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Fístula vesicovaginal por litíase: relato de caso

Vesicovaginal fístula caused by lithiasis: a case report

Resumos

As fístulas de etiologia traumática são raras, sobretudo as intrínsecas por litíase vesical. O manejo dessas fístulas tem controvérsias no que diz respeito à técnica cirúrgica ideal. Uma variedade de tratamentos tem sido descrita, incluindo reparação cirúrgica por vias transvaginal e transabdominal. Os autores relatam o caso de uma paciente com queixa de perda urinária contínua com evolução de seis meses, sendo identificado ao exame especular orifício fistuloso no terço médio da parede anterior da vagina, por onde se exteriorizava urina. Nesta topografia, identificava-se, durante o toque bimanual, estrutura de consistência pétrea. A suspeita de litíase vesical foi confirmada pela radiografia de pelve. O tratamento cirúrgico se deu em dois tempos, com exérese do cálculo vesical e posterior correção da fístula por via vaginal.

Fístula; Fístula vesicovaginal; Cálculo vesical


The fistulas caused by mechanical trauma are rare, mainly the intrinsic type caused by vesical lithiasis. The treatment of these fistulas is controversial, concerning the ideal surgical technique. Several techniques have been developed, including the transvaginal and the transabdominal surgical approaches. The authors report the case of a patient with urinary loss for six months. Physical and radiological examination showed the occurrence of a vesicovaginal fistula caused by vesical lithiasis. The treatment was in two stages: first the extraction of the vesical stone by transabdominal approach and second, the correction of the fistula by transvaginal approach.

Fistula; Vesicovaginal fistula; Bladder stones


RELATO DE CASO

Fístula vesicovaginal por litíase: relato de caso

Vesicovaginal fístula caused by lithiasis: a case report

Antônio Chambô Filho; Renata Costa Alves Kunsche; Valéria Lira Devens; Rolney Scardini; Fábio Leal Laignier Borges

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Antônio Chambô Filho Rua Constante Sodré nº 1027, apt 301 - Praia do Canto 29055-420 - Vitoria - ES

RESUMO

As fístulas de etiologia traumática são raras, sobretudo as intrínsecas por litíase vesical. O manejo dessas fístulas tem controvérsias no que diz respeito à técnica cirúrgica ideal. Uma variedade de tratamentos tem sido descrita, incluindo reparação cirúrgica por vias transvaginal e transabdominal. Os autores relatam o caso de uma paciente com queixa de perda urinária contínua com evolução de seis meses, sendo identificado ao exame especular orifício fistuloso no terço médio da parede anterior da vagina, por onde se exteriorizava urina. Nesta topografia, identificava-se, durante o toque bimanual, estrutura de consistência pétrea. A suspeita de litíase vesical foi confirmada pela radiografia de pelve. O tratamento cirúrgico se deu em dois tempos, com exérese do cálculo vesical e posterior correção da fístula por via vaginal.

Palavras-chave: Fístula. Fístula vesicovaginal. Cálculo vesical.

ABSTRACT

The fistulas caused by mechanical trauma are rare, mainly the intrinsic type caused by vesical lithiasis. The treatment of these fistulas is controversial, concerning the ideal surgical technique. Several techniques have been developed, including the transvaginal and the transabdominal surgical approaches. The authors report the case of a patient with urinary loss for six months. Physical and radiological examination showed the occurrence of a vesicovaginal fistula caused by vesical lithiasis. The treatment was in two stages: first the extraction of the vesical stone by transabdominal approach and second, the correction of the fistula by transvaginal approach.

Keywords: Fistula. Vesicovaginal fistula. Bladder stones.

Introdução

A abertura traumática entre o trato urinário e o meio externo é denominada fístula. Em todo mundo, a causa mais comum é o trabalho de parto obstruído1. O útero e a vagina são segmentos do canal genital que, em geral, participam da formação das fístulas urogenitais, predominando a variedade vesicovaginal2.

É provável que as fístulas vesicais em tocoginecologia existam desde que o homem assumiu sua postura ortostática, sendo o caso mais antigo até agora conhecido o descrito por Derry no Egito em 2050 aC3. Apesar da escassez de dados estatísticos precisos, sabe-se que as fístulas urogenitais são freqüentes no Brasil2.

As fístulas constituem um dos grandes problemas ginecológicos, tanto pela complexidade de que se reveste seu tratamento, como pelos transtornos que as lesões fistulosas acarretam à paciente, em decorrência do escoamento incontrolável de urina através da vagina, responsável pela umidade e irritação constantes de seus genitais. A enfermidade também reflete-se no relacionamento social e familiar do doente. Devido ao odor fétido que exala, o convívio com a fistulosa torna-se constrangedor para ela própria e mesmo para os mais íntimos, levando-a conseqüentemente ao isolamento voluntário ou resultante do abandono até pelo próprio companheiro2.

Quanto à etiologia, as fístulas podem ser classificadas em obstétricas, cirúrgicas, neoplásicas, urológicas, traumáticas, actínicas, inflamatórias e congênitas2. As fístulas vesicovaginais traumáticas são raras. Counseller e Welch4 encontraram o trauma como fator etiológico em 1,7% das fístulas geniturinárias.

Santos5, em estudo que incluía 351 casos de fístulas urogenitais atendidos na clínica ginecológica do Hospital Getúlio Vargas da Universidade Federal do Piauí (Teresina) num espaço de 31 anos, incluindo 190 casos publicados em monografia anterior, observou apenas 2 casos (0,6%) de fístulas traumáticas, um por cálculo vesical e um por empalação.

As fístulas traumáticas podem ser divididas para fins didáticos em extrínsecas e intrínsecas. As extrínsecas podem ser causadas por cateterismo vesical, queda a cavaleiro (empalação), acidente de trânsito com fratura de bacia, lesões por arma branca ou projétil de arma de fogo, instilação de líquido corrosivo na vagina, entre outros. As fístulas traumáticas intrínsecas quase sempre são decorrentes de cálculos vesicais, que formam um pertuito através da parede vesical ou da uretra em direção à vagina por compressão e necrose, e geralmente estão associadas a infecção de repetição do trato urinário2.

A maioria das fístulas vesicovaginais são fáceis de diagnosticar e classicamente apresentam-se como perda urinária diurna e noturna. As manobras diagnósticas que podem auxiliar na demonstração de uma pequena fístula em situações duvidosas incluem instilação de azul de metileno na bexiga com a colocação de tampão vaginal ou infusão de dióxido de carbono na vagina, o que induz à formação de bolhas quando se realiza cistoscopia. Durante a uretrocistoscopia com vaginoscopia, o tamanho e a posição exata da fístula em relação aos óstios ureterais devem ser bem documentados6.

O manejo de fístulas vesicovaginais representa um ponto de controvérsia no que diz respeito à técnica cirúrgica ideal. Uma grande variedade de tratamentos foi descrita, incluindo reparação cirúrgica por vias transvaginal e transabdominal7.

Relato do Caso

Paciente DPJ, 37 anos, procurou ambulatório de cirurgia ginecológica da Santa Casa de Misericórdia de Vitória no dia 21 de dezembro de 1998, em bom estado geral, porém fragilizada psicologicamente, relatando perda de urina contínua com evolução de 6 meses, associada a dor no baixo ventre, disúria e transtorno no convívio social e familiar. Negava doenças ou cirurgias anteriores. Entre os antecedentes ginecológicos, relatava ciclos menstruais regulares, sendo o último parto transpélvico há 14 anos.

Ao exame físico a paciente apresentava-se em regular estado geral, corada e hidratada, com PA de 130/70 mmHg. Ao exame ginecológico observava-se vulva hiperemiada e com odor amo-niacal e vagina úmida. Ao introduzir espéculo identificou-se presença de urina em moderada quantidade na vagina, sendo identificado no terço médio de sua parede anterior um orifício fistuloso. Ao exame de toque bimanual identificou-se estrutura de consistência endurecida (pétrea) na topografia da fístula, comprimindo-a.

Após internação foi realizado o teste com azul de metileno que confirmou a presença de fístula vesicovaginal. Foram solicitados exames pré-operatórios de rotina, que vieram sem alterações, com exceção do exame de sedimento urinário e urocultura que comprovaram infecção urinária (Escherichia coli sensível a norfloxacina), e também da radiografia de abdome/pelve, que evidenciou em topografia vesical uma imagem radiopaca sugerindo litíase vesical (Figura 1).


A conduta proposta foi tratamento clínico da infecção do trato urinário com norfloxacina durante dez dias por via oral, sendo realizado a seguir cistotomia por via abdominal, com retirada de três cálculos vesicais de aproximadamente três centímetros de diâmetro cada, que se encontravam impactados no trígono vesical. Após intervalo de três meses, procedeu-se ao reparo cirúrgico da fístula por via vaginal. A técnica cirúrgica empregada pode ser assim descrita: paciente em posição de litotomia; realização de cateterismo suprapúbico; identificação da fístula com ressecção do trajeto fistuloso, retirando-se todo tecido fibrosado até que as margens ficassem livres; fechamento das paredes vaginal e vesical em dois planos, com suturas perpendiculares entre si e interposição de peritônio entre esses planos. A paciente recebeu antibióticos no pós-operatório e o cateter vesical foi retirado no décimo quarto dia. A paciente recebeu alta hospitalar com orientações quanto a abstinência sexual por no mínimo três meses e quimioprofilaxia para infecção do trato urinário.

Foi realizada cistoscopia de controle três meses após a cirurgia, cujo padrão foi normal. A paciente recebeu quimioprofilaxia com ácido nalidíxico por seis meses.

Discussão

As fístulas vesicovaginais representam para suas portadoras uma condição médica e social de difícil aceitação e, por este motivo, grande atenção deve ser dada para resolução deste problema. Caracterizam-se pela história de perda contínua e involuntária de urina, sem relação com a posição que a paciente assume. Cerca de 62,5% das pacientes portadoras de fistulas urinárias se encontram entre a 5ª e 6ª década de vida, sendo a fístula vesicovaginal a mais freqüente entre as urinárias. A causa mais freqüente dessas fístulas em nosso meio é a histerectomia abdominal.

As fístulas vesicovaginais de etiologia traumática são raras, e dentre elas estão as causadas por litíase vesical5. Os cálculos primários da bexiga são relativamente raros e estão geralmente associados a urina estéril, já os cálculos secundários estão freqüentemente associados a estase urinária e infecção crônica do trato urinário.

As fístulas vesicovaginais por litíase vesical podem ser conseqüência de um fator extrínseco. Isto ocorre quando há deposição de sais urinários em torno de um núcleo constituído por material estranho, como fios inabsorvíveis de cirurgias anteriores. Por outro lado, alguns cálculos provenientes dos ureteres podem se impactar na parede posterior da bexiga, alcançando grandes dimensões, causando isquemia e necrose do tecido local que são suficientes para formação de um trajeto fistuloso com a vagina, além de predispor o meio à infecção4. O caso relatado se associa provavelmente à segunda situação, uma vez que a paciente não referia cirurgias anteriores.

O diagnóstico foi feito basicamente por meio da anamnese e do exame clínico-ginecológico, além de exames complementares como o teste com azul de metileno e radiografia pélvica. A literatura aponta como métodos propedêuticos auxiliares a radiografia simples da pelve (90% dos cálculos são radiopacos), além da urografia excretora e cistoscopia4.

A abordagem terapêutica proposta foi inicialmente clínica, visando o controle da infecção do trato urinário, com posterior tratamento cirúrgico em dois tempos, ou seja, cistotomia com exérese dos cálculos e, após intervalo de três meses, correção da fístula por via vaginal. Todavia, alguns estudos recomendam que não se aguarde tanto tempo para se fazer o tratamento cirúrgico e que este seja realizado logo que haja condição ideal dos tecidos lesados7.

Várias técnicas têm sido desenvolvidas para reparar cirurgicamente as fístulas vesicovaginais, porém a técnica utilizada para cada caso deve ser aquela com a qual o cirurgião tenha alcançado resultados satisfatórios8-11.

Ayhan et al.12 fazem referência aos princípios essenciais no manejo cirúrgico das fístulas genitais, enumerados por Sims em 1949, os quais são: boa visualização e adequada exposição da lesão, sutura sem tensão e apropriado estado nutricional do paciente. Os autores afirmam que esses princípios devem ser rigorosamente seguidos para se obter bom êxito cirúrgico.

Estudos recentes têm questionado os méritos da correção tardia ou imediata desta fístulas, bem como da utilização das vias de reparo abdominal ou vaginal12-15.

Diaz Calleja et al.16 relataram excelentes resultados na intervenção cirúrgica de seis pacientes com fístula vesicovaginal mediante abordagem abdominal-transvesical, sendo uma delas decorrente de litíase vesical múltipla. Stovsky et al.17 referem sucesso com utilização da fulguração transuretral em fístulas relativamente pequenas16. Mckay18 relatou o tratamento de um caso de fístula vesicovaginal e vesicocutânea usando a via transuretral para cistorrafia, referindo este autor ser esta via não indicada para os casos nos quais as fístulas são extensas, associadas a anormalidades como obstrução uretral ou em casos com a possibilidade de uretra estenótica.

Preconiza-se neste serviço que a correção das fístulas jamais ocorra na fase de instalação das mesmas. Recomendamos a espera de três a quatro meses contados a partir da instalação da fístula para que se proceda à correção cirúrgica, a fim de que o trajeto fistuloso se defina e a fibrose substitua o tecido friável local.

Recebido em: 22/2/2001

Aceito com modificações em: 21/1/2003

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  • Endereço para correspondência
    Antônio Chambô Filho
    Rua Constante Sodré nº 1027, apt 301 - Praia do Canto
    29055-420 - Vitoria - ES
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2003
    • Data do Fascículo
      Ago 2003

    Histórico

    • Aceito
      21 Jan 2003
    • Recebido
      22 Fev 2001
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