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O colonato em sua concretude

BASSANEZI, Maria Sílvia B. Colonos do café. São Paulo: Editora Contexto, 2020

Na historiografia paulista que acompanha a transição entre a utilização do trabalho escravo e a mão de obra imigrante, o chamado regime de colonato ocupa um lugar-chave (MARTINSMARTINS, J. S. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2013., 2013; HOLLOWAYHOLLOWAY, T. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo (1886-1934). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984., 1984). Em outros estados que também receberam fluxos significativos de imigrantes, como os da região Sul do país e mesmo o Espírito Santo, vigeu um modelo de colonização que se fez, sobretudo, pela distribuição de lotes de terras. De modo diferente, no caso do estado de São Paulo, como fruto de depurações sucessivas que o latifúndio cafeeiro testou, desenvolveu-se aos poucos um sistema de remuneração familiar mista, que combinava pagamentos monetários (pelo plantio, cuidado com o cafezal e colheita) e cessão de pequenas áreas (para cultivo próprio e criação), que acabou alicerçando todo o desenvolvimento da cafeicultura paulista por pelo menos meio século, e em sua fase mais áurea.

O livro de Maria Sílvia Bassanezi, reelaborado a partir da tese de doutorado da autora defendida no início dos anos 1970, trata dos personagens deste regime singular – os colonos do café. Contudo, não aborda o tema de forma genérica, mas sim analisando, à exaustão e com uma riqueza impressionante de detalhes e de fontes, o caso da Fazenda Santa Gertrudes, localizada na região entre Limeira e Rio Claro. A obra tira daí sua força, pois consegue nos revelar o funcionamento preciso do regime de colonato, encarnado em trajetórias familiares inseridas em uma fazenda modelar. Modelar não tanto por sua tipicidade, que pode ser questionada, mas sim pelo que a propriedade agrícola significava em termos de funcionar como um modelo bem-sucedido, a ser imitado e divulgado no país e no exterior.

A obra é estruturada em sete capítulos contidos entre breves textos introdutório e de fecho. O primeiro deles, “Um lugar para trabalhar e viver”, apresenta a fazenda: sua formação, a chegada da ferrovia em 1876, sua crescente ampliação incorporando áreas vizinhas, ainda sob a direção de Joaquim de Souza Aranha, o marquês de Três Rios, a estrutura da fazenda e a adoção progressiva de várias “modernidades” que granjearam ao estabelecimento agrícola grande reputação.

O segundo capítulo, “Famílias para a faina do café”, focaliza as famílias trabalhadoras propriamente ditas – a maior parte delas, mas não exclusivamente, de origem italiana –, que compuseram o colonato da fazenda. A autora traça as disputas e as estratégias de recrutamento de mão de obra (em particular a utilização de redes de parentesco), o funcionamento do colonato, os contratos e seu regime remuneratório, o perfil das famílias colonas, além de discutir suas possibilidades de ganho e poupança.

O capítulo seguinte – “De sol a sol” – enriquece nossa compreensão da mão de obra empregada na fazenda para além do colonato, ao focar uma gama de ofícios e ocupações variadas, a hierarquia, o prestígio e as obrigações subjacentes aos cargos, a rotatividade da mão de obra e a sazonalidade dos trabalhos.

O quarto capítulo – “Cotidiano, lazer, religiosidade e instrução” – agrupa os temas relacionados ao dia a dia das famílias: a centralidade do trabalho para adultos, jovens e crianças, a moradia, a roupa e a alimentação cotidianas, as possibilidades de lazer, assistência religiosa e educação disponíveis.

Como convém a uma autora especialista em demografia histórica, os últimos três capítulos – “Casamentos”, “Gerar, nomear e batizar filhos” e “As enfermidades e a morte” – analisam o nascer, o casar e o morrer, na qualidade de eventos vitais à reprodução das famílias colonas trabalhadoras da Santa Gertrudes. Em particular, chama a atenção o minucioso trabalho de recomposição de tábuas genealógicas ilustrativas das formações familiares, muito embora a autora não considere, em sua análise, os contingentes relativos, por sexo, de todos os grupos da fazenda, o que nos daria uma medida mais precisa da endogamia.

De qualquer modo, tal lacuna é largamente compensada pela abundância de dados relativos às temporalidades do nascer e do casar, sempre associadas ao ciclo agrícola, aos critérios e funções do compadrio e da escolha de nomes e às ocorrências de doenças, especialmente o tracoma, e epidemias que grassavam na propriedade, que, não obstante sua “modernidade”, pouco logrou em diminuir a incidência de doenças e de mortes, generalizadas no oeste paulista, entre os trabalhadores.

Outro aspecto que também chama a atenção no texto é o protagonismo de Eduardo Prates, proprietário da fazenda entre 1894 e 1928. Embora residisse na capital paulista, ele acompanhava meticulosamente tudo o que se passava na fazenda: as condições climáticas; os trabalhos desenvolvidos; o volume de café colhido e expedido; os trabalhadores contratados e demitidos; os pagamentos executados; etc. Fazia-o por meio de um controle rígido das correspondências trocadas com o administrador da mesma, expedidas diariamente pelo trem, que não tardava mais de cinco horas para chegar à capital. Foi ele o responsável por grande parte das “modernidades” implementadas, como o levantamento topográfico da propriedade, a melhoria das casas, a iluminação a gás e, em seguida, à eletricidade, a linha telefônica e o maquinário mais moderno. Por outro lado, o estímulo às atividades religiosas e mesmo a implantação de um cinema na propriedade são evidências contundentes de que o proprietário não descuidava de suas relações com os colonos, na prática de um paternalismo que procurava atenuar demandas e movimentos mais contestatórios.

Ainda que sob o mesmo regime de colonato, hoje sabemos que o interior cafeeiro paulista abrigou experiências de trabalhadores rurais muito diversas, que variaram segundo a região onde se localizava a propriedade, a época de sua formação e seu tamanho, a composição da mão de obra empregada, a índole do proprietário, etc. Esta obra enriquece nossa compreensão ao retratar com precisão as vicissitudes do trabalho e da organização rural em um estabelecimento sob muitos aspectos considerado modelar, localizado no chamado “velho oeste paulista”. Muito do que sabíamos apenas de forma geral adquire concretude inédita neste trabalho, que trata com cuidado a documentação preservada e os dados obtidos em entrevistas, cerca de meio século atrás.

Ricamente ilustrado e permeado por muitas histórias familiares, o livro é ainda redigido com simplicidade, clareza e elegância, o que torna sua leitura agradável, não apenas para acadêmicos interessados no tema, mas também para o público leigo, em particular o segmento expressivo da população paulista com raízes familiares no colonato, que assim poderá aproximar e reconhecer muitas das experiências de seus antepassados.

References

  • MARTINS, J. S. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2013.
  • HOLLOWAY, T. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo (1886-1934). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2020
  • Aceito
    27 Fev 2020
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