Acessibilidade / Reportar erro

Políticas de habitação e a urbanização periurbana na Amazônia: o caso do Assentamento Mártires de Abril, Mosqueiro, Belém, Pará

Housing policies and peri-urban urbanization in the Amazon Region: the case of the Mártires de Abril Settlement, Mosqueiro, Belém, State of Pará

Resumo

Este trabalho analisa a constituição do Assentamento Mártires de Abril, iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no município de Belém a partir de 1998. O foco é a aplicação do Projeto Casulo de Assentamento, viabilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, e do Programa Minha Casa Minha Vida Rural pela Prefeitura Municipal de Belém e Caixa Econômica Federal. Discute-se a abrangência de ações públicas para o entendimento de uma dinâmica periurbana presente na Amazônia. Analisa-se a complexa organização espacial do assentamento, moldada a partir da ação e da inação de políticas públicas em diferentes temporalidades e escalas. Ao se limitar a uma visão tecnicista, restrita e simplista, o poder público ignora o conjunto de dinâmicas sociais e espaciais que se manifestam a partir de sua própria atuação. Assim, a dissociação do poder público dessas mesmas políticas - que se contradizem constantemente por ignorarem a heterogeneidade do assentamento - acaba por ocasionar conflitos.

Palavras-chave:
Assentamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra; Projeto Casulo; Programa Minha Casa Minha Vida Rural; Região Metropolitana de Belém

Abstract

This paper analyzes the constitution of the Mártires de Abril Settlement, an initiative by the Landless Workers Movement in the municipality of Belém since 1998. The focus is the implementation of the Casulo Settlement Project, made possible by the National Institute of Colonization and Land Reform and the Minha Casa Minha Vida Rural Program, by the Municipal City Hall of Belém and the Caixa Econômica Federal bank. We discuss the reach of public actions in order to understand a peri-urban dynamics present in the Amazon. The paper analyzes the complex layout of the settlement, molded by the action and lack of action from public policies in different scales and temporalities. By limiting itself to a technicist, restrictive and simplistic view, the governmental apparatus ignores the specific set of social and spatial dynamics that are manifested because of their own interference. Conflict is then harbored both by their dissociation from those very policies, which are constantly in internal contradiction, and overlooking the heterogeneity of the settlement.

Keywords:
Settlement of the Landless Workers Movement; Casulo Project; Minha Casa Minha Vida Rural Program; Metropolitan Region of Belém

1. Introdução

Este trabalho analisa o processo de constituição do Assentamento Mártires de Abril (AMA), de iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), situado em área da extinta fazenda de propriedade da empresa Transportes Aéreos da Bacia Amazônica (TABA) no Distrito Administrativo de Mosqueiro (DAMOS) no município de Belém a partir de 1998. O estudo volta-se para a aplicação do Projeto Casulo de Assentamento (PCA), viabilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), e do Programa Minha Casa Minha Vida Rural (PMCMVR) pela Prefeitura Municipal de Belém (PMB) e pela Caixa Econômica Federal, ambos como parte de ações visando a melhorias no assentamento.

A Ilha de Mosqueiro, onde está localizado o DAMOS, mostrou-se propícia para o primeiro projeto de assentamento da modalidade Casulo a ser implantado no estado do Pará. Concorreu para isso sua proximidade da capital, garantindo mercado consumidor e infraestrutura para escoamento da produção de hortifrutigranjeiros produzidos no assentamento. Devido à localização em uma área que não é tipicamente rural e tampouco urbana, sua configuração mostra características simultaneamente urbanas e rurais, o que marca uma característica peculiar do habitat amazônico, na medida em que os usos rurais e urbanos se entrelaçam. A fluidez entre tais zonas possibilita (a) a presença de comércio e serviços tipicamente urbanos; (b) a prática simultânea e/ou alternada de trabalhos rurais e urbanos e (c) facilidade de acesso ao distrito, ao assentamento e escoamento da produção para comercialização na própria Ilha e em centros urbanos próximos. Tais características são expressões do fenômeno periurbano amazônico que levam ao questionamento dos rígidos conceitos de urbano e do rural adotados como referência nas políticas públicas de habitação.

Tradicionalmente, o distrito se apresenta como área suburbana de lazer e segundas residências na Região Metropolitana de Belém (RMB), que, até o final da década de 1970, era acessada por meio de transporte fluvial. A urbanização da ilha se intensifica com a abertura da rodovia Augusto Meira Filho em 1965 e se consolida com a construção da Ponte Sebastião de Oliveira em 1976. Desde os anos 1990, Mosqueiro apresenta uma dinâmica habitacional caracterizada pela conversão das residências sazonais em residências permanentes, tanto pela participação do governo por meio da aprovação de empreendimentos habitacionais de mercado, quanto pelo significativo crescimento de assentamentos espontâneos. Apesar da existência de planos diretores com medidas de controle de densidade e da ocupação de usos do solo, o distrito já dispunha de 31 assentamentos no seu território até 2010 (FERREIRA, 2012FERREIRA, S. A Expansão dos Assentamentos Residenciais na Ilha de Mosqueiro: uma oportunidade de dispersão urbana no espaço metropolitano de Belém (PA). 2012. 138 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2012.).

Na primeira parte do artigo, parte-se das ações públicas para o entendimento da complexa urbanização característica de uma dinâmica periurbana presente na região amazônica. Busca-se refletir sobre abordagens conceituais dedicadas a desvendar o desafio imposto pela dinâmica socioespacial amazônica, no que se refere à escassez de discussão sobre o fenômeno periurbano e à dificuldade de implantação de políticas nacionais de habitação rural na região Norte do país, visto que as diretrizes e a elaboração das políticas de habitação consideram um urbano bem específico, concebido a partir das realidades do sul e sudeste brasileiro, negligenciando particularidades periurbanas da região amazônica. Vale ressaltar que as características do urbano da região vão além do processo histórico de ocupação, somando-se à forte questão cultural, ao clima, à geografia e aos conflitos fundiários e ambientais. Sendo assim, o fenômeno periurbano é inerente ao território e ao espaço de expressão da vida cotidiana das pessoas que habitam a região, o que demandaria proposições de políticas específicas.

Posteriormente, na segunda parte do artigo, a complexa organização espacial do assentamento - moldada pela ação e inação de políticas públicas do INCRA e da PMB em diferentes temporalidades e escalas - é analisada por meio de entrevistas, incursões a campo, pesquisa documental e leitura do processo de constituição do AMA. Nesta análise, em uma perspectiva externa, em grande medida da ótica estatal, o assentamento é visto sob uma lógica de produção agrícola, inserido em um contexto urbano e bem integrado ao distrito por meio de vicinais. Ao se limitar a uma visão tecnicista, restrita e simplista acerca do assentamento, o Estado exclui as práticas socioespaciais do AMA, que se apresentam de forma diversa, complexa e singular, o que é explorado a seguir. Ao excluir tais experiências, o poder público ignora o conjunto de dinâmicas sociais e espaciais que se manifestam a partir da atuação do próprio Estado, visto que este é o responsável pela elaboração das políticas. Em meio à análise da configuração espacial, é possível relacionar resultados do Projeto Casulo de Assentamento do INCRA e do PMCMVR a conflitos causados pela dissociação dessas mesmas políticas, que se contradizem constantemente por ignorarem a heterogeneidade do assentamento.

2. A urbanização difusa na Amazônia e a questão periurbana

A urbanização na região amazônica é resultado de diferentes processos e dinâmicas socioespaciais que se iniciaram com as sociedades existentes antes da chegada dos colonizadores portugueses. Estes foram responsáveis pela formação socioespacial e por uma configuração de território que foi alterada a partir do século XVII, sendo substituída, ainda que não completamente, por um novo modelo de ocupação europeu. Trindade Junior (2015aTRINDADE JUNIOR, S.-T. Cidades e centralidades na Amazônia: dos diferentes ordenamentos territoriais ao processo de urbanização difusa. Revista Cidades. São Paulo, v. 12, n. 21, p.305-334, 2015a. ) mostra que os primeiros núcleos de povoamento dos colonizadores não eram difusos, mas estavam dispostos ao longo dos rios, principalmente em pontos estratégicos que serviam de entrepostos para o armazenamento e a distribuição dos produtos extraídos da floresta. Nesse padrão de ocupação, destacam-se algumas poucas ferrovias e as vias fluviais, que eram fundamentais para circulação de mercadorias, pessoas e informações. A partir do século XIX, observa-se o crescimento de cidades em função dessas vias, agora ligadas à exploração da borracha e ao início de outras formas de organização espacial da região voltadas à colonização agrícola dirigida, pecuária e exploração mineral.

Neste momento, a Amazônia conviveu com um padrão de ocupação predominantemente dendrítico, mas com alterações nas suas bordas a partir das estradas de ferro, como a Belém-Bragança, Madeira-Mamoré e a Estrada de Ferro Tocantins, combinando-se com uma nova ordem espacial que timidamente começava a se desenhar, de caráter mais reticular, com a ocupação da terra firme e a presença de colônias agrícolas (TRINDADE JUNIOR, 2015aTRINDADE JUNIOR, S.-T. Cidades e centralidades na Amazônia: dos diferentes ordenamentos territoriais ao processo de urbanização difusa. Revista Cidades. São Paulo, v. 12, n. 21, p.305-334, 2015a. , p. 313).

No caso particular de Belém, seu crescimento no início do século XX deve-se fundamentalmente à economia gomífera. Ao mesmo tempo em que o núcleo urbano de Belém se expandia ao longo do eixo da ferrovia Belém-Bragança, depois tornada rodovia BR-316, novos núcleos urbanos se desenvolviam, como é o caso da ocupação da porção da ilha de Mosqueiro voltada para a baía do Marajó (FERREIRA, 2012FERREIRA, S. A Expansão dos Assentamentos Residenciais na Ilha de Mosqueiro: uma oportunidade de dispersão urbana no espaço metropolitano de Belém (PA). 2012. 138 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2012.). Seu ordenamento territorial sofre alterações conforme Belém vivencia seu processo de metropolização. A partir da integração da Amazônia ao país, muitas transformações ocorreram. Dentre os fatores que contribuíram para isso, está a abertura das rodovias, como, por exemplo, Transamazônica, Belém-Brasília e, no caso de Mosqueiro, sua ligação com a BR-316; todas elas causaram uma redefinição de fluxos, induzindo o surgimento de novos núcleos urbanos. A partir dessa política de integração da Amazônia ao cenário nacional e mundial, a reestruturação do espaço regional passa a ser redefinida.

Nesse novo contexto, Trindade Junior (2015bTRINDADE JUNIOR, S.-T. Pensando a Modernização do Território e a Urbanização Difusa na Amazônia. Mercator, [s.l.], v. 14, n. 4, p.93-106, 2015b.) estabelece a diferenciação e correlação do local e do regional com o conceito de dispersão urbana. Novas formas de ocupação se desenvolvem não apenas por meio do adensamento e da verticalização, mas também por movimentos de expansão horizontal e de dispersão da malha adensada. O mesmo autor reconhece a urbanização difusa na Amazônia e a relaciona a processos sociais mais gerais, que parecem estranhos à região por não potencializarem seus atributos geográficos e socioculturais, tendendo a inserir a região em modelos econômicos e políticos de ordenamento territorial concebidos fora do espaço regional e com vistas a interesses distantes das demandas sociais locais inseridas no conceito de espaço social.

Com o pressuposto de que o processo da urbanização difusa é o da difusão da sociedade urbana, Lefebvre (1999LEFEBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1999.) ressalta que o modo de vida urbano não se restringe à dualidade urbano-rural, sugerindo que, na relação entre espaço e tempo, a noção de urbano como experiência de vida é superposta à de cidade, expressão da primeira - logo, a cidade e o urbano são como uma projeção da sociedade sobre o espaço. O espaço é o local privilegiado da pluralidade e de simultaneidades de padrões espaciais, modos de viver a vida urbana, incluindo os conflitos mediados ou não pela experiência urbana. O cotidiano dos espaços vividos é a materialização de temporalidades e espacialidades, o que se dá por meio da construção individual e coletiva na reprodução do espaço.

Para Lefebvre (1991LEFEBVRE, H. The Production of Space. Oxford: Blackwell, 1991.), o processo de modernização da sociedade e das diferentes estratégias de acumulação de capital se materializa pela complexidade de usos e de formas urbanas voltados para a apropriação do espaço. Nesse processo, são redefinidas e não negadas ou suprimidas as relações de fronteiras entre cidade-campo e centro-periferia, o que leva à criação de novas centralidades, novas segregações. Isso significa dizer que Lefebvre refere-se à extensão do tecido urbano na dialética do que é denominado “espaço concebido” de natureza abstrata, ligado à ideia de produto pela supremacia do valor de troca capitalista. Já o “espaço percebido” opera na intermediação da ordem distante ligada à representação da ideia de produto, e à ordem próxima, relacionadas, por sua vez, às representações mentais agora materializadas no cotidiano. Já o “espaço percebido” opera na intermediação da ordem distante ligada à representação da ideia de produto e a ordem próxima, ligadas às representações mentais agora materializadas no cotidiano. Neste estudo, relacionam-se a processos de ocupação de áreas de assentamento rural, como no estudo de assentamento no sudeste por Santos e Krajevski (2018SANTOS, C.; KRAJEVSKI, L. Assentamentos rurais e as modificações socioeconômicas no município de Rio Bonito do Iguaçu. Revista NERA, ano 21, n. 41, p. 39-61, 2018.); ao cooperativismo no trabalho de De Melo e Scopinho (2018DE MELO, T.; SCOPINHO, R. Políticas públicas para os assentamentos rurais e cooperativismo: entre o idealizado e as práticas possíveis. Revista Sociedade e Estado - Volume 33, Número 1, 2018 p. 63-86.) e na Amazônia (LE TOURNEAU e BURSTYN, 2010LE TOURNEAU, François-Michel; BURSTYN, Marcel. Assentamentos rurais na Amazônia: contradições entre a política agrária e a política ambiental. Ambiente & Sociedade, Campinas v. XIII, n. 1. p. 111-130, 2010). Por outro lado, o “espaço vivido” é ligado à experiência cotidiana, própria do urbano - é o próprio espaço social, aqui tratado na relação urbano-rural de um assentamento que não existe isolado da metrópole, mas que coaduna racionalidades capitalistas e simultaneamente está articulado a um processo coletivo de mobilização e reinvindicações, assim como Souza (2009SOUZA, C. A contribuição de Henri Lefebvre para reflexão do espaço urbano da Amazônia. Confins, [s.l.], 2009. Disponível em: https://journals.openedition.org/confins/5633?lang=pt . Acesso em: 10 maio 2017.
https://journals.openedition.org/confins...
) analisa as ocupações urbanas na mesma metrópole, Belém.

Assim como Lefebvre, Monte-Mor (2014MONTE-MOR, R. L. Extended urbanization and settlement patterns in Brazil: an environmental approach. In: BRENNER, N. (Ed.). Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis, 2014. p. 109-120.) compreende a “urbanização extensiva” como a própria projeção da sociedade urbana. Trata-se de um conjunto de manifestações do urbano que leva ao predomínio da cidade sobre o campo, materializando-se de diversas maneiras, a exemplo da segunda residência, da rodovia, presença de supermercados etc. Todos esses elementos integram o tecido urbano, que se pode apresentar mais ou menos denso, espesso e ativo, a ponto de gerar novas formas espaciais e, possivelmente, o desaparecimento das outras. Para Monte-Mor (2014MONTE-MOR, R. L. Extended urbanization and settlement patterns in Brazil: an environmental approach. In: BRENNER, N. (Ed.). Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis, 2014. p. 109-120.), a urbanização extensiva é a forma socioespacial que expande as condições urbano-industriais de produção (e reprodução) por sobre o espaço regional, articulando o urbano e o rural em uma única e (virtualmente) integrada forma urbana, carregando especificidades de polis e civitas: a práxis urbana, a política e a cidadania. Estendendo-se sobre novas e velhas regiões, a urbanização resulta em diversas e distintas combinações de processos e formas socioespaciais que representam mais do que manifestações locais e elementos hegemônicos dos centros urbanos industriais, expressando particularidades de práticas tradicionais recriadas pela necessidade imediata.

Browder e Godfrey (2006BROWDER, J.; GODFREY, B. Cidades da Floresta: urbanização, desenvolvimento e globalização na Amazônia brasileira. Manaus: EDUA, 2006.) defendem um pluralismo conceitual na discussão sobre o espaço amazônico por causa da complexidade que seu processo de urbanização revela. A heterogeneidade e a complexidade do processo de urbanização amazônico contribuem para uma mistura de formações microssociais híbridas, em razão da diversidade de assentamentos humanos e seus sistemas próprios e com marcantes diferenças entre eles. Os autores sugerem o termo “urbanização desarticulada”, por se tratar de um espaço social heterogêneo, constituído por diversos grupos étnicos e sociais incapazes de serem interpretados por um único conceito. Seus sistemas polimorfos e irregulares de cidade apresentam funções diferencialmente articuladas com a economia mundial, em que a expansão agrícola e o desenvolvimento industrial não se dão de forma generalizada, mas pontual, ainda que haja crescimento populacional em toda a região. Já Oliveira (2000) propõe o termo “urbanização na selva”, pois, para ele, a fronteira amazônica já nasce urbana, uma vez que, na Amazônia, a cidade surge no início e não como resultado de um processo. Porém, não se qualifica como urbana enquanto domínio da cidade na paisagem, sendo-o em razão do predomínio do urbano como estilo de vida que se estabelece e tende a prevalecer. Diante da heterogeneidade e da complexidade do processo de urbanização amazônico, destacam-se as áreas periurbanas como produto do fenômeno urbano e local de manifestação da sociedade urbana.

Para além dos conceitos acima referidos, sem negá-los, há ainda a necessidade de situar a expressão do periurbano na Amazônia. España, citada em Vale e Girardi (2006VALE, A.; GERARDI, L. Crescimento Urbano e Teorias sobre o Espaço Periurbano: Analisando o Caso do Município de Araraquara (SP). In: GERARDI, L.; CARVALHO, P. (Org.). Geografia: Ações e Reflexões. Rio Claro: Editora da Unesp, 2006. p. 231-246.), menciona que o emprego do termo possui um sentido mais amplo, utilizado para as áreas em que ocorre o crescimento periférico, bem como onde usos urbanos e agrícolas se misturam, formando uma zona de transição entre a cidade e o campo (ESPAÑA, 1991 apudVALE; GIRARDI, 2006VALE, A.; GERARDI, L. Crescimento Urbano e Teorias sobre o Espaço Periurbano: Analisando o Caso do Município de Araraquara (SP). In: GERARDI, L.; CARVALHO, P. (Org.). Geografia: Ações e Reflexões. Rio Claro: Editora da Unesp, 2006. p. 231-246.). Cardoso, por sua vez, afirma que:

Neste processo dialético a forma-conteúdo do urbano transcende a da cidade, avançando sobre antigas realidades como as do campo e as das próprias cidades existentes, sem as anular, mas recriando-as, subordinando-as, como é o caso do desenvolvimento das periferias e das hiperperiferias e das áreas periurbanas que se constituem cada vez mais em zonas de transição demarcadas pelo avanço crescente do urbano sobre o campo (..) redefinindo a relação cidade-campo que não desaparece, mas subordina-se à relação urbano-rural (CARDOSO, 2012CARDOSO, I. C. Cidade Capitalista e Política Urbana no Brasil do século XXI: como pensar a realidade periurbana?. In: SANTANA, J. V.; HOLANDA, A. C.; MOURA, A. S. (Org.). A Questão da Habitação em Municípios Periurbanos na Amazônia. Belém: Ed.Ufpa, 2012. p. 29-52., p. 33).

No plano das políticas públicas, Ribeiro (2012RIBEIRO, R. A Política Habitacional recente e sua expressão em municípios da Amazônia Oriental: os exemplos de São Sebastião da Boa Vista e São João do Araguaia - PA. In: SANTANA, J.; HOLANDA, A.; MOURA, A. (Org.). A Questão da Habitação em Municípios Periurbanos na Amazônia. Belém: Ed.UFPA, 2012. p. 215-229.) chama atenção para o periurbano na Amazônia, ligado ao padrão dendrítico e a um padrão complexo marcado por uma miríade de padrões locacionais, marcadamente do hinterland de poucos centros regionais mais importantes, em convivência com centralidades advindas da confluência de rios, de áreas de produção agrícola e pecuária, exploração mineral etc. (CORRÊA, 2006CORRÊA, R. Estudos sobre a Rede Urbana. Rio de Janeiro, Bertand Brasil, 2006.).

3. Origem e trajetória do PCA Mártires de Abril em Mosqueiro, Belém, Pará

A primeira ocupação do Movimento Sem Terra em área urbana da RMB ocorreu em 1998 na fazenda Bacuri, no município de Castanhal, que originou o assentamento João Batista (ABE, 2004ABE, M. N. Mártires de Abril: o MST semeando a utopia camponesa. 2004. 199 f. Dissertação (Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2004.). A escolha do MST pela área da fazenda TABA, em Mosqueiro, para realizar a segunda ocupação do Movimento em área urbana, está associada, por um lado, ao fim da atividade produtiva devido ao enfraquecimento do solo, visto que a fazenda trabalhava apenas com monocultura de coco e extração de pedra, e a sede da fazenda servia como espaço de prostituição; por outro lado, tal escolha se deve à própria condição de acesso ao Distrito de Mosqueiro.

A disputa pela área da fazenda TABA é também uma disputa pelo território de Mosqueiro, que se apresenta como uma área dominada pela elite de Belém, visto que a maior parte do tecido urbano da ilha é composto por segundas residências que são subutilizadas durante a maior parte do ano. Por ser um distrito em que o lazer e o turismo são muito presentes, José1 1 Os nomes dos assentados entrevistados foram modificados visando preservar sua identidade. , assentado do AMA, ressalta que Mosqueiro não apresenta histórico de luta de trabalhadores rurais nem urbanos. Sendo assim, a intenção do MST é disputar território da ilha com a elite dominante por meio da organização de trabalhadores para a luta com objetivo de chamar atenção do Estado e demarcar que a ilha tem trabalhadores que precisam ser vistos.

O assentamento na antiga fazenda TABA compreende uma área de aproximadamente 408ha dos bairros do Caruara e Sucurijuquara (Figura 1). O acampamento inicial teve a participação de aproximadamente 800 pessoas. Para os assentados, o processo de ocupação nos primeiros anos foi marcado pela violência de quatro ações tentativas de reintegração de posse realizadas pela Secretaria de Segurança do Governo do Estado do Pará. Segundo a assentada Maria, o impacto da violência sobre o acampamento foi muito forte, causando a desistência de considerável número de famílias que faziam parte do acampamento instalado. Após esses eventos, em junho de 2001, a PMB, governada por Edmilson Rodrigues, aprovou o Projeto Casulo de Assentamento do INCRA (INCRA, 2001INCRA. Processo n. 541.00.001308/2001-62, referente à criação do Projeto Casulo Mártires de Abril. INCRA: Belém, 2001.).

Figura 1
Localização do Assentamento Mártires de Abril no Distrito de Mosqueiro

A região de influência do projeto apresenta tipologia vegetal heterogênea, formada por mata de capoeira e pastagem juntamente com o plantio de coco. A área do projeto é cortada por pequenos rios e igarapés permanentes e, no período chuvoso, constata-se a existência de várias grotas. Ao longo de um açude existente na área, são encontradas faixas de cobertura vegetal ciliar diversificada. É importante considerar esses fatores, pois, segundo o INCRA (2001INCRA. Processo n. 541.00.001308/2001-62, referente à criação do Projeto Casulo Mártires de Abril. INCRA: Belém, 2001.), os produtos a serem incorporados ao projeto devem ser compatibilizados com as vocações naturais da área, a fim de assegurar condições ideais de preservação ambiental.

O Projeto Casulo de Assentamento é destinado aos assentamentos da reforma agrária de pequeno porte localizados no espaço periurbano, sendo essa uma característica-chave para compreensão dessa modalidade, visto que é essencialmente híbrido: dentro do mesmo espaço, o urbano e o rural coexistem principalmente no que tange às relações sociais. Caracterizado também por ser uma parceria entre o Governo Federal e o Municipal, no caso da implementação do PCA Mártires de Abril, a cooperação foi estabelecida entre INCRA e Secretaria de Economia da PMB, respectivamente, tendo como objetivos principais deflagrar ações de geração de emprego e renda e fomentar uma política planejada de abastecimento alimentar para Belém.

Inicialmente, a responsabilidade do INCRA inclui: a divulgação de critérios para participação; o estímulo ao surgimento de parcerias; o fornecimento de informações para eleição dos candidatos; encaminhamentos para aprovação do projeto de viabilidade, elaborado pela proponente; e o reconhecimento do PCA. Em cada fase, disponibiliza recursos orçamentários e financeiros necessários à concessão de créditos de instalação, apoio e aquisição de material de construção e de produção por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), para finalmente firmar contrato de concessão de crédito com os beneficiários. De acordo com o INCRA (2001INCRA. Processo n. 541.00.001308/2001-62, referente à criação do Projeto Casulo Mártires de Abril. INCRA: Belém, 2001.), é de responsabilidade do poder municipal a celebração de contrato de assentamento com os beneficiários, no âmbito do PCA, diligenciando, junto a outras instituições, assistência técnica e capacitação (produção, comercialização e gerenciamento) para os beneficiários, garantindo também o ressarcimento dos créditos de instalação por ocasião da transferência de dominialidade da área aos beneficiados.

No que se refere à delimitação da área de projeto de assentamento, a Portaria do INCRA 321/97 alude particularmente à necessidade de comprovação de domínio da área a ser destinada ao projeto. A comprovação de domínio da área e a elaboração do Estudo de Capacidade de Geração de Renda do imóvel (ECGR) são pré-requisitos indispensáveis para implementação de assentamento na modalidade Casulo. Para que pudesse ser submetido à modalidade Casulo do INCRA, a natureza fundiária da terra onde o AMA foi instalado mereceu atenção especial. A certidão anexada pela prefeitura ao processo que propunha o PCA, expedida pelo Cartório de Registro de Imóveis do 2º Ofício da Comarca de Belém, atesta a existência de transcrição (registro), para efeito de incorporação imobiliária, de todos os bens correspondentes ao patrimônio enfitêutico existente nos distritos de Icoaraci e Mosqueiro. Assim, durante a pesquisa fundiária realizada pela CODEM, foram identificadas cinco áreas de traspasse resultantes da aplicação do instrumento enfitêutico, sendo cinco em nome de Marcílio Gibson Jacques e uma em nome da TABA, além de outras duas áreas em processos de aforamento em nome de Marcílio Gibson Jacques. Esses títulos garantiam aos seus detentores a posse definitiva da terra. Para delimitação da poligonal do assentamento, foram excluídas as áreas de traspasse e se mantiveram as duas áreas identificadas por aforamento. Dentro de uma das áreas de aforamento, foram identificadas treze posses de terceiros, adquiridas por Marcílio Gibson Jacques, transação que foi comprovada por meio de processos de compra e venda (CODEM, 2016).

Após a comprovação da dominialidade da área pela prefeitura, em novembro de 2001, foi aprovado o processo de implementação do PCA Mártires de Abril para as 95 famílias remanescentes do acampamento, assentados em uma agrovila e em lotes rurais de produção coletiva conforme a Figura 2.

Figura 2
Formação fundiária da poligonal do AMA

Durante os três primeiros anos de acampamento (1999 a 2001), 95 famílias sob a coordenação do MST se organizaram social e produtivamente para a manutenção da ocupação e resistência para permanência da área até o desenvolvimento do Projeto de Desenvolvimento do Assentamento (PDA), estudo prévio realizado pelo INCRA com a participação dos assentados para orientar o desenvolvimento do assentamento. De acordo com o Instituto, o estudo deve conter um diagnóstico da realidade local e apresentar propostas viáveis para desenvolver todos os aspectos da vida do assentado e da comunidade.

O primeiro produto desse plano é a organização espacial, dividindo a área total do assentamento em: a) lotes de produção rural que, por meio de sorteio, são distribuídos para as famílias ocupantes; e b) áreas destinadas a preservação ambiental e instalações do assentamento, que, no caso do AMA, localiza-se na agrovila indicada na Figura 2. O segundo produto corresponde à implantação de infraestrutura básica, que consiste na abertura de vicinais e saneamento básico, bem como a criação de sistemas para abastecimento de água e energia elétrica. De acordo com o PDA, a área destinada ao assentamento foi de 408,06ha, dividida em: a) Agrovila; b) Dez lotes rurais; c) Área patrimonial e área de preservação; d) Área de projetos coletivos; e e) Sobras de terra que são doadas às novas famílias que chegam ao AMA.

O terreno destinado aos equipamentos sociais se localiza próximo à Agrovila, com acesso pela estrada da Baía do Sol. A área destinada ao lazer é composta por um campo de futebol, duas piscinas construídas no curso de um igarapé, localizadas na sede da antiga fazenda TABA, e uma área coberta com churrasqueira. Próximo à piscina, existem algumas ruínas de prédios da TABA que, após a criação do AMA, abrigaram o centro de formação do MST e uma pequena escola do assentamento.

Em relação à titulação da terra, os beneficiários assinaram com o INCRA o Contrato de Concessão de Uso (CCU), por cinquenta anos, transferindo o imóvel rural ao beneficiário da reforma agrária em caráter provisório e assegurando aos assentados o acesso à terra, aos créditos disponibilizados pelo INCRA e a outros programas do Governo Federal. Vale ressaltar que os assentados são proibidos de comercializar ou ceder a particulares os lotes do assentamento do INCRA. O título é transferido ao trabalhador rural através da Lei n°8.629/93 que garante a posse da terra em definitivo, caso sejam cumpridas as exigências necessárias (INCRA, 2015). Dentre outras características do Projeto Casulo de Assentamento, destacam-se o tamanho reduzido dos lotes - cerca de 3,6ha por família, se comparado a outros assentamentos de reforma agrária do INCRA - e a dinâmica periurbana, a qual é superficialmente abordada pelo Instituto.

De acordo com o INCRA (2001INCRA. Processo n. 541.00.001308/2001-62, referente à criação do Projeto Casulo Mártires de Abril. INCRA: Belém, 2001.), a escolha pela Secretaria de Economia (SECON) da PMB (BELÉM, 1997BELÉM. Secretaria de Economia. Portaria n. 061/97. Diário Oficial do Município de Belém, Belém, PA, out. 1997. n.p.) da área para implementação do AMA teve como pressupostos a disponibilidade de infraestrutura que pode ser utilizada para produção: rede elétrica, rodovia pavimentada e o atracadouro da Vila de Mosqueiro, a ser utilizado para o escoamento da produção. A proximidade à zona urbana facilitaria o acesso aos serviços oferecidos por Belém e Mosqueiro, reduzindo as resistências culturais dos assentados, visto que os grupos que seriam selecionados eram, segundo a PMB, formados de pessoas com valores da cultura urbana. Além disso, havia a sugestão de que a disponibilidade parcial de cobertura vegetal permitiria a apropriação e o desenvolvimento racional e planejado dos produtos florestais paralelamente à produção de folhosas, leguminosas, grãos e fruticultura regional. A SECON também relacionou o projeto, pela proximidade, com a área onde seria implantado um centro de pesquisa e desenvolvimento da Agroindústria Familiar, nunca concretizado, que permitiria que o projeto pudesse dispor permanentemente de assistência técnica no processo produtivo e apoio gerencial para comercialização dos produtos. Além dos fatores apresentados, a SECON afirmou que, diante do risco advindo de variações climáticas, da infestação de pragas, além das variações dos preços de mercado no momento da comercialização, seria implantada pela PMB um programa de assistência técnica, o que se consolidou até hoje.

4. A configuração espacial do AMA

No que se refere à implantação, a configuração do parcelamento do PCA Mártires de Abril obedece ao modelo ortogonal, em forma de agrovila. Nesse tipo de parcelamento, o assentamento é dividido em dois setores: moradia e produção agrícola, e o assentado tem direito a dois lotes, um em cada setor. A agrovila é subdividida em quadras e ruas, e o setor agrícola é disposto ao longo das estradas de acesso ao assentamento. A leitura do seu traçado e a setorização de acordo com o uso do solo possibilitam a interpretação de um assentamento híbrido, onde se pode verificar a mistura de um parcelamento tipicamente urbano, mas de atividades predominantemente rurais.

A configuração das moradias centralizadas foi uma proposta do INCRA, do MST e da Associação de Produção dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Mártires de Abril (APROAMA). Segundo José, a intenção da organização em agrovila era quebrar o “egoísmo presente nas periferias das grandes cidades, das quais os assentados faziam parte. A construção centralizada possibilitava a permanência do senso de comunidade e união conquistado na época do acampamento, a facilidade de realização de atividades e reuniões do MST, bem como a implantação de políticas e serviços públicos previstos no Projeto Casulo.

A agrovila é composta por nove quadras, quatro ruas e quatro travessas, compreendendo 95 lotes individuais, medindo 20x30m, com residências unifamiliares em alvenaria de aproximadamente 42 m2 edificadas pelo Crédito Aquisição do INCRA, além de um centro comunitário e um campo de futebol. Uma rede elétrica foi implantada em todas as vias, e demarcou-se um local para o poço artesiano destinado ao abastecimento humano, o qual nunca foi executado. O acesso à agrovila é feito pela Estrada da Baía do Sol e por uma estreita travessa de terra localizada entre os lotes rurais. A chegada à agrovila é considerada de fácil acesso, contudo, a distância em relação à estrada confere às moradias um aspecto isolado, visto que está localizada a 220 metros da beira da estrada.

O ordenamento territorial do assentamento foi discutido em assembleias e posto em votação, sendo mais votada a proposta de desenho para a agrovila como o local em que haveria a moradia e a produção; porém, um grupo de assentados contestou a decisão da maioria e optou pela moradia no mesmo local de trabalho, ou seja, nos lotes rurais de produção. Os assentados contrários à proposta centralizadora justificaram que a distância causaria desgaste físico, perda de tempo com o deslocamento e a produção ficaria desprotegida, facilitando o roubo e saques da produção agrícola. Após a liberação do crédito de auxílio do INCRA, 77 famílias optaram por construir suas casas na agrovila e dezoito famílias optaram pela construção das unidades habitacionais nos lotes de produção agrícola.

Apesar de a agrovila apresentar parcelamento ortogonal, próprio de parcelamentos urbanos, o aspecto das residências e as práticas cotidianas dos assentados revelam a sua vida rural. Dessa forma, o AMA é um assentamento em que é perceptível a presença do rural e do urbano, entretanto, com o rural sendo mais evidente, algo que se confirma pela dinâmica econômica de características rurais. Logo após a implantação do Projeto Casulo em outubro de 2001, e início da produção dos Núcleos Base (NB, designação do MST) de produção, os problemas previstos pelo grupo contrário à agrovila começaram a se manifestar. Por causa dos constantes furtos da produção e da distância entre os lotes de produção e a agrovila, iniciou-se no assentamento um movimento de migração das famílias da agrovila para o lote de produção agrícola, iniciando a primeira reconfiguração espacial do assentamento. O movimento de saída da agrovila reafirma a vocação agrícola do assentamento.

Paralelamente ao movimento migratório para os lotes, destacou-se a inação da PMB no que tange a suas obrigações de contrato do PC firmado entre INCRA e PMB. De acordo com os assentados entrevistados, o INCRA cumpriu com sua parte do contrato, por meio das cartas de crédito; por outro lado, após o mandato do prefeito que iniciou o projeto, as administrações seguintes se mostraram omissas e não cumpriram com a sua parte do contrato referente a saneamento básico, asfaltamento das ruas, energia elétrica com tarifa de energia rural, escola e posto de saúde para o assentamento. Segundo José, a falta de políticas públicas, de responsabilidade da prefeitura, resultou no agravamento da migração para os lotes, pois a agrovila não tem nenhuma infraestrutura, ao contrário dos lotes, os quais estão localizados na beira de importantes estradas do distrito - sendo estes muito mais dinâmicos e de fácil acesso a políticas, equipamentos e serviços urbanos do que a agrovila. Além disso, a vivência no lote permite maior dedicação à produção, notadamente maior nos lotes agrícolas habitados pelos assentados do que a dos moradores da agrovila que trabalham no lote. Por outro lado, José destaca que a parte positiva da agrovila é o contato com as famílias, enquanto o assentado do lote não tem o convívio social com as outras famílias assentadas e não se dispõe mais a ir à luta.

A separação entre os assentados enfraqueceu o movimento de luta pela terra e pela Reforma Agrária, e de acordo com as lideranças do MST, após a implantação do projeto, muitos assentados acreditam que a Reforma Agrária já foi feita. Junto com o movimento de migração, iniciou-se na agrovila a prática velada de comercialização das casas de alvenaria construídas com o Crédito Aquisição do INCRA, pois muitos assentados passaram a trocar a moradia por material de construção para edificar a segunda residência nos lotes rurais. Não há como impedir essa prática, visto que a mudança para os lotes se mostra mais coerente. Assim, a movimentação de saída confirma que o parcelamento do tipo Agrovila para esse assentamento periurbano não foi o mais adequado.

5. As políticas públicas “espaciais” e o ambiente construído do AMA

O assentamento apresenta particularidades oriundas da implantação do Projeto Casulo no contexto urbano do distrito. De acordo com o INCRA (2001), essa modalidade contempla assentamentos rurais localizados nas proximidades de importantes núcleos urbanos, entretanto, verifica-se que desconsidera a dinâmica periurbana na qual o assentamento está inserido, limitando o PDA apenas aos aspectos internos do assentamento. A implantação do AMA no entorno urbano e o ordenamento em forma de agrovila demonstram a complexidade do assentamento, o qual se mostra em constante transformação desde que foi implantado em outubro de 2001. Inicialmente pensado para separação das funções de morar e habitar, o assentamento se reinventa, evidenciando sua vocação rural ao reproduzir trabalho e moradia no mesmo espaço, sem deixar de manifestar expressões de urbanidade inerentes à sua localidade.

O AMA está localizado próximo à Praça do Carananduba, importante centralidade do distrito, onde se concentram diversos serviços e equipamentos urbanos. A praça está situada na confluência da PA-391, que liga Mosqueiro a Belém, e da Av. 16 de Novembro, principal avenida do distrito. Nessa centralidade, se percebe uma área bem servida de equipamentos e serviços urbanos, em que se encontram, além da praça, dois templos religiosos, posto de saúde, bares, restaurantes, lanchonetes, mercado municipal, academia popular, quiosques, delegacia, ponto de táxi e mototáxi e um terminal de integração que recebe os passageiros que chegam de Belém e interliga as diferentes regiões do distrito.

No AMA, a agricultura familiar é a principal fonte de renda dos assentados. Porém, as práticas socioespaciais apresentam diversidade e, ao mesmo tempo, complexidade, visto que se percebe a coexistência de práticas rurais e urbanas que se manifestam no modo de vida do assentado. A inserção do assentamento dentro da área urbana de Mosqueiro possibilita que a unidade familiar tenha uma fonte de renda que não depende exclusivamente do trabalho e da comercialização da produção agrícola. O trabalho urbano é uma renda extra para complementar o orçamento familiar sem substituir o trabalho agrícola. O salário ganho é convertido em bens de consumo para a família e investido no próprio lote por meio da compra de equipamentos e insumos.

O trabalho urbano também é uma estratégia de sobrevivência que os assentados têm para dar continuidade à produção no período de entressafra, visto que a agricultura depende de muitos fatores. Apesar do estímulo ao desenvolvimento da agricultura quando da implantação do assentamento, nem todos se adaptaram a esse tipo de atividade e não desenvolvem produção agrícola no lote, preferindo continuar como assalariados, empregados no distrito ou em Belém, pois a maioria dos assentados era de trabalhadores urbanos sem experiência com agricultura, uma vez que o trabalho de base foi feito na periferia de Belém.

Diante disso, o trabalho externo se mostra como um “conflito” para o assentamento, visto que, para o governo municipal, a inserção no tecido urbano aliada à prática do trabalho urbano confere aos assentados aspectos predominantemente urbanos. Ao analisar a modalidade Casulo, levanta-se algumas questões que influenciaram a reconfiguração espacial do AMA. A primeira é a superficialidade dos estudos para a implantação, uma responsabilidade relegada exclusivamente aos assentados, que, sem a assessoria técnica, optaram pela proposta mais fácil e não a mais adequada. A segunda questão se refere à limitação do INCRA ao fornecimento de cartas de crédito, e ao planejamento territorial, limitado à poligonal do assentamento, sem considerar o entorno urbano e as diversas dinâmicas que incidem sobre o AMA. Por fim, a terceira problemática é o não cumprimento do acordo, por parte da PMB, referente à execução das políticas públicas no assentamento. Dentre as problemáticas apresentadas, destaca-se a última como a de maior impacto negativo sobre o assentamento, como pode ser observado na declaração do assentado:

A prefeitura joga pro INCRA e o INCRA joga pra Prefeitura [...] a gente queria pelo menos que a Prefeitura de Belém assinasse uma documentação assumindo a parte dela e ela fazendo a parte dela que é a parte da assistência técnica, a iluminação pública, saneamento básico. Toda essa questão que a gente vê que uma cidade precisa, o assentamento também precisa. E aí se não funciona, quem é o maior prejudicado? São as famílias que estão dentro do assentamento. (informação verbal)2 2 Entrevista com Antônio realizada no dia 11 de março de 2017.

O conjunto de ações e inações levou ao remodelamento do PCA, haja vista a necessidade de incrementar a produção, provocando um movimento migratório da agrovila para os lotes, os quais são diretamente influenciados por sua localização na beira das estradas de acesso ao assentamento. A localização da agrovila no interior do terreno faz com que se perca o vínculo com a estrada e, consequentemente, a percepção do urbano é praticamente inexistente. Neste caso específico, verifica-se que o parcelamento ortogonal não se mostrou como o mais indicado, visto que o movimento migratório levou à instalação de casas ao longo das vicinais.

Desse modo, a configuração interna do assentamento se mostra uma contradição, pois, inicialmente pensada para uma organização tipicamente urbana, a agrovila não apresenta expressões urbanas significativas, sendo o parcelamento em quadras e lotes a única característica percebida - ainda assim, o urbano não é determinado pelo parcelamento. Por estar distante da estrada da Baía do Sol, a localização confere à agrovila aspecto de isolamento, como se não estivesse inserida no contexto urbano do distrito - estando praticamente abandonada atualmente, pois mais da metade dos primeiros assentados comercializou suas casas e se mudou para os lotes. Por outro lado, apesar do desenvolvimento da produção agrícola, os lotes destinados à produção rural apresentam significativas expressões urbanas proporcionadas pela proximidade à praça do bairro Carananduba, pela relação direta com os outros assentamentos vizinhos, caso do Assentamento Teixeira, instalado em 2004, e pelo tráfego constante de automóveis em frente aos lotes de produção rural nas estradas de Maraú e Baía do Sol.

5.1. A Microescala de Análise: O PMCMVR e a consolidação do lote rural de produção

O Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) foi incorporado ao PMCMV em 2009, quando passa a ser chamado de PMCMVR, o qual buscava garantir subsídio financeiro para aquisição, reforma ou construção de moradias aos agricultores familiares e trabalhadores rurais (BRASIL, 2009BRASIL. Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011. Altera a Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas [...]. Brasília: Palácio do Planalto, [2011]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12424.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
). Semelhante experiência de habitação de interesse social rural apontada por Ribeiro (2012RIBEIRO, R. A Política Habitacional recente e sua expressão em municípios da Amazônia Oriental: os exemplos de São Sebastião da Boa Vista e São João do Araguaia - PA. In: SANTANA, J.; HOLANDA, A.; MOURA, A. (Org.). A Questão da Habitação em Municípios Periurbanos na Amazônia. Belém: Ed.UFPA, 2012. p. 215-229.) ao tratar da política habitacional rural nos municípios de São Sebastião da Boa Vista e São João do Araguaia, Pará3 3 Verificar o artigo “A política habitacional recente e sua expressão em municípios da Amazônia Oriental: os exemplos de São Sebastião da Boa Vista e São João do Araguaia - PA” de Rovaine Ribeiro (2012). . No que se refere ao contexto latino-americano, o Uruguai apresenta desde 1967 o programa territorial e habitacional MEVIR4 4 A Comissão Honorária para a Erradicação da Habitação Rural Insalubre (MEVIR) tem como missão trabalhar para garantir que a população rural uruguaia, principalmente daqueles em estado vulnerável, possa exercer seu direito à moradia de qualidade, fazendo uso adequado dos recursos alocados pela sociedade, no âmbito das políticas de desenvolvimento integral (produtivo, social, ambiental, territorial). (Traduzido pelos autores). (URUGUAI, 2015.). . Em 2013, foram realizadas algumas reformulações visando à inclusão dos agricultores familiares beneficiados pelo PNRA entre os que podem ser contemplados do PMCMVR (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério das Cidades. Programa Nacional de Habitação Rural. Brasília: Ministério das Cidades, 2013.). A questão da moradia em assentamentos de Reforma Agrária era de responsabilidade do INCRA e do MDA até 2013 e, a partir desta Portaria, passa a ser do Ministério das Cidades. Sendo assim, para as famílias com renda anual de até R$ 15.000,00, o PMCMVR disponibiliza o subsídio de R$ 30.500,00, equivalendo à construção de uma nova residência dentro dos padrões da unidade habitacional da modalidade rural, e o subsídio de R$ 18.400,00, referente à reforma da casa construída a partir do crédito de Apoio do INCRA para compra de material de construção - considere-se que, no ano de implantação do assentamento, era de apenas R$ 2.500,00.

Dentre problemas institucionais de implementação do PMCMVR, apresentam-se principalmente a lentidão, a burocracia excessiva do programa e a péssima qualidade do material de construção. A implantação das casas no assentamento iniciou no ano de 2014, e até o final de 2016 a maioria das casas não havia sido entregue. A falta de compromisso da assessoria técnica, os atrasos nas transferências de recursos, etc. são constantes queixas dos assentados em relação ao programa. A modalidade de construção é a autoconstrução assistida, ou seja, o beneficiado é responsável pela construção da própria casa, sendo este auxiliado por uma assessoria técnica. O dinheiro para o material de construção vai diretamente para empresa que fornece o material. De acordo com relato dos assentados, o material é de baixa qualidade e muitas vezes se estragam, por causa da demora em executar as casas.

Apesar de ter sido implantado em 2009, o Programa chegou à Mosqueiro apenas em 2014. No mesmo ano, a associação de assentados, coordenada por D. Maria, e a entidade organizadora CNPE deram entrada à CEF para implantação do PMCMVR no AMA. Ainda em 2014, foram aprovados dois projetos de 50 unidades habitacionais do programa para serem construídas em duas etapas no assentamento. No entanto, a desarticulação entre as diferentes esferas de governo, antes representadas pelo INCRA e a PMB, torna-se mais evidente com a implantação do PMCMVR. De acordo com a assentada Maria, os técnicos da CEF alegaram que o AMA não é rural e sim urbano, visão esta que se justifica pela integração com as vicinais, a localização entre dois bairros urbanizados, Carananduba e Paraíso, e a acessibilidade a serviços urbanos. A problemática quanto à classificação do assentamento indica uma limitação desde a implantação do Projeto Casulo, segundo a assentada:

Olha, até ano passado tava uma questão dentro da Prefeitura de que o Duciomar tinha feito um dossiê de que Mosqueiro não tinha trabalhador rural, sendo que o Projeto Casulo tem um convênio com a prefeitura e governo federal. Como é que o cara vai fazer um documento, um dossiê, dizendo que Mosqueiro não tem assentamento rural?! [...] O AMA e o Elizabeth Teixeira são Projeto Casulo e a gente dentro. No dia que estávamos fazendo a discussão do projeto do PMCMV eles colocaram um documento lá na SEURB, um mapa dizendo que dentro de Mosqueiro não existia e a gente com toda documentação [processo do INCRA] dizendo que tinha sido liberado pela prefeitura e pelo INCRA. Eles queriam barrar o projeto. Não queriam liberar. Depois de muita briga que a gente conseguiu provar pra eles que existia (informação verbal)5 5 Entrevista com D. Maria, realizada no dia 07 de janeiro de 2017. .

O PMCMVR foi a segunda política “espacial” a beneficiar o AMA, alterando a configuração espacial do assentamento. Durante a incursão a campo, observou-se que o Programa foi implantado apenas nos lotes rurais e não na agrovila. A escolha pelos lotes reforça a dispersão espacial pulverizada como a mais adequada nas áreas de produção, ou seja, o programa habitacional é implantado nos lotes para suprir a demanda por uma residência que não foi construída durante a implantação do assentamento em 2001.

A concessão de créditos do Projeto Casulo aos assentados do AMA foi realizada no nome do responsável pela unidade familiar, o qual, ao ser contemplado, não poderia ser beneficiado pelo PMCMVR. A partir desse critério de seleção, o PMCMVR beneficia, principalmente, os agregados dos beneficiados pelo PCA-INCRA, geralmente, filhos, netos ou quem possuir parentesco com o primeiro assentado. Sendo assim, várias unidades do programa estão sendo construídas nos lotes rurais pontualmente, visto que o PMCMVR é um programa econômico que não apresenta nenhum tipo de planejamento territorial.

Muitas unidades habitacionais ainda estão em fase de construção e parte delas foi ocupada de forma irregular pelos beneficiados. Em alguns casos, o assentado beneficiado está finalizando a casa com recursos próprios, porque tem a necessidade de morar e o Programa não tem previsão de entrega. Por outro lado, quando questionados se vale a pena enfrentar todos esses problemas pela casa, todos os entrevistados afirmaram que sim, porque o valor investido no imóvel é muito baixo. O custo total da casa é de R$ 28.500 e o valor pago pelo assentado é de R$ 1.200, a ser pago em quatro parcelas de R$ 300. Antes da chegada do programa, os lotes possuíam, geralmente, uma ou duas casas, uma de alvenaria e outra de madeira e barro; com o programa, novas casas são construídas, obrigatoriamente menores do que as existentes, seguindo o projeto padrão do PMCMVR e resultando em um outro modelo de casa, externo à tipologia e à realidade do assentamento e da região.

Por meio de observações, foi feito um resgate do processo de formação dos lotes individuais de produção rural e a identificação das temporalidades e espacialidades do assentamento, bem como sua complexa formação ao longo dos últimos vinte anos. Observa-se o ordenamento autônomo dos assentados que saíram da agrovila, buscando um modo de vida mais próximo da dinâmica rural, consolidado pela construção de moradias pelo PMCMVR, o que configura três fases de formação dos lotes individuais (Figura 3).

Figura 3
Fases de ocupação de lotes na agrovila e lotes rurais de produção

A primeira fase marca, no início do assentamento em 2001, o princípio da migração da agrovila para os lotes rurais de trabalho, materializada pela construção das segundas residências, geralmente de madeira e barro, construídas com recurso dos próprios assentados. A segunda fase inicia-se em 2005/2006, marcada pelo conflito entre as lideranças do assentamento, que culminou na desarticulação dos lotes de produção e constituição de associações produtivas independentes como nova forma de organização social e produtiva. Nessa fase, ocorre a construção de uma terceira residência em alvenaria na beira da pista, visando à comercialização da produção. A terceira fase tem início em 2014, com a implantação do PMCMVR e a consolidação dos lotes agrícolas como um ordenamento territorial, o que, segundo os assentados, é mais adequado ao local. Apesar de todas as problemáticas que envolvem o PMCMVR, a implantação do programa nos lotes agrícolas era uma demanda dos assentados desde a saída da moradia centralizada, visto que, ao mudar para os lotes, eles comercializaram ou abandonaram suas casas na agrovila. A mobilidade residencial dentro do assentamento é constante, e essas etapas não se encerram, tampouco se esgotam - há sobreposições de etapas, e percebe-se o movimento de saída da agrovila para os lotes agrícolas até hoje.

A saída da agrovila simboliza a mudança de um suposto modo de vida urbano, proporcionado pelo parcelamento ortogonal e pela setorização das atividades, para um modo de vida rural, no qual o trabalho e a moradia se reproduzem no mesmo espaço. Para construir as casas nos lotes rurais foi necessária a comercialização das residências construídas com o auxílio do crédito do INCRA para aquisição de material de construção. As mudanças são materializadas por meio da autoconstrução de segundas residências nos lotes rurais, geralmente de madeira e barro. Diante disso, a construção de tais residências simboliza o possível parcelamento adequado para o AMA, ao passo que a demanda por uma casa no lote rural refletiu a ineficácia do PCA, que não atentou para as demandas dos assentados. O que se verifica, portanto, é a necessidade de uma casa no lote, independente da criação ou não da agrovila.

As alterações espaciais também são associadas à organização produtiva. Marcadamente, no ano de 2006, ocorreu um conflito entre a APROAMA e Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado do Pará (FETAGRI-PA) pela disputa de liderança do assentamento, o que provocou a desarticulação dos NB de produção. A partir de então, as famílias passaram a produzir de forma independente e/ou por associações formadas por afinidade entre os assentados. A nova configuração por associações independentes é a chave para a compreensão e implementação do PMCMVR. Por meio da produção e comercialização da produção agrícola, os assentados iniciam a construção de terceiras residências, de alvenaria, nesse caso, localizadas na beira da pista. Tais edificações representam a tendência de configuração do AMA, visto que a aproximação com as vicinais tem influência direta no aspecto econômico dos lotes, representado pela instalação de pequenos comércios em frente às casas construídas. O que se percebe é que os lotes rurais se constituem como mais adequados à finalidade do assentamento e são onde as expressões urbanas podem ser percebidas mais claramente.

O entorno urbano do assentamento influencia as atividades econômicas do assentamento, visto que a produção agrícola do AMA é voltada para subsistência e para comercialização. Por estar inserido num entorno com demandas diversas, o assentado trabalha na diversificação de produtos agrícolas para comercialização da produção. Em comparação ao início do assentamento, os lotes agrícolas estão bem mais desenvolvidos e com maior variedade de produtos, passando a desenvolver a aquicultura, contando com tanques para peixes, galinheiros e estufas. Tudo isso enquanto a localização na beira da pista é economicamente estratégica para a nova atividade econômica instalada na nova residência. Segundo os assentados entrevistados, os produtos podem ser comercializados de forma direta pelo assentado, tanto na testada do lote quanto nas praias do distrito, ou ainda nas feiras de produtos orgânicos em parceria com outras entidades.

Ao avaliar o processo evolutivo habitacional dos assentados do AMA, tem-se: a primeira série de casas construídas na agrovila com recursos do INCRA, as quais foram abandonadas ou comercializadas; a segunda série, de casas de madeira e barro construídas no lote rural; e, por fim, a terceira série, de casas construídas em alvenaria, também locadas no lote, sendo estas duas últimas construídas com recursos próprios. Uma característica que se destaca nesse processo é a heterogeneidade das moradias autoconstruídas pelo trabalhador rural, o qual, ao construir sua própria habitação, imprime sua história e o seu próprio ritmo construtivo, que depende diretamente do seu poder aquisitivo. Em contrapartida à heterogeneidade, ressalta-se o modelo do programa habitacional PMCMVR, sustentado em uma prática reprodutiva e homogeneizadora das unidades habitacionais.

6. Considerações finais

Quando se pensa em assentamentos rurais, as primeiras impressões estão relacionadas a estaticidade e isolamento. Contudo, o estudo do AMA mostra uma constante transformação desde o momento de sua implantação, a qual se refletiu na limitação da modalidade de assentamento do INCRA adotada. O Projeto Casulo, apesar de caracterizar-se pela proximidade aos centros urbanos e pela necessária parceria com governo municipal, apresenta escassez de discussão sobre a periurbanidade, retratada na adoção de um parcelamento precipitado do assentamento, que se mostrou inapropriado para o AMA. Ao tratar do AMA, destacam-se três aspectos interligados. O primeiro é a já citada escassez de discussão sobre o espaço periurbano nas políticas espaciais; ao lado disso, há os critérios da política habitacional do PMCMVR utilizados na análise que definiu a área rural do assentamento, e principalmente o distanciamento entre a elaboração das diretrizes dessas políticas “espaciais” para a realidade vivida pelo assentamento em questão.

O Projeto de Assentamento Casulo Mártires de Abril se mostra como instrumento materializado das políticas públicas, segundo indica este artigo, que, embora pensadas no âmbito nacional, se distanciam do que é experimentado pelos assentados dentro da realidade periurbana amazônica. O que correlaciona as políticas territoriais do assentamento é a precariedade e deficiência dos próprios programas. O INCRA, enquanto agente, busca implementar o assentamento e desenvolver a economia por meio da unidade produtiva, sem considerar o habitar do assentado, deixando a cargo dos beneficiários questões cruciais para manutenção e permanência. Por outro lado, o PMCMVR visa exclusivamente a unidade habitacional sem nenhum tipo de incentivo ao desenvolvimento produtivo. Frente às especificidades de cada programa, os assentados uniram as duas políticas “espaciais” por conta própria, implantando uma terceira adaptada à sua realidade, ao passo que tal união não significa saldo positivo aos assentados, visto que seu não-reconhecimento no panorama de políticas nacionais gera uma transferência de responsabilidades entre as esferas municipal e federal, deixando o AMA desassistido ao acesso de programas de incentivo governamental. No primeiro aspecto, destacam-se o INCRA e a PMB como agentes produtores do espaço que regularizaram a localização do assentamento, associando a modalidade do Projeto Casulo com base apenas na proximidade física do núcleo urbano, não considerando a dinâmica de crescimento urbano presente no distrito de Mosqueiro. Essa restrita associação ignora o contexto urbano no qual o assentamento está inserido, a presença das vias de acesso ao AMA e, principalmente, a proximidade da Praça de Carananduba que, em poucos anos, se mostrou importante centralidade do distrito e se tornou subsídio para questionar a identidade do AMA pelo próprio Estado.

O segundo aspecto se refere ao interesse econômico do PMCMVR em construir unidades habitacionais, ignorando o processo de formação do assentamento, a configuração espacial e o modo pelo qual o grupo de assentados se apropria do espaço. O programa não apresenta nenhum planejamento territorial, dando margem para a ressignificação do uso do solo verificada no local, com a substituição da área de produção agrícola por área residencial. Salienta-se aqui a prática de patrimonialização da unidade habitacional, transformada em um bem material essencial, possível de ser alcançado por meio do investimento. A partir da inserção dos modelos habitacionais do programa, a paisagem dos lotes rurais de produção é modificada, transformando-se em pequenas vilas familiares de casas de alvenaria, as quais substituem as casas de madeira e barro comumente adotadas pelos assentados.

Ressalta-se que esta não é uma crítica à necessidade de habitação rural, mas ao modelo homogeneizador do programa que é implantado na região sem planejamento adequado e às políticas habitacionais que não contemplam os espaços periurbanos, pois não acompanham a mutabilidade desses espaços. É premente atualizar políticas públicas “espaciais” e políticas específicas para espaços periurbanos na Amazônia, as quais devem ser participativas e pensadas da microescala para a macroescala dos assentamentos.

Referências

  • ABE, M. N. Mártires de Abril: o MST semeando a utopia camponesa. 2004. 199 f. Dissertação (Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2004.
  • BELÉM. Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém - CODEM. Portaria nº 64, de 14 de outubro de 1999. Diário Oficial do Município de Belém, Belém, PA, 15 out. 1999. n.p.
  • BELÉM. Secretaria de Economia. Portaria n. 061/97. Diário Oficial do Município de Belém, Belém, PA, out. 1997. n.p.
  • BELÉM. Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém - CODEM. Mapas da Área do Assentamento Mártires de Abril em Mosqueiro. 2001.
  • BRASIL. Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011. Altera a Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas [...]. Brasília: Palácio do Planalto, [2011]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12424.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12424.htm
  • BRASIL. Ministério das Cidades. Programa Nacional de Habitação Rural Brasília: Ministério das Cidades, 2013.
  • BROWDER, J.; GODFREY, B. Cidades da Floresta: urbanização, desenvolvimento e globalização na Amazônia brasileira. Manaus: EDUA, 2006.
  • CARDOSO, I. C. Cidade Capitalista e Política Urbana no Brasil do século XXI: como pensar a realidade periurbana?. In: SANTANA, J. V.; HOLANDA, A. C.; MOURA, A. S. (Org.). A Questão da Habitação em Municípios Periurbanos na Amazônia Belém: Ed.Ufpa, 2012. p. 29-52.
  • CORRÊA, R. Estudos sobre a Rede Urbana Rio de Janeiro, Bertand Brasil, 2006.
  • DE MELO, T.; SCOPINHO, R. Políticas públicas para os assentamentos rurais e cooperativismo: entre o idealizado e as práticas possíveis. Revista Sociedade e Estado - Volume 33, Número 1, 2018 p. 63-86.
  • FERREIRA, S. A Expansão dos Assentamentos Residenciais na Ilha de Mosqueiro: uma oportunidade de dispersão urbana no espaço metropolitano de Belém (PA) 2012. 138 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2012.
  • INCRA. Processo n. 541.00.001308/2001-62, referente à criação do Projeto Casulo Mártires de Abril. INCRA: Belém, 2001.
  • LEFEBVRE, H. The Production of Space Oxford: Blackwell, 1991.
  • LEFEBVRE, H. A Revolução Urbana Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1999.
  • LE TOURNEAU, François-Michel; BURSTYN, Marcel. Assentamentos rurais na Amazônia: contradições entre a política agrária e a política ambiental. Ambiente & Sociedade, Campinas v. XIII, n. 1. p. 111-130, 2010
  • MONTE-MOR, R. L. Extended urbanization and settlement patterns in Brazil: an environmental approach. In: BRENNER, N. (Ed.). Implosions/explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis, 2014. p. 109-120.
  • RIBEIRO, R. A Política Habitacional recente e sua expressão em municípios da Amazônia Oriental: os exemplos de São Sebastião da Boa Vista e São João do Araguaia - PA. In: SANTANA, J.; HOLANDA, A.; MOURA, A. (Org.). A Questão da Habitação em Municípios Periurbanos na Amazônia Belém: Ed.UFPA, 2012. p. 215-229.
  • SANTOS, C.; KRAJEVSKI, L. Assentamentos rurais e as modificações socioeconômicas no município de Rio Bonito do Iguaçu. Revista NERA, ano 21, n. 41, p. 39-61, 2018.
  • SOUZA, C. A contribuição de Henri Lefebvre para reflexão do espaço urbano da Amazônia. Confins, [s.l.], 2009. Disponível em: https://journals.openedition.org/confins/5633?lang=pt Acesso em: 10 maio 2017.
    » https://journals.openedition.org/confins/5633?lang=pt
  • TRINDADE JUNIOR, S.-T. Cidades e centralidades na Amazônia: dos diferentes ordenamentos territoriais ao processo de urbanização difusa. Revista Cidades São Paulo, v. 12, n. 21, p.305-334, 2015a.
  • TRINDADE JUNIOR, S.-T. Pensando a Modernização do Território e a Urbanização Difusa na Amazônia. Mercator, [s.l.], v. 14, n. 4, p.93-106, 2015b.
  • VALE, A.; GERARDI, L. Crescimento Urbano e Teorias sobre o Espaço Periurbano: Analisando o Caso do Município de Araraquara (SP). In: GERARDI, L.; CARVALHO, P. (Org.). Geografia: Ações e Reflexões. Rio Claro: Editora da Unesp, 2006. p. 231-246.
  • URUGUAI. Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente. Plan Quinquenal de Vivienda 2015-2019. 2015. Disponível em: https://goo.gl/QsGJMH Acesso em: 22 dez. 2018.
    » https://goo.gl/QsGJMH
  • 1
    Os nomes dos assentados entrevistados foram modificados visando preservar sua identidade.
  • 2
    Entrevista com Antônio realizada no dia 11 de março de 2017.
  • 3
    Verificar o artigo “A política habitacional recente e sua expressão em municípios da Amazônia Oriental: os exemplos de São Sebastião da Boa Vista e São João do Araguaia - PA” de Rovaine Ribeiro (2012)RIBEIRO, R. A Política Habitacional recente e sua expressão em municípios da Amazônia Oriental: os exemplos de São Sebastião da Boa Vista e São João do Araguaia - PA. In: SANTANA, J.; HOLANDA, A.; MOURA, A. (Org.). A Questão da Habitação em Municípios Periurbanos na Amazônia. Belém: Ed.UFPA, 2012. p. 215-229..
  • 4
    A Comissão Honorária para a Erradicação da Habitação Rural Insalubre (MEVIR) tem como missão trabalhar para garantir que a população rural uruguaia, principalmente daqueles em estado vulnerável, possa exercer seu direito à moradia de qualidade, fazendo uso adequado dos recursos alocados pela sociedade, no âmbito das políticas de desenvolvimento integral (produtivo, social, ambiental, territorial). (Traduzido pelos autores). (URUGUAI, 2015URUGUAI. Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente. Plan Quinquenal de Vivienda 2015-2019. 2015. Disponível em: https://goo.gl/QsGJMH . Acesso em: 22 dez. 2018.
    https://goo.gl/QsGJMH...
    .).
  • 5
    Entrevista com D. Maria, realizada no dia 07 de janeiro de 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2018
  • Aceito
    14 Jan 2019
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - ANPUR FAU Cidade Universitária, Rua do Lago, 876, CEP: 05508-080, São Paulo, SP - Brasil, Tel: (31) 3409-7157 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@anpur.org.br