na educação, elas penetram na literatura, nas artes, na religião e na vida cotidiana. Muitos processos na educação, formação e socialização só podem ser explicados adequadamente se a história deles é analisada; outros podem ser identificados, analisados e compreendidos utilizando a pesquisa etnográfica. Em outros casos, ambas as abordagens metodológicas são conectadas ou podem ser o ponto de partida para novas investigações. Fenômenos transculturais surgem a partir da tensão entre identidade e alteridade do significado mimético em processos de transformação de imagens, textos e conceitos. (Wulf; Zirfas, 2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014., tradução nossa).

Essa mistura de elementos tradicionais e estrangeiros cria novos fenômenos transculturais. Tendo em conta esses processos complexos, educação, formação e socialização não podem ser entendidas como latentes em si ou como entidades linguisticamente homogêneas, mas, sim, em termos dinâmicos, relacionais e variáveis, explicam Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.). Transculturalidade é um conceito heurístico, o que leva a novas perspectivas e procedimentos metodológicos correspondentes na pesquisa da Antropologia Educacional. Essas transformações da natureza relacional do espaço e do tempo desempenham um papel importante, em que a simultaneidade e a onipresença da nova mídia são importantes para a gênese dos fenômenos transculturais. Tais fenômenos contribuem para a mudança de tempo e espaço, criando zonas de contato com novas qualidades espaço-temporais, nas quais estão inclusas, como internet, exposições mundiais, jogos olímpicos e escolas urbanas.

Há de se considerar, ressaltam Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.), que os numerosos movimentos migratórios do mundo globalizado e as mudanças que ocorrem nos processos de educação, formação e socialização fazem surgir movimentos transculturais. Esses processos encontram resistência e defesa e são conflituosos e antagônicos. No entanto, o objetivo da Antropologia Educacional é uma investigação histórica, etnográfica e filosófica do mundo, cujo foco leva a natureza transcultural de muitos fenômenos educativos e sociais para novas questões conceituais, metodológicas e empíricas.

A constituição epistemológica da Antropologia Educacional Histórico-Cultural Alemã

A AEHCA tem como base epistemológica as imagens humanas na educação, as dimensões educacionais e os paradigmas da Antropologia. Essa base teórica e epistemológica possibilita refletir sobre as problemáticas da educação que lidam com o ser humano, sua condição no mundo e suas relações com este, levando a pensar a educação não apenas ontologicamente, mas também no fazer educacional, ou seja, na simultaneidade entre ação e reflexão. Além disso, contribui para pensar o ser humano em si e em sua educação.

As imagens humanas na educação

As imagens humanas na educação, segundo Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.), possibilitam a compreensão da ligação entre essas imagens e a educação. Ou seja, as imagens humanas criadas e perpetuadas influenciaram o Ocidente, por exemplo, durante a Antiguidade Greco-romana; a tradição medieval judaico-cristã, com o surgimento do subjetivismo moderno; o Iluminismo europeu e o Romantismo; a modernidade pluralista e autorreflexiva; e, consequentemente, a educação. As imagens humanas estão vinculadas às inseparáveis noções de verdadeiro e falso, bem e mal, saudável e doente etc., assim como à estrutura profunda do pensamento educacional e à ação que depende dos aspectos históricos e culturais da vida cotidiana.

Wulf (2005WULF, C. Antropologia da educação. Tradução de Sidney Reinaldo da Silva. Campinas: Alínea, 2005.) explicita os efeitos das imagens humanas na educação, como a busca de perfeição pelo ser humano, o que é denominado perfectibilidade, pois este é o sonho primordial da época moderna: criar uma imagem ideal do ser humano perfeito. Concebida por Comenius, a utopia de tornar o ser humano perfeito por meio da arte universal de ensinar tudo a todos, acompanhada pelas utopias de Rousseau, Pestalozzi, Herbart e Schleiermacher, apesar de suas diferenças. No entanto, mudar o ser humano não é tão fácil, e essa utopia teve dificuldades de concretização.

Esses modelos reducionistas da imagem do ser humano são criticados pelas abordagens recentes, pois elas consideram o ser humano sob uma visão específica, numa tentativa de universalizá-lo. Por isso, Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.) enfatizam que, para as novas abordagens da Antropologia Educacional, não é mais a questão da imagem do ser humano que importa, mas, sim, a questão de que cada dimensão específica do ser humano é considerada constitutiva dos processos educativos e não há como entender, precisa e individualmente, o ser humano na educação.

Essa forma de Antropologia Educacional não é mais a questão do ser humano, mas a questão de que cada dimensão específica do ser humano, a priori, é considerada como constitutiva das dimensões dos processos educativos. Acredita-se que sem os aspectos das limitações humanas, como tempo e espaço, corpo e corporeidade, culturalismo e socialidade e subjetividade e individualidade, o ser humano na educação não pode ser entendido corretamente. Essas categorias servem como a pedagogia da interpretação, orientação e legitimação dos horizontes. (Wulf; Zirfas, 2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014., p. 13, tradução nossa).

Nesse sentido, as dimensões educacionais são levadas em consideração para um aprofundamento do ser humano e de suas relações. Ao falar sobre o ser humano em relação às dimensões educacionais, Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.) consideram que as pessoas aprendem e se desenvolvem, são educadas e se educam, ensinam os outros e, finalmente, desenvolvem e lidam com questões culturais e sociais. A AEHCA acredita que o ser humano é um ser educacional, portanto, a Antropologia Educacional é constituída em ligação contínua com a Educação e a Antropologia.

As dimensões básicas educacionais

As dimensões básicas educacionais são apresentadas por Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014., p. 9, tradução nossa), os quais ressaltam que “o ser humano é, em sua natureza, genuinamente educado”. Isso significa dizer que sem aprendizagem ou educação pouco se pode compreender sobre o ser humano. No entanto, o ser humano é sempre mais que instituição de ensino, e pensar dessa maneira significa reduzir a compreensão sobre ele. A esse respeito, pode-se dizer: “O ser humano é também uma natureza genuinamente educacional”. A Antropologia Educacional se fundamenta na relação entre homo educandus e homo educabilis. Em relação a esses dois momentos constitutivos, a Antropologia Educacional tem como princípios: só o ser humano é necessitado de educação, e deve ser educado, e somente ele é capaz de educar.

As dimensões educacionais são erziehung (educação), lernen (aprender), bildung (formação humana), lehren (ensinar) e sozialisation (socialização), segundo Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.). Para a Ciência Educacional Alemã, essas são as dimensões básicas da educação que vão além da dimensão escolar e, por isso, estão interconectadas. Em Erziehung, o ser humano é um ser educacional; em Lernen, o ser humano é capaz de aprender; a dimensão Bildung apresenta o ser humano como um ser em formação; na dimensão Lehren, o ser humano é um ser que ensina; e, por último, na dimensão Sozialisation, o ser humano é socializante e civilizado.

Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.) propõem e explicitam essas dimensões:

  1. o homem é um ser educacional. Por um lado, ele está sendo constituído (ou seja, é capaz de educar e é carente de educação) e, por outro, é um ser que se autoeduca;

  2. o homem é um ser que aprende (capaz de e necessitado de aprendizagem);

  3. o homem é um ser em formação (capaz de e necessitado de formação);

  4. o homem é um ser que ensina;

  5. o homem é um ser socializante e civilizado.

Ao falar de outras culturas e períodos sobre o ser humano, ressaltam os autores que algumas dimensões educacionais devem ser consideradas. Embora os termos “aprender” e “formação humana” enfatizem a educação e o ensino mais dirigido ao educando e omitam a atividade intrínseca e a assimilação dos indivíduos, o conceito de socialização implica transformar essas duas perspectivas, especialmente na duplicação de sua forma transitiva e reflexiva, em suas dimensões sociais e culturais. No entanto, esses termos são aplicados em todas essas disposições educacionais, pois são constitutivos de toda a educação.

Além da imagem do ser humano e de seu impacto na educação, nas dimensões educacionais, outro elemento importante da constituição epistemológica e teórica da AEHCA são os paradigmas antropológicos. Se a imagem de perfectibilidade do ser humano trouxe um impacto para a educação no momento em que o universaliza e o torna modelo único, a consideração dos diferentes paradigmas apresenta uma abordagem que amplifica e pluraliza esse modelo de ser humano e que ressalta, na educação, a diversidade, a historicidade e a culturalidade do ser humano.

Os paradigmas antropológicos

No âmbito da Antropologia Educacional, os paradigmas antropológicos são particularmente importantes para o seu desenvolvimento. Os cinco paradigmas, ressalta Wulf (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.), são: evolucionista, filosófico, histórico, cultural e histórico-cultural. Esses paradigmas refletem aspectos importantes do desenvolvimento da Antropologia e da Antropologia Educacional, como a dinamicidade evolutiva, a natureza essencial do ser humano, a diversidade histórica, o reconhecimento da diversidade no encontro com o outro, em uma antropologia multifacetada. Logo, a “Antropologia Educacional” é constituída em confronto contínuo com a Educação e a Antropologia. No âmbito da Antropologia, ressalta Vieira (2016VIEIRA, K. A. L. A construção do conhecimento em Antropologia da Educação: levantamento, análise e reflexão de artigos publicados no Brasil. 2016. 401 f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) - Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Araraquara, 2016.), os paradigmas são particularmente importantes para o desenvolvimento da Antropologia Educacional.

Os paradigmas evolucionista e filosófico são destinados à exploração do que é comum ao ser humano. Os paradigmas cultural, histórico e histórico-cultural enfatizam a diversidade histórica e cultural e a diferença entre culturas, pessoas e sociedades e enxergam na exploração dessa diversidade a tarefa central da Antropologia. Os cinco paradigmas conceituais e metodológicos contêm elementos importantes para uma compreensão complexa da Antropologia no mundo globalizado e também é de importância central para a Antropologia Educacional. Como esses paradigmas estão relacionados e emaranhados uns com os outros, tornam-se uma questão central da pesquisa antropológica e antropológico-educacional, explica Wulf (2009WULF, C. Anthropologie: Geschichte - Kultur - Philosophie. Köln: Anaconda, 2009.).

A Antropologia Evolutiva contribuiu para uma mudança fundamental em nossa compreensão de mundo. A perspectiva evolutiva na Antropologia considera o processo da natureza da evolução da vida e da hominização, ou seja, da sua temporalidade e historicidade. A ideia do constante progresso, que, por décadas, esteve associada à evolução, está ultrapassada, pois hoje a evolução envolve a interação de diversos fatores nos quais os pontos sociais e culturais são importantes. A hominização foi examinada no contexto da história de vida e do relacionamento entre todas as coisas viventes.

A evolução na Antropologia pretende mostrar o parentesco da vida de uns com os outros, a longa duração da evolução humana e as leis gerais da evolução, ao passo que a Antropologia Filosófica está interessada no caráter particular do homem, obtido a partir da comparação humano-animal.

A Antropologia Filosófica cresceu depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), momento no qual os seres humanos passaram a questionar a crença no progresso, tendo como destaque Max Scheler, Helmuth Plessner e Arnold Ghelen. O foco essencial da Antropologia Filosófica é o corpo humano, que em si mesmo constitui o ponto de partida para distinguir homens e animais, e a revalidação da natureza humana com crítica ao idealismo e à filosofia da ciência.

A Antropologia Filosófica Alemã possui três focos: 1) o lugar humano no cosmo; 2) os níveis do ser orgânico e os seres humanos; e 3) o homem, sua natureza e seu lugar no mundo. Segundo Wulf (2006WULF, C. Anthropologie de l’éducation. In: BEILLEROT, J.; MOSCONI, N. Traité des sciences et des pratiques de l’éducation. Paris: Dunod, 2006. p. 9-30), a preocupação dessa área consiste em entender a essência e a natureza do homem em geral. Nesse contexto, a Antropologia Filosófica realizou uma comparação entre o homem e o animal para identificar semelhanças e diferenças entre eles e captar a conditio humana, a “condição humana”. Por isso, a reflexão filosófica sobre o conhecimento biológico humano enxerga, nas características biológicas e morfológicas, as condições estabelecidas para a constituição da espécie humana.

Apesar do foco no ser humano, a Antropologia Filosófica falhou ao visar à diversidade histórica e cultural dos seres humanos e não conseguiu desenvolver um simples e coerente conceito de ser humano. Então, coube à Antropologia Histórica unir ciência histórica e questões antropológicas; e à Antropologia Cultural, pesquisar a diversidade dos seres humanos em diferentes culturas para produzir uma sólida base de material empírico e fazer grandes avanços nesse campo.

A Antropologia Histórica surgiu em 1929, na França, atrelada à fundação do periódico Annales (Anais). Seu objetivo consistiu em investigar situações elementares e experiências fundamentais dos seres humanos no plural. Depois de algumas décadas, emergiram novos estudos, constituindo-se, assim, a nova ciência histórica, a Nouvelle Histoire. O foco dessa ciência, explica Wulf (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.), são os seres humanos e as suas mudanças através dos tempos. Os ensaios publicados no periódico não foram orientados para as criaturas viventes como uma espécie, mas para a diversidade da vida humana em diversos períodos históricos, ao investigar sentimentos, experiências, pensamentos, ações, desejos e aspirações. O resultado é a considerável expansão dos objetivos das questões, abordagens e métodos consagrados à Antropologia. A Antropologia Histórica foi ampla e aberta em relação aos tópicos de sua pesquisa, como sexualidade e nascimento; infância, juventude e velhice; nutrição e vestuário; doença, agonia e morte; festivais, celebração, rituais, religião e estrangeiro, enfatizando as percepções, os sentimentos, as ações das pessoas, ou seja, sua visão de mundo e sua subjetividade.

A Antropologia Cultural, segundo Wulf (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.), foi uma área notadamente marcada pela interdisciplinaridade, cujas contribuições advêm de autores de diversas áreas, como Psicologia, Sociologia, Economia, Filosofia, e de estudos que envolvem visões peculiares sobre a dinâmica da sociedade (Karl Marx e Friedrich Engels), além de abordagens diversas: observação participativa e pesquisa de campo (Bronislaw Malinowski); perspectivas do funcionalismo estrutural (Alfred Radcliffe-Brown, Raymond Firth, Evans-Pritchard, Meyer Fortes e Edmund Leach); perspectivas estruturalistas (Emile Durkheim, Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss); análise do discurso (Michel Foucault); conceito de habitus e conhecimento prático (Pierre Bourdieu); desconstrução (Jacques Derrida); e pós-modernidade (François Lyotard, Jean Braudrillard e Paul Virilio). Esse intercâmbio interdisciplinar contribuiu para a diversidade da Antropologia Cultural, gerando uma quantidade enorme de trabalhos que ainda não foram necessariamente explorados, ressalta Wulf (2014)WULF, C. Antropologia, história, cultura, filosofia. São Paulo: Anablume, 2014..

A Antropologia Histórico-Cultural constitui-se de uma tentativa de unir diferentes perspectivas antropológicas em termos de conteúdo e método, considerando a culturalidade e a historicidade, explica Wulf (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.). As dimensões sincrônica e diacrônica são constitutivas da disciplina, pois observar as questões da Antropologia a partir dessas duas perspectivas abre novos rumos para a investigação dos fenômenos e estruturas no tempo presente. Com esse sentido, a pesquisa vem sendo conduzida ao colocar em dúvida o caráter normativo e compulsório da Antropologia convencional, bem como ao criticar o uso da razão e do progresso. Isso indica que se pode chegar a novas interpretações e aprimorar nosso entendimento e interpretação dos seres humanos, pois o objetivo da Antropologia Histórico-Cultural não consiste em encontrar aspectos constantes ou universais do ser humano, mas em enfatizar o caráter histórico e cultural daquilo que está sob investigação e as respectivas descobertas. Essas novas interpretações são pluralistas, frequentemente transdisciplinares e transnacionais, e refletem a respeito das possibilidades e limitações de seus achados. Hoje, a Antropologia Histórico-Cultural é um ponto focal nas ciências sociais e nas humanidades.

A pesquisa em Antropologia Histórico-Cultural não é uma disciplina acadêmica especializada ou uma pesquisa de campo de fronteiras claras, explica Wulf (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014., p. 223), mas

se refere a diversas formas de pesquisa transdisciplinar, as quais examinam fenômenos e estruturas da natureza humana sem aderir a uma norma científica aceita, abstrata ou abrangente [...] voltando-se para a diversidade plasmada pela historicidade e culturalidade dos seres humanos como ponto de partida.

Vieira (2017VIEIRA, K. A. L. Antropologia da educação: levantamento, análise e reflexão no Brasil. Curitiba: CRV, 2017.) expõe que os paradigmas antropológicos tiveram impacto na Antropologia Educacional Alemã e na educação. O desenvolvimento de uma Antropologia Educacional ocorre a partir de um confronto possível entre os citados cinco paradigmas da Antropologia Educacional Histórico-Cultural Alemã. Assim, as pesquisas têm desenvolvido, pela primeira vez, esforços em diferentes extensões, como diz Wulf (2015WULF, C. Pädagogische Anthropologie. Springer Fachmedien Wiesbaden, ZfE - Zeitschrift Erziehungswissenchaft, Berlin, v. 18, n. 1, p. 5-25, mar. 2015. ). Na Antropologia Evolutiva, as pesquisas têm evitado interpretações reducionistas em relação ao desenvolvimento evolutivo do comportamento atual das pessoas, e a relação entre as condições evolutivas e as possibilidades individuais para a ação deve ser examinada por seres humanos. Trata-se da extensão da validade do conhecimento evolutivo para a concepção de educação, formação e socialização. As pesquisas sobre evolução foram úteis para adquirir um conhecimento geral do homem e com isso torná-lo útil para a educação, enquanto que a Antropologia Filosófica comparou os seres humanos e os animais e teve importantes insights sobre a aprendizagem e a capacidade educacional, bem como sobre as oportunidades de educação e de socialização das pessoas.

Outra maneira de adquirir conhecimento educacional relevante sobre o ser humano foi oferecida pela Antropologia Histórica, que, em contraste com a Antropologia Filosófica, discorre sobre a importância especial e única do ser humano. Por exemplo, a mentalidade foi desenvolvida no seu quadro de investigação para a compreensão histórica da educação. A exploração do tema “educação e perfeição” ilustra a importância da dimensão histórica para a compreensão de práticas educativas. Com seu conceito de historicidade, a Antropologia Histórica influenciou consideravelmente a Antropologia Educacional.

Nos últimos anos, a pesquisa etnográfica e cultural dos fenômenos pedagógicos ganhou considerável importância. Isso é especialmente verdade para as investigações nos seguintes campos: socialização familiar, escola, juventude, cultura e meios de comunicação social e também para o estudo de fenômenos interculturais. Na lógica da Antropologia Cultural, o homem encontra-se não “atrás” da diversidade das suas características históricas e culturais, mas nelas. Portanto, essa lógica não é suficiente para identificar, por exemplo, “geração”, “família” e “educação” como universais culturais. Em vez disso, é necessária a investigação de tais instituições em diferentes culturas.

A Antropologia Histórico-Cultural utilizou, na pesquisa em Antropologia Educacional nos últimos vinte anos, o rastreamento de questões relativas às imagens humanas e a seus efeitos teóricos e práticos. O ser humano foi investigado em diferentes campos e disciplinas de ensino, em representações antropológicas e em suas implicações e consequências educacionais.

Esses estudos se reuniram repetidas vezes nas fronteiras da investigação disciplinar e levaram ao desenvolvimento de perspectivas inter e transdisciplinares, como mostram Wulf e Zirfas (2014WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie. Berlin: Springer , 2014.). Isso correspondeu, também, ao fato de que Antropologia Educacional é uma área de pesquisa inter ou transdisciplinar cujos limites são alterados dinamicamente, e cujo campo é complexo, constituindo-se cultural e historicamente diferente. Assim, a Antropologia Educacional é concebida de forma diferente na Índia, na China ou no Japão, de modo que a inter ou a transculturalidade são de interesse significativo para seu campo de estudos, pois dizem respeito à questão do que é comum nas pessoas em toda sua diferença histórica e cultural.

Conclusão

Os estudos e as pesquisas mais recentes da Antropologia Educacional consideram as formas de conhecimento antropológico e educacional plurais. A Antropologia Educacional é, atualmente, pluralista, isto é, baseia-se em conhecimentos de diferentes disciplinas e de diferentes culturas; sendo assim, podemos dizer que o campo de conhecimento da AEHCA é interdisciplinar, transdisciplinar, intercultural e transcultural. Logo, em sua constituição teórica e epistemológica, cujas bordas e contornos estão desfocados e contêm a sobreposição de diversas formas de conhecimento (filosofia, história, antropologia, biologia, psicologia, teologia, estética etc.), é discutida criticamente a imagem do ser humano na educação e ressaltada a importância das dimensões básicas educacionais e dos paradigmas antropológicos, impactando a constituição da Antropologia Educacional.

É importante pensar, então, que a AEHCA gera novas questões educacionais, científicas, contextuais e perspectivas. Isso gera um conhecimento antropológico plural e tem consequências para a educação, como expõe Wulf (2001WULF, C. (Org.). Einführung in die Anthropologie der Erziehung. Weinheim: Beltz , 2001. ):

  1. A Antropologia Educacional torna-se uma Antropologia Educacional Histórico-Cultural, pois leva em conta a dupla historicidade e a culturalidade do sujeito e do pesquisador. Assim, relaciona a historicidade e a culturalidade de seu objeto ao outro, com o objetivo de investigar a aparência humana e os modos de expressão sob certas condições históricas, sociais e culturais. Essa perspectiva de pesquisa promove a renúncia a uma visão global do ser humano, por isso não está limitada a um espaço cultural nem a uma época específica.

  2. O objeto da Antropologia Educacional consiste em resolver a tensão entre perfeição e incorrigibilidade e em determinar as possibilidades e limitações da educação e da formação humana; sua abordagem faz uma crítica séria à imagem do ser humano e aos limites de sua fabricação biológica, social e cultural.

  3. A Antropologia Educacional deve incluir em sua autocompreensão uma crítica à comparação humano-animal em suas reduções antropológicas, assim como à inadequação das atuais distinções entre natureza e cultura e aos perigos de uma redução objetivista do ser humano. A Antropologia Crítica explora os principais conceitos, modelos e métodos da Antropologia Educacional e explora as condições epistemológicas do conhecimento da Antropologia e da Educação.

  4. A Antropologia Educacional tem a observação, a ordem e, se necessário, a reavaliação e a geração de conhecimento nas Ciências da Educação e, nesse contexto, a desconstrução de conceitos pedagógicos importantes sob uma perspectiva antropológica. Isso pode, por exemplo, levar a uma desconstrução da “educação negativa” de Rousseau, da “educação elementar” de Pestalozzi ou da “formação universal” de Humboldt. Tal processo é para mostrar como obter, sob novos ângulos antropológicos e epistemológicos, perspectivas e conceitos centrais da educação em um sentido até então despercebido.

  5. A Antropologia Educacional inclui a reflexão sobre as possibilidades e os limites do seu conhecimento, por isso é reflexiva.

  6. O conhecimento antropológico-educacional se constitui de vários discursos bastante contraditórios. Os discursos contribuem para a construção de percepções pedagógicas, questões, estruturas e termos e neles estão expressas as relações de poder da sociedade e as instituições de ação pedagógica. No âmbito dos conhecimentos antropológicos, os discursos estão articulados educacionalmente sobre o pensamento pedagógico, agindo com questões importantes, perspectivas e insights.

  7. A Antropologia Educacional parte de um princípio pluralista. Assim, evita o endurecimento prematuro do seu conhecimento e o mantém aberto. Nesse sentido, o pluralismo é uma abertura fundamental para o trabalho interdisciplinar ou transdisciplinar, cujo objetivo não é reduzir, mas ampliar a complexidade do conhecimento antropológico, isto é, do conhecimento histórico-educacional constituído sob condições linguístico-culturais específicas, ao mesmo tempo que o contexto internacional é também cada vez mais importante.

  8. A Antropologia Educacional, nos dias de hoje, surge de questões quanto à relevância social, institucional, científica e prática do conhecimento educacional escolar. Logo, contribui para a produção de conhecimento educacional e para o desenvolvimento de novos projetos para as próximas gerações.

  9. Na Antropologia Educacional, as fronteiras entre as diferentes formas de conhecimento estão sendo desfeitas e, com isso, estão surgindo novas formas de conhecimento na área da educação, como a educação estética; a educação intercultural. A primeira está diretamente relacionada com o desenvolvimento de novos meios de comunicação, e a segunda, aos acontecimentos políticos surgidos na Europa e às condições resultantes para a educação, a aprendizagem e a experiência.

  10. A Antropologia Educacional é uma antropologia construtiva, ou seja, ela não espera capturar a “essência” do ser humano na pesquisa antropológica nem refletir sobre esse ser. Em vez disso, ela entende que a compreensão da humanidade depende de condições particulares, é histórica e deve ser entendida como construção. A esse respeito, os sistemas normativo-dedutivos que produzem o conhecimento em Antropologia Educacional estão desatualizados, portanto, é necessária uma Antropologia Educacional histórica, cultural, construtiva e reflexiva.

Essas considerações levam à orientação, à interpretação e à ampliação dos horizontes educacionais ao criticar a normatividade e considerar a pluralidade e a globalidade. A abordagem pluralista também leva à reflexão e à autorreflexão.

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  • WULF, C.; ZIRFAS, J. (Orgs.). Handbuch Pädagogische Anthropologie Berlin: Springer , 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2017
  • Revisado
    19 Fev 2018
  • Aceito
    12 Mar 2018
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