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Adaptação aos Impactos das Mudanças Climáticas na Perspectiva do Plano Diretor da Cidade do Recife

Resumo

É complexa a tarefa de definir medidas de adaptação às mudanças climáticas diante da existência de demandas sociais, ambientais e econômicas, sobretudo em cidades que apresentam infraestrutura urbana deficiente. Como resultado da análise do processo de revisão do Plano Diretor do Recife (PDDR), vê-se que a redução das vulnerabilidades socioambientais implica a realização de estudos mais consistentes, que possam acarretar a implementação de medidas estruturadoras, e que a sustentabilidade ambiental demanda uma governança multinível, com reformas políticas em escala global, regional e local, de difícil aplicação no curto prazo, mas necessárias para reorientar as políticas do clima e superar a inabilidade de prover os recursos para uma infraestrutura adequada à adaptação. O caminho para construir uma cidade resiliente, que proporcione um ambiente mais seguro para as futuras gerações, depende de um modelo de desenvolvimento inclusivo, que permita melhorar as condições urbanas para a população e minimizar os impactos ocasionados pelos eventos climáticos extremos.

Palavras-chave:
Planejamento Urbano; Adaptação; Sustentabilidade; Resiliência; Gestão Ambiental

Abstract

Defining measures for climate change adaptation is a complex task given the existence of social, environmental, and economic demands, particularly in cities with poor urban infrastructure. As a result of analyzing the revision process of the Recife Master Plan, it is possible to observe that a reduction in the social and environmental vulnerabilities has implied carrying out more consistent studies, which may entail the implementation of structuring measures, and that environmental sustainability requires multilevel governance, with policy reforms on a global, regional and local scale, difficult to implement in the short term, although necessary for refocusing climate policies and for overcoming the inability to provide resources for a tailored adaptation infrastructure. The path to building a resilient city that provides a safer environment for the future depends on an inclusive development model, which enables the population to improve urban conditions and minimize the impacts brought about by extreme weather events.

Keywords:
Urban Planning; Adaptation; Sustainability; Resilience; Environmental Management

Introdução

A cidade do Recife, em Pernambuco, apresenta vulnerabilidades socioambientais semelhantes às demais metrópoles brasileiras, cenário decorrente de um modelo de desenvolvimento excludente e da falta de investimentos na infraestrutura urbana. Fortemente suscetível aos efeitos das mudanças climáticas, esse cenário adverso poderá ser agravado, uma vez que a cidade está sujeita ao aumento do nível do mar, ao aumento da precipitação e à elevação da temperatura, com a possibilidade de haver maior ocorrência de inundações, ondas de calor, deslizamentos de terra e erosão na zona costeira.

A adaptação da cidade à mudança climática é, portanto, imperativa, mas ainda não há consenso sobre como a questão deve ser tratada no planejamento urbano, dadas a magnitude e a intersetorialidade do problema. Este artigo discute a preocupação do poder público e da sociedade com a agenda climática na décima sexta cidade mais vulnerável do planeta, conforme classificação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), e as limitações do planejamento urbano em face de cenários climáticos cada vez mais pessimistas, cujas ameaças ainda são invisíveis aos olhos da maioria da população.

Partindo do pressuposto de que é preciso pensar globalmente e agir localmente, disseminou-se o consenso de que o desafio do enfrentamento às mudanças climáticas é responsabilidade de toda a sociedade e não poderá se concretizar sem a cooperação e o esforço mútuo da comunidade internacional. Sua condução, porém, caberia aos governos nacionais e subnacionais, incluindo todos os atores que cumprem algum papel na elaboração da forma e da função dos assentamentos humanos (UN-HABITAT, 2015UN-HABITAT. International guidelines on urban and territorial planning. ONU-Habitat: Nairobi, Kenya, 2015. E-book. Disponível em: http://www.urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/DIRETRIZES_ONU_PLANEJAMENTO_URBANO_E_TERRITORIAL_Portuguese.pdf . Acesso em: 22 ago. 2019.
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). Também por isso, verifica-se na literatura farta interação do tema com o planejamento urbano para o estabelecimento das formas de superação dos transtornos da vida social, que tem forte expressão na ameaça das mudanças climáticas (ARANTES, 2012ARANTES, A. Mudanças climáticas: fundamentos científicos e políticos. São Paulo: Anita Garibaldi, 2012.).

No caso brasileiro, em que cerca de 85% da população vive em áreas urbanas, a despeito da difícil reparação do déficit de investimentos na infraestrutura das cidades, os instrumentos de gestão urbana do Estatuto da Cidade, estabelecido pela Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (BRASIL, 2001BRASIL. Estatuto da Cidade. 3. ed. Brasília, DF: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. 102 p.), são apontados como fundamentais para pôr em prática estratégias de mitigação e de adaptação aos efeitos do clima, de modo a tornar as cidades mais resilientes (BRAGA, 2012BRAGA, R. Mudanças climáticas e planejamento urbano: uma análise do Estatuto da Cidade. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPPAS, 6, 2012, Belém. Anais [...]. Belém: Anppas, 2012. p. 1-15.). O plano diretor, especificamente, obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes, com vistas à implementação de uma política de desenvolvimento e expansão urbana, tem sido considerado também um importante instrumento de planejamento ambiental (SANTOS, 2004SANTOS, R. F. Planejamento ambiental: teoria e prática. São Paulo: Oficina de Textos, 2004.), ao lidar com os desafios socioambientais de um processo histórico de urbanização excludente e ainda promover a sustentabilidade ambiental.

Após estudos realizados tanto pela academia como pelo poder público municipal indicarem que o Recife precisa se preparar para os eventos ambientais extremos, um conjunto de ações relacionadas à Agenda do Clima obteve reconhecimento internacional, demonstrando um esforço da gestão municipal no desenvolvimento de uma política de baixo carbono. Mas eles também evidenciaram a necessidade de avançar na adoção de medidas para tornar a cidade resiliente e capaz de enfrentar o agravamento de problemas como inundações, avanço do mar e deslizamentos, o que faz da revisão do Plano Diretor, a priori, uma oportunidade para integrar as ações de adaptação e mitigação às diretrizes com o propósito de promover mais efetivamente a gestão e o desenvolvimento sustentáveis do território.

Considerando a magnitude dos impactos climáticos potenciais e dos problemas socioambientais apontados no território da cidade, buscou-se responder à seguinte questão: Em que medida poder público e sociedade compreendem o grau de vulnerabilidade da cidade e esperam fazer do processo de revisão do Plano Diretor o momento de estabelecer compromissos e implementar programas específicos, capazes de garantir um novo paradigma para a sustentabilidade ambiental do Recife perante os desafios das mudanças climáticas? Para tanto, centramo-nos na análise do Plano Diretor de 2008RECIFE. Lei Municipal nº 17.511, de 28 de dezembro de 2008. Promove a revisão do Plano Diretor do Município do Recife. Recife, 2008. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a1/plano-diretor-recife-pe . Acesso em: 16 set. 2017.
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e nas ações do ICLEI - Governos Locais pela Sustentabilidade no programa Urban-LEDS (Promovendo Estratégias de Desenvolvimento Urbano de Baixo Carbono), entre outros levantamentos.

1. Evolução do planejamento urbano no Recife

Centro de uma região metropolitana que concentra 3,7 milhões de pessoas e 65,1% de todo o PIB de Pernambuco, Recife é considerada o centro industrial mais importante da região Nordeste, produzindo bens e serviços como cana-de-açúcar, navios, plataformas de petróleo e eletrônicos. A Região Metropolitana do Recife (RMR) experimentou um rápido processo de urbanização e atualmente abriga 42% da população do estado, que ocupa apenas 2,8% do território pernambucano.

A nona maior cidade do Brasil, com sua população de quase 1,6 milhão de habitantes distribuídos em um território de apenas 218 km2, Recife está sujeita ao aumento médio do nível do mar, ao aumento de precipitação e à elevação da temperatura média (RECIFE, 2016RECIFE. Recife sustentável e de baixo carbono: Plano de Redução de Emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE). Recife: [s. n.], 2016.). Aos aspectos climáticos se somam o assentamento da cidade numa planície costeira de baixa altitude, com ampla urbanização da orla e alta densidade populacional, de cerca de 7,300 hab./km2, a ocupação irregular em encostas e regiões alagáveis, o aumento crescente da impermeabilização do solo e os riscos decorrentes do fenômeno da subsidência - em que se verifica o rebaixamento dos níveis dos aquíferos e do solo urbano. Recife também está situada no delta de três rios - Capibaribe, Beberibe e Tejipió - e conta com extensa rede hídrica envolvendo 95 canais, num comprimento total de mais de 100 km. Tudo isso leva a cidade a ocupar o 16º lugar no ranking mundial de vulnerabilidade diante dos efeitos das mudanças climáticas.

Araújo (2016ARAÚJO, M. Os impactos das mudanças climáticas sobre o uso e ocupação do solo no Recife. In: COMCLIMA, 9, 2016, Recife. Anais [...]. Recife: COMCLIMA, 2016. ) alerta sobre os impactos das mudanças climáticas no território da cidade e chega a falar em 33,7 km2 de zonas inundáveis (Figura 1), numa simulação do que pode vir a acontecer no Recife, prevendo-se a elevação do nível do mar decorrente de um aumento de 2º C na temperatura global e, num cenário mais pessimista, de 4º C. O autor defende ainda que o aumento do nível do mar tem ocorrido, sobretudo, nos trópicos, e a mudança na intensidade dos ventos tem ocasionado maior precipitação, numa tendência de que as chuvas intensas se tornem cada vez mais frequentes.

Figura 1
Vulnerabilidade do Recife às mudanças climáticas em 2016

Gusmão (2017GUSMÃO, A. D. Mudanças climáticas e riscos geológicos no Recife. In: COMCLIMA, 9, 2017, Recife. Anais [...]. Recife: COMCLIMA, 2017. 56 slides, color., s.p.), ao abordar o fenômeno da subsidência, reforça as preocupações afirmando que o Recife cresceu em cima de aterros instalados sobre solo mole. O peso desses aterros vem ocasionando o afundamento do solo em várias regiões da cidade, tornando-as mais suscetíveis às inundações. O autor declara: “Se nós imaginarmos que o nível do mar vai aumentar nas próximas décadas, paralelamente ao afundamento desses terrenos, nós teremos uma situação extremamente danosa em termos de perdas humanas e de infraestrutura da cidade” (GUSMÃO, 2017GUSMÃO, A. D. Mudanças climáticas e riscos geológicos no Recife. In: COMCLIMA, 9, 2017, Recife. Anais [...]. Recife: COMCLIMA, 2017. 56 slides, color.).

Ainda em relação à vulnerabilidade climática na cidade do Recife, Souza et al. (2014SOUZA, W. M.; AZEVEDO, P. V.; ASSIMS, J. M. O. SOBRAL, M. C. Áreas de risco mais vulneráveis aos desastres decorrentes das chuvas em Recife-PE. Revista Brasileira de Ciências Ambientais, n. 34, 2014.), em estudo sobre a vulnerabilidade ante desastres decorrentes das chuvas, identificaram que a ocorrência dos desastres tem aumentado significativamente, abalando o sistema social, político e econômico da cidade. Diante dos resultados encontrados, evidenciou-se que o maior número de óbitos decorrentes das chuvas no Recife, calculados por uma equação de risco, ocorreu em áreas de morros e adensamento da população, em conjunção com as más condições sociais e econômicas apresentadas.

De acordo com um estudo de caso de cidades costeiras de médio e grande porte em diferentes regiões do Brasil, publicado no relatório internacional Impacto, vulnerabilidade e adaptação das cidades costeiras brasileiras às mudanças climáticas (IPCC, 2015IPCC. Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Sumário do relatório do IPCC para os tomadores de decisão. Quinto Relatório do Grupo de Trabalho II, 2014. Impactos, adaptação e vulnerabilidade, WGII AR 5 do Quinto Relatório. Trad. Iniciativa Verde. São Paulo: Instituto HSBC Solidariedade, 2015.), entre 1946 e 1988 o nível do mar no Recife aumentou 5,6 mm/ano, o que corresponde a uma elevação de 0,24 m em 42 anos. A erosão costeira e a ocupação do pós-praia reduziram a linha de praia em mais de 20 m na Praia de Boa Viagem, a área da orla mais valorizada da cidade. Verificou-se a ocorrência frequente de escorregamentos e alagamentos em decorrência das chuvas, associada à falta de infraestrutura e principalmente às condições sociais e econômicas da população. O relatório aponta ainda a possibilidade de o nível do mar chegar a subir 40 cm até 2050 e de aumentar de maneira considerável o risco de ocorrência de ressacas, enchentes, enxurradas e deslizamentos de terra.

Corroborando os sinais da grande vulnerabilidade do Recife diante da perspectiva de elevação do nível do mar, a National Aeronautics and Space Administration (NASA) divulgou em novembro de 2017 que uma nova ferramenta desenvolvida por engenheiros do Laboratório de Propulsão a Jato consegue prever como cidades portuárias serão atingidas pelo derretimento de geleiras da Antártida, da Groenlândia e de outras treze massas de gelo. Entre as 293 cidades estudadas, estão Rio de Janeiro, Recife e Belém, que no Brasil serão as mais afetadas. O estudo é capaz de calcular a sensibilidade exata da cidade em relação ao derretimento de cada massa de gelo com base nas imagens geradas por um modelo de mapeamento de impressões digitais em gradiente. A ferramenta tem como objetivo contribuir para o planejamento das principais cidades do mundo para os próximos cem anos (BBC, 2017COSTA, C. Nasa prevê impacto de derretimento de geleiras em três cidades brasileiras. BBC New Brasil, São Paulo, 22 nov. 2018.).

Em face dos diversos alertas sobre os riscos dos efeitos climáticos, um conjunto de ações desenvolvidas pelo poder público tem recebido reconhecimento internacional e demonstra um esforço da gestão municipal no enfrentamento dos efeitos climáticos. Esse reconhecimento deve-se ao fato de que, em 2013, Recife foi selecionada pelo ICLEI para ser uma das cidades-modelo do projeto Urban-LEDS, um projeto global implementado pelo ICLEI em parceria com a ONU-Habitat, financiado pela Comissão Europeia. Seu objetivo consiste em aportar uma série de ferramentas e soluções para direcionar cidades na África do Sul, na Índia, na Indonésia e no Brasil no que se refere à instrumentalização de políticas de desenvolvimento de baixo carbono. Desde então, a Prefeitura da Cidade do Recife (PCR) incorporou-se à agenda climática global e obteve acesso à consultoria especializada e à capacitação técnica, com participação em diversos seminários e eventos internacionais.

Para suprir a necessidade de articulação do poder público municipal com as representações da sociedade civil organizada, também foram instituídos o Comitê de Sustentabilidade e Mudanças Climáticas do Recife (ComClima) e o Grupo de Sustentabilidade e Mudanças Climáticas (GeClima), por intermédio do Decreto nº 27, de 6 de setembro de 2013.

Em 2014, foi sancionada a Lei nº 18.011 (RECIFE, 2014RECIFE. Lei Municipal n. 18.011, de 28 de abril de 2014. Institui a Política de Sustentabilidade e de Enfrentamento das Mudanças Climáticas do Recife. Recife. 2014. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/pe/r/recife/lei-ordinaria/2014/1801/18011/lei-ordinaria-n-18011-2014-dispoe-sobre-a-politica-de-sustentabilidade-e-de-enfrentamento-das-mudancas-climaticas-do-recife-e-da-outras-providencias . Acesso em: 12 ago. 2019.
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), que instituiu a Política de Sustentabilidade e de Enfrentamento das Mudanças Climáticas do Recife e que dispõe sobre os princípios, diretrizes e objetivos para combater os impactos do clima na cidade. Entre as questões apontadas na legislação, merecem destaque as diretrizes para o aumento da permeabilidade do solo e a ampliação das áreas verdes, de modo a evitar a formação de ilhas de calor, resultantes da urbanização. Essa lei, que obriga empreendimentos de grande impacto ambiental a inventariar os gases do efeito estufa (GEE), criou o Programa de Certificação em Sustentabilidade Ambiental, com vistas a estimular construções sustentáveis. Ela estabelece, ainda, a apresentação e a divulgação do inventário de emissões dos GEE elaborado pela PCR a cada dois anos.

As metas e ações para conduzir o Recife a um desenvolvimento urbano de baixa emissão compõem o Plano de Baixo Carbono e foram debatidas com a participação da sociedade civil e do setor privado, assim como das diferentes esferas do governo municipal e estadual, buscando conferir maior consistência e legitimidade à proposta. Nesse plano, estão previstas ações para reduzir as emissões nas áreas de resíduos e saneamento, energia e transporte e para promover o desenvolvimento sustentável da cidade, como a valorização das áreas verdes e a ampliação da arborização e da educação ambiental.

Outra iniciativa a ser aqui citada, de cunho participativo e que reforça as ações de enfrentamento às mudanças climáticas, é o Projeto Recife 500 anos, que está definindo o planejamento no médio e longo prazo, com o propósito de fazer a transição da cidade para um novo padrão de desenvolvimento.

Esse conjunto de ações coloca o Recife em uma situação privilegiada em relação às demais capitais do Nordeste, com a montagem de todo o arranjo institucional da Política de Sustentabilidade e de Enfrentamento das Mudanças Climáticas. O tema foi introduzido na agenda urbana municipal e os atores começam a compreender sua importância. Com a regulamentação, a definição das diretrizes, a elaboração dos inventários de emissões de GEE e do plano de baixo carbono e o funcionamento regular do Comitê, a cidade caminha para a consolidação de sua estrutura de planejamento. Entretanto, as ações setoriais previstas nas áreas de transporte e mobilidade urbana, resíduos e saneamento, energia e desenvolvimento urbano sustentável para a redução das emissões de GEE carecem de implementação e monitoramento.

Quanto à adaptação, o IX ComClimaCOMCLIMA. Comitê de Sustentabilidade e Mudanças Climáticas do Recife, 15., 2018. Anais [...], Recife: SEMAS., realizado em julho de 2016, apresentou estudos sobre os impactos das mudanças climáticas no território do Recife. Apesar de um preocupante alerta ter sido dado, medidas mais duras e restritivas no que dizem respeito ao uso e ocupação do solo continuam a se mostrar como um grande desafio a ser enfrentado a fim de reduzir a vulnerabilidade da cidade. No mês de dezembro de 2018, a PCR anunciou no XV ComClima o início do desenvolvimento de um Plano de Adaptação à Mudança do Clima, tratando dos caminhos para adaptar a capital pernambucana aos cenários de alterações climáticas graduais, extremas e de variabilidade climática. A previsão é de que o trabalho, que tem o financiamento da CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina) e será elaborado pelo WayCarbon e ICLEI-SAMS, apresente ao fim de nove meses o índice de vulnerabilidade do Recife, com o mapeamento territorial dos pontos de vulnerabilidade e o plano das ações que precisarão ser implementadas para reduzir os impactos.

Em conjunção com as conquistas da Política Urbana, cujo objetivo passa a ser ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, acontecem a descentralização e o fortalecimento do município como ente da federação, o que possibilita o aprofundamento de experiências democráticas no planejamento e na gestão municipal. Diversas cidades, entre elas São Paulo, Rio de Janeiro, Natal, Santo André, Diadema, Belo Horizonte e o próprio Recife, construíram planos diretores, ainda na década de 1990, utilizando os princípios da Constituição para reformular o marco da política urbana municipal (CYMBALISTA; CARDOSO; SANTORO, 2011CYMBALISTA, R.; CARDOSO, P. M.; SANTORO, P. F. Plano Diretor Participativo e o direito das mulheres à cidade. São Paulo: Instituto Pólis, 2011.). Mas é na elaboração e na aprovação dos planos diretores posteriores ao Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001BRASIL. Estatuto da Cidade. 3. ed. Brasília, DF: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. 102 p.) que ficam mais claras as regras do regime democrático, com novos espaços de participação.

2. Entre a lei e as marcas da urbanização excludente

Do ponto de vista do planejamento, o crescimento urbano do Recife ao longo do século XX até os nossos dias foi acompanhado por uma sequência de planos, leis e decretos marcadamente a partir de 1919, com revisões ou substituições, até alcançar o Plano Diretor de 2008, ainda vigente. De maneira geral, essas legislações relegaram as questões sociais e ambientais a segundo plano, ao permitirem uma urbanização de forma desorganizada, gerando aquilo que se convencionou chamar de “problema urbano”, ou seja, deficiência de infraestrutura e de atendimento às demandas sociais urbanas (CANO, 1989CANO, W. Urbanização: sua crise e revisão de seu planejamento. Revista de Economia Política, v. 9, n. 1, 1989.). Os padrões de uso e ocupação do solo obedeceram invariavelmente a uma hierarquia social, com o devido distanciamento das atividades e classes sociais, ampliando a segregação socioespacial e a monetização do solo pela capacidade de sua utilização (RECIFE, 2018RECIFE. Diagnóstico propositivo do Plano Diretor, da Lei de Parcelamento e da Lei de Uso e Ocupação do Solo. Recife, 2018. Disponível em: http://planodiretordorecife.com.br/wp-content/uploads/2018/10/Diagn%C3%B3stico-Propositivo-do-Plano-de-Ordenamento-Territorial-do-Recife-Leitura-T%C3%A9cnica-Comunit%C3%A1ria-Vers%C3%A3o-Final.pdf . Acesso em: 23 ago. 2019.
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).

Assim, o Plano Diretor de 2008 avançou conceitualmente, ao trazer a pauta da nova consciência ambiental e ao incluir os principais instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001BRASIL. Estatuto da Cidade. 3. ed. Brasília, DF: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. 102 p.). Porém, seguindo a tendência do que se verificou em âmbito nacional, ao não prever a autoaplicabilidade desses instrumentos no corpo da própria lei e ao não conseguir promover posteriormente sua regulamentação em leis específicas, o PDDR não logrou viabilizar as estratégias de desenvolvimento urbano e de ordenamento territorial nem alcançou efeitos práticos no sentido de efetivar a função social da cidade e da propriedade (RECIFE, 2018RECIFE. Diagnóstico propositivo do Plano Diretor, da Lei de Parcelamento e da Lei de Uso e Ocupação do Solo. Recife, 2018. Disponível em: http://planodiretordorecife.com.br/wp-content/uploads/2018/10/Diagn%C3%B3stico-Propositivo-do-Plano-de-Ordenamento-Territorial-do-Recife-Leitura-T%C3%A9cnica-Comunit%C3%A1ria-Vers%C3%A3o-Final.pdf . Acesso em: 23 ago. 2019.
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), o que acarretou novos conflitos e o surgimento de vários movimentos relacionados ao direito à cidade.

Institucionalmente, o planejamento urbano do Recife encontra-se sob a responsabilidade do Instituto da Cidade Pelópidas da Silveira (ICPS), órgão técnico vinculado à Secretaria de Planejamento Urbano (Seplan), que tem como órgão colegiado, de natureza deliberativa, consultiva e propositiva, o Conselho da Cidade do Recife (ConCidade), criado pela Lei Municipal nº 18.013/2014RECIFE. Lei Municipal n. 18.013 de 2014, de 7 de maio de 2014. Institui o Conselho da Cidade do Recife (ConCidade). 2014. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a1/pe/r/recife/lei-ordinaria/2014/1802/18013/lei-organica-recife-pe . Acesso em: 18 out. 2017.
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, cuja composição apresenta a representação do Poder Público e da sociedade civil. O ConCidade compõe, portanto, a estrutura administrativa do Poder Executivo municipal e do sistema nacional de desenvolvimento urbano, de maneira a exercer o controle social da gestão urbana e ambiental do município.

De acordo com o prazo estabelecido para a revisão do Plano Diretor - que, segundo consta no Estatuto da Cidade e na Lei Orgânica do Município, precisa acontecer pelo menos a cada dez anos -, o Recife realizou ao longo de 2018 o processo de debates em torno da elaboração e da revisão da legislação urbanística, denominado Plano de Ordenamento Territorial (POT).

Nesse intervalo de uma década, ocorreram profundas transformações que configuram o contexto político, social e econômico de realização da revisão do Plano Diretor, a começar pela crise econômica que eclodiu em 2008, levando o processo de globalização a emitir sinais de diminuição do dinamismo econômico e de avanço das políticas neoliberais, com graves repercussões no Brasil.

3. O processo de revisão do Plano Diretor do Recife

A apresentação da estratégia para o desenvolvimento do Plano de Ordenamento Territorial (POT) ocorreu em dezembro de 2017, em reunião ordinária do ConCidade, quando foi anunciada a consultoria contratada após um longo processo licitatório financiado pelo Banco Mundial, deflagrando assim a revisão do Plano Diretor. Além da compatibilização com diversos planos setoriais e com a legislação ambiental e de proteção do patrimônio histórico e cultural, a proposta totalizava a revisão, a atualização e/ou a regulamentação de um conjunto de diplomas legais e instrumentos urbanísticos, sob a coordenação ICPS e com o apoio técnico do Consórcio Diagonal Empreendimentos e Gestão de Negócios Ltda. e Jorge Wilheim Consultores Associados (Figura 2).

Figura 2
Estrutura de gestão participativa adotada

Inicialmente, o plano de trabalho do POT apresentou prazo de seis meses para a realização de seminário, oficinas e audiências públicas e da conferência em que se aprovaria a proposta do novo plano diretor, prevista para acontecer em junho de 2018, e de mais sete meses para debate e construção das demais propostas de lei, totalizando 34 momentos de escuta social e compondo o que foi chamado de Estratégia de Construção Coletiva (ECC), de maneira a atualizar e compatibilizar toda a legislação urbanística municipal até janeiro de 2019. A Figura 3 evidencia a relação do Plano de Ordenamento Territorial com outros planos e normas.

Figura 3
Relação do Plano de Ordenamento Territorial com outros planos e normas

A ECC e o respectivo cronograma foram apresentados no âmbito do ConCidade, com a proposta detalhada e pactuada pelo Grupo de Trabalho (GT-POT) instituído pela Resolução nº 001, de 4 de maio de 2018, com a finalidade de acompanhar, monitorar e avaliar o processo participativo do POT. Esse grupo de trabalho contabilizou quinze reuniões até dezembro de 2018 e foi composto de dezesseis membros do ConCidade, representantes dos segmentos que integram o colegiado.

Desde o início do processo, o prazo de seis meses proposto pelo poder público para a revisão do Plano Diretor foi duramente criticado pelos movimentos sociais, organizados na Articulação Recife de Luta. Vários meses se passaram em meio a tensos debates com pedidos de adiamento, abertura de inquérito civil público por parte do Ministério Público e protestos diversos, contrários ao processo instalado sob a alegação de que não havia participação popular efetiva e que, premido pelo prazo exíguo, o processo não possibilitava o aprofundamento da discussão acerca das questões pertinentes ao desenvolvimento da cidade. Em função disso, o debate público só veio a iniciar-se no mês de junho.

Ainda assim, o processo contabilizou seis consultas públicas nas Regiões Político-Administrativas (RPAs), nove oficinas temáticas, uma audiência pública sobre o diagnóstico propositivo, seis audiências públicas devolutivas nas RPAs, quatro oficinas por segmentos para eleição de delegados à Conferência, duas capacitações dos delegados e a própria Conferência do Plano Diretor, que se encerrou com o envio da minuta do projeto de Lei Complementar para a Câmara Municipal no mês de dezembro de 2018. A PCR considerou (Figura 4) que houve acréscimo no número de eventos e no prazo estabelecido inicialmente no Termo de Referência, desde a realização do evento de lançamento da revisão do Plano Diretor e compreendendo o período de treze meses, cuja decisão partiu do GT-POT na ECC.

Figura 4
Contribuições ao PDDR recebidas por tipo de evento

De acordo com os dados fornecidos pela PCR, o processo de revisão do PDDR registrou a participação de 6.991 pessoas, 5.288 delas presenciais e 1.703 virtuais, por meio da plataforma digital www.planodirtor.recife.pe.gov.br e das enquetes sobre temas relativos ao Plano Diretor (RECIFE, 2018RECIFE. Diagnóstico propositivo do Plano Diretor, da Lei de Parcelamento e da Lei de Uso e Ocupação do Solo. Recife, 2018. Disponível em: http://planodiretordorecife.com.br/wp-content/uploads/2018/10/Diagn%C3%B3stico-Propositivo-do-Plano-de-Ordenamento-Territorial-do-Recife-Leitura-T%C3%A9cnica-Comunit%C3%A1ria-Vers%C3%A3o-Final.pdf . Acesso em: 23 ago. 2019.
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). Esse portal disponibilizou um conjunto de informações relativas ao processo de elaboração do POT, bem como os instrumentos para participação e contribuição popular nas etapas de diagnóstico e proposição.

No tocante às contribuições e propostas ao Plano Diretor, a PCR informou ter recebido um total de 16.490 contribuições, 4.476 realizadas presencialmente, cujo percentual por tipo de evento é detalhado na Figura 4; destas, 250 foram entregues em documentos protocolados na sede da PCR. Houve também 12.014 contribuições virtuais ao longo do período de revisão do Plano Diretor.

O conteúdo desses encontros e consultas públicas presenciais e virtuais se somou ao conjunto de estudos e análises de dados de estudos oficiais e acadêmicos, planos e projetos de diversas esferas desenvolvidos pela PCR.

Para debate na Conferência do Plano Diretor de 2018, o Caderno de Propostas foi disponibilizado no portal e distribuído aos participantes da Conferência, tendo sido submetido à aprovação dos 348 delegados(as) e 82 observadores(as) que se credenciaram para dois dias de discussões. Embora o início dessa conferência tenha sido marcado por mais um protesto da Articulação Recife de Luta e pela retirada de seus integrantes, dados oficiais registram que até o final do encontro, 84% dos delegados se mantiveram presentes, de forma a sugerir legitimidade à votação das 103 propostas elaboradas pelos Grupos de Trabalho.

Sobre esse conjunto de informações relacionadas ao processo de revisão do PDDR é que são tecidas as considerações com foco na questão climática, em particular no tocante às medidas de adaptação.

4. Incorporação da questão climática no planejamento urbano

Em todos os documentos temáticos e apresentações disponibilizados ao longo do processo de revisão do Plano Diretor, a questão do clima foi sempre pautada como um dos temas necessários ao debate do planejamento da cidade, a começar pelo próprio Termo de Referência para a contratação dos serviços de consultoria, demonstrando a maturidade alcançada pela Política Climática trabalhada pelo poder público municipal até então. O mais importante desses documentos para a apresentação dos conceitos é, sem dúvida, o Diagnóstico propositivo do Plano de Ordenamento Territorial do Recife: leitura técnica e comunitária, em cujas 816 páginas constam a sistematização e a análise dos estudos oficiais e acadêmicos, aliadas ao conteúdo resultante das consultas públicas presenciais e virtuais.

Esse diagnóstico detalha o contexto, a abordagem conceitual e as tendências de alterações climáticas, com as ameaças ao Recife que devem resultar dessas alterações, a exemplo da elevação do nível médio do mar, da erosão costeira, das ilhas e ondas de calor e da propensão a inundações. Ele reúne um apanhado significativo das informações disponíveis, que vão desde os dados do IPCC, que, como já citado, qualificam o Recife como a décima sexta cidade mais vulnerável do planeta, aos estudos realizados localmente e validados pela gestão pública, em particular pelo órgão ambiental municipal. O documento reconhece textualmente as vulnerabilidades às mudanças climáticas e aponta a necessidade de promover medidas de mitigação e de adaptação.

As mudanças climáticas figuraram ainda entre os temas que nortearam a realização das oficinas temáticas na busca de um diálogo mais amplo com a sociedade, perfazendo o total de nove eixos: i) desenvolvimento econômico sustentável e inclusão social; ii) equidade socioterritorial, habitação e regularização fundiária; iii) meio ambiente, sustentabilidade, mudanças climáticas e saneamento ambiental; iv) patrimônio cultural; v) propriedade imobiliária, função social e financiamento urbano; vi) sistema de gestão democrática, controle e participação social; vii) uso do solo, drenagem e acessibilidade/mobilidade; viii) ordenamento territorial e ix) instrumentos urbanísticos.

É preciso ressaltar a importância, para o debate, dos estudos e legislações que antecederam o processo de revisão do PDDR. A PCR realizou nos anos anteriores o mapeamento das infraestruturas das áreas críticas da cidade e instituiu em 2014 tanto o Sistema Municipal de Unidades Protegidas (SMU) como a Política de Sustentabilidade e de Enfrentamento das Mudanças Climática; em 2016 foi a vez da Política Municipal do Meio Ambiente e, em 2017, o Plano Municipal de Saneamento Básico, entre outras legislações.

Todo esse trabalho resultou no Projeto de Lei Complementar (PLC) enviado à Câmara em dezembro de 2018, cujo texto ainda é motivo de debate no Legislativo, na fase final da revisão do PDDR. Vários trechos do PLC que institui o PDDR ilustram a visibilidade dada às questões ambientais, assim como aos princípios da sustentabilidade, uso e ocupação do solo e, em particular, ao tema das mudanças climáticas.

O zoneamento previsto no PLC define em seu artigo 29 a Macrozona do Ambiente Natural e Cultural (MANC), que abrange os maciços vegetais preservados, a rede hídrica principal e secundária e o patrimônio cultural da cidade, um território de especial interesse para as políticas de adaptação, tendo em vista a forte presença das águas no Recife, de sua costa marítima aos rios e canais.

No artigo 31, consta como diretriz da MANC “desenvolver o território de maneira sustentável e ampliar a capacidade de resiliência do Município para o enfrentamento das mudanças climáticas”. De acordo com a proposta, a MANC é compartimentada em Zona de Ambiente Natural (ZAN) e Zona de Desenvolvimento Sustentável (ZDS), e sua proposta básica consiste em conservar áreas permeáveis com aporte na adoção de soluções de infraestrutura verde de adaptação climática.

5. A visão dos atores e da sociedade civil no planejamento urbano

A análise das entrevistas efetuadas sobre o processo de revisão do PDDR e o entendimento dos diversos atores quanto às medidas de enfrentamento das alterações climáticas revelam que a vulnerabilidade do Recife ultrapassa o fato de se tratar de uma cidade litorânea densamente povoada, de baixa altitude, com infraestrutura precária e sujeita aos efeitos do clima, como elevação do nível do mar e aumento da temperatura e da precipitação pluviométrica. Nesse contexto, realizar o debate sobre os riscos climáticos e buscar inseri-lo em um processo de planejamento participativo se constituiu em um desafio metodológico para abordar uma realidade tão complexa.

Foi possível constatar que os estudos e dados disponíveis são insuficientes para construir cenários decorrentes das mudanças climáticas e, consequentemente, para priorizar as ações governamentais. Mesmo com o reconhecimento, no diagnóstico elaborado para a revisão do PDDR e em outros documentos oficiais, de que a cidade do Recife se localiza onde mais são observados os impactos causados pelo aquecimento global (trata-se de um dos hotspots mundiais citados na lista do IPCC), técnicos e consultores apontaram dúvidas sobre a suficiência dos estudos disponíveis para a tomada de decisões e sobre a pertinência de maior detalhamento de respostas aos efeitos do clima no texto do PDDR.

A ocorrência dos alagamentos, por já fazer parte da rotina da cidade, aparece de maneira recorrente como uma preocupação, assim como os deslizamentos. Mas, por outro lado, há dificuldade em precisar como se dará a intensificação dos impactos decorrentes das mudanças climáticas e a partir de quando as medidas para evitar as ocupações das áreas vulneráveis deveriam ser adotadas.

A diversidade de interesses, visões e propostas sobre o planejamento urbano apresentados pelos segmentos que atuaram na revisão do PDDR pode ser conferida nas entrevistas realizadas. As críticas em relação ao diagnóstico produzido para embasar o debate da revisão do Plano Diretor foram recorrentes nas falas dos entrevistados, tanto representantes governamentais como da sociedade civil, em referência ao conteúdo debatido e a temas específicos.

Os tópicos mais representativos ressaltados nas entrevistas com representantes do poder público, gestores e membros da sociedade civil estão listados a seguir.

  1. O fenômeno das mudanças climáticas tratado como uma abstração, algo não perceptível no cotidiano da cidade;

  2. Falta de consenso sobre o que fazer nas áreas já ocupadas e potencialmente inundáveis;

  3. Baixa capacidade de resposta e fragilidade do município em lidar com os riscos climáticos e os efeitos dos sistemas deficitários de infraestrutura, com ênfase na drenagem urbana;

  4. Pouca articulação entre os estudos e os planos temáticos existentes;

  5. Necessidade de ação de governança multinível, com maior articulação entre os entes federativos e definição de priorização de medidas;

  6. Necessidade de adequar a normatização à execução de obras e infraestruturas;

  7. Importância da educação ambiental no tocante à participação social no planejamento;

  8. Complexidade das temáticas urbanas e ambientais;

  9. Falta de planejamento de longo prazo e descontinuidade nos processos da gestão; e

  10. Não definição de prazos e recursos financeiros para a implementação das medidas propostas.

6. Desafios da implementação para adaptação das mudanças climáticas

Nas estratégias e instrumentos relacionados à indução do desenvolvimento urbano-ambiental da cidade do Recife, apresentados no Plano Diretor 2018, em geral não se verificam a definição de prazos nem o detalhamento do processo de implementação. Questões como renaturalização dos canais, diminuição da vulnerabilidade costeira, ampliação do percentual de solo natural, urbanização de favelas e contenção de áreas de risco, entre outros temas caros à ampliação da capacidade adaptativa da cidade, figuram entre as propostas mais relevantes do Plano Diretor 2018.

Entretanto, o regramento normativo presente no PDDR se mostra insuficiente para intervir efetivamente no licenciamento urbanístico dos empreendimentos privados ou no planejamento e na execução das intervenções públicas sob a ótica de preparar a cidade para enfrentar os efeitos do clima. Apontar, por exemplo, entre as diretrizes, que se deve “controlar a expansão urbana informal sobre áreas de fragilidade ambiental e unidades protegidas” ou “renaturalizar as margens dos percursos d’água, valorizando sua relação com a paisagem da cidade” não implica dizer como, quando e com que recursos isso será realizado.

Neste contexto, registra-se um conjunto de condicionantes e recomendações com vistas a fazer com que o PDDR deixe de ser um plano utópico de construção de uma cidade sustentável e torne suas diretrizes eficazes e incorporadas de fato às políticas urbanas. Tais diretrizes podem ser assim resumidas:

  1. Divulgar a lei, articulando discursivamente o debate sobre a cidade com a agenda do clima e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para incorporação no cotidiano da cidade;

  2. Validar o Plano de Adaptação às Mudanças Climáticas de maneira participativa;

  3. Fortalecer as instâncias de planejamento, incorporando o caráter metropolitano;

  4. Estabelecer uma governança multinível, de modo a reorientar as políticas do clima e superar a inabilidade de prover os recursos necessários para uma infraestrutura adequada à adaptação; e

  5. Promover a consciência social de que a exclusão amplia as vulnerabilidades e de que os avanços demandam mudanças macroeconômicas e maior investimento na sua infraestrutura urbana.

De modo a superar esses desafios, cabe à gestão pública ser incisiva na promoção de uma visão sistêmica de que a sustentabilidade urbana depende da cooperação de todos.

Considerações finais

É possível afirmar que a proposta de texto produzida para o PDDR conta com objetivos, princípios e diretrizes inteiramente convergentes à agenda de mudanças climáticas, seja na perspectiva da mitigação, seja na da adaptação do Recife aos efeitos globais do clima. Paradoxalmente, os estudos disponíveis, o processo político de participação social e o grau de aprofundamento dos debates se mostraram insuficientes e incapazes de balizar decisões ajustadas às necessidades da cidade, o que pode reduzir os efeitos práticos da proposta e interferir na efetiva implementação de medidas de adaptação.

A agenda do clima ganhou visibilidade no Recife em 2013, quando passou a fazer parte do projeto Urban-LEDS, uma iniciativa do ICLEI. Conduzida pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade, a política climática foi instituída por lei e se estruturou com a realização dos inventários de emissão de GEE, a criação do GeClima e do ComClima e a publicação Recife sustentável e de baixo carbono - Plano de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), além de outras iniciativas. À medida que a equipe se capacitava, estudos caracterizando o Recife como um hotspot mundial começaram a contar com maior divulgação, evidenciando o grau de vulnerabilidade da cidade diante das ameaças climáticas.

A Política Municipal de Sustentabilidade e de Enfrentamentos das Mudanças Climáticas, promulgada em 2014, e o Plano de Baixo Carbono, publicado em 2016, estabeleceram objetivos, diretrizes e metas direcionados às políticas setoriais nas áreas de transporte, energia, saneamento, construção civil, resíduos sólidos e desenvolvimento urbano sustentável, com foco nas medidas de mitigação, embora estivessem por construir os meios e recursos para a efetiva redução das emissões de GEE.

Tendo em vista o relevante fator de indução de mudanças nos sistemas urbanos, o PDDR foi revisado ao longo de 2018, traduzindo-se numa oportunidade de inserir a agenda do clima no planejamento urbano. De fato, o PLC em apreciação na Câmara de Vereadores do Recife traz diversas referências e conceitos relacionados à preocupação com os efeitos climáticos e incorpora a Política de Mudanças Climáticas em seus objetivos, diretrizes e princípios, apontando o desejo da municipalidade de enfrentar esses efeitos. Questões como ilhas de calor, impermeabilidade, vulnerabilidade, riscos de deslizamento são tratadas em diversos momentos do texto, no qual se evidencia a intenção de avançar na adoção de medidas para tornar a cidade resiliente e capaz de enfrentar o agravamento de problemas como inundações, avanço do mar, erosão costeira e deslizamentos.

A incorporação da temática de mudanças climáticas no planejamento urbano está refletida no texto do PLC de maneira a alinhar a legislação urbana do Recife com as preocupações do urbanismo contemporâneo no contexto internacional, considerando o ambiente global. A questão é se essa incorporação é suficiente para reverter as principais causas que geraram as vulnerabilidades e riscos socioambientais e promover as mudanças no ambiente da cidade, de forma a rumar ao caminho do desenvolvimento sustentável.

O presente artigo constatou os limites do PDDR em aprofundar as questões relacionadas às medidas de adaptação e em se configurar como o resultado de um pacto social para a gestão do território. As propostas presentes no corpo do PLC se encontram desassociadas do debate empreendido ao longo do processo de revisão, e partiram mais do corpo técnico da gestão municipal, posto que a temática das mudanças climáticas é ainda pouco compreendida pela população. As entrevistas com os atores do planejamento revelaram a preocupação com a descontinuidade da gestão pública e a compreensão de que a definição de prioridades se dá como resultado de uma cultura imediatista.

Como foi visto, o PDDR menciona a necessidade de “adotar medidas que promovam a resiliência urbana e a capacidade adaptativa das mudanças climáticas, por meio de investimentos, apoio e incentivos à organização, estruturação e fortalecimento dos órgãos públicos e das entidades da sociedade civil e à articulação e integração sistemática entre eles”. Mas como aferir a capacidade do Plano Diretor de transferir a teoria para a prática? Qual é a possibilidade real de a municipalidade garantir nos próximos dez anos a equidade e a inclusão socioterritorial, do modo como tais conceitos estão descritos na proposta da lei?

É verdadeira a afirmação de que os planejadores incorporaram os conceitos da sustentabilidade na revisão do PDDR. Mas o que se buscou analisar foi se esses conceitos, ao serem incorporados, foram de alguma maneira acompanhados de instrumentos que apontassem para a obrigatoriedade de torná-los uma política pública efetiva. A resposta é: na avassaladora maioria deles, não.

De todo modo, verifica-se o que se pode chamar de transição de paradigma. A novidade da lei é real. O ordenamento jurídico do município alinha-se com mais força à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, ao propor guiar-se pelos princípios da função social da cidade; função social da propriedade; sustentabilidade; equidade socioterritorial; integração metropolitana e intraurbana; gestão democrática e equidade de gênero. A agenda do desenvolvimento urbano do Recife passa agora, oficialmente, a caminhar a par e passo com a agenda climática, constituindo-se numa política integrada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2021
  • Aceito
    26 Jun 2021
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