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A diferenciação do cérebro masculino e feminino

The differentiation of male and female brain

EDITORIAL

A diferenciação do cérebro masculino e feminino

The differentiation of male and female brain

Lucia Alves Da Silva LaraI; Adriana Peterson Mariano Salata RomãoII

IAmbulatório de Estudos em Sexualidade Humana, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil

IIDepartamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universiade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil

Correspondência Correspondência: Lucia Alves da Silva Lara Avenida Bandeirantes, 3.900 - Vista Alegre CEP: 14049-900 Ribeirão Preto (SP), Brasil

A diferenciação anatômica, psíquica e emocional entre os gêneros masculino e feminino é bastante complexa e envolve os fenômenos biológicos referentes à genética e à ação dos esteroides sexuais, além dos fenômenos epigenéticos, os quais atuam simultaneamente para promover ou eliminar a diferenciação dos circuitos neurais cerebrais entre os sexos1. Em especial, o conhecimento sobre os aspectos biológicos da formação da identidade de gênero é bastante restrito, uma vez que a maioria dos estudos sobre a anatomia e a influência hormonal nesse processo é baseada em experimentos com animais extrapolados para humanos. Já a influência do componente psíquico, sob o controle do processo de socialização do indivíduo, supostamente, faz parte da definição da identidade de gênero; entretanto, isso ainda é um assunto controverso.

Identidade de gênero significa a consciência que a pessoa tem de ser homem ou mulher2, e quando ocorrem alterações nessa diferenciação ocorre o transexualismo, definido como sendo a incongruência entre o fenótipo (masculino ou feminino) e o sentimento de ser um ser masculino ou feminino2.

As diferenças sexuais resultam do desequilíbrio inerente aos genes codificados pelos cromossomas sexuais (X,Y). No braço curto do cromossoma Y está localizado o gene SRY, o qual determina a formação da gônada masculina3. Esse gene se expressa especificamente nos neurônios que expressam a enzima tirosina hidroxilase da substância negra cerebral. Em estudo experimental com ratos machos, a supressão do SRY resulta em déficit motor, embora o número de neurônios permaneça o mesmo4, o que sugere o envolvimento desse gene em importantes propriedades bioquímicas dos neurônios dopaminérgicos do sistema nigroestrial no sexo masculino. As células cerebrais da mulher e do homem apresentam diferenças nos padrões de expressão de outros genes que são específicos para o cérebro em desenvolvimento, os quais determinam funções e habilidades específicas para cada gênero1.

Do ponto de vista anatômico, as diferenças entre os cérebros masculino e feminino estão relacionadas às dimensões de regiões específicas. Durante o desenvolvimento do concepto, os núcleos do dimorfismo sexual e periventricular anteroventral da área pré-optica inicialmente contêm o mesmo número de neurônios. Entretanto, com o aumento na apoptose celular mediada pelo estradiol na mulher, o núcleo do dimorfismo sexual torna-se menor. Ao contrário, no sexo masculino o estradiol tem efeito antiapoptótico nesse mesmo núcleo, o que o torna três a cinco vezes maior no sexo masculino5. Já o núcleo paraventricular anteroventral é maior nas mulheres, sendo menor nos homens devido ao efeito pró-apoptótico do estradiol nessa área5. O mesmo ocorre em ratos; entretanto, essas diferenças são reduzidas quando essas ratas são tratadas com testosterona6. O terceiro núcleo intersticial do hipotálamo anterior (INAH-3), considerado o homólogo do núcleo do dimorfismo sexual da área pré-optica é maior em homens do que nas mulheres7. O volume da subdivisão central do núcleo do leito da estria terminal - uma área essencial para o comportamento sexual - é maior nos homens do que nas mulheres8.

A influência dos esteroides sexuais principalmente na organização do cérebro masculino é bastante conhecida. Tanto a testosterona como o estrogênio participam da organização do cérebro no sentido masculino. A primeira "onda" da testosterona ocorre entre a sexta e oitava semanas da gestação proveniente da gônada masculina e será responsável pela diferenciação da genitália. Já no cérebro, a testosterona sofre a conversão em dihidrotestosterona, a qual será responsável por organizar as conexões cerebrais no sentido masculino, promovendo uma grande variedade de comportamentos masculinos que diferenciam os dois sexos9. Entretanto, em sua forma original, a testosterona atua também na área pré-optica (APO), uma região do cérebro responsável pelo comportamento sexual masculino e feminino10. A APO é rica em aromatase e em receptores dos esteroides sexuais, possibilitando assim a conversão da testosterona em estrogênio, sendo este crucial para o processo de masculinização do cérebro masculino11. No cérebro masculino, o estrogênio promove a desfeminização, o que leva à supressão das funções cerebrais femininas no homem, induzindo-o a assumir atitudes e exercer funções tipicamente masculinas. O mecanismo pelo qual o estrogênio participa da masculinização do cérebro é bastante complexo. Sabe-se que o estrogênio induz a síntese de prostaglandina E2 (PGE2) em uma proporção sete vezes maior que o normal na área pré-óptica12 e, ao ligar-se aos seus receptores EP2 e EP4, a PGE2 funciona como um elemento indutor do comportamento sexual masculino13,14. Além desse mecanismo, o estrogênio estimula a expressão da enzima decarboxilase glutâmica ácida no núcleo arqueado da área pré-optica, aumentado a síntese do ácido gama-aminobutírico (GABA)15. O GABA atua nos astrócitos para induzir o processo de formação das ramificações dendríticas16. Em relação à mulher, o homem possui densidade maior de ramificações dentríticas na área pré-optica medial e maior concentração da proteína epinofilina. A associação desses dois elementos é essencial para promover o comportamento masculino típico13. O momento certo da ação estrogênica no mecanismo de masculinização cerebral é ainda desconhecido, mas, em experimentos com ratos, ocorre mais para o final da gestação e nos dez primeiros dias de vida extrauterina5,17.

A segunda "onda" de esteroides sexuais ocorre na puberdade e é considerada a fase de "refinamento" da diferenciação sexual, quando ocorre a organização dos circuitos neurais sexuais no cérebro do adolescente em desenvolvimento, facilitando a expressão do comportamento sexual típico do adulto dentro do contexto social específico18.

A formação da consciência da mulher de ser um ser feminino (identidade de gênero feminino) é um processo também complexo e pouco conhecido. Entretanto, há indícios de que seja este também um processo ativo secundário aos fenômenos mediadores da feminização. Algumas enzimas, em especial a focal adhesion kinase (FAK) e sua proteína associada paxilina, são responsáveis por regular a adesão celular e interagem na matriz extracelular no sentido de promover o crescimento axonal e dendrítico e de suas ramificações. Essas ramificações dendríticas são pequenas protuberâncias que projetam dos dendritos e são os locais onde se formam as sinapses19. Em experimentos animais, os recém-nascidos femininos têm mais FAK e paxilina no hipotálamo do que os masculinos, e isso está associado com a redução do número de ramificações dendríticas20 dos neurônios na área pré-óptica desses animais. A PG2 também controla a formação das ramificações dendríticas e, quando administrada a fetos femininos resulta em masculinização do cérebro e induz estes ao comportamento masculino12. O núcleo ventromedial (NVM), localizado no hipotálamo médio basal, é a região chave para o controle do comportamento sexual feminino21.

A ação dos esteroides sexuais perdura até o período pós-natal imediato (1 - 3 meses) quando ocorre o aumento nos níveis da testosterona22 no sexo masculino. Na menina, durante o primeiro ano de vida, os níveis da testosterona permanecem os mesmos, enquanto nos meninos a testosterona aumenta e reduz rapidamente, mantendo-se em níveis pré-puberais23. Não se sabe ao certo as implicações desse fenômeno na definição da identidade de gênero.

Parece que a concentração de testosterona no sangue e líquido amniótico de mães com crianças masculinas normais tem correlação com a identidade de gênero da criança9. Em experimentos animais, a exposição de ratas grávidas à testosterona resulta em alteração de importantes aspectos do comportamento sexual e social da prole desses animais que passam a apresentar, na vida adulta: comportamento mais agressivo, redução da expressão do comportamento feminino (lordose) nas fêmeas com maior tendência ao comportamento masculino para a cópula (monta)24,25, além de retardo na puberdade. Isso aponta para possível alteração dos conceptos de mulheres grávidas expostas a testosterona, as quais podem oferecer um ambiente intrauterino com níveis elevados desse hormônio, podendo potencialmente afetar os padrões de comportamento sexual de seus filhos na idade adulta26.

A influência hormonal na diferenciação e expressão sexual é importante, mas o processo de socialização do individuo é reconhecidamente fundamental para a construção da sua sexualidade e terá implicações na expressão sexual. Nos primeiros anos de vida a construção da sexualidade está vinculada à influência dos pais, cuidadores, professores, colegas de grupo, os quais instigam a criança a assumir o papel e induzem-na às preferências relacionadas a seu gênero27,28. A criança começa a entender que é homem ou mulher e esse conhecimento motiva-a a imitar o seu sexo29,30. Os pais são cruciais para o encorajamento da expressão típica do modo masculino ou feminino de ser. Entretanto, nas meninas sujeitas a ambiente intrauterino hiperandrogênico, o esforço dos pais em fazer com que elas tenham comportamento feminino, principalmente na escolha dos brinquedos é falha27, o que indica ser o imprinting hormonal um determinante do gênero. Entretanto, em meninas com identificação de gênero assegurada é importante o reforço dos pais ou cuidadores para a socialização da criança dentro do seu gênero, para que ela assuma o papel típico do seu gênero31.

Recebido 04/10/2012

Aceito com modificações 04/12/2012

Trabalho realizado no Serviço de Obstetrícia e Ginecologia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil.

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  • Correspondência:
    Lucia Alves da Silva Lara
    Avenida Bandeirantes, 3.900 - Vista Alegre
    CEP: 14049-900
    Ribeirão Preto (SP), Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013
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