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Violência contra as mulheres por parceiros íntimos: usos de serviços de saúde

Resumos

OBJETIVO: Estimar a associação entre violência por parceiro íntimo (VPI) e uso de serviços de atenção primária à saúde em São Paulo. MÉTODOS: Estudo transversal com seleção dos serviços por amostragem de conveniência e de mulheres usuárias desses serviços por amostragem do tipo consecutivo. As unidades amostrais finais de 2.674 mulheres de 15 a 49 anos de idade foram categorizadas, segundo a ocorrência e repetição de episódios de qualquer tipo de VPI na vida, como "não", "sim com alguma repetição" e "sim com muita repetição". Por meio de regressão logística polinomial, testou-se a associação entre VPI, uso de serviços de saúde e diagnósticos ou queixas das mulheres usuárias (tipo e frequência de registro), ajustadas pelas variáveis sociodemográficas e de saúde sexual e reprodutiva. RESULTADOS: Foi observada uma prevalência de 59% de VPI independente de sua repetição. O maior número de consultas mostrou-se associado com VPI repetitiva, após o ajuste dos efeitos de possíveis variáveis de confundimento. Os diagnósticos e/ou queixas de agravos psicoemocionais registrados, mais de uma vez, no último ano, mostraram-se associados com VPI, aumentando sua magnitude com a maior repetição da violência. CONCLUSÕES: É crucial um maior diagnóstico dos casos de VPI entre mulheres usuárias dos serviços de saúde, bem como a implementação de ações que previnam a violência e de cuidado relativamente às necessidades particulares de saúde dessas mulheres. Tais medidas, se adotadas, produzirão impactos também no padrão de uso dos serviços.

Violência contra a mulher; Uso de serviços de saúde; Agravos à saúde; Problemas psicoemocionais; Violência por parceiro íntimo; Repetição de episódios de violência


OBJECTIVE: To estimate the association between intimate partner violence (IPV) and use of primary healthcare services in São Paulo. METHODS: This is a cross-sectional study based on a convenience sample of healthcare services, and on a consecutive type sample of women users of those healthcare facilities. The final sample of 2,674 women 15 to 49 years was classified according to occurrence and repetition of episodes of any type of lifetime IPV as: "no", "yes with some repetition" and "yes with a lot of repetition". Association between IPV, use of health healthcare facilities and diagnoses or health care demands (types and frequency of registration) of women users was tested by polynomial logistic regression analysis, and adjusted for sociodemographic and sexual and reproductive health variables. RESULTS: An IPV prevalence of 59% regardless of its repetition was observed. The highest number of visits was associated with repetitive IPV, after adjusting for the effects of potential confounders. Even after adjusting for the effects of possible confounders, the diagnostic and / or psycho-emotional complaints of injuries reported more than once in the past year were associated with IPV, increasing its magnitude with the highest repetition of violence. CONCLUSIONS: Better diagnosis of cases of IPV among women users of healthcare services is crucial as is the implementation of actions to prevent violence and to provide health care for the special needs of these women. The adoption of these measures will impact the pattern of use of healthcare services.

violence against women; use of health services; damages to health; psycho-emotional problems; intimate partner violence; repeated episodes of violence


ARTIGOS ORIGINAIS

Violência contra as mulheres por parceiros íntimos: usos de serviços de saúde

Lilia Blima SchraiberI; Cláudia Renata dos Santos BarrosI, II; Euclides Ayres de CastilhoI

IDepartamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

IIFaculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

Correspondência Correspondência: Lilia Blima Schraiber Departamento de Medicina Preventiva Faculdade de Medicina Universidade de São Paulo Av. Dr. Arnaldo, 455 2º andar Cerqueira Cesar São Paulo, SP CEP 01246-903 E-mail: liliabli@usp.br

RESUMO

OBJETIVO: Estimar a associação entre violência por parceiro íntimo (VPI) e uso de serviços de atenção primária à saúde em São Paulo.

MÉTODOS: Estudo transversal com seleção dos serviços por amostragem de conveniência e de mulheres usuárias desses serviços por amostragem do tipo consecutivo. As unidades amostrais finais de 2.674 mulheres de 15 a 49 anos de idade foram categorizadas, segundo a ocorrência e repetição de episódios de qualquer tipo de VPI na vida, como "não", "sim com alguma repetição" e "sim com muita repetição". Por meio de regressão logística polinomial, testou-se a associação entre VPI, uso de serviços de saúde e diagnósticos ou queixas das mulheres usuárias (tipo e frequência de registro), ajustadas pelas variáveis sociodemográficas e de saúde sexual e reprodutiva.

RESULTADOS: Foi observada uma prevalência de 59% de VPI independente de sua repetição. O maior número de consultas mostrou-se associado com VPI repetitiva, após o ajuste dos efeitos de possíveis variáveis de confundimento. Os diagnósticos e/ou queixas de agravos psicoemocionais registrados, mais de uma vez, no último ano, mostraram-se associados com VPI, aumentando sua magnitude com a maior repetição da violência.

CONCLUSÕES: É crucial um maior diagnóstico dos casos de VPI entre mulheres usuárias dos serviços de saúde, bem como a implementação de ações que previnam a violência e de cuidado relativamente às necessidades particulares de saúde dessas mulheres. Tais medidas, se adotadas, produzirão impactos também no padrão de uso dos serviços.

Palavras-chave: Violência contra a mulher. Uso de serviços de saúde. Agravos à saúde. Problemas psicoemocionais. Violência por parceiro íntimo. Repetição de episódios de violência.

Introdução

É expressiva a presença nos serviços de saúde de mulheres que estão ou estiveram em situação de violência em suas relações afetivo-conjugais, sendo seus tipos mais estudados as violências psicológica, física e/ou sexual por seus parceiros íntimos (VPI). Extensa revisão de estudos norte-americanos publicados entre 1993 a 2003 sobre VPI1 mostra, entre usuárias da atenção primária, prevalências de 20% a 40% de violência física ao menos uma vez na vida, e de 40% a 54% na vida para mais de um tipo de violência. Já para violência no último ano, o mesmo estudo aponta as prevalências 7% a 9% entre suas usuárias para a violência física, e de 13 a 18% para qualquer tipo de violência. Outros estudos reiteram essas altas prevalências entre usuárias dos serviços, mostrando de 20 a 54% de violência física e/ou sexual por parceiro ao menos uma vez na vida, e de 12% a 25% no último ano2-6. No Brasil, pesquisas com usuárias da atenção primária e serviços de emergência apontam prevalências de VPI do tipo físico entre 38% a 40% na vida e de violência sexual, também na vida, entre 9% a 21%7-10. Em termos dos agravos à saúde, Plichta (2004)1 mostra associações da violência com efeitos imediatos, como as lesões e traumas que levam as mulheres aos serviços de emergência, tanto quanto efeitos indiretos e de longo prazo, como as dores crônicas, problemas gastrintestinais, fibromialgias, doenças sexualmente transmissíveis, infecções urinárias de repetição, problemas com a menstruação e disfunções sexuais, entre outras. Seu estudo chama a atenção para as altas taxas de associação da violência, medidas pela odds ratio, com o comprometimento da saúde mental das usuárias. Nos Estados Unidos da América do Norte, pesquisas realizadas ainda na última década do século XX11,12 já apontavam para o fato de que as mulheres que vivem em situação de violência fazem uso mais intenso dos serviços de saúde, tanto ambulatoriais como hospitalares, delineando assim uma clientela expressiva e específica, questão que tem sido mais estudada a partir dos anos 2000. Embora o tema seja pesquisado internacionalmente, não há nenhum estudo brasileiro que caracterize o perfil de consumo, mostrando o número de diferentes consultas ou o número de vezes em que o serviço é usado, por ano, por parte das mulheres em situação de violência. Encontram-se disponíveis poucos estudos das prevalências dessas mulheres entre a clientela de determinados serviços7,8,10,13 e até um estudo populacional que aponta apenas para o consumo de consultas por problemas emocionais e internações psiquiátricas14, mas nenhum outro padrão de uso. Diante desse quadro, o presente trabalho buscou estimar a associação da violência por parceiro íntimo com uso aumentado de serviços de atenção primária em São Paulo, buscando-se qualificar esse uso em termos das demandas por cuidado. Para tal, analisou-se parte de dados de pesquisa realizada em serviços da rede pública da Grande São Paulo (SUS-GSP) cujo objetivo primário foi estimar a prevalência de casos de mulheres em situação de violência, no último ano e na vida, entre usuárias desses serviços13.

Material e Método

Estudo transversal com seleção dos serviços por amostragem de conveniência, cujos critérios foram volumes de demanda entre 800 a 1.000 atendimentos/mês; presença de equipe multiprofissional; serviços com funcionamento regular e capazes de serem referências em suas regiões para atendimentos de casos de violência; prontuários médicos com bom acesso e qualidade das anotações; garantia de privacidade nas entrevistas; sensibilidade da "chefia" e das equipes ao problema; e pertencimento a distintas regiões administrativas de saúde. A seleção dos serviços respeitou a distribuição geográfica nas regiões Norte, Sul, Centro, Oeste e Leste do Município de São Paulo, abrangendo ainda os Municípios de Santo André, Diadema e Mogi das Cruzes da Grande São Paulo.

Os sujeitos da pesquisa - mulheres entre 15 a 49 anos a serem entrevistadas por aplicação de questionário face a face - foram selecionados por amostragem do tipo consecutiva, por ordem de chegada à unidade13. Essa amostra foi estabelecida de modo independente, para cada um dos 9 sítios de investigação em que foram agrupados 19 serviços de saúde participantes da pesquisa. Seu cálculo e distribuição por sítio encontram-se detalhados em outra publicação13, destacando-se que o total de entrevistas aplicadas em cada sítio por períodos do dia (manhã e tarde) e dia da semana foi distribuído de modo proporcional ao volume usual de demandas de cada serviço, a cada dia e período.

Para o presente trabalho, das 3.193 mulheres pesquisadas nos 19 serviços, a amostra foi composta só por aquelas usuárias da atenção primária e com um ano ou mais de tempo de usuária no serviço, o que correspondeu a 2.674 usuárias de 18 serviços. Esse recorte objetivou a investigação do uso do serviço, feito com as informações do questionário e as registradas nos prontuários médicos das entrevistadas.

As variáveis independentes relativas às características sociodemográficas foram: idade, em anos; estado marital; anos de estudo; cor da pele; religião.

As variáveis que medem aspectos da saúde sexual e reprodutiva foram: número de gestações e idade da primeira relação sexual.

Em relação ao uso dos serviços, foram coletadas informações sobre o número de consultas feitas no último ano e sobre quais os diagnósticos e/ou queixas das usuárias anotados a cada consulta e suas repetições ao longo do último ano, o que permitiu estimar as demandas por cuidado, feitas pelas mulheres, quanto aos seus tipos e ao número de vezes com que foram registrados nos prontuários. No que tange às consultas, estipulou-se o corte em 5 consultas. Esse critério seguiu aquele usualmente adotado na maior parte dos estudos disponíveis na literatura1,15-17, os quais em geral delimitam tal uso de serviço com base na procura espontânea pela mulher. Procedendo também dessa forma, do uso do serviço analisado no presente trabalho foram excluídas as situações em que a frequência de uso é provocada pelo serviço, tais como os diversos tipos de retornos programados com base na modalidade de cuidado ofertado, neste caso os retornos ligados à assistência em saúde mental e à assistência durante o pré-natal. Quanto aos diagnósticos/queixas levantados, eles foram agrupados pelos tipos: psicoemocional, ginecológico, problemas gastrintestinais, dor no corpo (exceto a dor pélvica e a gastrintestinal) e realização de exames sorológicos para detectar infecção pelo HIV e para outras infecções sexualmente transmissíveis. Essas variáveis foram categorizadas quanto à frequência de seus registros nos prontuários, considerando-se nenhum, um e mais de um registro.

A variável dependente foi "ter experimentado qualquer tipo de violência por parceiro íntimo", considerando a frequência com que ocorreram os episódios, com base nas perguntas se os episódios ocorreram uma, poucas ou muitas vezes, agrupando-se uma e poucas vezes na categoria "alguma repetição". Foi considerada a violência experimentada ao menos uma vez na vida e não somente a do último ano, com base em estudos que mostram que experimentar violência tem impactos de longo prazo na saúde, podendo acarretar maior uso dos serviços ou a presença de agravos mesmo após terem cessados os episódios18,19.

As situações de violência experimentadas foram indagadas por atos bem discriminados e como perguntas relativas a cada um dos tipos de violência examinado: psicológico, físico e sexual, como detalhado em outras publicações do instrumento utilizado9,13,20 e validado para diferentes contextos brasileiros. Cada tipo de violência compreendeu diversos itens relativos aos atos de agressão, tendo a psicológica 4 itens, a física 6 itens e a sexual 3 itens.

A coleta de dados por aplicação dos questionários foi realizada por profissionais treinados em abordagens de temas "sensíveis". A leitura dos prontuários médicos foi realizada por profissionais familiarizados com os serviços pesquisados e seus registros, com treinamento específico na ficha padronizada de leitura, elaborada para esse fim, e sob monitoramento por supervisão especializada. Maior detalhamento dos instrumentos e trabalho de campo encontra-se em Schraiber et al. (2007)13, incluindo as perguntas sobre cada tipo de violência: psicológica, física e sexual.

Em termos da ética em pesquisa, houve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina/Hospital das Clínicas da FMUSP, em 12/05/2000. Recorreu-se ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, além de outras medidas éticas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde para temas sensíveis como a violência9,20.

Análise dos dados

A análise descritiva é apresentada por meio das frequências absolutas e relativas. A estatística-teste de X2 de Pearson e o teste exato de Fisher foram usados para análise de associação entre duas variáveis, a um nível de significância de 0,5%.

No modelo multivariado para teste de associação conjunta das variáveis relativas ao uso de serviço e VPI, foi conduzida uma análise de regressão logística polinomial, usando-se o pacote estatístico Stata 10.0. A variável de referência foi não ter experimentado nenhuma VPI na vida. As variáveis independentes que apresentaram p < 0,20 na análise univariada (qui-quadrado) foram selecionadas para o modelo múltiplo para obtenção da Odds Ratio. O modelo de análise utilizado testou a associação da VPI com o uso de serviço, incluindo outras variáveis preditoras (independentes) para efeito de ajuste, mas sem se debruçar detalhadamente em suas associações específicas. A opção por este tipo de modelagem, a que nomeamos de "tipo confirmatório", deve-se ao fato de se tentar destacar (confirmar) a relevância da violência como fator de impacto na frequência do uso de serviços de saúde e na repetição de queixas ou diagnósticos registrados, enfatizando-se a permanência dessa associação.

Resultados

As mulheres analisadas têm, em sua maioria, entre 19 e 28 anos idade, são casadas ou vivem em "união livre", têm 9 a 11 anos de estudo, cor de pele não-negra e pertencem à religião católica. A maioria delas experimentou algum tipo de VPI na vida, sendo a maior parte com pouca repetição dos episódios (Tabela 1).

Ainda na Tabela 1 observa-se que a maior parte das mulheres teve de 1 a 3 gestações e iniciou a vida sexual após os 15 anos. Quanto ao número de consultas, a maioria fez menos de 5 consultas no último ano. Nos diagnósticos e queixas registradas em prontuário, foi observada relevante prevalência de registros anotados mais de uma vez de agravos como os psicoemocionais, ginecológicos, gastrintestinais e dores no corpo, indicando serem estes os tipos de diagnósticos ou queixas anotados, e que o são muitas vezes.

As variáveis referentes ao uso de serviços incluídas no modelo polinomial foram: o número de consultas, agravos psicoemocionais e dores no corpo. O modelo final foi ajustado por todas as variáveis sociodemográficas, de saúde sexual e reprodutiva.

O número de mais de 5 consultas no último ano mostrou-se associado a VPI de muita repetição, após o ajuste das demais variáveis. Os diagnósticos e/ou queixas psicoemocionais, registrados mais de uma vez no último ano, mostraram-se associados a VPI independente da repetição de seus episódios. Ainda, observa-se um aumento crescente das magnitudes das associações à VPI de muita repetição. No entanto, mesmo quando as mulheres foram diagnosticadas com esses agravos em apenas uma vez no último ano essa ocorrência está associada à VPI de muita repetição (Tabela 2).

As dores no corpo não se mostraram associadas à VPI de alguma repetição em nenhuma etapa da análise. VPI de muita repetição que se mostrou associada na análise univariada, após o ajuste para as demais variáveis independentes no modelo multivariado, perdeu a associação (Tabela 2).

Discussão

O presente estudo reitera aqueles outros mencionados não apenas ao apontar para o uso maior de serviços de saúde por parte das mulheres que experimentam ou já experimentaram violência por seus parceiros íntimos, mas também por confirmar que esse maior uso relaciona-se à gravidade maior da situação de violência, bem como à sua reiteração, em nosso caso avaliada pela alta repetição dos episódios. Pode-se afirmar, assim, com base nos resultados encontrados, que as mulheres que convivem com VPI repetitiva apresentam maior frequência de uso de serviços de saúde e de agravos à sua saúde, em especial problemas de saúde mental, este dado corroborando outro estudo brasileiro14. Assim, Fanslow e Robinson (2004)21, em estudo de base populacional, mostram que mulheres de 15 a 49 anos que relataram VPI apresentaram uma razão de Odds duas vezes maior de ida a serviço de saúde nas últimas 4 semanas prévias à investigação do que aquelas que não relataram episódios de violência. Já Kernic, Wolf e Holt (2000)22, em estudo caso-controle, realizado com mulheres de 18 a 44 anos, mostraram que há, entre as mulheres-casos (as que haviam solicitado ordem judicial de proteção contra seus parceiros íntimos no ano anterior à pesquisa), em comparação com as do grupo controle, um risco relativo de 2,1 para a internação por qualquer diagnóstico, e riscos relativos aumentados para tentativa de suicídio (3,7), diagnósticos psiquiátricos (3,6), lesões e envenenamentos (1,8) e agravos do sistema digestivos (1,9).

Outra questão a se apontar está no fato de que, embora no presente trabalho não se tenha examinado o impacto em custos financeiros desse maior uso dos serviços, este impacto é relevante, sobretudo para a atenção primária. Coker et al. (2004)23 apontam um risco 3 vezes maior entre mulheres com VPI do tipo físico no último ano, comparativamente àquelas sem VPI, de despesas acima das médias usuais, quer para consultas com médicos, medicamentos, gastos hospitalares e gastos totais com saúde. Ulrich et al. (2003)24, em estudo, com mulheres de 18 anos ou mais, mostraram que, para as mulheres que sofrem violência doméstica, após ajuste para co-morbidades de doenças crônicas, havia um aumento entre 1,6 a 2,3 vezes nos custos da assistência. Ademais, este último estudo mostra um uso muito maior da atenção primária relativamente a outros serviços, o que é corroborado por Loxton et al. (2004)6, em estudo populacional nacional com 14.100 mulheres entre 45-50 anos.

No mesmo sentido, Rivara et al. ( 2007)19, em estudo longitudinal de coorte com mulheres de 18 a 64 anos, comparando aquelas com (n = 1.546) e sem história de VPI (n = 1.787), concluíram que as visitas a serviços primários, especializados ou de farmácia, foram em número entre 14 a 21% maior para as mulheres com VPI, e para estas o número de visitas à atenção primária foi maior do que para serviços especializados. As frequências foram maiores durante o período da VPI e decresceram após a cessação da violência. Contudo, mesmo 5 anos após ter cessado a VPI, as mulheres com história pregressa apresentaram significantemente taxas maiores para todos os tipos de serviços estudados (saúde mental, serviços para controle de uso de álcool/drogas, ambulatórios hospitalares e serviço de emergência), exceto para as internações.

Esses dados, assim como nossos resultados, apontam para o quanto os serviços de atenção primária são importantes para as mulheres que sofrem de VPI e o quanto um aprimoramento de sua atenção seria relevante para a saúde dessas mulheres. Esse aspecto é crucial para a melhor equidade da assistência e o reconhecimento dos direitos das mulheres, sem falar da melhoria na economia da prestação de serviços que o sistema de saúde como um todo pode ter.

Por outro lado, embora alguns autores apontem a associação entre VPI e agravos como dor crônica1,25, neste trabalho essa associação, observada na analise univariada, não se manteve na análise multivariada. Esse resultado pode ser atribuído ao tamanho de amostra utilizado, podendo indicar já uma das limitações do presente estudo. Outra limitação é ser do tipo transversal, impedindo que se faça uma análise da VPI em relação ao tempo, impossibilitando a estimação de impactos da violência de modo mais preciso.

Mesmo assim, ao ser o primeiro estudo brasileiro da relação entre a VPI e a fre-quência de consumo dos serviços de saúde do tipo atenção primária, além da modalidade de consulta buscada, nossos achados já apontam a associação entre a ocorrência de VPI e a alta frequência de procura dos serviços, tal qual mostram os estudos internacionais apontados. Também se verifica a associação da VPI com determinados agravos para a saúde das mulheres que sofrem a violência, confirmando a importância de seu impacto em termos de saúde mental. As associações observadas mostram importantes questões da qualidade de vida das mulheres que experimentam VPI e que devem ser enfrentadas, bem como o descompasso dos serviços em sua atenção, uma vez que poucos reconhecem esses casos13,26,27.

Conclusão

Tal resultado, portanto, já permite concluir pela necessidade de maior diagnóstico desses casos entre usuárias de serviços de saúde. Ademais, indicam a necessidade de implantação de ações que não apenas cuidem das particularidades nos agravos à saúde das mulheres com VPI, mas principalmente que previnam e controlem a violência, com o que ocorrerão impactos também no padrão de uso dos próprios serviços.

Recebido em: 28/01/10

Versão final reapresentada em: 03/03/10

Aprovado em: 19/04/10

A pesquisa em que se baseou este estudo foi financiada pela FAPESP, Linha Políticas Públicas, Processo nº 98/14070-9.

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  • Correspondência:
    Lilia Blima Schraiber
    Departamento de Medicina Preventiva
    Faculdade de Medicina
    Universidade de São Paulo
    Av. Dr. Arnaldo, 455 2º andar Cerqueira Cesar
    São Paulo, SP CEP 01246-903 E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      08 Dez 2010
    • Aceito
      19 Abr 2010
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